O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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O mundo de Mundico

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Naquela pequena comunidade, a vida seguia seu ritmo. Mundico já havia saído da adolescência e procurava preencher o seu tempo ajudando seu pai na roça, caçando e pescando com os amigos, e indo a festejos nas comunidades vizinhas.

A comunidade onde vivia a família de Mundico era chamada de Mutamba. As pessoas da região a denominavam “povoado de Mutamba”.

O povoado era constituído de 30 residências, a maioria delas edificada a partir de barro e fibras de coqueiros babaçu, ou buriti, utilizadas tanto para amarrar as estruturas que compõe as taipas, como para cobrir as casas. Todo o travamento é feito a partir de madeiras retiradas das florestas circunvizinhas. As casas são dispostas a uma distância média entre 30 a 50 metros uma da outra; sua arquitetura apresenta um modelo padrão em “duas águas”, contendo, em média, quatro cômodos, incluindo a cozinha.

Para sobreviver, a pequena população do povoado de Mutamba se baseava em duas importantes estratégias: a produção de conhecimentos sobre a natureza e a integração entre as famílias na busca de solução para os problemas diários.

Essas estratégias tornaram-se a condição fundamental para a sua permanência naquela parte do planeta, pois mesmo quando aquele povoado era atravessado por situações de extrema escassez, seja devido a longos períodos de estiagem, seja devido a crises em seus setores produtivos, conseguiam sobreviver devido à produção de complexos sistemas adaptativos, por meio dos quais aprenderam a produzir o seu modo de sobrevivência associando algumas atividades produtivas as quais tomavam parte todos os membros de uma família. As atividades podem ser assim resumidas: Plantio de pequenas roças de subsistência; criação de pequenos rebanhos de gado, cabras, galinhas e porcos; pequenas tarefas ou empreitas oferecidas por fazendeiros locais; coleta de frutos, de castanhas e a caça a pequenos animais como o jacu, o tatu, a cutia e o teiú.

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Em suma, naquele pequeno pedaço de mundo, os seres de Mutamba conseguiam criar todas as condições de sobrevivência com base em conhecimentos construídos no longo convívio entre os moradores locais e os domínios de natureza a que tinham acesso.

Para extraírem suas fontes de alimentos, ou de curas, os moradores do povoado de Mutamba escolhem as melhores maneiras de retirar da floresta tudo aquilo de que precisam, sem, no entanto, causar a diminuição das fontes que lhes servem de recurso. Quando, por exemplo, Osório, o pai de Mundico, pediu-lhe que fosse buscar dois palmitos de coqueiro, em um ponto da floresta onde os porcos não mais estariam, sua preocupação não era somente adquirir palmitos para o seu consumo, preocupava-se, também, com a continuidade de uma prática sustentável de extrativismo que herdara de seus antepassados, qual seja, a preservação de duas das suas principais fontes de alimentação: o coqueiro,cujo palmito é uma iguaria muito importante na alimentação daquelas comunidades; e os porcos,formidável fonte de proteínas, normalmente criados à solta dentro das florestas, onde podem pastar livremente.

Tal prática procura seguir a própria dinâmica da natureza local, ou seja, durante o período de estiagem, os moradores da comunidade interrompem o consumo desses palmitos, voltando a consumi-los somente no início do período das chuvas. O fato é que, durante o período da seca, suas cascas se encontram maduras e representam uma importantíssima fonte de energia para os porcos. Ao se alimentarem das cascas do coqueiro, os porcos estabelecem um interessante intercambio com os coqueiros que produzem tais palmitos, pois, enquanto as cascas maduras, de grande valor energético, garantem a procriação dos porcos durante todo o período de seca, os coqueiros, por sua vez, ganham vitalidade devido à poda que os porcos realizam ao retirar essas cascas durante o período de estiagem, já que essas cascas, à medida que vão secando, aumentam o gasto de energia da planta.

Em resumo, as relações que se estabelecem entre comunidade, porcos, coqueiros e clima, se constituem num tipo de interação positiva.

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Há muitas outras práticas de preservação ambiental desenvolvidas pelos moradores do povoado, como por exemplo, o uso racional da água e a prática da extração de castanhas que leva em conta a permanência de uma determinada quantidade de frutos em cada árvore, para não interromper a alimentação de pássaros e outros animais que também necessitam da castanha para viver.

Até mesmo para plantarem suas roças, os moradores de Mutamba escutam primeiro o que a natureza tem a lhes dizer. Por isso, em vez de plantarem uma única espécie por terreno, como fazem os atuais agricultores capitalistas em suas monoculturas, os humanos de Mutamba preferem plantar diferentes espécies juntas umas das outras, pois aprenderam observando a natureza que as diferentes espécies interagem entre si a fim de aumentarem suas capacidades adaptativas e produtivas. Um bom exemplo disso é quando se planta feijão, milho e abóbora juntos em um mesmo canteiro. O feijão, ao pegar carona no caule do milho para se enroscar e subir, deixa no solo uma importante quantidade de nitrogênio de que o milho tanto necessita. Enquanto isso, a abóbora, por ser uma espécie rasteira, acaba protegendo as raízes do milho e do feijão contra a invasão de espécies indesejadas que competem com eles pela conquista de nutrientes. Assim, com uma prática semelhante de combinar diferentes espécies num mesmo terreno, os moradores de Mutamba conseguem evitar o uso de agrotóxicos e fertilizantes que tanto contaminam o solo e a água, como também deixam intacta a maior parte da floresta, já que esse tipo de lavoura combinada não necessita de grandes extensões de terras.

Mundico acabara de completar dezoito anos e precisava ir até a cidade fazer os seus documentos de identificação pessoal.

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Uma vez por semana, chegava ao povoado um velho caminhão dirigido por um homem baixinho, bigodudo e conhecido pelo apelido de “Seu Mixirico”. Tal apelido se justificava pelo volume de informações que ouvia e repassava aos seus passageiros, durante as incontáveis idas e vindas pelos inúmeros povoados por onde passava. Moradores de vários povoados circunvizinhos dependiam daquele caminhão para irem à cidade. Seu Mixirico, apesar de sua aparência embrutecida, era um homem generoso. Cobrava pequenas taxas pela corrida e, quando o passageiro não dispunha de dinheiro, ele aceitava de um tudo em troca da passagem: galinhas, queijos, rapaduras, feijão de corda e tudo mais que aqueles camponeses podiam produzir.

Esses povoados, como é o caso de Mutamba, além de não possuírem comércio, atendimento médico e transporte público, situam-se sempre muito distantes das cidades sedes de seus municípios. Igualmente, seus moradores, sempre muito pobres, só vão à cidade em situações muito especiais, como no caso de doenças, acidentes graves, retirada de documentos, recebimento de aposentadorias, compras de utensílios, etc.