
Jorge
Espero chegar o sábado de manhã para entrar em contato. Não quero parecer ansioso demais. Porém, a demora só faz aumentar minha aflição. Fiquei imaginando que tipo de assunto eu conversaria com ela. Eu não sou nada bom nisso. Além do mais, vivemos realidades muito diferentes. E se ela me achar um chato?
“Não sou descolado nem “interessante” como aqueles garotos da escola”, penso enquanto como o café da manhã que a Zefa preparou.
Na verdade, não dormi bem nessa noite. Pensei várias vezes na opção de não falar com ela. Nesse momento da minha vida, colocar mais uma pessoa nessa confusão que está a minha cabeça não parece boa ideia. Só não desisti porque, por mais que eu tente, a Figura, a feição da Isa não saem da minha mente. Por que é que alguém consegue dominar dessa maneira os nossos pensamentos? Será que todo mundo já passou por isso? Ou eu é que estou ficando paranoico?
Sei lá, talvez me relacionar com alguém diferente de todas as pessoas “tão iguais” em meu entorno pode fazer esse turbilhão no qual estou se atenuar um pouco. Até porque faz um bom tempo que eu não sinto vontade de conversar nem de estar com alguém. Deixar essa vontade passar seria prejudicar a mim mesmo novamente. E, por mais que eu seja campeão em provocar situações difíceis, desta vez vou agir diferente.

Eu jamais imaginaria que nosso ponto em comum seria a leitura. Um pensamento preconceituoso, provavelmente. E me envergonho disso assim que percebo. Me sinto aliviado logo no início da conversa, já que eu não sei bem sobre o que quero falar. Não posso dizer de cara que a acho linda e que não consigo parar de pensar nela desde que nos conhecemos, nem que esse é o real motivo de eu falar com ela.
Conversamos sobre a escola, e fico surpreso com a perseguição que ela precisa enfrentar. Desde que se mudou para a capital e teve de trocar de escola, Isa vive um verdadeiro inferno cotidiano, especialmente em relação à professora Romilda, que ministra a disciplina de língua portuguesa.
Começamos a conversar todos os dias. No começo, só trocamos mensagens algumas vezes durante o dia. Em pouco tempo, passamos a nos falar a toda hora: antes da aula, depois da escola, à noite e no final de semana. Por redes sociais, mensagem de texto, áudios, calls e ligações de vídeo. Mas, quando nos encontramos no recreio, pessoalmente, ainda agimos como duas crianças tímidas.
Fico chateado por não conseguir, nos nossos breves encontros, demonstrar o que eu realmente sinto por ela. Só eu sei o quanto quero trocar com ela mais do que olhares e sorrisos. Mas ainda me sinto muito inseguro. Por vezes, penso que ela também gosta de mim como eu gosto dela; mas, em outros, acho que ela me vê apenas como um bom amigo. Afinal, ela é tão inteligente, tem uma personalidade tão marcante, se expressa de maneira tão segura e, além do mais, é tão linda. Também me pergunto se seria certo ter um envolvimento mais profundo com ela, na situação complicada em que estou.
· · ·
Hoje, no recreio, já chego pegando no pé dela por estar usando aquele moletom gigante em um dia de tanto calor. Mas, ao me aproximar do nosso banco, encontro-a cabisbaixa e muito séria. Mudo o semblante e pergunto:
– O que houve? Desculpe pelo que disse. Você ficou chateada?
Sem dizer uma palavra nem se mover, vejo a primeira lágrima cair. Fico instantaneamente desesperado. Me sento ao lado dela e digo de novo:
– Me perdoa, não queria te chatear.
Bem baixinho, ela responde:
– Não é isso. É aquela bruxa, a dona Romilda, a professora de português, outra vez me perseguindo. Falei umas coisas para ela, mas ela me ofendeu demais.
Nesse momento, não me contenho e a abraço. No mesmo instante, toda a sua tensão se desfaz e ela se entrega ao abraço do mesmo modo que ao choro. Ficamos ali assim, abraçados e em silêncio, por uma eternidade. Enxugo seu rosto e ela agradece. Toca o sinal que marca o fim do intervalo e indica que devemos ir para a sala de aula, mas chamo Isa para irmos à quadra, para que ela possa me contar o que realmente aconteceu.
Por sorte, não há aula de Educação Física naquele horário. Estamos a sós, sentados nos degraus da arquibancada. Mais calma, Isa começa a falar:
– A professora entrou na sala e pediu para a gente fazer as atividades das páginas 220 a 232 do nosso livro. Quando eu abri na página indicada, vi que mais uma vez ela não tinha explicado o conteúdo dos exercícios que tinha pedido para a gente fazer. Pensei em apenas copiar e tentar responder depois com a ajuda de alguma videoaula da internet, mas achei que isso era um absurdo e que eu precisava contestar. Foi esse o meu erro – diz Isa, visivelmente arrependida, e continua:
“Eu me levantei, perguntei à professora se poderia fazer uma pergunta, e ela imediatamente disse que não; que era para fazer a atividade sozinha, consultando o livro.
“De pronto, perguntei o que era aquilo, se eu não tinha nem o direito de fazer uma pergunta e se ela não ficava envergonhada por todos os dias entrar naquela sala, mas não dar aula.
“Ela ficou indignada com o que ouviu e me perguntou se eu tinha enlouquecido, o que é que ela fazia todos os dias aqui. Disse que não falta, não atrasa, não fica de conversinha como outras professoras. Ainda me chamou de petulante.
“Eu falei que é sempre a mesma coisa, que ela manda a gente fazer as atividades do livro, no dia seguinte anota quem fez e depois escreve as respostas no quadro. Desde quando isso é ensinar? Perguntei para ela se ela pensava que a gente não via que aquilo era um faz de conta e disse que ninguém aprende nada assim. Ainda falei, sobre as conversas que ela estava insinuando, que elas são importantes para que a gente tenha professoras que se importam com os alunos além dos conteúdos, das tarefas e das provas.
“Nessa hora, para minha surpresa, parte da turma se virou contra mim. Uma das meninas disse que aprendia, sim, com aquela forma de ensinar e que eu não poderia falar pela sala toda. Dois ou três colegas concordaram.
“Só depois que eu saí da sala que um dos colegas me contou que boa parte deles copia as respostas de um livro do professor, que é todo respondido. É da irmã mais velha de um aluno que também é professora. Assim, todos eles tiram notas boas, mesmo não tendo aprendido nada. E, portanto, meu protesto poderia acabar com o esquema deles.
“Se sentindo fortalecida, a professora rebateu com fúria à minha contestação e me perguntou quem eu achava que era para questionar os métodos de trabalho dela. Disse que eu me acho grande coisa, mas que não sei de nada. Que ela é professora há mais de 25 anos para agora uma pirralha que veio ‘lá do fim do mundo’ querer ensiná-la a trabalhar. Justo eu, que ‘não dou certo com ninguém, que sou despretensiosa e arrogante e acho que sei alguma coisa porque li meia dúzia de livros’.
“Dava para ouvir os gritos dela a distância, e a expressão dela era de puro desprezo. Ela aumentou mais ainda o tom de voz e me mandou ir para a diretoria. Disse que já era o suficiente de bate-boca inútil na aula dela.
“Eu saí no mesmo instante e fui para a sala da Noeli. Estava destroçada. Aquelas palavras foram pessoais demais. Ela não tinha o direito de falar daquela forma comigo.
“Foi com esses sentimentos que comecei a falar com a diretora. Ela me interrompeu e disse que iria falar primeiro com a professora, que era para eu esperar ali. Ela saiu da sala e demorou pelo menos meia hora. Quando retornou, disse que não precisava ouvir minha versão. E que ia tomar providências para que eu fosse transferida de escola. Não pude falar nada. Eu saí da sala e logo bateu o sinal do recreio. Em seguida, você me encontrou.”
Fico absolutamente chocado com o relato que Isa acaba de contar. Só consigo responder:
– Tudo isso é tão absurdo! – Balanço a cabeça. – Que tipo de escola é essa em que um estudante é punido por querer um ensino melhor? Ninguém te ouviu e a diretora já quer te expulsar. Está tudo errado, Isa. Vou te ajudar a enfrentar essa loucura.
– Não deveríamos estar aqui, Jorge. Se te pegarem fora da sala de aula, ainda mais comigo, vai dar merda pra você.
– Não me importo. Com quem podemos conversar aqui no colégio? Tem alguém que te escutaria?
– Sim, a professora Ediane, de Geografia. Ela sempre ouve a gente, dá conselhos sobre a vida, se importa de verdade. Mas não sei se ela vai poder fazer algo – diz Isa em um misto de esperança e angústia.
– Bora tentar falar com ela agora. Você a viu na escola hoje?
– Vi, sim. Ela me deu a primeira aula.
· · ·
Quando chego à sala dos professores, me dizem que a professora Ediane está na sala da diretora Noeli. Ao me dirigir para lá, encontro a Geovanna na porta.
– Oi, Geo. Você viu se a professora Ediane ainda está aí na diretoria? – Só depois noto que falar com ela dessa forma soa uma intimidade forçada. Nunca sei como lidar com pessoas novas.
– Oi, Jorge. Ela ainda está aí dentro. Quando eu soube o que aconteceu com a Isa, fui logo atrás dela. A Ediane é a única dessa escola que fica do nosso lado, que nos defende. Onde a Isa está? Fui até a sala da Ediane depois do recreio, mas não a encontrei.
Percebo que demorei para agir. A Geovanna é, sim, amiga de verdade da Isa. Ela está na porta feito um cão de guarda; braços cruzados, postura de combate mesmo. Só me resta me juntar a ela e buscar reparar essas injustiças absurdas.
– A Isa estava comigo na quadra. Estava me contando o que houve. Chorou muito. Tentei acalmá-la.
– Hum… na quadra – fala Geovanna com um tom malicioso que deixa meu rosto quente e provavelmente vermelho como um pimentão. – E agora? Onde ela está?
– Não é nada disso que você está pensando – falo meio que gaguejando. Em um tom mais sério e preocupado, digo: – Ela voltou para a sala de aula, para evitar problemas maiores.
Quando termino de falar, ouço lá fora, no portão, uma pessoa falando alto com a funcionária do lado de dentro. Ignoro, pois a minha preocupação é intervir em favor da Isa junto à professora e à diretora. Mas a voz masculina lá fora aumenta de tom, assim como a da funcionária. Logo percebo que é o padrasto de Isa, que está ali por ter sido chamado pela diretora.
Me aproximo do portão e percebo que a funcionária não quer abrir a porta, pois a Noeli está em reunião e não pode confirmar se ele realmente foi convocado. Sem pensar, me dirijo à funcionária e questiono de forma impulsiva:
– No dia que vim à escola com a minha mãe, você não perguntou nada. Nos deixou entrar e ainda nos colocou na sala da diretora. Por que o rapaz não tem o mesmo tratamento?
Está nítida a diferença na recepção.
Eu e minha mãe: brancos, bem-vestidos, em um carro caro. O padrasto da Isa: negro, de bermudão, chinelo e camiseta surrada, em uma moto velha. Me pergunto naquele instante: se eu não tivesse vindo para cá, quando é que saberia que sou tão privilegiado?
A funcionária pergunta se eu o conheço. Eu minto e digo que sim. No mesmo instante, ela abre a porta. Mesmo nitidamente nervoso com a situação, ele aperta a minha mão e agradece. Me apresento como amigo da Isa, e ele, como seu pai, o Vilson. Ficamos, então, os três – eu, ele e a Geovanna – na porta da diretoria, esperando para falar com a Noeli. Nesse momento, fico contente por ter conhecido o padrasto da Isa, mas também um pouco nervoso. Conto a ele rapidamente o que aconteceu e ele se mostra indignado, mas noto também que não tem muitos argumentos com os quais lidar com a diretora. Decido, então, que não vou arredar pé até me fazer ser ouvido. Mesmo que precise me valer do privilégio que tenho em relação aos meus colegas.
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Só consigo falar com a Isa à noite. O Dog Mc, que eu não conheço pessoalmente, já reage à minha Figura quando faço chamada de vídeo com a Isa. Cachorrinho fofo. Pena que nem sempre conseguimos nos comunicar dessa forma, pois a internet dela é bem ruim.

Isa está bem mais calma. Mas seu rosto está triste. Como se estivesse magoada, ferida. Aquela expressão acaba comigo. Nesse momento, percebo que meus sentimentos por ela são mais do que atração física. Como eu gosto dessa garota! Nunca conheci alguém com tantas qualidades.
Explico como foi a reunião com a Noeli e a professora Ediane. Fiquei impressionado com o conhecimento sobre educação que ela tem. A professora explicou com muita aptidão que a escola precisa de uma gestão democrática; que esse é um dos princípios da educação e que está previsto tanto na Constituição Federal quanto na Lei da Educação. Eu não sabia bem qual era, mas fiquei curioso e pesquisei sobre o assunto assim que cheguei em casa.
O padrasto da Isa foi recebido em seguida, e a Noeli mudou totalmente o discurso depois da conversa com a professora Ediane, que explicou para ele que a Isa não teve nenhuma oportunidade de ser ouvida e que, por isso, não poderia ser tomada nenhuma decisão. Eu acompanhei essa parte da reunião quieto.
De início, a Noeli não queria receber nem a mim, nem à Geovanna; mas, depois dos argumentos da professora Ediane, pudemos participar. Quando chamaram a Isa, pediram que eu e a Geovanna voltássemos à sala de aula. Mas a Geovanna disse que então deveria chamar algum aluno imparcial da sala da Isa para explicar o que realmente tinha acontecido. A diretora disse que faria isso depois, mas insistiu que naquele momento deveríamos sair.
Eu sei que não fiz muito, disse apenas que o que estava acontecendo não era justo e que a Isa deveria ter o direito de ser ouvida. No entanto, depois das pesquisas sobre as leis da educação pública, tive uma ideia que pode fazer não só a Isa ter mais voz e vez na escola, mas todos os estudantes do Barão de Cotegipe. Não sei se a Isa vai gostar da proposta, já que ainda está muito chateada com tudo o que aconteceu.
Ainda sobre o ocorrido na escola, infelizmente Isa levou outra advertência. No papel, consta que a aluna Isaltina Alice Martins se descontrolou emocionalmente, alterou a voz com a professora e, embora tenha o direito de colocar seus argumentos e posicionamentos sobre as aulas e a escola, a estudante utilizou palavras que a professora considerou desrespeitosas.
Isa fica muito chateada, porque a professora foi muito mais agressiva nas palavras usadas, além de ela, sim, ter gritado no meio da discussão. Mas isso foi desconsiderado. Ao menos não houve transferência nem expulsão. Nem sei dizer o que eu faria se ela saísse da escola. Estar com ela é o que tem sido minha base. E aquele abraço? Queria que tivesse durado horas. Eu tinha sentido a pele do seu rosto, a maciez do seu cabelo, o perfume da sua pele. Sei que foi um abraço de amparo, afeto e segurança; como um ninho que protege o pássaro ferido. Ao menos, eu senti assim.
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À tarde, dou um pulo na escola com meu carro mesmo. Se minha mãe sonhar, ela surta. Tenho um reforço de matemática, mas não vou lá para isso. Esse é só o pretexto.
A Noeli não está lá. Ainda bem. Peço na secretaria para ver o Regimento Interno e o Projeto Político Pedagógico. Digo que é para um trabalho de Sociologia. Demoram para achar, mas me emprestam. O Regimento tem as normas da escola e os deveres e direitos de alunos e funcionários. Já o PPP, como é conhecido esse segundo documento consultado, é uma espécie de guia sobre como deve ser o modo de ensinar e de administrar a escola. Pelo que li, ele precisa ser elaborado com a participação de todos os membros da comunidade escolar, incluindo os estudantes.
Lá está prevista a possibilidade de criar um Grêmio Estudantil. É um jeito de os alunos se organizarem. Para isso, escolhem alguns colegas para representar todos os estudantes daquela escola de forma livre e autônoma. Penso mesmo que, se criássemos um Grêmio, poderíamos nos reunir para saber o que a galera acha do colégio. Seria uma forma oficial de dar voz e /participação nas decisões aos estudantes; tão silenciados que a diretora teria expulsado uma aluna sem nem sequer ouvi-la, apenas com o relato de uma professora.
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– E como é que a gente faz isso? – pergunta Isa, meio que desconfiada.
– Precisamos, primeiro, convidar mais colegas, dos três turnos. Aí a gente comunica à direção, depois divulga a proposta entre o pessoal e convida quem tem interesse em participar do grupo de representantes para formar a Comissão Pré-Grêmio. Aí essa galera elabora uma proposta de estatuto, que vai ser discutida e aprovada pela Assembleia Geral, na qual todos os estudantes podem e devem participar e votar.
– E se a diretora não aceitar?
Eu já esperava essa pergunta vinda da Isa, já que ela sabe bem como é a Noeli. Mas também já sei a resposta.
– Ela tem de aceitar. Tá previsto nos documentos da escola. Li tudo hoje à tarde, como te disse.
– Bora! Vou chamar a Geovanna e os colegas do skate e hip-hop que são meus amigos.