— Ranufo? Já tâmo na lua nova. Vâmo caçá tatu? — propôs Mundico ao primo.
— Tô pronto! — aceitou Ranufo empolgado. — Então vô chamá o tí Zelito, causo que os cachorro dele são bão dimais da conta pra pegá tatu.
Assim, em poucas horas tudo estava arranjado. Mundico incumbiu-se de levar um enxadão, uma cabaça d’água e uma lamparina. Ranufo e tio Zelito levaram um pouco de farofa, cachaça e fumo de rolo; além dos três cachorros: Tarugue, Linguira e Rasgado.
A caçada de tatu é uma das práticas prediletas entre os homens daquele povoado, pois, além da carne daquele animal representar uma das mais tradicionais iguarias de sua culinária, a caçada, em si, tem um enorme valor social. Durante a caçada, adultos demonstram suas técnicas aos mais jovens, os cães são testados e o momento da captura do animal é revestido de muita brincadeira e descontração.
A noite já se aproximava e os três intrépidos caçadores partiram entusiasmados.
— Tí Zelito?
— Que é Ranufo?
— Adonde nóis vai caçá os tatu?
— Nóis vai lá pro córgo da papuda — respondeu Zelito.
— Mais lá é muito longe! — reclamou Mundico.
— Dêxa de sê mole sô! Cê acha que os tatu vem incontrá cum ocê na sua casa é? Craro que não! Nois pricisa í onde eles mora! — advertiu Zelito em tom irônico.
— Quano nóis tivé perto da tapera da viúva Belóca, nóis vai pará e discançá um pôco — sentenciou Zelito, deixando Mundico mais aliviado.
— Óia lá tí Zelito, a tapera! — anunciou Ranufo após a longa caminhada.
— Então vâmo pará aqui, dibaxo desse jatubá — aconselhou Zelito.
Zelito enrolou um grande palheiro, tomou um gole de cachaça e começou a fazer fumaça, enquanto Mundico e Ranufo comiam um pouco da farofa.
p. 21— Tí Zelito?
— Pó falá Mundico.
— O Sinhô conheceu a tar véia Beloca?
— Cunhici — respondeu Zelito.
— Cumé que ela era tí Zelito?
— Era uma muié como as ôta tudo que ocê cunhece, uai! Duas perna, dois braço...
Ranufo interrompeu Zelito, apontando o dedo para Mundico e dando uma larga gargalhada:
— Tá veno Mundico? Ocê só fáiz pergunta boba!
— Óia Mundico — proseguiu Zelito. — Eu tava inté evitano de falá sobre essa tar viúva Beloca, modi num assustá ocêis.
— Modi di quê, tí Zelito? — perguntou Ranufo titubeante.
— Se ocêis quisé sabê mêmo, eu posso inté contá; mais vô avisano logo, a coisa é feia...
— Então conta logo sô! — se adiantou Ranufo, segurando firme a lamparina.
— Bão, os mais antigo falava que a tar véia Beloca enxergava umas lúiz, perto do quintá da casa dela; e que essas lúiz inté falava quéla — continuou Zelito. — Uma veiz, ouví dizê que ela foi carregada por essa tar luz, e só vortô dispois de treis dia. Daí pra frente, as ideia dela nunca mais prestô, causo que ela ficava o tempo todo teno visage e uvino vóiz.
Enquanto Zelito se deliciava com aquela estória, Mundico e Ranufo, agachados, disputavam a luz da lamparina e a companhia dos cachorros.
— Mais vâmo dêxá de prosa e vâmo atráiz dos tatu, que já tá na hora deles saí pra comê — advertiu Zelito.
Assim, ajuntaram as tralhas e começaram a descer a ribanceira em direção ao riacho da Papuda.
Um pouco a frente, ganharam um descampado, povoado de pequenos arbustos que cresciam em meio às pedras.
Aproveitando as estreitas trilhas abertas pelo gado, seguiram em fila os três caçadores, à exceção de seus cães que corriam desordenados seguindo seus faros.
— Escuita! O rasgado tá latino lá na grota! — anunciou Ranufo. — Tráiz o enxadão e a lamparina!
p. 22Aglomerados em volta de um buraco que se precipitava de um barranco, assistiam os cachorros darem o veredito.
class="dialogo"— Au, au, au, au — não paravam de ladrar um só segundo.
— Pega Tarugue! Morde no rabo dele! — ordenava Ranufo entusiasmado.
— Tá veno o rabo dele, tí Zelito? — perguntou Mundico.
— Tô sim. Parece que é peba, e é dos grande! — sugeriu Zelito. — Tráiz o enxadão! Sai cachorro! Vô abri o buraco e quano ocêis vê ele, puxa o bicho pelo rabo!
— Segurei! — berrou Mundico.
— Então puxa! — comandou Zelito.
— Tráiz a lamparina, lumeia a boca do buraco! — gritava Mundico, segurando o rabo do tatu.
Quanto mais golpes de enxadão desferia Zelito contra o barranco, e quanto mais firme Mundico segurava a calda daquele animal, mais para o fundo do buraco se projetava.
— Já sei! — disse Zelito. — Ranufo? Busca a cabaça d’água e despeja tudo dentô do buraco. Hora que a água acabá, busca mais no córgo.
Ranufo agia rápido. Em poucos minutos três cabaças d’água já haviam sido despejadas dentro do buraco.
— Agora é só isperá — advertiu Zelito. — O bicho vai ficá sem ar e vai ingatá a marcha ré... Quano ele apontá, cêis gárra ele cum força!
Exatamente como dissera Zelito, após alguns minutos o tatu brotou do buraco exibindo sua longa calda.
— Peguei! — gritou Mundico.
Os cachorros avançavam ferozmente sobre o tatu.
— O bicho tá quereno iscapá! — noticiou Mundico.
— Gárra cum força! Cê num é home não? — desafiou Zelito.
— Sô home! Mais a minha mão tá escorregano! — desculpou-se.
Num solavanco, o peba conseguiu se livrar das mãos de Mundico ganhando o descampado.
— Pega Rasgado! Pega Linguira! — ordenava Ranufo, e os cães partiam como foguetes.
Em meio à escuridão, só se ouvia latidos e sons de folhas secas sendo arrastadas entre o cascalho, devido à correria dos cães.
— Qual dos treis cachorro ocêis acha que vai trazê o peba? — perguntou Zelito entusiasmado, suportando entre os lábios seu palheiro fumegante.
— Eu acho que vai sê o Linguira — apostou Ranufo.
— Pra mim vai sê o Rasgado — desafiou Mundico.
— Vâmo atráiz dos cachorro — ordenou Zelito. — Causo que se o danado entrá nôto buraco nois vai tê que rancá ele do memo jeito.
Quase já não se podia mais ouvir os latidos dos cães, de tão longe que estavam mato adentro.
— Tí Zelito? — chamou Mundico esbaforido. — Vâmo pará um pôco, causo que já to botano os bofe pra fora.
— Se nois pará, nois perde o tatu! — argumentou Zelito.
— Num tô mais iscutano os cachorro — avisou Ranufo.
— Então vâmo pará aqui e ficá assuntano, até iscuitá de novo — decidiu Zelito.
Somente o cri-cri-cri dos grilos conseguiam escutar, até que Ranufo deu o alarme:
— Cêis tão iscutano? É o latido do Rasgado!
— É pra acula! — indicou Zelito.
— Óia lá! Os cachorro acuô ele — anunciou Mundico.
Ao se aproximarem dos cães constataram que o tatu estava acuado. E ao comando de Zelito, Rasgado mordeu ferozmente o rabo da caça.
— Num sorta não Rasgado, morde firme! — gritava Zelito, orgulhoso de seu cão.
Entusiasmados, Ranufo e Mundico saltaram sobre o Rasgado auxiliando-o na captura. Em seguida, Zelito retirou de seu embornal um velho saco de linho e ordenou:
p. 23— Levanta o peba que eu vô botá ele no saco! — num só golpe Zelito envolveu o tatu dando um forte nó na boca do saco.
Satisfeitos com o sucesso da caçada, iníciaram a caminhada de volta para Mutamba.
— Quem vai carregá o peba? — perguntou Zelito.
— O Mundico! — sugeriu Ranufo.
— Eu não! Num tá lembrano que eu carreguei o enxadão e a cabaça d’água? — lembrou Mundico indignado com o primo.
— Nem um nem ôto! — sentenciou Zelito. — Nóis tudo vai carregá o peba. Quano um cançá, passa o saco prô ôto.
— Tá bão, tí Zelito — concordou Ranufo.
Atravessando a grota do riacho da Papuda...
— Ranufo? Lumeia aqui causo que tá tudo escuro — sugeriu Mundico, requisitando a lamparina.
— Num sei cadê ela não! — exclamou Ranufo.
— Nossa! Acho que ela ficô lá na bêra do buraco do tatu.
E agora? — perguntou Ranufo com ar de culpa.
— Intão, primu; cê vorta lá, pega a lamparina, que nóis vai ficá aqui isperano ocê. Né tí Zelito? — sugeriu Mundico em tom sarcástico.
— Eu num vô vortá lá sozinho, nem à custa de reza braba! — advertiu Ranufo.
— Dêxa de sê medroso! — zombou Mundico.
— Intão, vorta ocê, já que é muito corajoso — desafiou Ranufo.
Presenciando aquilo, Zelito pôs fim à disputa:
— Ninguém vai vortá lá. Nóis vâmo seguí os triêro das vaca inté chegá na estrada.
Quando já estavam próximos à tapera da velha Beloca, algo chamou a atenção de Mundico:
— Óia! Cêis tão veno aquela luz lá em riba?
— Qual? — perguntou Ranufo.
— Aquela! — apontou Mundico.
— Agora tô veno! — disse Zelito. — Deve de sê o caminhão do Seu Mixirico vortano da cidade.
— Mundico? Ocê dá conta de chegá na istrada antes de passá o caminhão, módi arrumá uma carona? — desafiou Zelito.
Ouvindo aquilo Ranufo retrucou:
— Nunca quêle dá conta! Mais fáci esse tatu saí vuano...
Mundico não hesitou. Desfez-se das tralhas que carregava e pôs-se a correr pensando: “vô conseguí arcançá aquele caminhão e o Ranufo vai ficá cum a cara de tacho...”.
Sem olhar para trás, Mundico corria por um estreito trieiro de vacas, desviando-se dos galhos em meio à escuridão. Seus olhos atentos buscavam a todo custo o feixe de luz proveniente dos faróis do caminhão.
Finalmente, esbaforido e com o coração disparado, aproximou-se da tapera da tal viúva Beloca. Somente uma velha cerca o separava da estrada. De tão cansado que estava, apoiou-se na cerca, mas só conseguia escutar sua respiração ofegante e as batidas de seu acelerado coração.
Do ponto em que Mundico estava, era possível enxergar qualquer farol sobre a estrada. No entanto, nenhuma luz, ou barulho de motor lhe chegaram aos sentidos. Assim, pensou decepcionado: “Será que o caminhão já passô? Cumé que eu vô contá prô Ranufo?”.
p. 24Por alguns minutos permaneceu ali, estático, até que um feixe de luz iluminou o que sobrara do velho telhado da tapera.
“O caminhão?!”, pensou Mundico, “Então vô ficá aqui na bêra da istrada inté ele passá”. Com os olhos firmes no horizonte, Mundico buscava ansiosamente o caminhão. Foi então, que mais uma vez o feixe de luz projetou-se sobre o telhado da tapera.
E naquele exato momento, quando Mundico voltou a sua atenção para a luz, perdi todos os meus sentidos. Era apenas a minha mente e nada mais. Nenhum som, nenhum pensamento de Mundico, nenhuma luz. Nada! Um imenso e desesperador nada.
Cada segundo parecia uma eternidade. Desesperadamente implorei pela presença do Mestre Tepeu, mas foi em vão.
De repente, surge Mundico em minha mente acompanhado da filha do dono da venda. Sentados sobre um forro branco, saboreavam uma farofa de tatu e trocavam afetos. Em seguida, surge de dentro da mata um tatu fêmea, acompanhada de uma dúzia de filhotes. A fêmea, então, olha para Mundico e diz: “Assassino! Você está devorando o meu marido!”
Naquele instante, escutei Mundico gritar desesperado:
— Socorro!!! Sai tatu!
p. 25Então, pude enxergar novamente. Estávamos na casa de Mundico. Ele repousava sobre uma rede, enquanto vizinhos assustados o contemplavam.
— Mundico? Cê tá escuitano? Acorda meu fí, ocê já drumiu quais dois dia sem pará — implorava Osório.
— Toma Mundico, toma esse cházin de foia de larangêra — acudiu a mãe.
— Será que foi cobra? — perguntou um dos vizinhos.
— Cumpadi Zelito? Cê viu arguma coisa? — indagou a mãe angustiada.
— Num vi nada não — respondeu Zelito. — Quano nóis cheguemo na bêra da istrada, nóis só vimo o Mundico deitado, durmino iguar um nenê. Daí, nóis corremo pra fazenda do véio Antero, peguemo a égua dele imprestado e trazemo o Mundico pra cá.
Mundico mostrava-se pálido e fraco.
— Vô prepará um cardo de taioba prêsse minino, que ele vai ficá bão toda vida! — disse a tia de Mundico.
No dia seguinte, quando a mãe de Mundico foi ajudá-lo com as vestes, notou algo estranho em sua nuca. Tratava-se de um curioso orifício com um diâmetro semelhante ao de uma tampa de garrafa.
— Osorio?! Corre aqui! — gritou a mãe consternada.
— Que foi muié?
— É o Mundico. Tem um buraco na nuca dele!
— Vô chamá a véia Chica, módi benzê ele — disse Osório.
Momentos depois, Osório retorna a casa acompanhado de uma anciã. A velha trazia uma bengala em uma das mãos, e um ramo de folhas na outra. Lentamente, ela se aproximou de Mundico e pediu que a sua mãe lhe mostrasse a ferida.
— Cruiz Credo Ave Maria! — exclamou a velha assustada ao ver o ferimento.
Balançando o ramo sobre o ferimento e com a mão sobre os olhos, a velha balbuciava palavras que somente ela podia ouvir. Algumas vezes, durante a reza, ela ordenava:
— Cobrêro brabo, te corto a cabeça e o rabo!
Ao final, a velha, visivelmente extenuada, sentenciou:
— Mundico vai ficá bão.
Mundico voltou a dormir profundamente. Em volta de sua rede Zelito, Osório e Ranufo se puseram a discutir o episódio.
— Cumpadi? Ocê já viu argum bicho cum uma mordida iguar a que tá na nuca do Mundico? — perguntou Osório.
— Não cumpadi Osório. Eu nunca vi nada parecido... — respondeu Zelito.
Nesse momento, Ranufo interfere dizendo:
— Ostrudia fiquei sabeno de um causo parecido, que aconteceu lá pras banda da fazenda do finado Gerômi — prosseguiu Ranufo, ganhando a atenção de todos. — Tinha um rapáiz lá, que trabaiava de tratorista na fazenda de um tar dotô Ovídio, ele manheceu dismaiado im riba do lerão da roça, cum uma murdida paricida cum essa que tá na nuca de Mundico, só que a murdida foi na artura do coração dele.
p. 26— Esse tar rapáiz morreu?! — perguntou Osório aflito.
— Não — respondeu Ranufo. — Mais ele ficô mei abobado. O povo, lá donde ele mora, falô que o bicho que mordeu nele foi o tar Chupa-Cabra!
— Bobage! — disse Osório furioso. — Quem falô essa bobage procê Ranufo?
— Foi o Seu Mixirico, dono do caminhão, no dia que ele foi na escola levá uns dotô lá da cidade módi inargurá a caxa d´água.
— Só pudia sê o Seu Mixirico! — sorriu Osório aliviado. — Aquele sujeito vive contano história pra boi drumi...
Naquela noite, Mundico inquieto revirava em sua rede, completamente encharcado de suor. Sua mãe, de plantão, acudia-lhe enxugando a face e dando-lhe pequenas porções da garrafada que a Chica benzedeira lhe preparara.
Próximo ao alvorecer, a mente de Mundico produz outro pesadelo. Agora ele estava exatamente naquele ponto da estrada onde perdemos nossos sentidos, para somente recobrá-los nesta mesma rede onde agora estamos. Seus olhos se voltaram para a tal luz, projetada sobre o telhado da velha tapera. Uma luz tão intensa que lhe ofuscava a visão. Repentinamente, uma dor intensa lhe invade a região da vértebra cervical. Imediatamente, sente-se incapaz de mover seus braços e pernas. Deitado sobre uma pequena maca e com um enorme refletor sobre a sua cabeça, vê um ser com aparência humana e de olhos esbugalhados. Em seguida, o ser lhe diz:
“Calm down baby, you are making just a small donation for the world. No pain no gain! Há há há há”.
— Mãêêê?!! Sarva eu! — Mundico se desperta do pesadelo gritando a mãe desesperado.
Quantos mais pesadelos virão? Pensei. Mas, espere! Como Mundico conseguiu sonhar em uma língua estrangeira? Como a sua memória inconsciente teria reproduzido, em sonho, tal situação? Algo realmente estranho acontecera a Mundico...