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A inovação emergente:

tecnologias e interfaces

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Terceira oralidade e terceira escrita no Ocidente

Lucia Santaella

Os anos 1980 trouxeram a instauração crescente de uma nova forma de cultura nas sociedades, a cibercultura, também compreendida como cultura mediada pelo computador com todos os seus desdobramentos. Em meio a inumeráveis e profundas mudanças provocadas pela multiplicação de aparelhos, dispositivos, plataformas e aplicativos que, cada vez mais, tomam conta de todas as atividades da vida humana, tenho defendido que, para melhor compreender o funcionamento dessa cultura, é preciso destacar as transmutações das linguagens humanas que nela estão embutidas. Este artigo tem por objetivo examinar essas transmutações em suas fases que aqui serão chamadas de primeira, segunda e terceira oralidade, assim como, coincidentemente quanto ao número, a primeira, a segunda e a terceira formas de escrita, esta última sob o domínio da hipermídia.

A oralidade primária

Na segunda metade do século XX surgiram, especialmente naquela que ficou conhecida como Escola de Toronto, autores que puseram sob suas lentes as distinções entre oralidade/escrita e as repercussões socioculturais que elas provocam. De acordo com Galvão e Batista (2006, p. 404), a emergência desses estudos se deu em países e autores diversos, entre os quais vale destacar, devido à repercussão que obtiveram, McLuhan (1962, 1964), Havelock (1962, 1976) e Ong (1982). Para esses autores, as culturas orais e as letradas se distinguem porque seus modos de produção, transmissão e apropriação da linguagem são diferentes. Para estabelecer essas diferenças, todos eles retornaram à oralidade primária para extração de suas características.

No seu conhecido livro Orality and Literacy, Walter J. Ong (1982) descreveu as características que são internas à estrutura de linguagem própria da oralidade, a saber:

  • (a) A sintaxe é coordenada e paratáxica (... e... e... e...), em lugar de subordinada e hipotáxica.
  • (b) As formas de expressão são agregativas, em lugar de analíticas.
  • (c) Elas tendem à redundância e idas e vindas.
  • (d) Mantêm-se muito ligadas às experiências concretas, em lugar da abstração.
  • (e) São competitivas, em lugar de cooperativas.
  • (f) Fazem muito uso de provérbios e máximas como meios para transmitir crenças simples e atitudes culturais (apud NORDQUIST, 2019).

Recuperar os vestígios da oralidade primária implica pesquisas de campo em busca de cantos, melodias, epopeias, danças, rituais que eram transmitidos de geração a geração em sociedades tribais. De fato, a oralidade não é só feita de palavras, mas se faz acompanhar por outras formas de expressão, cujos resíduos permanecem no tempo por apego à tradição. Entretanto, não se trata apenas de formas de expressão em si, mas da maneira como elas conformam modos de pensar, sentir e representar o mundo, portanto, do modo pelo qual a oralidade molda o funcionamento da sociedade como um todo. O que se tem aí são sociedades centradas nas formas de comunicação via corpo, dependentes daquilo que o corpo pode proporcionar como meio produtor, transmissor e receptor de comunicação.

Por isso são sociedades que convivem em aldeias nas quais todo o processo de transmissão da comunicação só funciona na presença do corpo, como na dança, no canto em roda, na fala em círculos. São sociedades da corporeidade, da potência do corpo, do rosto e da voz, especialmente da fala para a transmissão das narrativas míticas, de uma geração a outra (SANTAELLA, 2019, p. 48).

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Entretanto, o resguardo da memória nesse tipo de sociedade é frágil, pelo fato de que, nesse caso, a memória da tradição é preservada em cérebros mortais. Por isso, são culturas que dependem exclusivamente da transmissão de uma geração à seguinte, num círculo virtuoso. Não deve ser por acaso que inscrições de imagens nas cavernas compareceram muito cedo na história humana, entre outras razões, pela busca de permanência daquilo que a memória orgânica está fadada a perder.

Os autores da Escola de Toronto, acima citados, voltaram suas preocupações para a ruptura da oralidade provocada pela implantação do código alfabético no mundo grego. Mas as antigas formas de escrita, conforme será brevemente discorrido mais adiante, foram muitas e até hoje permanecem como é o caso do ideograma. Embora o código alfabético tenha características bastante peculiares que foram bastante exploradas por Havelock (1976), as origens da escrita remontam ao quarto milênio AC, na Mesopotâmia (NORDQUIST, 2019).

A segunda oralidade

Segundo nos informam Galvão e Batista (2006, p. 407), Paul Zumthor (1993) distinguiu três tipos de oralidade, a primária e imediata, que prescinde completamente da escrita como se encontra em sociedades desprovidas de sistemas de codificação gráfica ou, então, em grupos sociais isolados e analfabetos. O segundo tipo é chamado pelo autor de oralidade mista, composta pela coexistência da oralidade e da escrita, mas ainda sob a predominância da oralidade, devido a atrasos na influência do escrito. Por fim, a oralidade segunda é aquela que se preserva em sociedades letradas com o domínio da escrita.

Ficou bastante conhecida a teoria da segunda oralidade de Ong (1982) para descrever os efeitos comunicacionais das mídias eletrônicas. O pano de fundo dessa teoria reside na distinção do letramento/oralidade. De fato, não parece ser casual que vários autores tenham se voltado para as questões da oralidade primária por volta dos anos 1960. O telefone, o rádio e a televisão invadiam as sociedades ocidentais sob a égide da cultura de massas, a par do cinema que, nessas alturas, havia deixado de ser mudo, dando origem às formas audiovisuais, mais tarde intensificadas pelas artes do vídeo (MACHADO, 1988). É evidente que um novo tipo de oralidade tenha brotado nesses meios de comunicação, um tipo de oralidade agora mediada pelas tecnologias de produção, armazenamento, transmissão e recepção da linguagem oral, no cinema, na televisão e no vídeo, devidamente acompanhada pelas imagens em movimento. Para entender essa oralidade emergente, os estudiosos retrocederam até a oralidade primária.

O que é mais interessante na postulação de uma segunda oralidade, segundo Venturini (s/d), é que os meios eletrônicos realizaram uma espécie de reversão da dominância da cultura letrada a partir de Gutenberg, como esta foi magistralmente estudado por Elizabeth Eisenstein (1983). Distinta do distanciamento entre enunciador e receptor do texto escrito, a segunda oralidade provoca uma espécie de retorno a formas de sociabilidade pré-modernas por permitir a entrada de padrões de interação mais vívidos e produzir um sentido de proximidade e comunidade. É certo que não se está mais face a face, mas a experiência da conversação é revivida. Vem daí a ideia mcluhaniana da Aldeia Global.

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Inspirados na teoria postulada por Ong, estudiosos da cultura do computador, com destaque para Reinghold (1993) passaram a usar a expressão “segunda oralidade” também para a comunicação mediada por computador, ou seja, para definir o clima interativo dos primeiros grupos online da internet, naquele momento em que as redes apenas possibilitavam a troca de textos escritos. Embora, de fato, a interatividade tenha sido e continue sendo a marca registrada da cultura do computador, chamar as formas comunicacionais que ela permite de segunda oralidade dá margem a uma confusão que seria melhor evitar. Oralidade é oralidade, é som e não escrita. Isso é uma questão semiótica básica. Que o clima desses processos comunicativos evoque as condições da oralidade não deveria servir de passaporte para chamar de oral aquilo que não é oral, e que continua não sendo como é o caso das redes sociais atuais como Facebook, Twitter e Instagram. Quando essas redes permitem que se recorra a imagens, sons e links audiovisuais, essa é uma outra história, de hibridação do escrito com a segunda oralidade dos vídeos e da música gravada. Portanto, uma realidade misturada que, nem por isso, deveria levar a equívocos semióticos de se chamar de oral o que não é.

É impressionante que não são poucos os autores que entraram na onda de considerar a linguagem das redes como segunda oralidade. Embora a linguagem dos blogs e das Wikis seja visivelmente escrita, Congjuico (2015), por exemplo, a caracteriza como segunda oralidade, baseada na capacidade de a comunicação online criar comunidades, foco no situacional e proximidade com o mundo da vida. Embora esse tipo de comunicação, de fato, reintroduza muitos dos traços da oralidade primária, isso não significa que a linguagem nesses casos seja semioticamente oral, mas sim, indicadora de uma tendência a hibridações crescentemente mais intrincadas que vêm caracterizando o universo das linguagens desde o final do século XIX. Desse modo, para discriminar diferenças que são substanciais, prefiro buscar a oralidade e a escrita onde elas, efetivamente, se encontram. Quanto à oralidade, ela aparece agora em novas formas que chamo de “terceira oralidade”. Onde ela se encontra?

A terceira oralidade

Ong e os autores que o seguem costumam colocar o telefone no elenco dos meios próprios da segunda oralidade. Não há como negar. Naquela época, o telefone se limitava a um aparelho doméstico que, para ser usado, dependia da presença do usuário nesse ambiente. Infelizmente, são poucos aqueles que têm dado a devida ênfase ao marco decisivo de metamorfose nos processos comunicacionais provocado pelos dispositivos móveis, especialmente pelo celular que, de meados da primeira década deste século para cá, foi se convertendo em um tele tudo inseparável do corpo e da mente.

Nos primeiros anos de seu funcionamento em ambientes urbanos, ainda estranhávamos a gesticulação e a mímica de pessoas que, pelas ruas, pareciam falar sozinhas. Hoje, isso se tornou corriqueiro e natural, constituindo-se em uma terceira oralidade com características muito específicas. Fala-se com o outro ausente, mas paradoxalmente presente, de qualquer lugar em qualquer hora. Ligado o viva voz, a comunicação se torna grupal. Situações vividas em quaisquer locais públicos misturam diálogos presenciais com conversações a distância, como se os participantes estivessem face a face, o que, de resto, é simulado nas ligações, por exemplo, de Facetime.

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Há alguns anos, surgiu o Whatsapp para se transformar em um fenômeno semiótico cuja explosão reclama por ser estudada. Basta pressionar um pequeno ícone e se esbaldar de falar sobre questões de negócio, lazer, família, sociabilidade, inclusive, de segredos que não deveriam ser compartilhados com desconhecidos que ouvem ao redor, mesmo sem querer, porque o som se propaga. Como é muito mais fácil falar do que escrever, o Whatsapp, que também permite a escrita, acaba cedendo lugar para a fala, além de que coloca ao toque do dedo a possibilidade de ligações telefônicas gratuitas. Tudo isso é muito diferente da segunda oralidade das mídias massivas, em especial porque se trata agora de um meio, ao mesmo tempo de fala e de escrita, o que leva a hibridação ao seu paroxismo, conforme será melhor explorada a seguir, quando serão tratadas as fases da escrita que se desdobram tanto quanto a oralidade.

Primeiras escritas

O código alfabético implantado na cultura grega e, depois disso, a invenção de Gutenberg impregnaram-se com tal poder e intensidade no mundo ocidental que, quando se fala em escrita, a forma alfabética da escrita se impõe com muita força a ponto de levar ao esquecimento a existência de uma pluralidade de escritas não alfabéticas. Sem entrarmos nos detalhes das origens e multiplicidade das escritas cujos conhecimentos pertencem aos paleógrafos, cumpre colocar sob nossa mira, como fizeram os especialistas da Escola de Toronto, na especificidade do código alfabético capaz de explicar o grande porte de suas consequências culturais. Cumpre, de qualquer modo, colocar em evidência que a escrita alfabética é uma entre outras de diferentes naturezas, em especial a hieroglífica, a ideográfica e as pictográficas. Vem daí o título deste tópico “primeiras escritas” no plural. Ademais, a escrita não se limita à sua correlação com a fala, pois existem outras modalidades de escrita como as notações musicais, os símbolos matemáticos e outros.

Para começar, vale partir de uma definição genérica de escrita, com foco na escrita alfabética, que seja capaz de acompanhar os seus desdobramentos do passado ao presente. “A escrita é uma forma de comunicação humana por meio de um conjunto de marcas que se relacionam, por convenção, a algum nível estrutural particular da língua”, ou ainda, “é qualquer sistema convencional de marcas ou signos que representa os enunciados da língua” (OLSON, s/d). Ainda segundo o autor, “a história da escrita é, em parte, um assunto relativo à descoberta e representação desses níveis estruturais da língua falada em uma tentativa de construir um sistema de escrita geral, eficiente e econômico capaz de servir a uma escala de funções socialmente valiosas”.

Não nos prolongaremos nas oposições, mais ou menos óbvias, entre a visibilidade da escrita e sua permanência, em oposição à efemeridade do som, de resto, uma efemeridade que foi suplantada pelas formas de gravação sonoras típicas da segunda oralidade. Igualmente não entraremos nas controvérsias acerca dos vínculos mais próximos ou mais distantes entre a oralidade e a escrita alfabética, pois o que nos interessa é explorar os efeitos socioambientais, políticos e culturais da escrita alfabética, primeiro no mundo greco-latino, para, então, prosseguirmos para a segunda escrita própria da era de Gutenberg.

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Brandão (1997, p. 223-224) nos apresenta uma excelente síntese dos fundamentos que dão base às interpretações de Havelock (1976) sobre os efeitos do alfabeto no mundo grego, como se segue: a) o alfabeto foi inventado; b) ele é diferente de outras formas de escrita anteriores; c) o alfabeto implica a distinção, abstrata e complexa, entre representação gráfica de fonemas vocálicos e consonantais, uma distinção que surge pela primeira vez na história humana; d) esse sistema repercutiu grandemente na cultura porque se trata de um método simples de registro da língua oral, acessível não só aos escribas, mas também aos cidadãos comuns; e) essa facilitação promoveu o surgimento gradativo de documentos reflexivos, distintos da estrutura descritiva e narrativa característica da oralidade, o que modifica a sintaxe do grego e faz surgir o que Havelock chama de discurso conceitual, até então inexistente.

Os horizontes abertos por tal forma de registro, embora tenham impactado os gregos, permitiram superar a evanescência da oralidade rumo à durabilidade da informação do passado ao futuro. Isso provoca uma grande transformação no estatuto da cultura por inteiro, já que esta, segundo Havelock, consiste no armazenamento da informação para a sua reutilização. Marcada pela insígnia da permanência, a escrita permite a reutilização constante da informação, facilitando, inclusive, a transformação contínua da tradição.

Embora trate da revolução da imprensa na Europa moderna, Eisenstein (1983), no capítulo sob o título “Defining the initial shift” discute muitos dos aspectos do mundo dos escribas, antes que a prensa tivesse tornado suas tarefas e funções sociais obsoletas. Na realidade, a ênfase nos efeitos da escrita na Grécia não deve ser exagerada, pois sua cultura conservou-se ainda por algum tempo imersa na oralidade, muito antes que a meta da retórica fosse deslocada da arte do bem falar para a do bem escrever.

A segunda escrita

Diferentemente do anterior, neste tópico a escrita não apresenta formas plurais. Trata-se aqui da história do livro a partir de Gutenberg, uma história que evoluiu no tempo, como foi extensivamente trabalhada na obra de Roger Chartier. As consequências sociais de larga escala provocadas pela invenção de Gutenberg costumam ser comparadas àquelas que resultaram da invenção do alfabeto fonético. É certo que podem ser comparadas. Todavia, a prensa manual e, depois, mecânica, inaugurou a era da reprodutibilidade técnica com profundas repercussões socioculturais e políticas que, segundo Eisenstein (1983) e outros, fez emergir a filosofia, a ciência, a literatura, enfim, o mundo moderno. Mais do que isso, a transformação dos escribas em autores contribuiu para o reconhecimento e legitimação dos pensamentos individuais, o que contribuiu para o desenvolvimento do conceito de individualidade, tão caro à modernidade.

A aparência dos primeiros livros impressos não era muito diferente dos livros manuscritos não obstante a novidade da matéria de que eram feitos: a película de natureza vegetal, o papel, aspirava com perfeição a tinta dos chumbinhos e podia ser produzida em grandes quantidades, permitindo a reprodução rápida e fácil dos livros. Com isso, os exemplares começaram a aparecer em centenas e, gradativamente, em milhares, de uma só vez. Além disso, formas mais nobres de livros passaram a conviver com publicações precárias, vendidas por mascates fora das livrarias. “Mesmo assim, a produção do livro não tinha ainda a dimensão que viria adquirir no século XIX e início do século XX com a industrialização da atividade gráfica e com a proliferação das tiragens graças aos livros de bolso” (SANTAELLA, 2004a, p. 22).

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Conforme o letramento se expandia, graças, inclusive, à tradução do latim vernáculo para outras línguas, trazia consigo a liberdade de se ler a Bíblia sem o auxílio da mediação eclesiástica. Isso deu fundamento aos questionamentos que levaram ao Protestantismo. O letramento tornou-se assim uma meta de autodesenvolvimento de modo que, entre os séculos XVIII e XIX, grande parte da população europeia e norte-americana privilegiada já possuía competência em ler e escrever, antes mesmo que a escolaridade compulsória fosse implantada. Graças a essa implantação, ao final do século XIX, a alfabetização se expandiu dando surgimento à mulher como público leitor, especialmente dos folhetins.

A era de Gutenberg foi estudada em obras magistrais, entre as quais, provavelmente, a mais conhecida é A Galáxia de Gutenberg, de McLuhan (1962). A erudição detalhista do volume é admirável, mas as teses defendidas são controversas, devido sobretudo à oposição muito radical que o autor estabelece entre os efeitos cognitivos e culturais da escrita livresca e aqueles da oralidade primária que, segundo ele, se vê recuperada nas mídias massivas, em especial na televisão.

De todo modo, a cultura do livro imperou com soberania por quatro séculos, dominando o modo e os meios de produção, transmissão e consumo da cultura e do conhecimento, inclusive, concedendo privilégio exclusivo a esse modo como legitimador tanto do conceito de cultura quanto o de conhecimento, o que alimentou consequentemente o funcionamento das universidades e as funções da educação. Contudo, essa soberania foi colocada em crise com a entrada cada vez mais triunfal da cultura de massas, que fez emergir outras formas de linguagem, com forte tendência ao hibridismo entre o imagético e o verbal.

Terceiras escritas sob o domínio da hipermídia

Já escrevi contínua e copiosamente sobre a hipermídia, desde 2001 até o presente. Isso trouxe a oportunidade de seguir passo a passo, suas raízes, antes mesmo que o computador se instalasse em nossos lares, então, prosseguir com o seu surgimento relativamente tímido nos CDRoms, passando por sua instauração na WWW até sua atual onipresença nas redes por meio dos mais diversos dispositivos, plataformas e aplicativos. De fato, hoje a hipermídia escorre entre as páginas que visitamos em celulares na palma de nossas mãos.

Entre muitas outras fontes de interesse que a hipermídia provoca, minha curiosidade maior tem se voltado para a transformação da linguagem escrita que nela se institui e a pluralidade de consequências que isso traz, especialmente perceptivo-cognitivas e, por acréscimo, para o acesso à informação e ao conhecimento, para o aprendizado e para a educação. Tenho repetido à saciedade que, longe de ser apenas uma nova técnica, um novo meio para a transmissão de conteúdos preexistentes, a hipermídia é, na realidade, uma nova linguagem, uma nova manifestação híbrida da linguagem escrita. Mas sigamos por partes.

Comecemos com a definição de hipermídia que, antes de ser mídia, era texto, hipertexto, este bastante estudado por George Landow já em meados dos anos 1990. O prefixo “hiper” indica aí que o texto se desmembra em partes, ou seja, nós, que são acessados por meio de conexões acionadas pelo usuário. Vem daí que o hipertexto seja não-linear e interativo, implicando, portanto, o agenciamento do usuário. Não demorou muito para que o hipertexto se transmutasse em hipermídia, quando o computador absorveu, além de textos, também imagens de vários tipos, diagramas, desenhos, sons e, logo então, o vídeo.

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Infelizmente, são poucos, muito poucos os estudiosos da cultura e das linguagens que se dão conta de que a escrita, que é própria do livro, começou a perder sua hegemonia secular a partir do jornalismo, quando este passou a adquirir uma linguagem própria já ao final do século XIX. Exceção sobre essa carência seja feita a Holtzman (1997) quando, no seu livro Digital mosaics. The aesthetics of cyberspace, evidencia que a tendência para a alinearidade, característica primordial da hipermídia, apresentou seus primeiros sinais em 1844, no telégrafo que catalisou o desenvolvimento das mídias com estrutura em mosaico que o jornal exemplificou à perfeição. Assim como em um mosaico, montamos uma imagem dos acontecimentos cotidianos a partir de vários pedaços de informação. O jornal moderno, enformado pelo telégrafo, pressagiou as qualidades da era digital (HOLTZMAN, ibid., p. 171, ver também SANTAELLA, 2004b)).

Não apenas o jornal, mas também as mutações das linguagens, desde o advento da fotografia, da publicidade, dos logos, logoglifos e das marcas, trouxeram consequências profundas para a percepção humana e para o nosso estar no mundo, sob o signo da interrupção, do deslocamento e da convivência com as misturas entre o verbo, a imagem e o som.

Uma vez que a questão relativa às linguagens parece ser o ponto cego na retina da maioria dos comunicólogos, é raramente lembrado que, na tendência crescente à hibridação das linguagens, a escrita continua viva, mas em forma transmutada, na hipermídia. Alguns, confundindo escrita estritamente com a escrita gutenberguiana, chegam a declarar que a escrita morreu. Grande equívoco. Ela está arquipresente nas redes, mas vestindo agora a roupagem de sua terceira natureza. Essa terceira natureza, em forma digital, já havia brotado no videotexto dos anos 1980, quando a escrita saltou do papel para a tela eletrônica do monitor de varredura lenta.

O salto da escrita do papel para a tela e suas alianças com outras linguagens vêm trazendo impactos e produzindo repercussões em todos os aspectos e dimensões da existência social e psíquica, bem mais profundas do que foram aquelas provocadas pela invenção de Gutenberg. Tudo nas redes é hipermídia em sintaxes mistas nas quais por vezes domina a escrita, por vezes ela se recolhe para um pano de fundo, ofuscada pela presença imperiosa da imagem e do som.

Também é hipermídia o fenômeno mais recente do Whatsapp, um aplicativo que surgiu como quem pede pouco, mas gradativa e sorrateiramente foi invadindo os múltiplos aspectos da comunicação humana graças à incorporação crescente de novas funcionalidades. Seria um meio de transcrição de conversações entre pares. Mais seletivo do que os outros aplicativos, só dá acesso aos que são aceitos para fazer parte de uma comunidade restrita, mas expansiva ao gosto da confiança depositada no outro. Além de meio de transcrição conversacional, também permite compartilhar, com outros inscritos no aplicativo, partes ou o todo dessas conversas, tanto quanto permite incorporar links de várias espécies. Ademais, permite que, em vez da escrita, apenas se fale, com facilidades ímpares para essa tarefa. Não por acaso seu uso disseminou desmedidamente.

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A par de todas essas possibilidades postas em uso, a entrada do Whatsapp aqui comparece muito especialmente porque esse aplicativo está promovendo o encontro em um só ponto entre a terceira oralidade e a terceira escrita ao instaurar uma oralidade e escrita híbridas, misturadas. A escrita surge sob o registro da oralidade. Escreve-se como se fala. Além disso, a facilitação de se gravar a fala, nos trânsitos entre espaços e tempos, insere a fala na sua terceira forma de oralidade. Em uma aliança complementar e não competitiva, no Whatsapp a escrita não passa de uma inscrição da fala, assim como nele fala-se a ouvintes invisíveis, mas paradoxalmente presentes em quaisquer cantos, esquinas, recintos e ambientes em que a vida vai dando continuidade ao seu curso.

Referências

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