Geovanna

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A gente sempre se falava. Mas agora ela tá muito sem tempo. É coisa demais: o negócio lá do curso, a escola, a casa e o trabalho nos finais de semana. Sei de tudo isso. Mas, depois que a Isa conheceu o burguesinho metido a herói, ela ficou com menos tempo pra mim.

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A gente se conhece desde que ela veio lá de Senador La Rocque, cidadezinha do Maranhão, com a mãe viúva e as duas irmãs. Isa cuidou das duas até elas se tornarem adolescentes. A mãe fazia as faxinas no DeltaVille enquanto ela cuidava lá das meninas, levava e trazia da escola, fazia janta, arrumava a casa e ajudava nas tarefas. Mas comigo ela é só uma garota da minha idade. A gente ri demais. Muita zoeira.

Depois que viemos para o Barão, muita coisa mudou. Comecei a namorar o Dan, e ela começou a sofrer na mão de alguns professores e da direção e coordenação do colégio. Chegou a pedir à mãe para mudar de escola. Mas ela teria de ir de ônibus todos os dias para o outro colégio mais próximo, e a mãe disse que não tinha como bancar as passagens.

Até o nono ano, lá na nossa antiga escola, a Isa era nota dez em língua portuguesa. Escrevia textos maravilhosos, e um deles foi roteiro de uma peça de teatro que a gente encenou. Foi legal, nos divertíamos muito.

A professora de português amava quando ela participava argumentando e até mesmo quando falava sobre os livros que já leu. Aliás, a professora Tina sempre emprestava livros para ela, que também era assídua frequentadora da biblioteca, sempre pegando livros. A Isa ama a leitura e tem muita habilidade para a escrita. Tenho vários textos perfeitos que ela escreveu.

Essa professora de português, a do Barão, matou toda essa paixão que a Isa tinha. Depois disso, ela mudou muito como estudante. Perdeu a motivação. Sinto saudades da minha Isa do sexto ao nono ano. Mas acho que também mudei.

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Na noite da advertência, tento falar com ela várias vezes. Mas não dá bom. Quero saber de tudo. Logo ela vem com a história de formar um Grêmio Estudantil no colégio, que foi ideia do Jorge, e que é também para agitar os moleques do skate e a galera do hip-hop.

Ela não fala sobre o Dan. Será que até hoje ela não tá a fim dele? Sempre achei que ela dava doce por ciúme. Nunca foi com a cara dele. Eu ignorava e achava uma bobagem. Nunca dei moral para isso. Mas agora que ela tá superocupada com o Jorge e que eu não estou recebendo atenção dela como antes, acho mesmo que começo a entender o que ela sente.

O Dan já me falou que no colégio que o irmão dele estudou tinha um Grêmio. Escola legal. O diretor fazia reuniões, ouvia os estudantes. Eles davam sugestões, faziam críticas. Depois votavam as propostas, e todo mundo ajudava a realizar as ações. O irmão dele até foi presidente do Grêmio em um ano.

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Isa não responde. Vou falar com ela no recreio. Isso se ela não estiver ocupada com o Jorge, como sempre… Depois que mando a última mensagem, meio que me arrependo. Fui meio grossa. Mas não mudaria nada do conteúdo, apenas o jeito de falar.

O carinha vai terminar o ano no Barão e nunca mais vai pisar nesse lado da cidade. Provavelmente vai fazer facul em uma universidade paga e lá vai chegar numa garota rica – essa, sim, ele vai apresentar aos pais. Um cara assim não quer nada sério com uma mina como a Isa. Quer se aproveitar, usar. Esse tipo de romance só existe em novela; na vida real, é pobre com pobre e rico com rico.

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Dá muito mais gente na reunião do que eu pensava que viria. Até a galera do noturno aparece – uns três ou quatro – e do primeiro ano também; povo que estudou com a gente na outra escola. Quem deixa a gente se reunir é a coordenadora. A Noeli está fazendo um curso noutra cidade essa semana. Quando chegar, ela vai ter um troço.

Montamos o grupo, e a assembleia é um arraso. Grêmio Estudantil Paulo Freire é o nome que a professora Ediane dá, a única a participar, embora a gente tenha convidado todos os professores da escola. Gostamos do nome, mas só depois de ela explicar quem é a pessoa homenageada.

– Paulo Freire foi um educador popular. Ele pensou a educação de forma que diálogo entre professor e aluno fosse a principal premissa. Defendia um processo educativo cuja finalidade era a construção do estudante como um aprendiz ativo nesse processo. Sua crítica se dirigiu aos métodos de ensino em que o professor era tido como o detentor de todo o conhecimento, e o aluno apenas um “depositório”, o que ele denominava de “educação bancária” – explica a professora.

Neste momento, o Jorge pede a palavra e acrescenta:

– Ele e sua proposta para a educação foram e são estudados no mundo inteiro. Ele recebeu vários prêmios importantes e é reconhecido internacionalmente. Também recebeu mais de quarenta títulos de doutor honoris causa em universidades no Brasil e em vários países dos cinco continentes.

Nesse momento, o Maycon, do noturno, pergunta:

– O que é esse título aí de doutor honoris não sei o quê?

A professora Ediane explica:

– Doutor honoris causa vem do latim. Quer dizer algo como “por causa de honra”. É o grau mais importante concedido por uma instituição de ensino. É dado a quem se destaca muito mesmo por sua contribuição à cultura, à educação ou à humanidade – explica a professora com aquele sorriso de sempre no rosto. E completa: – Mas o que interessa mesmo da extensa obra do Paulo Freire é que ele defende que o estudante é quem deve ser o protagonista, ou seja, o mais importante do processo educativo. Ele entende a educação como forma de as pessoas se tornarem autônomas e terem consciência de sua situação de oprimidas para, assim, serem capazes de se libertar. Na verdade, ele pensa que a escola e a educação como um todo devem contribuir para a formação de um indivíduo crítico, que não vai aceitar as imposições dos donos do poder sem lutar nem resistir.

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Assim que ela termina de falar, fico emocionada. Como é que uma pessoa tão importante pensou em nós, estudantes de escola pública, de um jeito tão diferente do que é na real. Vou ver mais sobre isso. Sinto também que os colegas estão encantados com esse pensador.

Em seguida, fazemos a votação pro nome, e o pessoal todo bota fé. Assim fundamos o Grêmio Estudantil Paulo Freire. E já começamos a discutir quais serão nossas pautas principais de discussão e de reivindicação.

No meio da conversa, alguém grita:

– Quero papel higiênico!

Geral ri muito.

Mas aí fico pensando… Olha só, que coisa: a gente não tem direito ao básico. No banheiro feminino, só tem um vaso que presta. Os outros três estão interditados. E esse sanitário não tem trinco na porta. Então, enquanto a gente usa, precisa ficar segurando a porta para que outra pessoa não abra e veja a gente fazendo “as coisas”. Lá não tem espelho nem sabonete para lavar as mãos. Os cestos de papel não são lavados e, portanto, têm sempre um cheiro horrível.

Como o guri disse, quando a gente precisa usar o banheiro, tem de ir à secretaria da escola e falar para todo mundo que estiver lá ouvir que a gente quer o papel higiênico. Tem gente que conta que eles demoram para entregar porque muitas vezes estão atendendo outros alunos ou pessoas. Agora imagina se é uma “emergência”? Putz! Eu nunca fui. Não tenho coragem. Já fugi da escola pulando o muro quando menstruei e sujei a calça. Amarrei o moletom na cintura e fui para casa. Ninguém da escola soube, mas foi bem chato.

E por falar em banheiro, a Isa essa semana recebeu uns recados lá na porta interna do único sanitário que está funcionando direito. Alguma menina pichou um monte de ofensas para a Isa. Coisa violenta, pesada mesmo. Ela ficou super chateada. As funcionárias da limpeza da escola, que são amigas da Isa, esfregaram durante dias para tirar os xingamentos, mas quem fez, pixou de novo dois dias depois. Todas as portas dos sanitários estavam pichadas com muitos palavrões e ofensas sobre a Isa.

Fiquei bem impressionada com o Jorge na reunião. O cara é muito crânio. Parece que ele sabe de tudo. E conversa de um jeito muito diferente do pessoal lá da escola. Ele quem sugere as pautas de discussão e reivindicação. Explica cada uma delas. Nesse momento, quase de surpresa, me pergunto: se o cara é o maior gênio, ele não estava correndo o risco de reprovação na outra escola. Então que raios esse moleque rico, burguês, veio fazer nos últimos meses do ano aqui no Barão, escola de perifa braba? Buguei total.

Entregamos também uma lista com o que queremos, que também é enviada para todos os grupos de alunos da escola.

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– A galera topou. Vamos fazer hoje no último horário. Cada representante em sua sala vai conversar com sua turma. Já sabe que na sua é você, né? – diz a Isa, num misto de nervosismo e entusiasmo.

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– Claro que vou falar. Ela acha que vai ficar enrolando a gente e que vamos ficar parados. Noeli é inteligente, sabe que esse tipo de movimento, quando contrariado diretamente, pode nos ferrar.

– É isso, Geo. Você entendeu direitinho. Mas nós não vamos ficar quietos. Já tem quase um mês essa enrolação. Tentamos umas dez vezes marcar com ela, entregamos as pautas de debate e reivindicação, e toda vez ela diz que vai nos chamar, mas até agora nada. Sempre arranja uma desculpa. Hoje quero ver não tomar uma atitude.

Nesse momento, bate o sinal do fim do recreio.

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– O que está acontecendo aqui? Levantem logo daí e liberem a saída para as pessoas. Vocês enlouqueceram? – diz Noeli, corada de raiva.

Somos mais ou menos oitenta estudantes sentados no chão, de frente para o portão. Ninguém consegue entrar nem sair. Que cena fantástica. Todo mundo quieto, em silêncio. Dá para ver na expressão da maioria que estão com muito medo. Mas também é visível a expressão de orgulho por estarem fazendo algo necessário e importante.

– A gente só sai daqui se formos atendidos agora. A criação do Grêmio é coisa séria, temos o direito de ser ouvidos. Tem muita coisa na escola que precisa ser discutida, e nós queremos dialogar sem termos nossas reivindicações ignoradas ou desconsideradas – diz o Jorge, sem se levantar do chão.

– É hora de almoço, não vou falar com ninguém. E ainda vou chamar os pais de vocês. Isso é um imenso desrespeito às normas disciplinares. Vocês serão punidos severamente – ameaça Noeli, nitidamente irredutível.

– Normas disciplinares? Onde está escrito que não podemos ficar sentados no chão do colégio? No regimento, não é, pois temos uma cópia e o estudamos bem para promover essa mobilização – diz a Isa, demonstrando bastante confiança.

Nesse momento, acho que a Noeli se ferrou feio. Aquele protesto não viola nenhuma norma. Nada é depredado, não tem violência, ninguém é ofendido. Só queremos ser ouvidos, considerados. Ela também deve ter entendido que chamar oitenta pais e dar oitenta advertências ou suspensões não ia ajudar.

– A galera do vespertino já começou a chegar. E a gente trouxe lanche – diz o Samuel, segurando no alto um pão com mortadela.

Aí a galera não aguenta e cai na risada.

Nesse momento, parece que a Noeli vai explodir de tanto ódio. Mas ela é a mestra do autocontrole.

– O.k., façam uma comissão de umas três ou quatro pessoas e eu as recebo na minha sala – diz Noeli, vencida, mas se sentindo no controle da situação.

– Não. Na direção, não. Na quadra ou no pátio. Para caber todos que queiram participar da conversa – diz Tiago, o representante do 3º D.

– Aqui no pátio, não dá certo. Daqui a pouco chegam os estudantes do vespertino – fala Noeli, tentando negociar.

– Na quadra, então – insiste Tiago.

– Os estudantes da tarde terão aula de Educação Física daqui a pouco. Estou oferecendo para conversarmos na minha sala – diz Noeli, já alterando a voz.

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– Pede ao professor para dar aula teórica na sala de aula. Queremos ir para a quadra – falo em tom baixo, mas com firmeza.

Assim que fecho a boca, escutamos o barulho das viaturas da polícia chegando. Eles tentam abrir o portão, mas ele está trancado por dentro. Ficam batendo e pedindo para abrirmos.

– Você chamou a polícia para nós? – grita a Isa, indignada.

– Peguem os celulares e comecem a gravar. Não vamos sair daqui – grita, em seguida, um dos colegas.

Imediatamente, quase todos pegam seus celulares e começam a gravar. Pela fresta do portão, os policiais nos veem sentados e começam a dar ordens.

– Levantem daí agora. Aqui é a polícia.

– Nós estamos aqui dentro, Noeli. Estamos sob a sua responsabilidade, você é a gestora da escola. Essa é a maneira de tratar estudantes que querem diálogo? Você vai deixar a polícia arrebentar o portão? O que eles vão fazer com a gente? Está todo mundo gravando – fala Jorge, com segurança.

A cara da Noeli muda completamente. Ela está apavorada. Grita para os policiais esperarem, dizendo que nós já vamos sair.

– Certo, vamos para a quadra – diz ela, vencida.

Assim que nos levantamos, Noeli nos pede para destrancar o cadeado e abrir o portão. Visivelmente constrangida, ela conversa com os policiais, explica que já conseguiu resolver a situação e agradece por eles terem respondido ao chamado da escola.

Chateados com a perda de tempo, os policiais dizem que aquele tipo de acontecimento não é ocorrência policial; que a diretora deve resolver isso internamente, sem acionar a polícia, pois eles têm muitos chamados para atender.

Mais uma vez, Noeli pede desculpas, mas os quatro agentes não esperam que ela termine e vão embora. Ainda na porta, ela avista alguns alunos do vespertino já chegando para as aulas. Em seguida, ela se dirige à quadra do colégio, logo atrás dos estudantes do protesto.

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Isa me chama para trabalhar com ela, no sábado, em uma festa infantil. Ela fica no algodão-doce, e eu, servindo as mesas. Fico assustada com a quantidade de salgadinhos que as pessoas comem em uma festa, mas o que me impressiona mesmo é o tamanho da casa dos pais da criança.

Na parte externa, onde estão recebendo os convidados, deve ter umas cem pessoas, sendo umas quarenta delas crianças, e não está apertado. Somos umas dez apenas servindo as mesas bem espalhadas. Que contraste com a nossa realidade.

Segundo a Isa, esse trampo é comum, e a maioria acontece ali mesmo, nas mansões do DeltaVille, que é um condomínio de casas do outro lado da rodovia. Bem perto das nossas casas, mas ao mesmo tempo “tão distante”.

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Na minha rua e na da Isa, ainda não tem asfalto. Na casa dela, a mãe e o Vilson, o padrasto, ainda não conseguiram cimentar o lote. Só tem a casa mesmo, do jeito que eles receberam quando as moradias do conjunto foram sorteadas, com exceção do muro, que eles conseguiram levantar em todo o lote, mesmo sem a colaboração dos vizinhos do fundo.

A Isa ficou supercontente quando eles terminaram a obra. Agora, com o muro e o portão, o Dog Mc fica seguro dentro de casa. Acho que ela gosta mais daquele vira-lata do que de mim. Ela cuida muito bem dele. As redes sociais dela estão lotadas de foto do doguinho. Pena que só com o bichinho ela tem um bom relacionamento naquela casa.

As irmãs, de treze e quatorze anos, não são mais crianças, e Isa ainda acha que pode mandar nelas. Aí vira sempre confusão. Já com a mãe, apesar do amor que tem por ela, não tem dado certo; a Isa está em uma fase muito questionadora, e a mãe não está sabendo lidar com esse período complicado. Além disso, tem uma treta com a qual a Isa não consegue se conformar: a mãe disse que vai ter outro filho.

O Vilson é um ótimo padrasto pras meninas e pra Isa. Mas ele quer ter um filho com a Maísa, mãe delas. Elas sempre discutem sobre isso. Acho que a Isa tem ciúme. Vive dizendo que a mãe não tem mais idade para ter outro filho, mas ela só tem trinta anos.

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Enquanto rola a festa, a gente não para um minuto. Nem temos tempo de conversar sobre as coisas que tão acontecendo. Fico pensando: se o Jorge aparecer ali, vendo a gente trabalhar com aquele uniforme ridículo, como a Isa vai reagir? Aliás, nem sei como andam as coisas entre eles; se já rolou “alguma coisa” mais próxima fisicamente entre os dois além dos carinhos que já os vi trocando. Ele sempre passa a mão no cabelo dela, fazendo de conta que está arrumando um cachinho. Também sempre segura a mão dela e faz carinho. Mas nunca vi a Isa fazer algo parecido com ele.

Será que ela deixaria de me contar se eles “tivessem ficado”? Fico um pouco chateada quando penso na possibilidade. Mas depois me lembro daquela mensagem que eu mandei para ela, dizendo que o cara só queria se aproveitar. Aí pode ser que eles estejam juntos e ela tenha ficado com medo de me contar.

Eu e a Isa passamos um período bem afastadas. Com os rolês na escola sobre o Grêmio e as tretas decorrentes desse assunto, nos reaproximamos bastante, mas com um jeito diferente de nos relacionarmos. A maneira como ela sempre lidou com o meu namoro com o Dan e agora ela essa relação dela com o Jorge também me fizeram dizer coisas que provavelmente ela também não gostou muito de escutar.

Eu gosto demais dela. Acho a Isa tão inteligente, com ideias tão legais! Ela escreve tão bem, é uma devoradora de livros e tem muitas qualidades, mas sinto falta de quando a gente confidenciava uma à outra quase tudo.

Na época que estudávamos na outra escola, ela me contou que detesta o nome “Isaltina” e que até hoje não entende bem por que a mãe colocou nela o nome de sua avó. A zoeira dos colegas por causa disso sempre a incomodaram e, sabendo disso, a coordenação, a Noeli e a “bendita” professora de português só a chamam de Isaltina, como uma forma de deixá-la constrangida.

Na época, também, ela me revelou por que está sempre de camisetonas ou com aquele moletom gigante o tempo inteiro. Ela é insegura em relação ao próprio corpo. Não entendo bem o porquê.

Eu que sou bem gordinha e “me acho”. Estou sempre com roupas coladas, e o Dan gosta justamente disso em mim. Já ela, tão linda, tem seios fartos, um quadril largo, cintura fininha, mas acha que chama demais a atenção. Vai entender, né?

O jeito é respeitar e mostrar para ela que ela é bonita independentemente de sua visão distorcida sobre si mesma.

Não sei como ela tá lidando com isso, agora que parece que está de romance com o Jorge. Ele é um cara gato demais. Alto, cabelos lisos, bem branquinho e meio ruivo. Faz um contraste bonito com a Isa, que tem a pele bem chocolate ao leite e cabelos pretos bem cacheadinhos e longos. Não sei se já são, mas ao menos seriam um casal bonito.

Só que isso me faz pensar sobre o que os pais do Jorge achariam de uma namorada como ela, com esse visual. Talvez seja preconceito meu, mas eu vejo como as pessoas daquela festa nos olham. Ou, pior ainda, não olham. Me sinto meio invisível, como se enxergassem apenas o meu uniforme e a bandeja que eu seguro. Será que estou paranoica?

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A festa acaba cedo, por volta das onze da noite. Estamos mortas de cansaço. Eles nos pagam assim que entramos na van. É uma grana boa, mas não sei se conseguiria trabalhar sexta, sábado e domingo como muitas vezes a Isa faz. Ela está juntando uma grana para comprar um computador.

Nem sei o que vou fazer com o meu pagamento. Talvez eu dê um pouco para a minha mãe. Ela está precisando levar a minha irmã ao oftalmologista. Lá no postinho, não tem, então precisa esperar abrir vaga no hospital.

Ela sente dor de cabeça quando está na escola. A professora dela – aquela legal, que empresta os livros para a Isa – conversou com a minha mãe e disse que pode ser que ela tenha dificuldade para enxergar, por isso a cabeça dói.

A Isa chega primeiro em casa, mas já na van ela estava conversando com o Jorge. Ela fica sorrindo o tempo todo quando fala com ele. Ele também parece estar a fim. Eles têm chegado mais cedo no colégio para se verem antes da aula. Eu e o Dan começamos do mesmo jeito. Mas, como ele trabalha na oficina do tio, está sempre muito cansado e não consegue acordar cedinho. Aliás, ele tem se atrasado com frequência e agora falta pelo menos uma vez quase toda semana. Lá ele não ganha muito, mas já dá para comprar roupas e pagar a parcela do celular. Claro, também dá para pagar uns lanches legais quando a gente sai juntos. Ele também tem ajudado um pouco nas despesas de casa.

A mãe dele é sozinha para cuidar dos três filhos. Já trabalhou com faxina lá no DeltaVille, como a mãe da Isa, mas agora está trabalhando como manicure em um salão no centro da cidade.

E eu? O que será que vou ter como profissão. Ninguém na minha família, nem na família do Dan, nem na da Isa fez faculdade. Quero muito ter uma profissão melhor, mas nem sei por onde começar. Não gostaria de passar pelo que as nossas mães passam para criar os filhos. Aliás, nem penso em ter filhos. O Dan brinca que quer ter um time de futebol. Comigo, não será. Disso, eu tenho certeza.

Lá em casa, somos só nós três: eu, minha mãe e minha irmã. E já é bem difícil sendo só nós três. Sorte a minha é que minha mãe, mesmo com muita dificuldade, não deixa faltar nada para a gente. Nem coisas materiais, nem afeto, nem diálogo.

Logo que comecei a namorar firme com o Dan, ela me chamou e falou sobre tudo – intimidade, gravidez e sentimentos – e me escutou sem me julgar. Disse que não era para esconder nada dela e que, se precisasse de algo, para me proteger; que bastava falar com ela, que não me criticaria e me daria o apoio necessário. Sorte a minha, pois nem todas mães e pais são assim com seus filhos adolescentes. Ainda não precisei, mas é bom demais saber que posso contar com ela.