Wellington Lima Cedro
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MESA REDONDA

Uma organização da escola, da formação e do ensino para o desenvolvimento humano sustentada na teoria histórico-cultural

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Admitir que o sujeito se apropria dos significados por meio de um processo de interação no conjunto de práticas sociais tem consequências para a organização das práticas educacionais. A admissão desta declaração implica no surgimento da necessidade de debatermos a organização da atividade pedagógica, ainda mais se considerarmos a educação escolar como um fenômeno social e socializador, no qual conteúdos desempenham papel preponderante, já que nas relações interpessoais a construção do conhecimento tem por objetivo a partilha dos significados. De tal modo, é de se conjecturar que, na escola, venham a ser planejadas tarefas de ensino mediante as quais professores e alunos possam ampliar, modificar e construir significados. Esperamos que a Teoria Histórico-cultural possa fundamentar a organização dessas tarefas e nos ajudar a discutir quais conteúdos e qual projeto pedagógico é possível de ser concretizado para determinados objetivos educacionais, para certos sujeitos e em uma determinada realidade educacional.

Nessa direção esse texto está organizado da seguinte maneira: inicialmente apresentarei brevemente uma tarefa de ensino. Em seguida, os fundamentos teóricos que sustentam a tarefa de ensino e, por fim tecemos as nossas considerações finais.

Uma tarefa de ensino: um pontapé para o desenvolvimento humano

Para compreender como os pressupostos da Atividade Orientadora de Ensino (MOURA, 2016, 2017) podem constituir base para a organização das ações do ensino com vista a formação do pensamento teórico nos estudantes, iremos analisar de forma breve uma situação desencadeadora de aprendizagem intitulada “Carta Caitité”. Esta situação desencadeadora de aprendizagem foi elaborada por Manoel Oriosvaldo de Moura (2016). Constitui-se em uma história virtual do conceito, porque recupera o modo de produção dos conceitos fundamentais de um sistema de numeração e coloca para o indivíduo que irá solucioná-la a necessidade destes conceitos. A história virtual tem sido compreendida como um recurso teórico-metodológico que se apresenta como uma situação desencadeadora de aprendizagem (ARAÚJO, 2003).

A dimensão histórica é considerada na tarefa de ensino como uma das formas de perceber o processo histórico-cultural do conceito, nesse sentido, significa conceber o conceito inserido em uma história na qual homens e mulheres, diante de necessidades objetivas, buscam e elaboram soluções para seus problemas. Para esclarecermos esses princípios a seguir apresentamos a história virtual do conceito Carta Caitité.

Quadro 1. A carta caitité. Fonte: adaptado de Moura (2016).

Para que os indivíduos resolvam a situação-problema sobre “a lógica do sistema de numeração Caitité”, faz-se necessário buscar os conhecimentos anteriores sobre o sistema de numeração de forma relacional. Como esse conhecimento, que é teórico, não se constitui diretamente, a interação entre os pares torna-se imprescindível. De tal modo, a organização da sala de aula para a solução da situação-problema parte do princípio do resolver com o outro, a troca de ideias entre os pares é condição essencial para chegar à resposta para o problema.

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Esta tarefa, materializada na situação desencadeadora de aprendizagem, parte do pressuposto teórico da lógica dialética de abordagem do conhecimento, parte do abstrato (Sistema de Numeração Caitité) para o concreto (qualquer Sistema de Numeração). Os conceitos de bases, articulados com os de valor posicional, de ordem e de correspondência, são constitutivos do sistema de numeração. A Carta Caitité reúne elementos que dão conta desse processo, a situação desencadeadora de aprendizagem não parte de conhecimentos particulares para chegar ao conceito de um sistema de numeração. Ao contrário, partiu de um sistema elaborado para que os estudantes, por meio de suas ações e operações, descobrissem os conceitos fundamentais constituintes deste sistema: base, valor posicional, correspondência um-a-um e ordem dos signos. Observamos que, na tarefa, o objetivo é a compreensão da gênese de um sistema de numeração, isto é, quais são as características que o compõem, já que os signos numéricos não podem ser tomados soltos, é preciso que se estabeleça uma relação com os demais conceitos. Portanto, o objetivo é que o indivíduo compreenda os conceitos essenciais de um sistema de numeração.

Pressupostos teóricos da organização do ensino

Há um bom tempo, a comunidade científica de educadores matemáticos (KILPATRICK, 1994) tem discutido e apresentado modelos de organização do ensino que tentem superar a visão tradicional, pautada pela repetição, memorização de determinados procedimentos e a passividade perante os conhecimentos matemáticos. Por várias razões, entretanto, poucos resultados objetivos têm sido constatados. Percebemos que ainda mantemos um processo de escolarização que parece cada vez mais isolado das demais ações que realizamos cotidianamente. Dessa forma, a nosso ver, torna-se imperativo pensar em novas formas de organizar os espaços de aprendizagem que levem em conta o papel imprescindível da atividade de ensino como elemento basilar da organização da Matemática.

Essa convicção nos leva a propor um modo de organização do ensino que tenha como objetivo a educação humanizadora do indivíduo e que seja esquematizado em torno da atividade orientadora de ensino (MOURA, 1996). Acreditamos que essa forma de organização possibilite a todos os indivíduos envolvidos no processo a apropriação dos nexos conceituais que permitam o amplo desenvolvimento da sua condição humana.

Moura (1996, 2000, 2001, 2016, 2017) chamou de atividade orientadora de ensino aquela atividade que é estruturada de forma que os indivíduos possam interagir entre eles, mediados por um conteúdo, negociando significados e tendo como fim a solução coletiva de uma situação-problema. O seu caráter orientador é proveniente do fato de essa atividade definir os elementos fundamentais da ação educativa e respeitar a dinâmica das interações que surgem no espaço de aprendizagem e que nem sempre chegam aos produtos almejados pelo professor.

A estrutura da atividade orientadora de ensino se baseia na unidade entre o lógico e o histórico do conceito (LANNER DE MOURA; SOUSA, 2005). Esta afirmação tem como implicação a necessidade de se perceber o movimento de gênese do conceito, não apenas como mais um elemento da História da Matemática, correndo o risco de esta converter-se em um próprio conteúdo matemático. Assim, a dimensão histórica do conhecimento matemático é entendida dentro do processo social e cultural do conceito. Nessa perspectiva, compreender a gênese do conceito significa perceber que ela faz parte da história, na qual os homens e as mulheres, perante as necessidades objetivas, buscaram e elaboram soluções para determinados problemas.

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O caráter objetivo do lógico-histórico do conceito está presente na situação-problema que desencadeia todo o processo educativo. Esses problemas devem embutir em si a essência do conceito que, segundo Moretti (2007), implica compreender que a História da Matemática, que envolve o problema desencadeador, não é a história factual, mas sim aquela impregnada no conceito. Conceber a situação-problema desse modo abre o leque de possibilidades para a sua materialização, ou seja, a situação-problema pode assumir a forma tanto de uma história virtual (MOURA, 1992) quanto de um jogo, de uma atividade lúdica ou de um problema contextualizado. Neste contexto, o que prevalece é a intencionalidade do professor.

A intenção do professor ao usá-la [situação-problema] como recurso didático é que o conceito a ser ensinado se transforme em uma necessidade, cognitiva ou material, para seus alunos de modo que as ações que esses desenvolverão na busca da solução do problema estejam de acordo com o motivo que os leva a agir e que desse modo eles possam, de fato, estar em atividade (MORETTI, 2007, p. 99).

Com isso, cabe ao professor criar condições para que os indivíduos interajam motivados pela tentativa de dar resposta a determinado problema, de forma que ocorra um fluxo ininterrupto no processo de elaboração compartilhada da solução que abarque tanto os indivíduos isolados, quanto os pequenos grupos e o coletivo da sala de aula. Esta afirmação reflete a necessidade da uma organização do ensino que possibilite o real desenvolvimento dos indivíduos. Conforme Vigotski afirma (2007, p.103), “o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer”. É somente por meio desse aprendizado, adequadamente organizado, que o indivíduo consegue despertar e internalizar os vários processos de desenvolvimento, os quais somente surgem durante a cooperação e a colaboração com os demais companheiros e em determinado contexto e espaço. Usando os termos vigotskianos (VIGOTSKY, 2007), há o surgimento da zona de desenvolvimento proximal ou zona de desenvolvimento iminente para Prestes (2012).

Analisando a definição de Vigotski, podemos compreender o nível de desenvolvimento real como aquele em que já existe um conhecimento apropriado pelo indivíduo, indica que ele consegue realizar determinada tarefa de forma independente. Já o nível de desenvolvimento potencial corresponde àqueles processos que estão se formando. O espaço entre esses dois níveis, ao qual Vigotski chamou zona de desenvolvimento proximal, apresenta-se, portanto, como o campo de possibilidades para a aprendizagem dos conhecimentos científicos (ARAÚJO, 2003), como também para a apropriação dos traços característicos do ser humano. Neste sentido, cabe ao professor dirigir as ações na sala de aula de um modo apropriado ao nível adequado do desenvolvimento do indivíduo, utilizando das suas ferramentas de mediação, a atividade orientadora de ensino, para que ocorra o desenvolvimento das suas funções mentais.

Em suma, podemos afirmar que as características principais da atividade orientadora de ensino são as seguintes:

A atividade [...] é do sujeito, é problema, desencadeia uma busca de solução, permite um avanço do conhecimento desse sujeito por meio do processo de análise e síntese e lhe permite desenvolver a capacidade de lidar com outros conhecimentos a partir dos conhecimentos que vai adquirindo à medida que desenvolve a sua capacidade de resolver problemas (MOURA, 2000, p.35).

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Dessa afirmação, podemos concluir que a atividade orientadora de ensino pauta-se pela intencionalidade dos indivíduos, pelo desenvolvimento dos nexos conceituais do conhecimento que, mediados pelas diversas formas de linguagem, permitem a apropriação dos conhecimentos teóricos e a consequente formação de um pensamento teórico. Esse ciclo, portanto, apresenta um caráter duplo. Este duplo movimento da atividade de ensino possibilita a transformação do estudante ao inseri-lo em um processo de troca de significados, além de oferecer ao professor as condições de criação de ferramentas que favoreçam a aprendizagem, a revisão dos objetivos educacionais, dos conteúdos e estratégias de ensino em um processo contínuo de avaliação de seu trabalho. A atividade de ensino assume, portanto, o papel do elemento organizador e formador da aprendizagem dos indivíduos, isto é, a atividade é, desse modo, um elemento de formação do estudante e do professor.

Tendo como base a atividade orientadora de ensino, podemos dar um novo significado aos espaços de aprendizagem que podem ser entendidos como “o lugar da realização da aprendizagem dos sujeitos orientado pela ação intencional de quem ensina” (CEDRO, 2004, p. 34). Dessa forma, eles se tornam espaços caracterizados pela crítica, pela descoberta e pela prática social.

A organização do ensino, por meio das atividades orientadoras, oportuniza aos indivíduos a possibilidade de analisar crítica e sistematicamente sua atividade prática e suas conclusões internas. Com isso, se estabelece um contexto que favorece o surgimento da crítica, já que os indivíduos aprendem e se apropriam da sua atividade ao passo que a vão criando (ENGESTROM, 2002).

Ao assumirmos essa posição, os espaços de aprendizagem acabam se tornando lugares onde a prática social se constitui em elementos essenciais e necessários para o desenvolvimento do indivíduo, pois constituem verdadeiras comunidades de prática (LAVE; WENGER, 1991). Nesses espaços todos os participantes desenvolvem plenamente as tarefas nucleares da atividade e há abundante interação horizontal entre os participantes, mediada especialmente por histórias, por situações-problema e pela busca das suas soluções.

Por fim, os espaços de aprendizagem caracterizam-se pela formação dos conceitos teóricos com base no processo de ascensão do abstrato ao concreto, que é uma estratégia essencialmente genética a qual visa à descoberta e à reprodução das condições de origem dos conceitos a serem apropriados (DAVYDOV, 1982; 1988; 1999). Esse processo permite o desenvolvimento, no indivíduo, da capacidade de relacionar-se com os problemas de um modo teórico e refletir sobre o seu pensamento. Com isso, conseguimos superar aqueles processos de escolarização que contribuem somente para a aquisição de habilidades e conhecimentos especiais e possibilitamos o desenvolvimento mental geral dos indivíduos.

Esses elementos que caracterizam os espaços de aprendizagem contribuem decisivamente para que o ensino possa expandir as potencialidades dos indivíduos, ou seja, desenvolver a sua personalidade como um todo; favorecem o estabelecimento de condições para descobrir e instituir os potenciais criativos dos indivíduos; permitem que todos os participantes se tornem efetivamente indivíduos da atividade de aprendizagem; levam à compreensão de que a aprendizagem e o ensino autênticos ocorrem por meio do compartilhamento das ações entre todos os indivíduos; e concebem que os procedimentos e técnicas de ensino devem atender à diversidade e às particularidades dos indivíduos, não permitindo que os métodos se tornem uniformes e rígidos.

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Afinal, qual o sentido de estudar a teoria histórico-cultural?

Estudar a Teoria Histórico-cultural só tem sentido se tivermos a possibilidade de tornamos mais críticos em relação as formas de alienação as quais estamos submetidos. Nessa perspectiva, há necessidade de levarmos adiante a construção de uma pedagogia crítica e historicizadora que possibilite o desenvolvimento dos seres humanos, ou seja, a sua humanização. Precisamos de uma pedagogia que contenha indicações claras sobre as possibilidades concretas de ações educacionais que façam avançar a formação dos indivíduos.

Neste contexto temos o compromisso de ensinar aos alunos o que há de mais elevado e rico no conhecimento humano e oferecer aos professores a possibilidade de se compreenderam todas as nuances inerentes a organização do ensino. O ensino torna-se uma atividade política e significativa.

Referências

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