Laís Rodrigues Campos
laisrodrigues@ufg.br

Olhares Sobre o Ensino de Geografia na Educação Escolar Quilombola

39 próxima página

Resumo: o conhecimento geográfico tem função essencial no processo de compreensão espacial. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é compreender a contribuição do ensino de Geografia para a Educação Escolar Quilombola no sentido de valorização da identidade territorial e do pertencimento do lugar. Desse modo, corrobora-se com Malcher (2011) quando enfatiza que a territorialidade quilombola é o elemento principal da identidade coletiva desses sujeitos, já que ao legitimar a comunidade através de seu modo de vida, produção e sociabilidade, o território quilombola passa a ser ocupado, usado e controlado através das relações exercidas por esse grupo. Esse processo é caracterizado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola como fundamento que norteia esse tipo de modalidade de ensino. Nesse contexto, foi realizada uma pesquisa participante, de viés qualitativo em uma escola municipal quilombola, localizada na comunidade quilombola Vila União- Campina, em Salvaterra no estado do Pará, cujos sujeitos investigados foram professores de Geografia do Ensino Fundamental, foram utilizados como instrumentos de pesquisa, entrevistas com docentes.Logo, entende-se que o ensino de Geografia possibilita ao aluno compreender o seu lugar, a construção de suas territorialidades e, portanto, se reconhecer no espaço e afirmar sua identidade.

Palavras-chave: ensino de Geografia; Escola Quilombola; Identidade, Lugar.

Introdução

O ensino de Geografia é sempre discutido em diversos trabalhos acadêmicos, porém são poucos estudos que abordam o contexto escolar quilombola. De acordo com as pesquisas realizadas por Larchert; Oliveira (2013), Miranda (2016), Campos; Gallinari (2017), Arruti (2017), Carril (2017) e dos dados do último escolar, o cenário da educação escolar quilombola no Brasil é contextualizado por situações que demandam de melhores condições ao processo de implementação dessa modalidade de ensino, o que levou as seguintes questões: qual Geografia é ensinada no quilombo? Qual a representação da comunidade quilombola enquanto lugar de vivência, experiências? E como objetivo: compreender a contribuição do ensino de Geografia para a Educação Escolar Quilombola no sentido de valorização da identidade territorial e do pertencimento do lugar.

Diante disso, o cenário de investigação foi a escola municipal de Ensino Fundamental Maria Lúcia Ledo situada na comunidade quilombola Vila União- Campina, localizada no município de Salvaterra, estado do Pará. Um fator importante na escolha do lócus deu-se ao processo de implementação da educação escolar quilombola no município e os conteúdos geográficos apresentados na matriz curricular municipal relacionados aos saberes quilombolas.

Para discussão da temática, após introdução o texto está organizado do seguinte modo: metodologia da pesquisa demonstrando os instrumentos, técnicas e tipo de análise do material e por último os resultados e discussões referentes ao ensino de Geografia na Educação Escolar Quilombola.

Metodologia

Os aspectos teórico-metodológicos que fundamentaram as etapas de elaboração desta pesquisa demonstram que o problema formulado e o objeto a ser investigado fazem parte de um nível de realidade que não pode ser quantificada, o que acaba por revelar uma abordagem qualitativa de investigação, visto que, “o objeto não é um dado inerte e neutro, está possuído de significados e relações que os sujeitos concretos criam em suas ações” (CHIZZOTTI, p. 79, 2010).

página anterior 40 próxima página

Na etapa inicial desse estudo foram selecionadas algumas fontes de dados para coleta de informações a partir do tema e objeto- fenômeno investigado, cuja busca ocorreu em várias bases de dados. Para conseguir realizar esse levantamento, foi necessário localizar fontes de origem primária (Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola, relatório técnico das comunidades quilombolas do Marajó, Projeto Político Pedagógico da escola) e secundária (livros, catálogo de Teses e dissertações da CAPES e periódicos da área de cartografia e ensino de Geografia).

Para a obtenção dos dados da pesquisa foi necessário delinear a partir do objeto- fenômeno, o tipo de pesquisa, levando em consideração o procedimento técnico utilizado para a coleta. No caso, desta pesquisa o contexto revelou o uso do enfoque qualitativo participante, no qual “o pesquisador coloca-se numa postura de identificação com os pesquisados, passa a interagir com eles em todas as situações, acompanhando todas as ações praticadas pelos sujeitos.” (SEVERINO, p.120, 2007).

A pesquisa participante possibilita a investigação desse estudo porque caracteriza-se “como uma proposta metodológica inserida em uma estratégia de ação definida, que envolve seus beneficiários na produção do conhecimento.” (GABARRÓN; LANDA, 2006, p.113). Nela, os sujeitos partilham saberes e experiências na construção do conhecimento e estão para além de meros objetos de pesquisa. Conforme afirma Brandão (2006):

Cada vez com mais força chegam perguntas que os próprios cientistas por muito tempo esqueceram de fazer. Perguntas de pessoas reais, muito mais do que categorias abstratas de “objetos”, que parecem descobrir, com sua própria prática, que devem conquistar o poder de serem, afinal, o sujeito, tanto do ato de conhecer de que têm sido o objeto, quanto do trabalho de transformar o conhecimento e o mundo que os transforma em objetos” (BRANDÃO, p. 11, 2006)

Antes de iniciar as atividades em campo, para seleção dos sujeitos foram adotados os seguintes critérios na escolha dos docentes: professor da turma de 6º ano, licenciado em Geografia e com exercício de docência na escola há mais de um ano e outro professor da mesma turma com atuação na área de educação quilombola, conforme a legislação educacional do município de Salvaterra.

Logo, os sujeitos diretos foram duas professoras do Ensino Fundamental I em exercício de uma escola rural quilombola no município de Salvaterra, no estado do Pará, sendo uma delas, professora da disciplina de Geografia, que já atuava nos anos iniciais na escola, e a outra docente atua na disciplina de Educação Quilombola e duas turmas de alunos do 6º ano do Anos Finais dos anos letivos de 2017 e 2018, devido ao conteúdo de Geografia ensinado nessa fase, referente a noção Lugar e a Cartografia.

Desta maneira, com a definição dos sujeitos, local de pesquisa e após o primeiro contato em campo, foram selecionados os seguintes instrumentos, procedimentos e técnicas de coleta de dados a serem utilizados no lócus de investigação: trabalho de campo, diário de campo, observação, entrevista, roteiro de entrevista, registro fotográfico. Após a coleta de dados, foi utilizada uma análise interpretativa de aspectos fenomenológicos sobre o material coletado.

página anterior 41 próxima página

Resultados e Discussões

Realizar o ensino de geografia sob diversos contextos sociais é praticá-lo para além da sala de aula, para a análise espacial em diferentes escalas (local, regional, global). Entender que a geografia ensinada tem o papel de formar indivíduos que desenvolvam um raciocínio espacial a partir da realidade que os cerca e das mediações escalares existentes seja em comunidades ribeirinhas, territórios quilombolas, indígenas, assentamentos rurais, dentre outros ambientes.

A leitura geográfica é essencial para compreensão do cotidiano, da leitura de mundo, isto porque, mais do que buscar maneiras de trabalhar os conteúdos geográficos em diferentes contextos escolares, os professores de Geografia devem possibilitar aos alunos o entendimento espacial a partir seu cotidiano. No sentido, de compreender que “ensinar Geografia é ensinar, por meio de temas e conteúdos (fatos, fenômenos, informações), um modo de pensar geograficamente/espacialmente o mundo.” (CAVALCANTI, 2010, p.7).

Além das bases teóricas que constituem a educação geográfica para análise dos fenômenos espaciais, existem práticas de ensino de Geografia acontecendo em diversos locais, em diferentes modalidades de ensino, a exemplo da Educação Escolar Quilombola e suas múltiplas possibilidades geográficas.

Nesse caso, é preciso atentar-se para o cotidiano dos alunos, os lugares que vivem e as relações espaciais que realizam na sociedade. De modo, a entender qual o lugar/papel da Geografia na escola quilombola? Quais trajetórias socioespaciais são compreendidas nesse ambiente escolar? Que conceitos geográficos estão presentes nas vivências e experiências dos alunos quilombolas?

Tais questões estão diretamente interligadas à realidade, às interpretações de mundo e às práticas espaciais. Nesse sentido, a escola quilombola é mais do que um espaço institucionalizado, de conhecimentos disciplinares, sua função também foca-se no reconhecimento do território quilombola, das identidades historicamente construídas e mobilizadas pelo saber local. Nesta relação do conteúdo disciplinar com a identidade quilombola aponta-se uma educação escolar diferenciada. Desse modo,

O que demarca, então, educação escolar diferenciada? Um argumento categórico é a localização dessas escolas no território da comunidade, a fim de intensificar a participação das comunidades nas definições curriculares e a incorporação da cultura como saber. (MIRANDA, 2018, p.20)

Entendemos que o professor de Geografia ao abordar na escola, o espaço vivenciado pelo aluno, necessita articulá-lo aos instrumentos conceituais (conceitos) do conhecimento geográfico e à dimensão teórico-metodológica da Geografia. É fundamental estabelecer um exercício crítico sobre a realidade e os fenômenos espaciais, para não cair no reducionismo geográfico, em achar que a Geografia é a própria realidade. Portanto, é preciso comprometimento, domínio e clareza dos fundamentos da ciência geográfica para realizar o ensino de Geografia em diferentes contextos e possibilitar o desenvolvimento do pensamento espacial dos alunos. Concordo com Kaercher (1998) que:

Os conceitos e vivências espaciais (geográficas) são importantes, fazem parte da nossa vida a todo instante. Em outras palavras: Geografia não é só o que está no livro ou o que o professor fala. Você a faz diariamente. Ao vir para a escola a pé, de carro ou de ônibus, por exemplo, você mapeou, na sua cabeça, o trajeto. Em outras palavras: o homem faz Geografia desde sempre. (p. 74)

página anterior 42 próxima página

Com essa perspectiva do autor ressaltamos na Educação Escolar Quilombola a importância de uma Geografia ensinada a partir de uma leitura geográfica da vivência, do território, das identidades, do pertencimento do grupo social e das relações que articulam-se entre o conteúdo estabelecido e os elementos socioculturais das populações quilombolas.

Ao trabalhar um conteúdo geográfico em sala, o professor pode potencializar a relação do conhecimento geográfico com o saber local do aluno. O que torna uma importante tarefa no trabalho geográfico desenvolvido pelos professores de Geografia das escolas quilombolas e na própria implementação dessa modalidade de ensino. Nesse aspecto, trazemos os seguintes relatos das professoras:

Educação quilombola pra mim é quando nós trabalhamos contextos que estão inseridos, que estão muito vivíveis na comunidade, por exemplo, aqui nos temos traços dessa situação de raízes e aí teve certo período que a escola não trabalhava dessa forma e hoje graças a deus já conseguimos inserir na proposta curricular para trabalhar essas intervenções inclusive são intervenções muito boas, é boa porque vem fazer com que os alunos se identifiquem com o lugar porque a gente tem essa resistência aqui na escola, então educação quilombola pra mim é resgatar realmente esse conhecimento dessas raízes que nós temos na nossa comunidade. (Professora ISABELA, pesquisa de campo 2017)

Eu compreendo como uma modalidade de educação ainda com material muito escasso e aqui no município é muito difícil de trabalhar a temática. É um trabalho muito minucioso, há conflitos enormes, mas, nos temos tido resultados positivos e muito, porque havia uma rejeição muito grande e hoje em dia já conseguem aceitar melhor a modalidade de educação. (Professora ERLEN, pesquisa de campo 2017)

Nesse caso, é fundamental articular a prática docente e a cultura escolar ao pertencimento étnico-cultural da comunidade. Mediante esse cenário, no ensino da escola quilombola “é necessário inserir no projeto educativo os conteúdos éticos, morais, comportamentais, culturais, sociais [...] não os desvinculando dos conteúdos de cada área de conhecimento ou de cada disciplina”. (LARCHERT; OLIVEIRA, 2013, p.53). Esse contexto precisa estar presente no ensino de Geografia.

Considerações finais

Ao entender que a escola e o ensino de Geografia têm um importante papel na formação dos indivíduos buscamos responder aos questionamentos apresentados nesse texto, enfatizando que o lugar da Geografia no espaço escolar quilombola está na força das práticas espaciais de alunos e professores que se lugarizam nesse ambiente educacional, de suas experiências construídas na realidade que vivenciam e no sentido que o mundo escolar e geográfico possui na vida desses sujeitos.

Logo, “En este sentido que la educación geográfica emerge como um esbozo de prácticas pedagógicas que pudierem sustentar la vinculación efectiva del ser humano com la tierra e desde allí com los grupos humanos.” (SEPÚLVEDA,2009, p.97). Portanto, a escola pode ser um lugar da resistência, o encontro de culturas e saberes.

Referências

ARRUTI, José M. Conceitos, normas e números: uma introdução à educação escolar quilombola. Revista Contemporânea de Educação, vol. 12, n. 23, 2017.

página anterior 43

BRANDÃO, C. Rodrigues. A pesquisa Participante. In: BRANDÃO, C. Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Orgs.). Pesquisa Participante: O saber da Partilha. Aparecida, SP: Idéias & Letras. p. 93-121.

CAMPOS, Margarida C. Campos; GALLINARI, Tainara S.A educação escolar quilombola e as escolas quilombolas no Brasil.Revista NERA Presidente Prudente Ano 20, nº. 35,2017

CAVALCANTI, L. A geografia e a realidade escolar contemporânea: avanços, caminhos, alternativas. Anais do I Seminário Nacional Currículo em Movimento-perspectivas atuais. Belo Horizonte, 2010. CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2010.

GABARRÓN, Luis Rodríguez; LANDA, Libertad Hernández (2006). O que é pesquisa participante. Tradução Telmo Adams. In: BRANDÃO, C. Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Orgs.). Pesquisa Participante: O saber da Partilha. Aparecida, SP: Idéias & Letras. p. 93-121.

KAERCHER, N. A. A Geografia é o nosso dia-a-dia.In: CASTROGIOVANNI, A.C. et al.(orgs.) A Geografia em sala de aula, práticas e reflexões. Porto Alegre: AGB, 1998.

LARCHET, Jeanes M.; OLIVEIRA, M. W.Panorama da Educação Quilombola no Brasil. Políticas Educativas, Porto Alegre, v. 6, n.2, 2013. MALCHER, Maria Albenize. TERRITORIALIDADE QUILOMBOLA NO PARÁ: um estudo da comunidade São Judas, município de Bujaru e da comunidade do Cravo, município de Concórdia do Pará. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Geografia. Belém: UFPA,2011.

MIRANDA, Shirley A. de. Quilombos e Educação: identidade em disputa. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, 2018.

SEVERINO, A.J. Metodologia do trabalho científico. 22. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

SEPÚLVEDA.Ulises. Vidas y Cuerpos despojados del lugar : la espacialidade propuesta por el mundo escolar. In: GARRIDO, Marcelo. (org.) La Espesura del lugar: reflexiones sobre el espacio em el mundo escolar.1ª ed. Santiago: Ediciones Universidad Academia de Humanismo Cristiano, 2009.

Notas

1. Texto elaborado a partir da pesquisa da Tese de Doutoramento, financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) e defendida no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás.

2. Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação - Universidade Federal da Educação (CEPAE/UFG)