Mirian Rodrigues de Souza
miriandiscente@ufg.br

Cynthia Maria Jorge Viana
viana@ufg.br

EIXO
Filosofia e Sociologia

Formação e semiformação: elementos para pensar a educação à luz das contribuições de Theodor W. Adorno

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Resumo: Entendemos que a formação docente em Sociologia deve investigar os conteúdos simbólicos das práticas culturais para que seja possível identificar tanto as práticas culturais que fundamentam a diversidade social e cultural dos agrupamentos humanos, como os fundamentos da sociabilidade Karajá, suas tradições, sua dinâmica social e histórica frente o contato e o convívio próximo com a população não indígena de Aruanã-GO. Assim, é possível a construção de estratégias de pesquisa social que viabilizem apresentar a diversidade das práticas sociais ameríndias e suas outras possibilidades de convívio humano e modo de vida.

Palavras-Chave: Cultura Indígena. Educação. Diversidade.

Introdução

Este trabalho parte das reflexões realizadas no trabalho de conclusão de curso intitulado “Semiformação e barbárie: as contribuições de Theodor W. Adorno”, apresentado ao curso de Graduação de Licenciatura em Pedagogia, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. O trabalho teve como objetivo compreender a relação entre educação, semiformação e barbárie e as temáticas discutidas nesta pesquisa foram a noção de formação cultural, barbárie, indústria cultural, semiformação e, por fim, educação. Para compreender as temáticas citadas, reportou-se às questões históricas que fundamentam a Teoria Crítica da Sociedade e a algumas categorias do pensamento de Theodor W. Adorno (1903-1969), um dos mais célebres pensadores desta perspectiva. Assim, com base nas contribuições de Adorno (2020), além da discussão a respeito de alguns elementos sobre o contexto histórico em que a Teoria Crítica se desenvolveu, apresentou-se os aspectos que se referem à formação cultural, ao sentido de educação, à dominação da indústria cultural e à semiformação. A partir dessas considerações, o trabalho buscou pensar a educação, a semiformação e a barbárie e suas contradições.

Metodologia

Esta é uma pesquisa qualitativa do tipo bibliográfica. A pesquisa qualitativa, segundo Minayo (2002), preocupa-se com uma realidade que não pode ser quantificada nem reduzida à operacionalização de variáveis, uma vez que se aprofunda nas relações humanas e na subjetividade dos indivíduos. Para referida pesquisa, consultou-se diversas fontes teóricas como livros, artigos, revistas científicas e pesquisas acadêmicas. As principais referências discutidas no trabalho foram: os livros “Educação e emancipação” (ADORNO, 2020), “10 lições sobre Adorno” (ZUIN; PUCCI; LASTÓRIA, 2015), “A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo” (MATOS, 2001), “A Teoria Crítica” (NOBRE, 2014); e os textos “Teoria da semicultura” (ADORNO, 2005), “Adorno, semiformação e educação” (MAAR, 2003), “Resposta à pergunta: que é esclarecimento” (KANT, 1985), dentre outros.

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Resultados e discussões

Para trazer a ideia de formação humana entrelaçada à de emancipação e de esclarecimento, Adorno (2020) recorre ao ensaio escrito por Kant (1985) intitulado “Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?”. Segundo o autor, o homem está em constante constituição no sentido humano e de esclarecimento, por meio da razão. A razão, nesse sentido, tem como finalidade a formação do sujeito para fins humanos, para o esclarecimento e para a maioridade. A covardia, ao contrário, consiste na falta de coragem para servir-se de si, para continuar na subserviência e no que é mais cômodo. Sair da menoridade é de fato doloroso e perigoso; pensar por si mesmo é esbarrar nas contradições do mundo é embarcar numa experiência como senhor de si (KANT, 1985). É compreender que nossas ações implicam em transformações internas/próprias e nas relações com o outro. Nota-se que a liberdade consiste na vontade e no agir do indivíduo, uma vez que a possibilidade da liberdade é restrita à vontade humana. Se a liberdade consiste na vontade e no agir, por que o homem permanece num estado de menoridade? Segundo Kant (1985),

A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. (p. 100).

A falta de capacidade dos homens de se autodeterminarem no mundo faz com que uma grande maioria deles continuem menores e sob subserviência absoluta. Kant (1985) aponta que mesmo o homem tendo dificuldade de desprender-se da tutela de outro poderia por meio do esclarecimento iniciar um caminho seguro de transformação guiado pela razão. Nesse sentido, uma educação para a formação consiste na orientação dos homens pela própria razão para o aprimoramento permanente e de suas relações. A educação nessa perspectiva é o meio pelo qual o homem poderia transformar o que há de mais primitivo em termos humanos. Ainda sobre a menoridade, e com base em Kant (1985), Adorno (2020) afirma que:

Talvez se possa ver o problema da menoridade hoje ainda por um outro aspecto, talvez pouco conhecido. De uma maneira geral afirma-se que a sociedade, segundo a expressão de Riesman, ‘é dirigida de fora’, que ela é heterônoma, supondo nesses termos simplesmente que, como também Kant o faz de um modo bem parecido no texto referido [Resposta à pergunta: o que é Iluminismo?], as pessoas aceitam com maior ou menor resistência aquilo que a existência dominante apresenta à sua vista e ainda por cima lhes inculca à força, como se aquilo que existe precisasse existir dessa forma. (ADORNO, 2020, p. 195, grifo do autor).
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O aspecto que o autor chama atenção e que se relaciona com o fato de que é necessário compreender a adesão das pessoas à heteronomia parece ser algo que interessa também à educação. A educação consiste, entre outros elementos, no despertar da consciência heterônoma no sentido de superar os problemas decorrentes desta e da valorização da produção material e do lucro em detrimento das relações sociais e humanas. Isto significa afirmar uma educação que valorize a reflexão crítica e que tenha compromisso com uma efetiva mudança e transformação social. Para isso, é preciso um pensamento reflexivo e uma análise social que revele os problemas presentes e rompa com as questões estruturais decorrentes dos ideais dominantes. A educação ainda é uma instância/mediação poderosa para o processo de emancipação dos homens e para Adorno (2020) “[…] a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contestação e para a resistência” (p. 200).

Além da discussão sobre educação, segundo Gomes (2010), um dos campos específicos que Adorno analisa e busca compreender é a cultura. A partir disso focaliza-se: “[...] na crítica (negação) de todo e qualquer processo de alienação do sujeito, mediatizado pela indústria cultural e que conduz a sociedade para um estado de profunda barbárie” (p. 290, grifo do autor). Como meio de subjugação e sujeição dos indivíduos, a indústria cultural é em certa medida primordial para a manutenção do sistema capitalista. Nesse movimento de manutenção e ampliação do capitalismo fica evidente que os homens se encontram enclausurados. A formação nesses termos não permite a eles a capacidade de pensar por si mesmos. Por isso é preciso refletir sobre como a falsa formação se estabelece, entre outros elementos, no contato e mediada pela indústria cultural. Como afirma Maar (2003),

A indústria cultural determina toda a estrutura de sentido da vida cultural pela racionalidade estratégica da produção econômica, que se inocula nos bens culturais enquanto se convertem estritamente em mercadorias; a própria organização da cultura, portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos culturais subordinando-os aos sentidos econômicos e políticos e, logo, à situação vigente. (MAAR, 2003, p. 21).

Quando a formação cultural tem um viés meramente adaptativo, Adorno nomeia-a como semiformação ou semicultura. A semicultura é a maneira que o sistema capitalista através da indústria cultural utiliza para exercer o domínio. A semiformação seria a maneira socialmente imposta aos sujeitos através de um processo de dominação dos homens. Para Maar (2003), “A semiformação seria a forma social da subjetividade determinada nos termos do capital” (p. 467). Nessa perspectiva, a semicultura impossibilita que os homens alcancem de fato uma formação crítica. Como afirma Zuin (2001), além da essência do conceito de indústria cultural ser atual e relevante para pensar a atual sociedade possibilita a crítica das condições sociais fundamentadas na semiformação.

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A conversão da formação cultural em semiformação não deixa dúvidas de que a atual sociedade oferece poucas possibilidades para reflexão crítica, cedendo lugar a adaptação cega e naturalizando as várias formas de violência, opressão e barbárie. Essa conversão contribuiu para a regressão da humanidade: o homem já não se reconhece no outro, ou se reconhece muito pouco. A educação poderia, se objetivar a resistência, a crítica e a reflexão, contribuir para que os problemas decorrentes da semiformação fossem em certa medida refletidos. A emancipação só poderá ser alcançada por meio da crítica às contradições que a semiformação promove. Nesse sentido, em “Educação e emancipação”, o autor dirige-se à prática educativa afirmando que quando o véu ideológico que cobre a realidade é desmistificado é possível começar a despertar a consciência dos homens para que compreendam o quanto são enganados. É preciso prezar por uma educação que possibilita a luta, o estranhamento frente a dominação e a manutenção do status quo e que tenha como objetivo criar uma consciência crítica sobre o estado de barbárie e de semiformação em que a atual sociedade se encontra. Uma educação que reflita sobre a heteronomia, que combata todos os tipos de violência proveniente da semiformação e da coisificação dos homens, que privilegie uma formação para a resistência ao horror e que promova a diversidade, a liberdade e a igualdade. E, por fim, uma educação que fortaleça a democracia por meio de um pensamento crítico-reflexivo para que ela possa de fato se concretizar (ADORNO, 2020).

As reflexões de Adorno (2020) não deixam dúvidas de que em uma sociedade onde impera a dominação da indústria cultural e da semiformação, a educação poderia, em certa medida, se objetivar a resistência, a luta e a negação (crítica), contribuir para que os homens saiam do estado de menoridade objetivando uma formação direcionada/orientada à emancipação. Nesse sentido, o foco da educação não poder ser, exclusivamente, a valorização da técnica e de uma formação profissional voltada para o mercado de trabalho, em detrimento de uma formação humana, pois uma educação que valoriza apenas a dimensão técnica não suscita a possibilidade de esclarecimento, uma vez que tem como objetivo a adaptação irrestrita dos indivíduos aos moldes vigentes e não permite que os sujeitos problematizem e pensem sobre a realidade objetiva e também sobre a sua existência no mundo. Uma educação nesses termos está a serviço do capital, pois em vez de revelar as contradições presentes na sociedade reproduz/reafirma/mantém as ideologias dominantes. O autor, na palestra intitulada “Educação para quê?”, realizada na rádio Hessen em 1967, afirma sua concepção de educação:

[...] gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isso seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. (ADORNO, 2020, p. 154, grifo do autor).
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Uma educação política para Adorno (2020) tem como objetivo a crítica das condições objetivas que promovem a semiformação e que impossibilitam uma experiência formativa. Para o autor, para concretização efetiva de uma educação emancipatória é preciso que as poucas pessoas que estejam interessadas nesta direção orientem suas forças para que a educação seja uma educação para a resistência e para a contradição, como afirma o autor. Nesse sentido, o educador tem um papel importantíssimo que é revelar as ideologias construídas culturalmente e que mantém as estruturas arraigadas/fixas, como se não fosse possível modificá-las. É dessa maneira que, provavelmente, ocorrerá o despertar da consciência dos homens. Nas palavras de Adorno, o objetivo da educação deve ser a produção de uma consciência verdadeira, somente assim, os homens poderiam, nas palavras de Kant (1985) “[...] emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura” (p. 102).

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz&Terra, 2020

ADORNO, Theodor W. Teoria da Semicultura. Porto Velho: Editora Universidade Federal de Rondônia, 2005.

GOMES, Luiz Roberto. Teoria Crítica e educação política em Theodor Adorno. Revista HISTEDBR online, Campinas, n.39, p. 286-296, set.2010. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8639731. Acesso: 30 Maio. 2021.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento? In: Textos Seletos (edição bilíngüe). Trad. Francisco de Sousa Fernandes. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.

MAAR, Wofgang Leo. Adorno, Semiformação e Educação. In: Revista Educação e Sociedade. V. 4, n.83. Campinas, agosto de 2003.

MARR, Wolfgang Leo. À guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa. In: ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz e Terra, 2020, p. 11-29.

MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Editora Moderna, 2001.

NOBRE, Marcos. À Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2014.

ZUIN, Antônio; PUCCI, Bruno; LASTÓRIA, Luiz Nabuco. 10 lições sobre Adorno. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

ZUIN, Antônio. Sobre a atualidade do conceito de indústria cultural. Cadernos Cedes, ano XXI, nº 54, agosto/2001.

Notas

1. O Instituto para Pesquisa Social foi fundado no início da década de 1920 em um contexto histórico marcado pelo pós-guerra, pelo avanço crescente dos regimes totalitários e pela Revolução Russa de 1917. De acordo com Matos (2001), para compreender alguns elementos a respeito da Teoria Crítica é necessário entender alguns nexos do contexto histórico em que ela se constituiu. O século XX foi marcado por duas grandes guerras mundiais, a Primeira Guerra Mundial que ocorreu em 1914-1918 e a Segunda Guerra Mundial que vai de 1939-1945. Após a Primeira Guerra Mundial, houve um avanço dos regimes totalitários como nazismo, fascismo, franquismo e Stalinismo e que culminou, posteriormente, na Segunda Guerra Mundial. A ascensão destes regimes e a Segunda Guerra Mundial marcaram a Teoria Crítica e como ela se desenvolveu nos anos posteriores. Para Nobre (2014), a Teoria Crítica surge como uma perspectiva teórica de contestação da ordem vigente por meio de um pensamento crítico. O termo Teoria Crítica foi consagrado por Max Horkheimer em 1937, quando publicou o artigo intitulado “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, na Revista de Pesquisa Social. Nobre (2014) vai afirmar que o primeiro princípio fundamental da Teoria Crítica é a orientação para a emancipação, e o segundo é o comportamento/pensamento crítico em relação ao conhecimento produzido sobre as contradições sociais. Como mencionado, a possibilidade de uma sociedade emancipada é real, entretanto, apenas descrever a realidade presente exclui a possibilidade real de emancipação. Por isso, a Teoria Crítica busca compreender quais são os obstáculos e contradições presentes na sociedade e afirma, pela contradição, as potencialidades e os limites dessa emancipação, entrelaçando cultura, razão, história e natureza humana.

2. Não podemos esquecer que o professor também é “produto” desta sociedade. A sua formação se dá mediante várias instâncias e, nesse sentido, o professor não pode ser pensado como um ser deslocado dessas instituições mediadoras que também o formaram. É papel do professor revelar/desvelar as ideologias construídas culturalmente, mas é preciso pensar que este professor também se constituiu/formou nessa sociedade que é multifacetada e contraditória. A docência nos coloca frente a diferentes situações, daí a importância de uma formação mais humanizada e para humanização, para que em diferentes contextos o professor possa pensar as questões que inviabilizam uma formação ampla dos sujeitos, principalmente, no que diz respeito às desigualdades, pois é preciso pensar também as condições (espaciais, econômicas, sociais, emocionais) desses indivíduos (crianças, jovens, adultos e idosos) que sobrevivem por vezes em condições subumanas. Como emergir-se da menoridade numa sociedade tão desigual? Essa é uma questão difícil de ser respondida, mas que devemos sempre reiterá-la e refletir sobre ela.