
“Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica.”
Paulo Freire
– Por favor, sente-se aqui. Logo venho falar com vocês – diz o coordenador, indicando a cadeira para o garoto e, em seguida, saindo da sala para resolver uma briga ocorrida no recreio.
“O que esse playboyzinho está fazendo por aqui?”, pensa a garota, cismada, ao ver o aluno estranho.
Ele também não parece nada confortável com aquele silêncio constrangedor partilhado com a garota desconhecida. Mas não consegue desviar os olhos do rosto dela. “Que menina linda!”, pensa. Olhos grandes, marcantes, lábios grossos, expressão densa, forte. Toda a tensão da circunstância parece ter desaparecido. Esquece de momento o que o levou àquela sala de coordenação. Só consegue observar a garota à sua frente.

Isa, ao contrário, investiga o garoto com desconfiança. Pensa logo que, com o valor do tênis dele, dá para comprar a moto do padrasto. O moletom do colégio KS – preferido da elite da capital – completa o figurino que a intriga.
– Bom dia, dona Isaltina Alice. Mais uma vez veio me visitar? Já faz quantos dias mesmo? – fala o coordenador ao entrar novamente na sala, em tom que parece ao garoto excessivamente ríspido. – Já trato do seu caso. – Virando-lhe as costas, dirige-se ao garoto. – Bom dia… como é mesmo o seu nome?
– Jorge. Jorge Fantinni – diz o garoto, com a voz firme, mas em tom educado.
– Pois então, Jorge, eu deveria ter colocado você na sala de aula ainda neste horário. Mas aconteceu um problema no recreio que eu precisei resolver. A diretora já me falou do seu caso. Vou tirar uma cópia do regimento escolar para que você conheça as regras que têm de cumprir. É colégio público, mas as infrações disciplinares aqui são punidas severamente. Não é mesmo, dona Isaltina Alice? – dirige-se com ironia à garota, que está nitidamente constrangida e furiosa.

Ela levanta os ombros e coloca a coluna ereta, ergue a cabeça e encara o coordenador. Não diz nada. Seu semblante é de raiva, muita raiva.
Novamente o coordenador sai da sala.
Jorge, tentando entender a situação, cria coragem e conversa com a garota.
– Então, o que que houve? – pergunta e imediatamente se arrepende, dada a expressão do rosto dela.
– A professora me mandou pra cá – responde ela com educação, para surpresa do garoto. Isa chegou na sala depois que a professora já havia entrado. Estava no banheiro, que só tem um sanitário funcionando. Havia, como sempre, uma fila grande. Por isso, acabou demorando, e a professora não permitiu que ela entrasse na sala. Essa professora a odeia. Deve ter adorado não a ter na sala por pelo menos uma aula. Isa já está acostumada. Mas não deixa de achar injusto. – Mas e você, o que faz aqui? Não é aluno, né? – diz em tom suave, mas satisfeito, já que está curiosa para saber mais sobre o garoto metidinho.
– Agora vou ser. Vou começar hoje. Estava desde cedo esperando a diretora, que me disse para vir pra cá agora. Mas a professora te mandou para a coordenação só por ter chegado depois dela? – pergunta o garoto, meio sem acreditar na versão de Isa.
– Não precisa de motivo para me punir aqui. Tudo o que acontece é culpa minha. Tô marcada, já – ela fala, dessa vez, com o olhar triste, em direção ao o chão. – Você estudava no KS? – diz ela, um pouco constrangida, porém aliviada por finalmente perguntar o que quer saber sobre o novato.
– Sim, mas agora vou estudar aqui. Faço o terceiro ano, e você?
· · ·

Assim que a mãe de Jorge estaciona o carro na porta da escola, ele passa a observar tudo. O muro externo, deve ter muitos anos que não recebe uma pintura. Está cheio de pichações e muito sujo. Uma parte da calçada não tem pavimento, e o mato que ali cresceu está bem alto. O portão da frente, trancado com corrente e cadeado, é rapidamente aberto assim que a porteira os vê. São cordialmente convidados a esperar a diretora na sala dela. Lá está tudo muito organizado. Há um bom sofá, alguns quadros na parede, plantas artificiais, frigobar, ar-condicionado e um carpete combinando com o sofá. São-lhes oferecidos café e água, que ambos agradecem, mas não aceitam.
Alguém da administração da escola telefona para a diretora, que avisa que vai demorar um pouco para chegar. Enquanto isso, Jorge e a mãe pedem para andar um pouco pelo colégio. Autorizados, assim o fazem.
Os dois em silêncio, mas se comunicando pelo olhar, veem, ao lado da diretoria, a sala dos professores: um espaço também decorado, com geladeira, micro-ondas, bebedouro e uma longa mesa com arranjo de flores. Dois professores lá estão atentos aos seus celulares, um deles no sofá. Ao lado da sala, há banheiros para uso exclusivo de professores e funcionários.
Assim que chega Noeli – a diretora –, mãe e filho são convidados a conversar em sua sala. Helena Fantinni explica a situação do filho para a gestora, que, de posse das informações expostas, concorda com a matrícula e explica as formalidades da transferência do garoto para o novo colégio.
· · ·
Nem sua mãe, nem o padrasto estão em casa quando Isa chega da escola. Ela terá um tempo para pensar em como vai falar com a mãe sobre a advertência que levou. Desde o início do ano, essa situação se repetiu várias vezes. E, embora cansada de tudo, Isa não quer decepcionar sua mãe novamente. Pelo menos desta vez o coordenador não pediu que a mãe comparecesse à escola.
Ao entrar no quarto, ela encontra as duas irmãs deitadas na sua cama.
– Se vocês têm as suas, por que estão sempre na minha? – pergunta, chateada, enquanto tira o uniforme.
– Ficar no beliche é ruim – diz Juliana, a caçula das três.
– Mas vocês deixam sempre tudo bagunçado. Outro dia, tinha farelo de bolacha na minha cama. Não quero vocês aí em cima. E esse pé sujo no meu lençol, Daniella? Estou cheia! Todo dia é isso, vocês não respeitam meu espaço!
– Affs! Vamos lá pra fora, Ju – diz, sorrindo, Daniella. – Ela tá nervosinha. Daqui a pouco, começa a gritar.
Isa está atrasada. Não tem tempo de prolongar a discussão. E está chateada o suficiente com a advertência por escrito que foi obrigada a levar para a mãe assinar. Sente que o mundo inteiro está contra ela.
Nesse momento, lembra-se da amiga Geovanna. Não a tem visto na saída do colégio. Ela deve ter ido para a casa do Dan, o namorado. “Não vou com a cara dele”, pensa Isa, “mas não sei bem o porquê.” Enquanto almoça apressada, fala pelo celular com Geovanna sobre o garoto novo no colégio.

A caminho do curso, que frequenta três tardes por semana, Isa não usa o celular. Tem medo de ser roubada. O jeito será terminar a conversa com a Geovanna mais tarde.
O balançar do ônibus embala seus pensamentos: o encontro que terá com a mãe no final do dia, a maneira como aquele garoto lhe olhou, a professora sorrindo ironicamente para ela na saída. Sua mente não para. Ela se sente angustiada.
Quando chega ao curso, pergunta mais uma vez ao instrutor se não surgiu nenhuma vaga de estágio ou aprendizagem.
– Tenha paciência, menina – diz ele, sorrindo. – Logo conseguiremos uma colocação para você. Tem que terminar os cursos.
– Mas tem gente que no começo já conseguiu trabalho. Eu estou terminando e até agora nada.
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– Jorge, vem almoçar. É uma e meia e a Josefa tem que tirar a mesa – diz Helena, já com a bolsa a tiracolo. – Vou para a loja, mas lá pelas cinco eu volto. Não esquece de lanchar. Come uma fruta. Tem tarefa da escola?
– Não – diz ele, sem desviar os olhos do notebook. – Por favor, fecha a porta do quarto.
Os pensamentos de Jorge também voam. Está pensando na garota da coordenação. Na escola nova. E no contraste daquele lugar em relação à sua casa e ao antigo colégio. No condomínio fechado onde mora, o DeltaVille, provavelmente nenhum garoto estudou em uma escola daquele tipo. Mas ele se sente aliviado por não estar mais no KS.
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Helena não está nada satisfeita com a mudança de colégio do filho. O pai, menos ainda. Mas o filho já é maior de idade. É isso ou Jorge não vai terminar o ano.
Ela ficou impressionada com as condições da escola. Tantas pichações nas paredes, nos muros, nas carteiras. Mas o que mais a preocupa são as possíveis influências negativas que os colegas podem exercer sobre Jorge. Naquele colégio, certamente há marginais. Traficantes, bandidos. Notou isso pela aparência dos garotos daquele lugar. Dava para notar. “E aquelas roupas? Vários com tatuagens”, pensa Helena, aflita. Mas, pelo menos por enquanto, não consegue pensar em outra solução.

Sugeriu antes que Jorge fizesse um intercâmbio de um mês nos Estados Unidos ou na Europa, para que o garoto pudesse ter tempo de refletir e voltar ao Brasil para finalizar o ano. Jorge, no entanto, foi irredutível. Não aceitou a proposta e disse que iria para uma escola pública. Só restou aos pais acatar a decisão do garoto.
Helena levará o filho todos os dias para a escola, e ele voltará de aplicativo de transporte. Não confia em deixá-lo ir dirigindo o próprio carro, embora ela imagine que ele também não queira isso. Destacar-se demais em um ambiente daquele pode ser perigoso.
“Ainda bem que hoje tenho terapia”, pensa Helena, agora um pouco aliviada com a lembrança. Ter alguém que te escute e te aconselhe é maravilhoso. Enquanto estaciona o carro no subsolo de uma das lojas da família, ela se pergunta por que as pessoas não fazem terapia. Não consegue entender.
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Dog Mc está especialmente animado com a chegada de Isa. Como ela ama aquele vira-lata brincalhão! Às vezes, deseja que ele pudesse falar. Com certeza, ele diria palavras de afeto, carinho e alento. Mas já lhe proporciona isso com suas festinhas, afagos e atenção.

Isa vai direto para os fundos da casa. Troca a água do Dog Mc e completa a ração dele. E o bichinho, sempre à sua volta, faz-lhe companhia. Ao entrar no quarto, um alívio: as irmãs não estão lá.
Logo ouve o barulho da porta, sua mãe chegando do trabalho. Receosa, decide esperar um pouco mais para falar sobre o documento que trouxe da escola.
– Hoje a faxina foi pesada. O povo daquele condomínio não tem noção do que é limpar uma mansão daquela. Tô morta – diz Maísa assim que avista a filha.
– Vai descansar, mãe. Tomar banho. Eu faço a janta. Tem carne descongelada? – pergunta Isa, com a voz cansada, mas gentil.
– Tem, sim. Tirei o frango hoje de manhã. Faz frito que o Vilson gosta. Onde estão suas irmãs? Coloca esse cachorro para fora. Parece sua sombra, não desgruda de você – diz, sorrindo, em meio à exaustão.
– Quando cheguei, elas não estavam. Posso fazer o frango no arroz? – pergunta. – Sai, Dog Mc. Vai lá para o quintal – espanta o cachorro, obedecendo à mãe.
– Pode, sim. Rala umas cenouras e coloca junto. Como foi o curso hoje? Apareceu algum estágio?
– Nada, ainda, mas o professor disse que logo vai aparecer.
– E na escola, correu tudo bem?
Isa pensa em deixar o assunto para depois do jantar, mas, agora que a mãe perguntou, ela decide resolver logo o assunto.
– Tive problema lá. A professora não me deixou entrar depois do recreio, aí o coordenador mandou uma advertência pra senhora assinar – diz tão rápido que a mãe quase não consegue entender.
Ao contrário das reações habituais da mãe, provavelmente devido ao cansaço do trabalho, antes de começar a brigar com a filha, Maísa pergunta:
– Outra vez aquela professora de português? Ou dessa vez foi outra?
– Sim, a mesma. – Isa espera a bronca, mas a mãe fica em silêncio.
Já que ela lhe dá espaço, a jovem tenta se explicar:
– Eu demorei no banheiro. E já falei pra senhora, lá é só um vaso que funciona. E a porta ainda tá sem o trinco. Tinha uma fila enorme de meninas querendo usar, e o pior é que nunca tem papel higiênico. Quando chegou a minha vez, já tinha batido o sinal. Assim que saí, fui direto pra sala. Mas ela disse que ninguém entra depois dela. Tentei explicar, mas ela gritou que não queria saber. Me mandou pra coordenação, fizeram o registro lá, assinei o livro e me deram esse papel – diz, tirando a advertência do bolso e entregando-a à mãe.
Isa está assustada. Ao contrário das outras vezes, a mãe não diz nada, não faz o sermão de sempre. Apenas pega uma caneta na estante, assina o papel e o devolve. Ela parece triste, não zangada. Essa reação destroça Isa. Ela ama a mãe mais do que tudo nessa vida. Reconhece sua luta diária, seu esforço para ser uma boa mãe e esposa. Vê-la triste por sua causa, e ainda por cima em silêncio, não é algo com que saiba lidar.
– Tem feijão cozido na geladeira. Não precisa fazer – a mãe fala em tom baixo e vai para o banho.
Assim que o jantar fica pronto, seu padrasto, Vilson, chega do trabalho. Ele sempre come rápido e volta para as entregas da farmácia onde trabalha. Pergunta também pelas meninas, que já estão no quarto. Elogia o cheiro da comida e vai ao encontro de Maísa, que está na área de serviço.
Todos jantam, cada um em um lugar da casa. Só o casal come à mesa. As meninas, na sala, e Isa, na área de serviço, junto ao seu querido companheiro canino.
Como de costume, a mãe e as filhas assistem às novelas da noite na sala. Vilson já voltou ao trabalho. Isa, no entanto, tem o hábito de ler nesse horário, o único em que consegue ficar sozinha.
Desde que mudou de escola, Isa só lê os livros digitais em seu celular ou os que a professora Ediane lhe empresta de seu próprio acervo. Quando lê, esquece tudo: a escola que odeia, os desentendimentos com a mãe e as irmãs, a dificuldade de lidar com sua aparência e as angústias que têm em relação ao futuro.

No entanto, nesse dia, está com dificuldade de se concentrar na leitura, que é seu oásis em meio aos problemas. Seus pensamentos insistem em retornar à conversa que teve com o garoto na escola. A princípio, pensou que o guri era metido, já que ele nitidamente não é da mesma classe social dos garotos que frequentam o colégio. Mas ele foi tão gentil e agradável com ela que, apesar da desconfiança, começou a nutrir uma simpatia pelo novato.
Ficou surpresa quando ele lhe pediu o telefone. Ele usou um argumento para o pedido que lhe pareceu meio duvidoso, mas, no fim, deu o número. “Será que ele gostou de mim?”, pensa Isa, quase se sentindo ingênua por achar que um garoto como aquele poderia estar interessado por uma menina como ela. Tenta se concentrar novamente na leitura. Já é hora de dormir e, no dia seguinte, ela terá um dia cheio com seu trabalho em festas infantis.
Antes de dormir, no entanto, vai ao quarto da mãe para desejar boa-noite. Ao entrar, percebe que, de tão exausta, a mãe dormiu com roupa e tudo. Decide ajeitar o travesseiro e cobri-la com um lençol. Mesmo adormecida, beija com carinho sua testa.