O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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O fim do mundo de Mundico

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Todos esperavam ansiosos, pois naquele mesmo dia iriam à festa anual de São Sebastião, na cidade sede do Município.

Enquanto as pessoas se acomodavam no caminhão, Seu Mixirico aproveitava o tempo para esticar as pernas, contar algumas fofocas e tomar uma xícara de café.

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No dia seguinte, Zelito que também havia ido à festa de São Sebastião, confirmou as novidades que o Seu Mixirico contara:

E ocê ainda num sabe da maió! — prosseguiu Zelito — Hora que eu tava na venda do Zé Caroço, eu iscuitei que essa impresa vai arrumá imprego pra quais todo o mundo do municipo, e vai tamém trazê um monte de benefíci pra região.

Daquele dia em diante, no povoado de Mutamba, não se falou noutra coisa. Todos ansiavam pela aproximação da tal empresa de eucalipto.

Finalmente, entre os muitos vaivéns de Seu Mixirico ao povoado, chega a grande notícia.

Imediatamente, foi se formando um amontoado de moradores em torno de Seu Mixirico.

No dia seguinte, ao alvorecer, Mundico, como era de costume, já estava a caminho do roçado, acompanhado por Osório, o cavalo Tramela e o cachorro Linguira. Debaixo de um sol de agosto, enquanto lançava sua amolada foice sobre a capoeira, seu pensamento era atravessado, de um lado a outro, pela tal empresa de plantação de eucalipto cujo nome ainda lhe era desconhecido.

De volta ao povoado, Mundico deixou seu pai em casa e se dirigiu para a casa de seu primo Ranufo. Tinha em mente convidá-lo para uma pescaria no riacho próximo ao povoado.

Naquele mesmo instante, surge Ranufo com todos os seus equipamentos: facão, lamparina, vara de pesca e um embornal feito de couro de vaca.

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Assim, seguiram os dois a pé, escoltados pela inseparável dupla, Linguira e Rasgado.

Durante a caminhada, Mundico aproveitou o momento para compartilhar com o primo algumas de suas preocupações.

Se todo mundo de Mutamba já gosta da gente, pra quê intão nóis precisa trabaiá lá na tar impresa?

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As pessoa de Mutamba vai gostá docê de dois jeito: causo que ocê é uma pessoa boa, e causo que ocê recebe dinheiro todo mêis!

Àquela conclusão de Ranufo retirara a Mundico todo o seu afã de continuar transmitindo ao primo suas ideias sobre os benefícios advindos de uma possível situação de emprego, na tão propalada empresa de eucalipto.

Três dias após aquela pescaria, em um domingo pela manhã:

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Osório estava certo. A comitiva chegou numa nuvem de poeira e fora carinhosamente recepcionada por todos os presentes. Apesar da pequena dimensão do povoado de Mutamba, o contínuo ruído do vento, soprando contra as folhas das árvores, o alvoroço das crianças e os seguidos latidos dos cachorros, interferiam no pronunciamento do prefeito. Então, alguém sugeriu utilizar a carroceria do caminhão de Mixirico como um palanque improvisado. Enquanto a pequena população se acomodava em torno do caminhão, alguns assistentes da prefeitura aproveitaram a oportunidade para fazer doações de cestas de alimentos às mães e de doces para as crianças. Logo o prefeito tomou a palavra:

A fala do prefeito despertou muita euforia, gritos e palmas. Em seguida, o prefeito passou a palavra para o Sr. Green.

Enquanto o Sr. Green falava, os moradores pareciam paralisados. Mundico, a fim de obter uma melhor visão, se enganchou em um galho que se projetava de um pé de baru, a alguns metros do caminhão.

Imediatamente após o termino de seu discurso, Sr. Green e os outros deixaram o povoado. Mundico continuou enganchado no galho da árvore, observando a comitiva do prefeito desaparecer no horizonte.

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Enquanto os dois colhiam feijões de corda armazenando-os dentro de um jacá, feito a partir de folhas de buriti, Mundico aproveitou para trocar com o pai algumas ideias sobre as promessas do prefeito.

Aquelas palavras de Osório eram tudo o que Mundico desejava ouvir para manter viva a sua esperança de se tornar um empregado da Eucaliptal.

Cada dia que passava parecia uma eternidade para Mundico, quão grande era a sua ansiedade. Até que um dia:

Mundico se aproximou de um pequeno grupo de moradores locais, que se enfileirava na porta da frente de um ônibus adaptado como escritório.

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Mundico, de tão nervoso que estava quase não conseguiu preencher a ficha que lhe fora entregue. Entretanto, somente após sair do ônibus se deu conta de que seu inseparável primo Ranufo cumprira com a promessa de não se inscrever.

Na semana seguinte, o mesmo ônibus voltou ao povoado, a fim de convocar aqueles que haviam sido aprovados.

Mundico se encheu de felicidades ao ouvir o funcionário chamar pelo seu nome.

Despedindo-se de seus pais, Mundico entrou no ônibus cheio de esperanças.

Foram trinta dias intensos para Mundico. Lá, ele aprendeu como usar uma série de ferramentas e equipamentos, destinados ao corte e transporte de madeiras. Igualmente, assistiu a uma série de vídeos sobre o funcionamento da empresa e suas preocupações com o meio ambiente.

De volta ao povoado, foram recebidos com muito entusiasmo. Mundico, cheio de orgulho, exibia seu novo figurino: um macacão verde, com o nome da empresa estampado às costas, um coturno com pontas de metal, óculos de proteção e um imponente capacete amarelo, afivelado ao queixo.

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Na mesma semana em que retornou ao povoado, se iniciaram as atividades na região. Máquinas e caminhões criaram um novo cenário, Mundico passava os dias construindo cercas nas divisas das extensas glebas de terras que a empresa havia adquirido próximo ao povoado. Junto às cercas eram fixadas placas com os dizeres: “É expressamente proibida a entrada de pessoas não autorizadas. Área particular da Eucaliptal Papel e Celulose S.A”.

As demais equipes, utilizando-se de enormes tratores de esteira, passavam os dias e as noites desmatando extensas faixas de floresta. Mundico experimentava uma nova realidade. Apesar da proximidade em relação ao povoado, preferia passar a semana junto aos seus companheiros de equipe, em um alojamento construído próximo à área onde trabalhava. Durante os finais de semana, também não regressava à casa dos pais, optava por ir à cidade se divertir com os novos amigos que fizera na empresa.

Em um dia de feriado, Mundico optou por visitar seus pais.

Assim que entrou na pequena casa de paredes barreadas, e recoberta com folhas de coqueiro, encontrou sua mãe sentada em um tamborete, descascando algumas vagens de feijão.

Ao ouvir a voz de Mundico, Osório se levantou da rede e veio ao encontro do filho.

Assistindo àquela cena, a mãe de Mundico interviu:

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Confuso, Mundico não sabia o que dizer aos pais, pois, toda aquela situação, pela qual passavam os moradores de Mutamba, não correspondia às preocupações com o desenvolvimento humano e com o meio ambiente, demonstradas pela empresa durante o treinamento que recebera.

E à medida que os meses iam se passando, mais faixas de florestas eram desmatadas, mais estradas eram abertas, e mais difícil se tornava a vida para os moradores de Mutamba. As promessas de desenvolvimento e de melhoria de vida não se consumavam. Como consequência, quase a metade da população daquele povoado se viu obrigada a buscar novos meios de sobrevivência em cidades distantes.

Acontece, porém, que Mundico não fazia a menor ideia da dimensão dos impactos que empresas como aquela poderiam causar ao seu pequeno planeta. E a região de Mutamba era somente uma, entre as centenas de outras localidades cujos ecossistemas se acham sob ameaça de destruição.

Empresas como a Eucaliptal, estabelecem gigantescas fazendas de monoculturas orientadas para um modelo de produção agroindustrial. Tal modelo, além de provocar um impacto ambiental irreparável, devido ao desmatamento de milhares de hectares de florestas, também não oferece às populações diretamente afetadas qualquer alternativa de prosseguirem reproduzindo seus modos tradicionais de existência, pois, tão logo adquirem as terras, tais agroindústrias cuidam para que as populações do seu entorno não mais tenham acesso às reservas florestais, impedindo, dessa maneira, a continuidade de suas práticas ancestrais de sobrevivência. Como se não bastasse, somente um pequeno número de pessoas pertencentes a tais comunidades consegue ser beneficiada com os tão propalados empregos diretos. Os moradores não incluídos tornam-se vulneráveis à atração que as grandes cidades exercem e acabam enxergando na migração a única saída possível para a sua sobrevivência.

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Assim, o mundo de Mundico, tal como ele conhecia, chegava ao fim. Dificilmente aquela parte da população que deixara Mutamba regressaria para recompor seu antigo sistema de vida. Contudo, mesmo diante das privações causadas pela presença da Eucaliptal, a porção da população de Mutamba, que resistiu à tentação de migrar, encontrou, dentro de sua própria cultura, forças para continuar subsistindo; sendo os laços de solidariedade sua principal estratégia de resistência.

As famílias mais sacrificadas cujos filhos mais velhos, ou mesmo o marido partira em busca de meios de sobrevivência, encontravam apoio nas demais famílias que permaneciam. Seu tradicional sistema de troca e de cooperação mútua se estendera para outras esferas das interações comunitárias. Não apenas os excedentes da produção eram intercambiados, mas também suas habilidades; de tal modo que, numa casa, onde o marido ausente era a pessoa que dominava a arte de tecer folhas de palmeiras para a produção de telhados e cestos, pessoas vizinhas com as mesmas habilidades passaram a, não apenas suprir tais necessidades, como também a ensinar a arte de tecer a outros membros daquelas famílias que perderam tal capacidade. Da mesma forma, aqueles que haviam desenvolvido conhecimentos fitoterápicos auxiliavam o restante da comunidade no tratamento das enfermidades. Algumas roças também passaram a ser coletivas, cada membro da comunidade, independente da idade ou do gênero, participava de todas as suas etapas, desde o preparo da terra até a colheita. Os mais idosos e crianças, que não possuíam força para carpir, cavar ou carregar sementes, auxiliavam da forma que podiam, como por exemplo, cozinhando e levando a comida até a roça. Aos domingos, eram organizados mutirões para ajudar as famílias mais prejudicadas. Tais famílias já não eram mais capazes de desenvolver certos trabalhos, como reformar seus ranchos, limpar suas cisternas, capinar seus quintais e buscar lenhas. Assim, os mutirões eram organizados em clima de festa, começavam logo ao raiar do sol, e,quando os trabalhos chegavam ao fim, todos se reuniam na casa da família beneficiada para um almoço coletivo envolvendo cantos, danças e rezas.

Contudo, e apesar de todo aquele esforço coletivo, era difícil prever quanto tempo ainda restava àquelas famílias remanescentes antes que um colapso final as varresse por completo. O fato é que tal esforço de sobrevivência tornava-se insignificante diante dos altos níveis de impacto que aquela empresa invasora ainda poderia gerar.