O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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Tatu-do-escuro

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A caçada de tatu é uma das práticas prediletas entre os homens daquele povoado, pois, além da carne daquele animal representar uma das mais tradicionais iguarias de sua culinária, a caçada, em si, tem um enorme valor social. Durante a caçada, adultos demonstram suas técnicas aos mais jovens, os cães são testados e o momento da captura do animal é revestido de muita brincadeira e descontração.

A noite já se aproximava e os três intrépidos caçadores partiram entusiasmados.

Zelito enrolou um grande palheiro, tomou um gole de cachaça e começou a fazer fumaça, enquanto Mundico e Ranufo comiam um pouco da farofa.

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Ranufo interrompeu Zelito, apontando o dedo para Mundico e dando uma larga gargalhada:

Enquanto Zelito se deliciava com aquela estória, Mundico e Ranufo, agachados, disputavam a luz da lamparina e a companhia dos cachorros.

Assim, ajuntaram as tralhas e começaram a descer a ribanceira em direção ao riacho da Papuda.

Um pouco a frente, ganharam um descampado, povoado de pequenos arbustos que cresciam em meio às pedras.

Aproveitando as estreitas trilhas abertas pelo gado, seguiram em fila os três caçadores, à exceção de seus cães que corriam desordenados seguindo seus faros.

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Aglomerados em volta de um buraco que se precipitava de um barranco, assistiam os cachorros darem o veredito.

class="dialogo"— Au, au, au, au — não paravam de ladrar um só segundo.

Quanto mais golpes de enxadão desferia Zelito contra o barranco, e quanto mais firme Mundico segurava a calda daquele animal, mais para o fundo do buraco se projetava.

Ranufo agia rápido. Em poucos minutos três cabaças d’água já haviam sido despejadas dentro do buraco.

Exatamente como dissera Zelito, após alguns minutos o tatu brotou do buraco exibindo sua longa calda.

Os cachorros avançavam ferozmente sobre o tatu.

Num solavanco, o peba conseguiu se livrar das mãos de Mundico ganhando o descampado.

Em meio à escuridão, só se ouvia latidos e sons de folhas secas sendo arrastadas entre o cascalho, devido à correria dos cães.

Quase já não se podia mais ouvir os latidos dos cães, de tão longe que estavam mato adentro.

Somente o cri-cri-cri dos grilos conseguiam escutar, até que Ranufo deu o alarme:

Ao se aproximarem dos cães constataram que o tatu estava acuado. E ao comando de Zelito, Rasgado mordeu ferozmente o rabo da caça.

Entusiasmados, Ranufo e Mundico saltaram sobre o Rasgado auxiliando-o na captura. Em seguida, Zelito retirou de seu embornal um velho saco de linho e ordenou:

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Satisfeitos com o sucesso da caçada, iníciaram a caminhada de volta para Mutamba.

Atravessando a grota do riacho da Papuda...

E agora? — perguntou Ranufo com ar de culpa.

Presenciando aquilo, Zelito pôs fim à disputa:

Quando já estavam próximos à tapera da velha Beloca, algo chamou a atenção de Mundico:

Ouvindo aquilo Ranufo retrucou:

Mundico não hesitou. Desfez-se das tralhas que carregava e pôs-se a correr pensando: “vô conseguí arcançá aquele caminhão e o Ranufo vai ficá cum a cara de tacho...”.

Sem olhar para trás, Mundico corria por um estreito trieiro de vacas, desviando-se dos galhos em meio à escuridão. Seus olhos atentos buscavam a todo custo o feixe de luz proveniente dos faróis do caminhão.

Finalmente, esbaforido e com o coração disparado, aproximou-se da tapera da tal viúva Beloca. Somente uma velha cerca o separava da estrada. De tão cansado que estava, apoiou-se na cerca, mas só conseguia escutar sua respiração ofegante e as batidas de seu acelerado coração.

Do ponto em que Mundico estava, era possível enxergar qualquer farol sobre a estrada. No entanto, nenhuma luz, ou barulho de motor lhe chegaram aos sentidos. Assim, pensou decepcionado: “Será que o caminhão já passô? Cumé que eu vô contá prô Ranufo?”.

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Por alguns minutos permaneceu ali, estático, até que um feixe de luz iluminou o que sobrara do velho telhado da tapera.

“O caminhão?!”, pensou Mundico, “Então vô ficá aqui na bêra da istrada inté ele passá”. Com os olhos firmes no horizonte, Mundico buscava ansiosamente o caminhão. Foi então, que mais uma vez o feixe de luz projetou-se sobre o telhado da tapera.

E naquele exato momento, quando Mundico voltou a sua atenção para a luz, perdi todos os meus sentidos. Era apenas a minha mente e nada mais. Nenhum som, nenhum pensamento de Mundico, nenhuma luz. Nada! Um imenso e desesperador nada.

Cada segundo parecia uma eternidade. Desesperadamente implorei pela presença do Mestre Tepeu, mas foi em vão.

De repente, surge Mundico em minha mente acompanhado da filha do dono da venda. Sentados sobre um forro branco, saboreavam uma farofa de tatu e trocavam afetos. Em seguida, surge de dentro da mata um tatu fêmea, acompanhada de uma dúzia de filhotes. A fêmea, então, olha para Mundico e diz: “Assassino! Você está devorando o meu marido!”

Naquele instante, escutei Mundico gritar desesperado:

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Então, pude enxergar novamente. Estávamos na casa de Mundico. Ele repousava sobre uma rede, enquanto vizinhos assustados o contemplavam.

Mundico mostrava-se pálido e fraco.

No dia seguinte, quando a mãe de Mundico foi ajudá-lo com as vestes, notou algo estranho em sua nuca. Tratava-se de um curioso orifício com um diâmetro semelhante ao de uma tampa de garrafa.

Momentos depois, Osório retorna a casa acompanhado de uma anciã. A velha trazia uma bengala em uma das mãos, e um ramo de folhas na outra. Lentamente, ela se aproximou de Mundico e pediu que a sua mãe lhe mostrasse a ferida.

Balançando o ramo sobre o ferimento e com a mão sobre os olhos, a velha balbuciava palavras que somente ela podia ouvir. Algumas vezes, durante a reza, ela ordenava:

Ao final, a velha, visivelmente extenuada, sentenciou:

Mundico voltou a dormir profundamente. Em volta de sua rede Zelito, Osório e Ranufo se puseram a discutir o episódio.

Nesse momento, Ranufo interfere dizendo:

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Naquela noite, Mundico inquieto revirava em sua rede, completamente encharcado de suor. Sua mãe, de plantão, acudia-lhe enxugando a face e dando-lhe pequenas porções da garrafada que a Chica benzedeira lhe preparara.

Próximo ao alvorecer, a mente de Mundico produz outro pesadelo. Agora ele estava exatamente naquele ponto da estrada onde perdemos nossos sentidos, para somente recobrá-los nesta mesma rede onde agora estamos. Seus olhos se voltaram para a tal luz, projetada sobre o telhado da velha tapera. Uma luz tão intensa que lhe ofuscava a visão. Repentinamente, uma dor intensa lhe invade a região da vértebra cervical. Imediatamente, sente-se incapaz de mover seus braços e pernas. Deitado sobre uma pequena maca e com um enorme refletor sobre a sua cabeça, vê um ser com aparência humana e de olhos esbugalhados. Em seguida, o ser lhe diz:

“Calm down baby, you are making just a small donation for the world. No pain no gain! Há há há há”.

Quantos mais pesadelos virão? Pensei. Mas, espere! Como Mundico conseguiu sonhar em uma língua estrangeira? Como a sua memória inconsciente teria reproduzido, em sonho, tal situação? Algo realmente estranho acontecera a Mundico...