Os episódios históricos no livro didático de biologia: uma discussão espaço-temporal
34Resumo: O uso de episódios históricos no ensino de biologia apresenta contradições pois, ao mesmo tempo que ajudam na compreensão da ciência como fazer socialmente situado, explicitando as controvérsias científicas e seu caráter provisório, podem reforçar estereótipos científicos. Considerando as potencialidades e os limites que se estabelecem quando da veiculação desses episódios históricos em livros didáticos de biologia no Ensino Médio, esse trabalho objetiva discutir os elementos relacionados ao período/local de produção da ciência apresentados nos episódios históricos presentes em uma coleção didática de Biologia utilizada em uma escola pública estadual de Goiânia. A partir da leitura da obra, foram identificados 12 episódios históricos que podem colaborar com a compreensão de conceitos biológicos pelos estudantes, porém é preciso cautela para que o uso desses episódios no ensino de biologia não reforce a ideia de ciência como um fazer europeu (8), masculino (12) e individual (6).
Palavras-Chave:História da Biologia. Período Histórico. Ensino de Biologia.
Introdução
O trabalho apresentado é parte dos resultados de uma pesquisa realizada no contexto de um PIBIC- Ensino Médio (EM) e faz parte de um projeto maior (“A História e a Filosofia da Ciência no Ensino de Ciências – uma revisão sistemática da produção brasileira” - PI0365-2017/UFG) que pretende realizar uma Revisão Sistemática (RS) da produção científica relacionados à História e Filosofia da Ciência (HFC) e o Ensino de Ciências no Brasil. Nesse recorte, a proposta é levantar e analisar os episódios relacionados a história da ciência veiculados nos livros didáticos de biologia (EM) utilizados em uma escola pública de Goiânia.
Nascimento Jr., Souza e Carneiro (2011) indicam que a História e Filosofia da Ciência (HFC) pode colaborar para o resgate do sentido da ciência nas aulas de biologia, permitindo inclusive, fazer a relação com a tecnologia e a sociedade e com isso, compreender como ela (a ciência) foi construída no curso da história e as influências que exerceu nessa mesma história. Para os autores “Ao se propor uma contextualização histórica e filosófica da Ciência centra-se na compreensão de que a realidade é historicamente construída, e o conhecimento científico faz parte dessa construção” (p. 225). Mesmo que muitos autores considerem essa inserção positiva para o ensino de ciências (MATTHEWS, 1995; MARTINS, 2005; NASCIMENTO JR, 2010) Hidalgo e Lorencini Jr. (2016) indicam que sua utilização ainda não é consensual, especialmente quando o trabalho envolve o relato de episódios científicos históricos descolados de seu contexto (histórico-social).
Ainda em relação ao uso de episódios históricos no ensino de biologia, Silva e Moura (2008) indicam que esse pode ser positivo pois, pode explicitar controvérsias que mostram “que o conhecimento atualmente aceito não é de forma alguma definitivo, sendo as teorias aceitas atualmente passíveis de modificações, da mesma forma que as anteriormente aceitas também o foram” (p. 29), evidenciando o caráter provisório bem como a não-neutralidade do fazer científico. Ao mesmo tempo é preciso cuidado para não transformar episódios históricos no “modelo” do fazer científico e seu protagonistas em “salvadores”, “gênios” ou “pai” de determinado conhecimento.
Considerando as potencialidades (para apropriação dos conceitos científicos nas aulas de biologia) e as contradições que podem se estabelecer quando da veiculação desses episódios em livros didáticos, o recorte do estudo (preliminar) aqui apresentado objetiva discutir elementos relacionados ao período/local de produção da ciência veiculados nos episódios presentes em uma coleção didática de Biologia (Ensino Médio) utilizada em uma escola pública estadual de Goiânia.
35Metodologia
A metodologia utilizada se consistiu em uma análise quali-quantitativa realizada em informações coletadas a partir de uma grade de coleta de dados organizada por alguns estudantes/pesquisadores do Grupo de Pesquisa Colligat. Essa grade conta com as seguintes colunas: Episódio; Páginas do Livro; Personagens Históricos; Local (País/ cidade/ universidade/ etc); Período Histórico (data); Conceitos da Biologia; Breve Síntese. Processualmente os três volumes da coleção didática foram lidos na integra, os episódios foram destacados, relidos e o preenchimento da ficha realizado por volume (até o momento os volumes 1 e 2). Os dados quantitativos foram sistematizados/tabulados e darão suporte para análises qualitativas que serão realizadas a partir das referências teóricas utilizadas (Filosofia e História da Ciência-Ensino de Biologia).
Resultados e Discussão
A coleção didática escolhida para análise foi “Biologia Moderna” (volumes 1, 2 e 3) dos autores José Mariano Amabis e Gilberto Rodrigues Martho. A coleção foi publicada pela editora Moderna em 2016 e foi aprovada no PNLD (2017). O critério de escolha foi baseado no livro utilizado pela bolsista PIBIC-EM na escola em que estuda.
Até o momento foram organizados os dados oriundos dos volumes 1 e 2 da coleção. No volume 1 encontramos oito episódios, já no volume 2 apenas quatro. A discussão sobre essa diferença está em curso na pesquisa, assim, os dados encontrados serão apresentados em conjunto, ou seja, referentes a 12 episódios.
No recorte aqui apresentado optamos por explicitar os dados referentes a relação tempo (período) espaço (local) dos episódios históricos apresentados nos livros didáticos analisados. Os dados do Quadro 1 apresentam as relações encontradas.
Quadro 1: Período e Local dos Episódios Históricos apresentados nos volumes 1 e 2 da coleção analisada.
Período | Idade Moderna | Idade Contemporânea | Total por Continente | |
---|---|---|---|---|
Local | ||||
Europa |
Inglaterra | 2 | 8 | |
Itália | 1 | |||
França | 1 | |||
Holanda | 1 | |||
Alemanha | 2 | |||
Suécia | 1 | |||
América do Norte | EUA | 1 | 1 | |
Europa; América do Norte; Ásia | Vários Países | 1 | 2 | 3 |
Total por Período | 4 | 8 |
Fonte: Elaboração das autoras
No Quadro 1 é possível perceber que a centralidade tempo-espaço dos episódios relatados nos livros se dá na intersecção Europa/Idade Contemporânea (em especial Século XIX) não sendo apresentados episódios referentes a Idade Antiga ou a Idade Média (quando consideramos uma periodização histórica clássica).
36Além disso, nesses 12 episódios são citados 18 cientistas, todos masculinos. No texto “A ciência é masculina? É sim senhora!” (CHASSOT, 2004) o autor afirma que a ciência foi (ainda é?) masculina e ocidental (em especial europeia). Percebemos que essa dinâmica também está presente nos episódios escolhidos para compor o livro didático analisado. Mas, será que não haveria a possibilidade de escolher também episódios acontecidos em outros tempos (Idade Antiga/Média) e espaços (em especial na China ou no mundo Islâmico) evitando assim reforçar a ciência como produção europeia contemporânea? Além disso, para evitar reforçar estereótipos de gênero, não haveria possibilidade de escolha de episódios desenvolvidos por cientistas mulheres (Hipátia de Alexandria (370-415), Trotula di Ruggiero (1050-1097), Maria Sybilla Merian (1647-1717), Marie-Curie (1867-1934), Matilda Moldenhauer Brooks (1888-1981), Rachel Carson (1907-1964), Rosalind Franklin (1920-1958), entre outras)?
Embora sejam quantitativamente menores, o uso desses episódios poderia, ao serem incluídos no LD, valorizar outros padrões de produção da ciência, relacionados a outras visões de mundo ou modelos de sociedade.
Além disso, é importante destacar que seis (metade) episódios históricos trazem relatos que mencionam apenas um cientista, o que pode reforçar a ideia de ciência individual, produzida por um cientista considerado “pai” de uma determinada área. Essa Visão individualista da ciência, apresentada como um conhecimento produzido por gênios isolados, onde se ignora o papel do trabalho coletivo é indicado por Gil Perez (1993) como uma “concepção deformada” da ciência.
Considerações Parciais
A despeito do avanço rápido de novas fontes de informação, em especial a Internet, o Livro Didático ainda é considerado uma das principais fontes de informação científica a que o estudante da educação básica tem acesso, assim, não é possível negligenciar seu conteúdo. Entendemos como valorosa a inserção das discussões históricas relacionadas a ciência para processo de ensino-aprendizagem da biologia nesses livros, mas é possível discutir “qual” e “como” essa história é apresentada.
A pesquisa desenvolvida ainda está em andamento e os dados discutidos são um recorte que ao final serão analisados na relação dos três volumes na obra com todas as categorias elaboradas e explicitadas na grade construída. Mas, a partir da leitura feita até o momento, foram identificados 12 episódios históricos que podem colaborar com a apreensão de conceitos biológicos, porém é preciso cautela para que o uso desses episódios no ensino de biologia não reforce a ideia de ciência como um fazer europeu (8), masculino (12) e individual (6).
Referências
CHASSOT, A. A Ciência é masculina? É sim senhora! Contexto e Educação. nº 71/72 - Jan./Dez. p. 9-28. 2004 Disponível em: https://www.saci.ufscar.br/data/solicitacao/39867_texto_a_ciencia_e_masculina.pdf Acesso em: 25 de Jun. 2021.
GIL PEREZ, D. Contribución de La Historia Y de La Filosofia de Las Ciencias al Desarrollo de un Modelo de Enseñanza/Aprendizaje como Investigación. Enseñanza de Las Ciencias, v. 11, n.2, p. 197-212. 1993. Disponível em: https://raco.cat/index.php/Ensenanza/article/view/21204 Acesso em: 25 de Jun. 2021.
MARTINS, A. F. P. História e Filosofia da Ciência no ensino: Há muitas pedras nesse caminho... Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 24.1 p.112-131, 2007. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/6056 Acesso em: 25 Jun. 2021.
MATTHEWS, M. História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 12(3), p. 164-214, 1995.
NASCIMENTO JR., A. F. Construção de Estatutos de Ciência para a Biologia numa Perspectiva Histórico-Filosófica: uma abordagem estruturante para seu ensino. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) – Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2010.
NASCIMENTO JR., A. F.; SOUZA, D. C.; CARNEIRO, M. C. O conhecimento biológico nos documentos curriculares nacionais do ensino médio: uma análise histórica filosófica a partir dos estatutos da biologia. Investigações em Ensino de Ciências, v. 16, n. 2, p. 223- 243, 2011. Disponível em: https://www.if.ufrgs.br/cref/ojs/index.php/ienci/article/view/228 Acesso em 01 de Jan. 2021.
MARTINS, L. A. P. História da Ciência: objetos, métodos e problemas. Ciência & Educação, v. 11, n. 2, p. 305-317, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ciedu/a/Bg8wgfnLgqvKB3tyBKXShCd/?lang=pt&format=pdf Acesso em 01 de Jan. 2021.
SILVA, C. C.; MOURA, B. A. A natureza da ciência por meio do estudo de episódio históricos: o caso da popularização da óptica newtoniana. Revista Brasileira de Ensino de Física, São Paulo, v.30, n.1, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbef/a/QktbWmt6t8s9hMwG47j4Zpg/abstract/?lang=pt Acesso em 24 de Jun. 2021.
Notas
1. Colligat - (Re) Pensando a Formação de Professores de Ciências da Natureza (ICB/UFG) http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/34976
2. As datas nascimento-morte das cientistas foram consultadas no artigo “Quantas Mulheres Cientistas você conhece? publicado pela revista Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/quantas-mulheres-cientistas-voce-conhece/) .