O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
imprimir

Bate-papo com o professor

p. 03

Prezado amigo professor,

Este breve trabalho tem a intenção de contribuir com o aprimoramento do pensamento ambiental em espaços escolares.

Semelhante à maioria dos estudos que versa sobre o tema das interações entre homem e ambiente, esse livro aborda a dimensão atual dos problemas que emergem destas interações e as questões adaptativas que delas decorrem.

Contudo, há outras duas dimensões que quase sempre escapam à atenção de tais estudos: a dimensão histórica dessas relações e a dimensão intersubjetiva das pessoas que as vivenciam. Como temos observado, o resultado de tal negligência se perfila em dois tipos de simplificações: em primeiro lugar, destacamos o emolduramento das questões ambientais no âmbito de uma única temporalidade, o presente; em segundo, a negação da participação de uma variedade de sujeitos na produção de uma consciência ambiental crítica. Em outras palavras, não acreditamos que as saídas para os problemas ambientais estejam apenas no presente dos acontecimentos, nem tampouco aceitamos a ideia de que somente algumas pessoas, as do tipo “tecnicamente capacitadas”, podem atuar sobre tais questões.

Em termos práticos, tais simplificações podem fazer com que desapareça dos estudos sobre educação ambiental um elemento de suma importância: o caráter complexo das relações que permite entrecruzar, no âmbito de uma mesma discussão, outros tempos e temporalidades, outras epistemes e epistemologias, outros espaços e lugares; sejam eles conhecidos ou imaginados.

Por essa razão, e conscientes da necessidade de enfrentar tanto os velhos quanto os novos obstáculos que surgem no caminho da produção de métodos educacionais orientados para a formação de um pensamento ambiental crítico, lançamo-nos ao desafio de oferecer um significativo diálogo entre, de um lado, o gênero ficção e, do outro, o mais interdisciplinar campo da historiografia, a História Ambiental.

Mas, inicialmente, queremos pedir ao leitor a permissão para começarmos esse nosso bate-papo narrando duas experiências pessoais que, com o tempo, se perfilaram em importantes elementos para a elaboração deste trabalho: A primeira foi aos treze anos de idade, quando cursava a sétima série ginasial (o que atualmente corresponde ao oitavo ano do ensino fundamental), devido a uma prova final de recuperação da disciplina de ciências, me obriguei, durante dias, a decorar o capítulo de um livro que versava sobre os corpúsculos gustativos que compõem a nossa língua: seus formatos, do que cada um é constituído, suas funções específicas, as regiões da língua onde cada um se encontra etc. Assim, depois de todos esses anos, ainda hoje, mantenho intacto em minha memória cada vírgula daquele conteúdo de ciências; a segunda foi por volta de 1985, quando tomei emprestado de uma vizinha um livro intitulado Yargo. O livro fora escrito por Jacqueline Susann e conjuga romance e ficção científica. Trata-se de uma jovem da Terra que, por engano, fora sequestrada por alienígenas provenientes do planeta Yargo, lugar habitado por um povo intelectualmente avançadíssimo. Desse sequestro malogrado nasce uma ardente paixão entre a jovem terráquea e um dos habitantes desse distante planeta. Um dos pontos altos da trama é a tentativa da protagonista em fazer reascender na população daquele planeta alguns sentimentos há muito adormecidos.

p. 04

Com o tempo me tornei professor, e, dificilmente saberia dizer em que medida cada uma das duas situações acima interferiram em minha escolha profissional, se fora o método de ensino baseado na necessidade de decorar conteúdos, imposto durante a minha época de ginásio, ou, as muitas escapadas que a minha mente fujona fez pelo mundo da imaginação, qual foi o caso quando me escondi em um cantinho do romance de Jacqueline Susann.

Tudo o que eu posso dizer, no entanto, é que, à época, todas às vezes que a vida nos apresentava encruzilhadas, invariavelmente, éramos obrigados a escolher entre isso ou aquilo, nunca um aquilo outro, ou seja, nunca uma terceira opção.

Por essa razão, acredito que eu e mais uma legião de outras pessoas envolvidas em assuntos educacionais precisou (e ainda precisa) conviver com o mesmo incômodo, eu diria ontológico, de ter que fazer escolhas que chegam sob a forma de dualismos. E entre as formas binárias conhecidas, a mais persistente delas, ainda é aquela representada pela desgastada oposição entre os conhecimentos considerados “científicos” daqueles “não científicos”.

Assim, este livro lança-se ao desafio de apresentar uma alternativa metodológica capaz de auxiliar na formação de uma consciência ambiental crítica por meio da realização da difícil tarefa de ampliar o diálogo, ainda estranho em muitos espaços acadêmicos, entre a pesquisa e o gênero ficção.

Para tanto, os capítulos foram organizados de maneira que o leitor, ao mesmo tempo em que desliza pelas tramas e suas personagens, também se sinta instigado a se posicionar criticamente diante dos vários enredos, propositalmente carregados de profundas análises acerca de questões socioambientais.

E foi devido a esse propósito, que a concepção de cada capítulo se fez no diálogo entre, de um lado, as diversas experiências de pesquisas de campo, levadas a cabo pela equipe da Rede de Estudos, Atividades Ambientais e Resiliências - REATIVAR/UFG, da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, e, de outro, as percepções de ordens estéticas e poéticas, depuradas nas relações entre a equipe do REATIVAR e os alunos da Escola Municipal Cararíbas, envolvidos em um projeto de extensão, também sob a minha coordenação.

Neste sentido, nos parágrafos que seguem, tentaremos tanto descrever as experiências de pesquisa que nutriram os enredos de cada um dos capítulos como dialogar com o professor, que ora nos lê sobre as possibilidades de utilização do presente material em suas estratégias de ensino.

Antes, porém, faremos um rápido sobrevoo sobre a atmosfera ficcional dentro da qual os enredos encontram seus sentidos.

Nossa personagem central chama-se Bolon Yokte K’uh, nome de uma antiga divindade Maia cuja origem remonta a meso-América pré-colombiana. Bolon, após ter completado uma importante etapa de sua capacitação, em Andrômeda, sua galáxia de origem, é enviado a um pequenino planeta, a Terra, distante cerca de 2,54 milhões de anos-luz, a fim de cumprir com uma missão, a qual ele próprio desconhece. Por uma falha nas coordenadas telepáticas, Bolon chega a Terra invadindo a mente de Mundico, um jovem oriundo de um pequenino povoado rural do interior do Centro-Oeste brasileiro.

p. 05

Na medida em que Bolon e Mundico enfrentam as intrincadas situações do dia a dia, ambos se veem às voltas com os seguintes dilemas: Bolon busca encontrar, na relação entre o seu passado em Andrômeda e os acontecimentos vividos na Terra, o sentido de sua missão; já Mundico, precisa confrontar a sua própria consciência para estabelecer uma existência minimamente harmônica entre a sua identidade cultural e as interferências orquestradas por Bolon em sua mente. Ambos protagonizam um divertido drama de consciência que ganha materialidade nas complexas situações do cotidiano, diante das quais Bolon tenta interferir utilizando-se de estratégias de convencimento junto à mente de Mundico.

Na primeira parte do livro, momento em que Bolon chega ao nosso planeta, o leitor verá que o enredo está impregnado de informações e análises acerca do modo de vida das populações rurais, suas formas de sociabilidade e as relações que estabelecem com a natureza, como por exemplo, a construção e socialização de conhecimentos ecológicos e fitoterápicos. Também na primeira parte, a imaginação do leitor ver-se-á confrontada a uma das mais sérias questões socioambientais brasileiras, trata-se dos desastrosos impactos socioambientais que afetam, profundamente, comunidades rurais e biomas. Tais impactos são ocasionados pelo avanço das monoculturas orientadas para o mercado transnacional. Neste momento, as personagens se veem diante de um terrível dilema que é: ou buscar, no interior de suas culturas, estratégias para sobreviver ao profundo impacto, ou migrarem para alguma grande cidade em busca de meios de subsistência.

Em termos práticos, nesta primeira parte do livro, alunos e professores poderão encontrar inúmeras possibilidades para desenvolver ricos e diversificados pensamentos análogos, como por exemplo, comparar a história de vida do personagem Mundico com histórias de vida de pessoas conhecidas, como vizinhos e parentes, que viveram dramas semelhantes em seus locais de origem. Igualmente, o professor poderá levantar questões de fundo, como por exemplo, as estratégias desenvolvidas por populações de migrantes a fim de recriar, nos seus locais de destino, elementos significativos de suas culturas ancestrais. Também nessa perspectiva, o professor poderá sugerir aos alunos que elaborem, junto a seus familiares, ou pessoas da comunidade, inventários sobre situações da vida envolvendo processos de migração e transposição de práticas e conhecimentos culturais.

Tais discussões e atividades, além de ajudar o aluno a compreender melhor como se dá a complexidade sociocultual da região onde mora, também auxiliará no combate a algumas noções equivocadas como a velha oposição entre cidade e campo e o ideal “desenvolvimentista”, segundo o qual, quanto maior a extensão de terras ocupadas pelas monoculturas agroexportadoras, maior será o desenvolvimento social alcançado por essas regiões.

As bases para a formulação dessa primeira parte do livro se acham ancoradas em três de nossas experiências de pesquisa: A primeira foi realizada entre os anos 2000 e 2006, junto a uma comunidade rural do município de Silvânia, em Goiás. Tal pesquisa, além de culminar no reconhecimento da comunidade quilombola denominada Almeida, também se constituiu em um inventário de práticas de curas a partir do uso de plantas do cerrado. A segunda, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, nos estados do Piauí e do Maranhão, buscou compreender, no âmbito da elaboração de um Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA RIMA), os processos geradores de impactos socioambientais em áreas de projetos florestais para plantação de eucalipto. A terceira experiência de pesquisa se deu entre os anos 2012 e 2013, nos municípios goianos de Santa Rita do Novo Destino, São Luis do Norte e Minaçu. Trata-se da elaboração de relatórios técnicos de identificação e delimitação (RTID) de terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos.

p. 06

Na segunda parte do livro, os enredos exploram outros espaços e temporalidades, como o futuro, em que um morador da cidade de São Paulo, nascido no ano 2151, comunica-se telepaticamente com Bolon durante um estado de animação suspensa, e, também o passado, quando Bolon conhece um antigo agricultor Maia da cidade de Copán, que relembra o colapso de sua civilização, ocorrido por volta do ano 800 de nossa era.

Assim, nessa segunda parte, a imaginação do leitor é deslocada para um tempo ao reverso, em que o passado parece imitar o futuro na medida em que as histórias do agricultor Maia encontram ressonância nas histórias do paulistano do século XXII. Aqui, propositalmente, a ênfase recai sobre a narrativa do agricultor Maia, devido à necessidade de se compreender os complexos fenômenos socioambientais que levaram ao colapso uma das mais brilhantes das civilizações mesoamericanas.

Tal narrativa ficcional proporciona ao professor elaborar, com seus alunos, interessantes mapas comparativos entre sociedades presentes e pretéritas que, diante de situações limites, tiveram que criar estratégias de sobrevivência, nem sempre adequadas à solução dos problemas enfrentados.

A elaboração de tais cenários comparativos auxilia o aluno a operar importantes mudanças de posicionamento, principalmente, em relação às suas percepções sobre tempos e temporalidades. A primeira mudança é a percepção de que passado, presente e futuro não são dimensões desconectadas entre si, pelo contrário, tal separação só é possível no âmbito da abstração humana. Outra importante mudança de posicionamento se dá quando o aluno percebe o quão recente é a história humana em nosso planeta se comparada à escala de tempo geológico dentro da qual a terra, como nós a conhecemos, se formou. Tal percepção leva o aluno a refletir sobre o status da espécie humana no planeta em relação às infinidades de outras espécies que, assim como outras tantas infinidades já desaparecidas, não possuem nenhuma garantia de que vão continuar sobrevivendo enquanto o planeta existir. Uma terceira mudança é o deslocamento do aluno em relação àquilo que denomino “zona de conforto temporal”. Quando me refiro a tal “zona de conforto”, não estou fazendo alusão a nenhuma condição material da vida, me refiro apenas a um estado de letargia coletiva em que indivíduos reduzem suas existências apenas ao âmbito de um presente imediato. Estado este que é motivado, principalmente, pela enorme pressão que as demandas sociais do presente, cada vez mais urgentes, exercem sobre os indivíduos, impedindo-os de se libertarem desse presente imediato e pensar suas vidas a partir de uma dimensão temporal continuada e expandida.

p. 07

Os enredos que conduzem essa segunda parte do livro foram estruturados com base em experiências vividas no âmbito de um projeto de extensão da Universidade Federal Goiás denominado Reativar: Agroecologias e Interculturalidades. Tal projeto tem suas atenções voltadas para um intrincado fenômeno socioambiental, que ocorre em Aparecida de Goiânia, devido ao fato de ser esse Município um dos principais destinos para milhares de migrantes, provenientes das mais variadas regiões do Brasil. Trata-se do desvanecimento, entre a população migrante, de complexos sistemas de conhecimentos, que vão cedendo passo a um intrincado regime socioeconômico cujas demandas geradas, cada vez mais urgentes, recaem diretamente sobre tal população. Esse desvanecimento é impulsionado por um processo de desestruturação sociocultural que atinge as famílias de migrantes, pois uma enorme gama de seus referenciais socioambientais e culturais, adequada a oferecer sentido ao mundo, não encontra correspondência no novo ambiente. Dito de outra forma, assim que chegam ao município em questão, estes migrantes dão início a um penoso processo de territorialização em face, tanto de uma paisagem que lhes parece estranha, como de uma sociedade local que tende a não reconhecer suas lembranças e experiências trazidas do meio anterior, não excetuando a própria escola local cujas estratégias de ensino não dialogam com tal campo de tensão.

Diante de tais constatações, passamos a problematizar a prática do ensino de educação ambiental, nas escolas daquele município com base na ideia de que a maneira fragmentada como são tratados os impactos socioambientais, não apenas reforçam os dualismos do tipo rural/ urbano, centro/ periferia, sociedade/ natureza, como também impedem que outras epistemologias, trazidas pelas populações que migram para os grandes centros, auxiliem na mitigação de impactos socioambientais urbanos, devido ao fato de serem, arbitrariamente, classificados como conhecimentos de um tipo inferior, não científico.

Entre as atividades realizadas naquela escola, uma em particular foi central para a condução dos capítulos finais deste livro.

A atividade, envolvendo alunos e comunidade, aconteceu no pátio da escola e teve por objetivo a identificação dos diferentes tipos de pensamento ambiental, capazes de produzir ações positivas, diante de situações extremas da vida. Assim, alunos dos 8º e 9º anos foram separados em grupos, e receberam a missão de fazer uma lista contendo princípios da educação ambiental que lhes foram ensinados pelos professores da escola. Em seguida, D. M. S., mãe de uma aluna da escola, se dispôs a contar para os alunos parte da história de sua infância, passada na cidade de Bodocó, no interior do Pernambuco, entre as décadas de 1960 e 1970, quando tinha 12 anos de idade, exatamente a média de idade dos alunos e alunas presentes. À medida que suas lembranças fluíam, sua narrativa se direcionava para as formas de relações sociais ligadas à busca de recursos para sobrevivência. Nesse caso, a ênfase recaiu sobre os longos períodos de estiagem, nos quais a sobrevivência das famílias só era possível a partir do funcionamento de uma complexa rede de interações, geralmente entre os vizinhos mais próximos, e estruturada em torno de sistemas de trocas, parcerias produtivas e ajudas espontâneas.

p. 08

Depois, tomei parte na atividade reproduzindo para os alunos, em plano imaginário, uma situação de colapso envolvendo toda a região circunvizinha à escola. Tratava-se de um cenário dentro do qual os moradores enfrentariam enormes dificuldades, tanto de se manterem alimentados, quanto seguros. Em seguida, pedi aos grupos que expusessem suas listas contendo os considerados princípios da educação ambiental. Fizemos um rápido inventário e percebemos que a maioria dos grupos havia registrado, de diferentes maneiras, os mesmos princípios, como por exemplo: “não jogar lixo na rua”, “não matar os animais”, “não desperdiçar a água, “não matar as baleias” e “não destruir a Amazônia”.

A partir daí, lancei o seguinte desafio: perceber, tanto nas lembranças de D.M.S. como nas listas apresentadas pelos grupos, os elementos que poderiam se constituir em ações mitigadoras dos impactos ocasionados por aquela situação imaginária de colapso. A conclusão a que todos chegaram, foi a de que, apesar de as listas elaboradas pelos alunos conterem elementos significativos, em termos de uma perspectiva ambiental global, era nas experiências narradas por D.M.S. que estavam os elementos que, em termos práticos, poderiam ser operacionalizados no âmbito daquela comunidade, como forma de enfrentar tal situação de colapso.

Tal conclusão corroborou a nossa hipótese de que, apesar da alta qualidade, atualmente alcançada pelos materiais didáticos voltados para a educação ambiental, a hierarquização entre conhecimentos, provocada pela dicotomia entre o científico e o “não científico”, se constitui no principal impedimento da transformação social, no que se refere à produção de metodologias pluriepistemológicas orientadas para ações do homem no meio ambiente. Paradoxalmente, tal hierarquização de conhecimentos pode ser percebida nos próprios Parâmetros Curriculares Nacionais orientados para a educação ambiental.

Os dois fragmentos abaixo foram extraídos dos Parâmetros Curriculares Nacionais que versam sobre o meio ambiente. Neles evidenciamos uma grande dificuldade em aceitar os chamados “conhecimentos outros” como sendo epistemes e epistemologias, apesar do texto alertar para a importância de se valorizar a diversidade cultural e “a troca de ideias”.

Valorização da diversidade cultural na busca de alternativas de relação entre sociedade e natureza. A troca de ideias e o acesso a mais informações sobre soluções encontradas por outras comunidades e povos podem desencadear um processo muito rico de participação, levantando soluções inovadoras para velhos problemas regionais. (BRASIL, 1998, p. 218).

(...) Trata-se então de desenvolver o processo educativo, contemplando tanto o conhecimento científico como os aspectos subjetivos da vida, que incluem as representações sociais, assim como o imaginário acerca da natureza e da relação do ser humano com ela. Isso significa trabalhar os vínculos de identidade com o entorno socioambiental. (BRASIL, 1998, p. 182).

Tal tendência à hierarquização do conhecimento é claramente percebida no trecho acima quando, ao sugerir a necessidade de se relacionar o “conhecimento científico” com outras formas de conhecimento, essas outras formas são arbitrariamente classificadas como sendo meros “aspectos subjetivos da vida”, “representações sociais” e “imaginário acerca da natureza”.

A produção dessas formas arbitrárias de classificação podem ser melhor entendida a partir do que Santos (2010), denomina de “sistemas de distinções visíveis e invisíveis”, no âmbito do pensamento moderno ocidental. Pois este último constrói “linhas abissais” entre aquilo que é considerado proveniente de sociedades metropolitanas, e tudo o que se origina de sociedades coloniais. Assim, uma das linhas abissais mais radicais “consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso”. (Santos, 2010, p. 33).

p. 09

A sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento que não encaixam em nenhuma destas formas de conhecer. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas do outro lado da linha. Eles desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo de verdadeiro e do falso (Ibidem, 2010, p. 33-34).

Com base nessas percepções, as atenções do projeto de extensão passaram a se concentrar no desafio de aproximar escola e comunidade, no sentido de provocar um diálogo intercultural e pluriepistemológico capaz de recuperar entre aquela comunidade, seus conhecimentos tradicionais e práticas de uso da natureza, colocá-los em circulação no âmbito da escola, e, depois, fazê-los retornar ao domínio da comunidade sob a forma de estratégias alternativas de desenvolvimento humano, destinadas à estruturação de um modelo integrativo de gestão local do ambiente.

Com o mesmo afã investigativo, um dos capítulos, da parte final do livro, põe em relevo a questão das práticas alimentares na perspectiva da complexidade. Tal ênfase busca refletir a produção e o consumo de alimentos à luz de questões culturais, sociais, políticas e ecológicas, como forma de despertar no aluno uma autoavaliação de seu comportamento alimentar em relação à complexidade das relações entre alimentação, saúde e meio ambiente. Neste ponto, o professor poderá explorar inúmeras possibilidades de relacionar o comportamento alimentar de seus alunos com os conteúdos das disciplinas. A título de sugestão, os alunos poderão organizar painéis e debates interdisciplinares, a partir dos quais a renda per capta possa ser confrontada, por exemplo, com a média mensal de gasto da família do aluno com itens de alimentação. Média que, por sua vez, pode ser confrontada com as demandas não atendidas no quadro das necessidades sociais, apontadas por cada realidade familiar. Essas comparações poderão suscitar questões sobre a má gestão da economia familiar em relação às práticas inadequadas de alimentação. Igualmente, os itens de alimentação, mensalmente consumidos, podem ser pensados em termos dos elementos que os compõem, ou seja, as diferenças que existem entre os produtos industrializados e os produtos orgânicos.

Nesse ponto, os alunos perceberão a constelação de produtos químicos nocivos encontrados com frequência nos alimentos industrializados que consomem. Tais produtos também podem ser pensados em termos das relações que mantêm, tanto com o sistema local de produção de alimentos como com o sistema de produção globalizado. Aqui os alunos poderão pensar, em termos geopolíticos, os problemas ocasionados pela pressão que as indústrias transnacionais de produção de alimentos exercem sobre as economias locais. Em suma, a criação de atividades em que as inúmeras dimensões das práticas alimentares se entrecruzam pode abrir importantes caminhos para a consolidação de um pensamento ambiental complexo.

Deste modo, acreditamos que os capítulos deste livro podem se constituir numa importante ferramenta pedagógica, tanto para descolonizar a educação ambiental, libertando-a do julgo dos objetivismos cientificistas, como para aprimorar o pensamento ambiental por meio da relação entre pesquisa e ficção.

Agora, é hora da aventura...