— O caminhão do Seu Mixirico tá chegano! — anunciaram as crianças alvoroçadas.
Todos esperavam ansiosos, pois naquele mesmo dia iriam à festa anual de São Sebastião, na cidade sede do Município.
Enquanto as pessoas se acomodavam no caminhão, Seu Mixirico aproveitava o tempo para esticar as pernas, contar algumas fofocas e tomar uma xícara de café.
— Apêia! Seu Mixirico. Vâmo entrá pra tomá uma xícra de café — convidou Osório.
— Vô aceitá um golin — agradeceu o convite.
— Bom dia Mundico!
— Bom dia, Seu Mixirico.
— Mais cumé que tão as coisa lá na cidade? — perguntou Osório.
— Ih! Seu Osório, as coisa lá tão um frevedô danado! Causo que tem uma impresa que chegô na região e tá comprano as terra tudo!
— Que impresa é essa?! — perguntou Osório.
— O nome eu num sei falá, porquê é um nome istrangêro. Mais eu sei que ela mexe cum prantação de calípito. Sabe aquelas árvi fininha e arta, que usa pra fazê lenha, poste, cabo de ferramenta e inté papel?
— Já uví falá — respondeu Osório. — Mais, ondi é que eles já tão prantano esses tar calípito?
— Lá pras banda da fazenda do finado Gerômi tem uma prantação deles, e os pé de calípito já tão cum quais trêis parmo de artura, tudo verdin, dá inté gosto de vê.
p. 28No dia seguinte, Zelito que também havia ido à festa de São Sebastião, confirmou as novidades que o Seu Mixirico contara:
— Cumpadi Osório! Cê num vai creditá!
— Que foi Zelito? — perguntou Osório.
— Num é que o Seu Mixirico tava certo?! Tá um ribuliço danado na cidade.
— Intão conta, homi de Deus! — Osório já não se aguentava de curiosidade.
— Sabe a tar impresa de calípito? Pois é, os caminhão e os tratô deles tão pra tudo quanto é banda lá na cidade. Pra todo o lugá que ocê óia, cê vê um trabaiadô deles, usando um uniforme verdi, qui nem aqueles que usa nos posto de gasulina.
E ocê ainda num sabe da maió! — prosseguiu Zelito — Hora que eu tava na venda do Zé Caroço, eu iscuitei que essa impresa vai arrumá imprego pra quais todo o mundo do municipo, e vai tamém trazê um monte de benefíci pra região.
— Uai cumpadi, intão o trem vai cê bão di mais da conta! — Comentou Osório entusiasmado.
Daquele dia em diante, no povoado de Mutamba, não se falou noutra coisa. Todos ansiavam pela aproximação da tal empresa de eucalipto.
Finalmente, entre os muitos vaivéns de Seu Mixirico ao povoado, chega a grande notícia.
— Óia aqui gente! — chamou Seu Mixirico a atenção de todos. — O Prefeito pediu pra eu trazê procêis uma notícia muito boa!
Imediatamente, foi se formando um amontoado de moradores em torno de Seu Mixirico.
— O prefeito mandô dizê que daqui uns dia, ele, pessoarmente, mais uns figurão lá da impresa de calípito, vai parecê aqui, no povoado de Mutamba, modi falá sobre os prano que eles tem de prantá calípito, aqui nas redondeza de Mutamba e inté botá uma indústria pra fabricá umas coisa que eu num sei bem o que é, mais o prefeito vai contá tudo direitin quano ele vié falá cum ocêis.
No dia seguinte, ao alvorecer, Mundico, como era de costume, já estava a caminho do roçado, acompanhado por Osório, o cavalo Tramela e o cachorro Linguira. Debaixo de um sol de agosto, enquanto lançava sua amolada foice sobre a capoeira, seu pensamento era atravessado, de um lado a outro, pela tal empresa de plantação de eucalipto cujo nome ainda lhe era desconhecido.
De volta ao povoado, Mundico deixou seu pai em casa e se dirigiu para a casa de seu primo Ranufo. Tinha em mente convidá-lo para uma pescaria no riacho próximo ao povoado.
— Ranufo?! — enquanto gritava o nome do primo, era recepcionado pela tia Elvira e alguns cachorros barulhentos.
— O Ranufo já invém — respondeu a tia. — Entra um instantin pra proziá mais eu.
— Dêxa prôta hora tia. Agora nóis vamo pegá umas traíra — respondeu Mundico.
Naquele mesmo instante, surge Ranufo com todos os seus equipamentos: facão, lamparina, vara de pesca e um embornal feito de couro de vaca.
— Cê tá levano as isca primo? — perguntou Ranufo.
— Tô!
— Intão vâmo logo, se não vai ficá tarde! — advertiu Ranufo.
p. 29Assim, seguiram os dois a pé, escoltados pela inseparável dupla, Linguira e Rasgado.
Durante a caminhada, Mundico aproveitou o momento para compartilhar com o primo algumas de suas preocupações.
— Primo?
— Que é Mundico?
— Sabe a tar impresa de calípito que o Seu Mixirico falô?
— Sei.
— Será que nóis vâmo trabiá nela?
— Pra quê? — perguntou Ranufo. — Nóis já num trabáia na roça dos nosso pai?
— Trabaiamo — respondeu Mundico. — Mais, na impresa de calípito é diferente...
— Diferente por que Mundico? Num é um trabaio de roça quinen os ôto?
— Não primo! Se a gente trabaiá lá, a gente fica importante!
— Importante? Que negócio é esse de ficá importante?
— Ora, as pessoa começa a gostá da gente! — respondeu Mundico.
— Mais todo mundo lá na Mutamba já num gosta da gente?
— Gosta, mais é diferente... — respondeu Mundico.
— Num tô intendeno nada do que cê tá falano, primo.
Se todo mundo de Mutamba já gosta da gente, pra quê intão nóis precisa trabaiá lá na tar impresa?
— Dêxa de sê lerdo primo! Vô expricá procê dôto jeito: sabe o Seu Mixirico?
— Sei.
— As pessoa gosta dele?
— Gosta uai!
— As pessoa de Mutamba acha ele importante?
— Deve de achá tamém, uai!
— As pessoa gosta dele porque ele é importante, ou ele é importante porque as pessoa gosta dele?
— Por causa das duas coisa uai! — respondeu Ranufo.
— Não primo! As pessoa acha ele importante causo que ele é dono do caminhão, e gosta dele porquê ele é um homi bão.
— Intão, se ele num fosse dono do caminhão, mesmo ele seno um homi bão, as pessoa num ia gostá dele? — perguntou Ranufo.
— Ia gostá primo, mais ia gostá dôto jeito...
— Cê tá mi dexano doido Mundico! Como que as pessoa pode gostá das ôta de dois jeito? Gostá é gostá, num gostá é num gostá uai! — concluiu Ranufo, completamente confuso com as ideias de Mundico.
— Ah! Primo, dêxa de sê tonto! Mi responde uma coisa: Ocê gosta da Josilene, fia do Zé Tuvira, num gosta? — perguntou Mundico.
— Gosto, uai! Mais causo de que cê tá mi perguntano isso agora?
— Presta atenção primo: Vâmo pensá se ocê, de uma hora pra ôta, começasse, todo o mêis, recebê um dinheiro, cumé que ocê acha que ia sê as coisa?
— Uai, do mêmo jeito! Só que eu ia dá o dinheiro pro meu pai fazê as compra lá pra nossa casa: macarrão, café, açúcar, querosene pra lamparina, e ôtas coisa que a gente pricisa.
— Não, seu tonto! — interrompeu Mundico. — Tô perguntano como é que ocê acha que a Josilene ia oiá procê, se ocê começasse a ganhá dinhêro todo o mêis?
— Num sei, uai. Acho que do mêmo jeito que ela sempre mi oiô, cum o zói! — respondeu Ranufo em tom jocoso.
— Craro que não, sua besta! Ela vai oiá procê do mêmo jeito que as pessoa, lá de Mutamba, óia pro Seu Mixirico.
— De que jeito? — perguntou Ranufo.
p. 30— Como uma pessoa importante! Cê intendeu agora?
As pessoa de Mutamba vai gostá docê de dois jeito: causo que ocê é uma pessoa boa, e causo que ocê recebe dinheiro todo mêis!
— Intão, eu vô sê uma pessoa importante, mais a Josilene não? — perguntou Ranufo.
— Isso mêmo primo! Agora ocê tá começano a intendê as coisa. As pessoa vai gostá docê de dois jeito: porque ocê é bão, e por que ocê é importante. Já a Josilene, as pessoa vai gostá dela de um jeito só: causo que ela é uma pessoa boa, mais num é importante.
— Intão isso vai sê muito rúin! — concluiu Ranufo.
— Mais por quê? — perguntou Mundico.
— Causo que a Josilene, toda vêis que oiá pra eu, num vai mais vê o que ela via antes, só uma pessoa boa. Quano ela oiá pra eu, ela vai vê uma pessoa mais importante do que ela. E eu, quano oiá pra ela, vô vê uma pessoa que é boa, mais que num é importante quinem eu. E se nois resolvê casá, num vai dá certo, porque as pessoa vai oiá pra ela e vai dizê: “óia lá a Josilene, fia do Zé Tuvira, só casô cum o Ranufo porque ele é importante”. E os nosso fío, quano tivé criscido, vão pensá assim: “meu pai é importante, mais minha mãe num é”. Por isso, primo, eu prifiro as coisa do jeito que tá, a Josilene gosta de mim só porque eu sô bão pra ela, e, se eu continuá seno bão pra ela, e ela pra mim, é sinal que nóis num vâmo pricisá dôto tipo de importância pra continuá seno bão um prô ôto.
Àquela conclusão de Ranufo retirara a Mundico todo o seu afã de continuar transmitindo ao primo suas ideias sobre os benefícios advindos de uma possível situação de emprego, na tão propalada empresa de eucalipto.
Três dias após aquela pescaria, em um domingo pela manhã:
— Óia gente! Tá chegano treis carro — noticiaram algumas crianças que brincavam na porta da casa de Mundico.
p. 31— Deve de sê o prefeito Digoberto, mais os pessoal da impresa de calípito — comentou Osório.
Osório estava certo. A comitiva chegou numa nuvem de poeira e fora carinhosamente recepcionada por todos os presentes. Apesar da pequena dimensão do povoado de Mutamba, o contínuo ruído do vento, soprando contra as folhas das árvores, o alvoroço das crianças e os seguidos latidos dos cachorros, interferiam no pronunciamento do prefeito. Então, alguém sugeriu utilizar a carroceria do caminhão de Mixirico como um palanque improvisado. Enquanto a pequena população se acomodava em torno do caminhão, alguns assistentes da prefeitura aproveitaram a oportunidade para fazer doações de cestas de alimentos às mães e de doces para as crianças. Logo o prefeito tomou a palavra:
— Bom dia, meu povo! Hoje é um dia muito importante, porque eu vim trazer pra todos os moradores da região de Mutamba, excelentes notícias. Como já é de conhecimento de toda a população da cidade de São José do Chapadão, nossa administração sempre se preocupou em trazer o progresso e o desenvolvimento pro nosso município. E eu, Digoberto Ataíde de Miranda Caixeta, prefeito da nossa cidade, nunca medi esforços, Deus é testemunha disso, para trazer conforto e melhoria de vida para toda a nossa população. Como prova disso, quero apresentar para vocês o Sr. Michael Green, representante da Eucaliptal Papel e Celulose S.A, empresa de reflorestamento de eucalipto que, certamente, trará muitos benefícios para todo o nosso município.
A fala do prefeito despertou muita euforia, gritos e palmas. Em seguida, o prefeito passou a palavra para o Sr. Green.
— Muito bom dia. Quero dizer a todos que me sinto muito feliz de poder dizer a vocês que a região de Mutamba foi uma, dentre as muitas regiões escolhidas, para deixar de ser uma região isolada e pobre, para se tornar uma região de desenvolvimento e riqueza.
Enquanto o Sr. Green falava, os moradores pareciam paralisados. Mundico, a fim de obter uma melhor visão, se enganchou em um galho que se projetava de um pé de baru, a alguns metros do caminhão.
— Em breve — prosseguiu o Sr. Green —, estabeleceremos uma base, nas proximidades do povoado de Mutamba, para darmos início às operações iniciais de demarcação, desmatamento e construção de cercas. E como somos uma empresa que se preocupa com o desenvolvimento humano, ofereceremos possibilidades de emprego a todos os moradores locais interessados, desde que se enquadrem nos padrões exigidos pelo nosso RH.
Imediatamente após o termino de seu discurso, Sr. Green e os outros deixaram o povoado. Mundico continuou enganchado no galho da árvore, observando a comitiva do prefeito desaparecer no horizonte.
— Mundico? — chamou-lhe a mãe. — Desce dessa árvi e vai ajudá seu pai!
p. 32Enquanto os dois colhiam feijões de corda armazenando-os dentro de um jacá, feito a partir de folhas de buriti, Mundico aproveitou para trocar com o pai algumas ideias sobre as promessas do prefeito.
— Pai?
— Qui é, Mundico?
— O quê que o Sinhô achô das promessa do prefeito e daquele homi da impresa de calípito?
— Óia Mundico, eu mêmo num intendi quais nada do que aquele homi falô. Só umas pôca coisa quano ele falô que ia trazê riqueza, arrumá imprego, e quem ia contratá as pessoa pra trabaiá era um sujeito chamado RH.
— Se eu interessá em trabaiá lá, o sinhô ia achá rúim?
— Não Mundico. O pai e a mãe qué o mió procê!
— E o sinhô? Tamém vai querê trabaiá lá?
— Ah! Mundico. Seu pai já é um homi véi, que num tem leitura. O quê que esse povo desinvorvido ia querê cum homi quinem seu pai? Adispois, quem ia cuidá da roça, das cabra e dos animal? Acho que essa impresa, Mundico, só vai querê dá imprego pras pessoa mais nova, quinem ocê e o Ranufo.
Aquelas palavras de Osório eram tudo o que Mundico desejava ouvir para manter viva a sua esperança de se tornar um empregado da Eucaliptal.
Cada dia que passava parecia uma eternidade para Mundico, quão grande era a sua ansiedade. Até que um dia:
— Mãe! — Mundico adentrou a casa numa carreira desembalada. — O pessoal da Calipital chegô e tá fazeno ficha pra contratá gente!
— Intão corre Mundico! Vai lavá os pé, põe aquela sua camisa vermeia, e vê se num isquece os dicumento! Ah! E passa um pente nesse cabelo tamém — aconselhou a mãe entusiasmada.
Mundico se aproximou de um pequeno grupo de moradores locais, que se enfileirava na porta da frente de um ônibus adaptado como escritório.
— Próximo! — era a vez de Mundico.
p. 33— Por favor — disse o funcionário da empresa a Mundico entregando-lhe uma folha de papel. — Preencha essa ficha, colocando seu nome completo, idade, local de nascimento, estado civil e suas últimas experiências de trabalho.
Mundico, de tão nervoso que estava quase não conseguiu preencher a ficha que lhe fora entregue. Entretanto, somente após sair do ônibus se deu conta de que seu inseparável primo Ranufo cumprira com a promessa de não se inscrever.
Na semana seguinte, o mesmo ônibus voltou ao povoado, a fim de convocar aqueles que haviam sido aprovados.
Mundico se encheu de felicidades ao ouvir o funcionário chamar pelo seu nome.
— Todos os nomes que eu chamei — disse o funcionário —, deverão seguir para o ônibus, pois serão levados para o município vizinho, onde irão passar por um treinamento de trinta dias, antes de iniciarem as atividades aqui na região de Mutamba.
Despedindo-se de seus pais, Mundico entrou no ônibus cheio de esperanças.
Foram trinta dias intensos para Mundico. Lá, ele aprendeu como usar uma série de ferramentas e equipamentos, destinados ao corte e transporte de madeiras. Igualmente, assistiu a uma série de vídeos sobre o funcionamento da empresa e suas preocupações com o meio ambiente.
De volta ao povoado, foram recebidos com muito entusiasmo. Mundico, cheio de orgulho, exibia seu novo figurino: um macacão verde, com o nome da empresa estampado às costas, um coturno com pontas de metal, óculos de proteção e um imponente capacete amarelo, afivelado ao queixo.
p. 34Na mesma semana em que retornou ao povoado, se iniciaram as atividades na região. Máquinas e caminhões criaram um novo cenário, Mundico passava os dias construindo cercas nas divisas das extensas glebas de terras que a empresa havia adquirido próximo ao povoado. Junto às cercas eram fixadas placas com os dizeres: “É expressamente proibida a entrada de pessoas não autorizadas. Área particular da Eucaliptal Papel e Celulose S.A”.
As demais equipes, utilizando-se de enormes tratores de esteira, passavam os dias e as noites desmatando extensas faixas de floresta. Mundico experimentava uma nova realidade. Apesar da proximidade em relação ao povoado, preferia passar a semana junto aos seus companheiros de equipe, em um alojamento construído próximo à área onde trabalhava. Durante os finais de semana, também não regressava à casa dos pais, optava por ir à cidade se divertir com os novos amigos que fizera na empresa.
Em um dia de feriado, Mundico optou por visitar seus pais.
Assim que entrou na pequena casa de paredes barreadas, e recoberta com folhas de coqueiro, encontrou sua mãe sentada em um tamborete, descascando algumas vagens de feijão.
— Sua bença, Dona Maria — disse Mundico à mãe, causando-lhe grande susto e emoção.
— Meu fí! Por quê que ocê nunca mais veio vê sua mãe e seu pai? Tem mais de seis mêis que nóis num tem nutiça docê!
— Causo que eu andava muito ocupado na empresa, minha mãe — respondeu Mundico disfarçando certo constrangimento. — E o pai, cadê ele?
— Seu pai anda meio macambuso, deve de sê da idade...
Ao ouvir a voz de Mundico, Osório se levantou da rede e veio ao encontro do filho.
— Mundico, meu fí, cumé que tão as coisa procê lá na impresa de calípito?
— As coisa tão boa! — respondeu Mundico. — E cum o sinhô?
— Eu vô pelejando cum a vida — disse Osório, disfarçando a imensa tristeza que saltava de seu olhar.
— O sinhô parece mêi aburricido, meu pai — comentou Mundico.
— Num é nada não Mundico, Deus há de provê... — respondeu Osório.
Assistindo àquela cena, a mãe de Mundico interviu:
— Óia Mundico, seu pai tá cum recêi de contá, módi num aburrecê ocê, mais as coisa anda muito difíci pra comunidade de Mutamba dispois que a impresa onde ocê trabaia chegô na região. Fála prêle Osório! — ordenou a mãe.
— Mundico, meu fí. Dispois que a impresa pruibiu nóis de entrá no mato, foi uma tristeza só... Nóis num pode mais panhá as pranta pra fazê os rimédio, nóis num pode mais criá as cabra e os porco sôrto dentô do mato, nóis num pode mais caçá os jacú pra cumê, e nem retirá os parmito de coquêro. E nos lugá ondi eles dismatô, nem passarin nois escuita mais cantá. Inté o seu tí Zelito ficô perrengue dispois que a impresa de calípito comprô as terra onde ele prantava a roça de fejão.
— E o primo Ranufo? — perguntou Mundico.
p. 35— Seu primo! — respondeu sua mãe. — Por causa que a impresa proibiu ele de prantá naquelas terra, ele si mudô lá pras banda da chapadinha. Uví dizê que ele tá trabaiano prum fazendêro lá, um tar de Zé Norato. A coitada da sua tia é só tristeza, causo que o Ranufo, nunca mais vortô aqui.
Confuso, Mundico não sabia o que dizer aos pais, pois, toda aquela situação, pela qual passavam os moradores de Mutamba, não correspondia às preocupações com o desenvolvimento humano e com o meio ambiente, demonstradas pela empresa durante o treinamento que recebera.
E à medida que os meses iam se passando, mais faixas de florestas eram desmatadas, mais estradas eram abertas, e mais difícil se tornava a vida para os moradores de Mutamba. As promessas de desenvolvimento e de melhoria de vida não se consumavam. Como consequência, quase a metade da população daquele povoado se viu obrigada a buscar novos meios de sobrevivência em cidades distantes.
Acontece, porém, que Mundico não fazia a menor ideia da dimensão dos impactos que empresas como aquela poderiam causar ao seu pequeno planeta. E a região de Mutamba era somente uma, entre as centenas de outras localidades cujos ecossistemas se acham sob ameaça de destruição.
Empresas como a Eucaliptal, estabelecem gigantescas fazendas de monoculturas orientadas para um modelo de produção agroindustrial. Tal modelo, além de provocar um impacto ambiental irreparável, devido ao desmatamento de milhares de hectares de florestas, também não oferece às populações diretamente afetadas qualquer alternativa de prosseguirem reproduzindo seus modos tradicionais de existência, pois, tão logo adquirem as terras, tais agroindústrias cuidam para que as populações do seu entorno não mais tenham acesso às reservas florestais, impedindo, dessa maneira, a continuidade de suas práticas ancestrais de sobrevivência. Como se não bastasse, somente um pequeno número de pessoas pertencentes a tais comunidades consegue ser beneficiada com os tão propalados empregos diretos. Os moradores não incluídos tornam-se vulneráveis à atração que as grandes cidades exercem e acabam enxergando na migração a única saída possível para a sua sobrevivência.
p. 36Assim, o mundo de Mundico, tal como ele conhecia, chegava ao fim. Dificilmente aquela parte da população que deixara Mutamba regressaria para recompor seu antigo sistema de vida. Contudo, mesmo diante das privações causadas pela presença da Eucaliptal, a porção da população de Mutamba, que resistiu à tentação de migrar, encontrou, dentro de sua própria cultura, forças para continuar subsistindo; sendo os laços de solidariedade sua principal estratégia de resistência.
As famílias mais sacrificadas cujos filhos mais velhos, ou mesmo o marido partira em busca de meios de sobrevivência, encontravam apoio nas demais famílias que permaneciam. Seu tradicional sistema de troca e de cooperação mútua se estendera para outras esferas das interações comunitárias. Não apenas os excedentes da produção eram intercambiados, mas também suas habilidades; de tal modo que, numa casa, onde o marido ausente era a pessoa que dominava a arte de tecer folhas de palmeiras para a produção de telhados e cestos, pessoas vizinhas com as mesmas habilidades passaram a, não apenas suprir tais necessidades, como também a ensinar a arte de tecer a outros membros daquelas famílias que perderam tal capacidade. Da mesma forma, aqueles que haviam desenvolvido conhecimentos fitoterápicos auxiliavam o restante da comunidade no tratamento das enfermidades. Algumas roças também passaram a ser coletivas, cada membro da comunidade, independente da idade ou do gênero, participava de todas as suas etapas, desde o preparo da terra até a colheita. Os mais idosos e crianças, que não possuíam força para carpir, cavar ou carregar sementes, auxiliavam da forma que podiam, como por exemplo, cozinhando e levando a comida até a roça. Aos domingos, eram organizados mutirões para ajudar as famílias mais prejudicadas. Tais famílias já não eram mais capazes de desenvolver certos trabalhos, como reformar seus ranchos, limpar suas cisternas, capinar seus quintais e buscar lenhas. Assim, os mutirões eram organizados em clima de festa, começavam logo ao raiar do sol, e,quando os trabalhos chegavam ao fim, todos se reuniam na casa da família beneficiada para um almoço coletivo envolvendo cantos, danças e rezas.
Contudo, e apesar de todo aquele esforço coletivo, era difícil prever quanto tempo ainda restava àquelas famílias remanescentes antes que um colapso final as varresse por completo. O fato é que tal esforço de sobrevivência tornava-se insignificante diante dos altos níveis de impacto que aquela empresa invasora ainda poderia gerar.