Economia Criativa: arte e cultura como vetores de sustentabilidade econômica na região administrativa de Samambaia (DF)

Resumo Este artigo apresenta um breve levantamento dos termos relacionados ao debate da economia criativa através de uma pesquisa exploratória voltada para pensar o uso e a relevância cultural, social e econômica do Complexo Cultural de Samambaia (DF) para esta região administrativa. Por meio de consultas a artigos e relatórios de organismos internacionais, tais como a UNESCO e outras agências das Nações Unidas (ONU), e de órgãos governamentais no Brasil, tais como o Ministério da Cultura e o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), demonstra-se que este é um tema de importância consensual para as chamadas “economias pós-industriais”, conforme denominou Doménico De Masi (2001). Doravante, foi possível levantar conexões entre as respectivas delimitações que caracterizam a economia criativa no âmbito da cultura periférica no Distrito Federal e lançar reflexões que poderão contribuir para um entendimento ampliado do uso do conceito de economia criativa em culturas que emergem em condições marginalizadas, levando em consideração o movimento econômico vigente: autônomo, conectado às tecnologias digitais de comunicação e assinalados pelo mote do capitalismo empreendedor.

Palavras-chave Economia Criativa. Economia da Cultura. Samambaia.

Autoria

  • Leandro de Bessa

    Doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Comunicação (UnB, 2015), especialista em Processos e Produtos Criativos pela Universidade Federal de Goiás (UFG, 2018) e em Filosofia da Arte (UEG, 2008). Coordenador e professor dos cursos de Comunicação da UCB-DF.

Orientadora

  • Lavínnia Seabra

    Doutora pelo Programa de Pós Graduação em Artes pela UnB, com trabalho sobre estamparia digital e cocriação. www.textilskin.com/. Doutorado sanduíche pela Universidade do Minho/PT - engenharia têxtil. Mestre em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (2007) e graduação em Design de Moda (2001) pela mesma Instituição. Foi consultora do Projeto Pedagógico do curso de especailização em Moda e Design pelo Instituto de Filosofia e Teologia do Estado de Goiás - IFITEG - 2008. Foi professora no curso de Design de Moda da Universidade Salgado de Oliveira de 2003 a dezembro de 2008. Professora convidada do curso de Design de Moda na UFG durante o período de 2006 a 2008. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Aprendizagem e Percepção em Criação de Moda, atuando principalmente nos seguintes temas: moda, criatividade, arte, pesquisa e interdiciplinaridade, customização, tecidos e composição, tecelagem plana, costura e gestão. Tem atuado desde 1998 na área de moda com planejamento e desenvolvimento de coleção em confecção de streetwear, jeans e lavanderia. Possui artigos publicados na área de moda, arte e tecnologia têxtil. Atualmente é representante da ABTT - Associação Brasileira de Técnicos Têxteis - na região Centro-Oeste. Integrante da rede social - Escola de Redes desde janeiro de 2011. Faz parte do Comitê Científico dos Eventos: Contexmod e ENPMODA. Hoje, é professora efetiva - Adjunto 3, na Universidade Federal de Goiás. Atua no curso de Design de Moda; coordenadora do curso à distância em Processos e Produtos Criativos; Avaliadora INEP desde 2018.

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1. Introdução

A partir do século XVIII, a instalação da sociedade industrial deu início a uma nova maneira de produzir riquezas no ocidente, especialmente após o desenvolvimento dos processos de produção fabril. Sob a liderança da Inglaterra e da França juntamente com os Estados Unidos, a produção estava centrada em bens materiais nesse período. Já na segunda metade do século XX, pôde-se perceber uma descontinuidade histórica, criada pelo efeito conjunto entre as chamadas “novas tecnologias”, o desenvolvimento organizacional, a mídia, a globalização, os efeitos da segunda guerra mundial e a noção de progresso – projeto plantando a partir dos ideais modernistas. Promoveu-se assim, o surgimento de um “sistema-mundo” (DE MASI, 2001), delineado como pós-industrial e centralizado na produção de bens imateriais (informação, serviços, símbolos, valores, estética) e caracterizado por uma nova postura na economia, no trabalho, na cultura e na convivência. “Tais mudanças levaram ao advento de uma nova lógica, baseada no saber e na criatividade, abandonando a racionalidade da produção em série” (VALIATI et all. apud DE MAIS, 2017, p. 11). Desse modo, a ampliação do setor de serviços, movimento denominado de “desindustrialização”, desencadeou um processo evolutivo das atividades econômicas sustentadas em habilidade intelectuais e artísticas. Não que as respectivas habilidades inexistissem no passado nem que as produções fordistas tivessem desaparecido, mas um sistema complexo de capitalização dos recursos simbólicos passou a operar no centro de uma outra onda capitalista, que pôde ser considerada como “estetizada e artista” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015).

Assim, a delineação das chamadas indústrias criativas foi-se constituindo no interior pessimista da indústria cultural de perspectiva frankfurtiana e, por meio de ações políticas, no intuito de promover uma espécie de empreendedorismo cultural e artístico. Países como a Austrália e Inglaterra forjaram mecanismos de promoção e incentivo de um mercado baseado na criatividade e na cultura regional, tema que será abordado no primeiro tópico deste trabalho, com o objetivo de levantar algumas definições concernentes ao debate da economia criativa.

Em seguida, trataremos de discutir, brevemente, sobre a arte no âmbito da cultura periférica e buscaremos relacionar o levantamento exploratório-bibliográfico em um caso específico: a implementação do Complexo Cultural da Região Administrativa (RA) de Samambaia-DF. A escolha da RA de Samambaia justifica-se pelo convênio firmado entre o Complexo Cultural e a Universidade Católica de Brasília (UCB), instituição que abriga o grupo de pesquisa que o autor deste trabalho integra. Importante ressaltar que o Complexo Cultural foi entregue recentemente à população de Samambaia e encontra-se em processo de organização de sua gestão administrativa. Do outro lado, a UCB abriga o grupo de pesquisa vinculado ao diretório do CNPq “Linguagem, poesia e comunicação”, que tem dedicado seus estudos ao contexto regional em que a Universidade está inserida, sobretudo aos impactos decorrentes das atividades ligadas à inovação, ao empreendedorismo e à cultura. Dados levantados pela professora coordenadora do grupo de pesquisa, Florence Dravet, descreve a RA de Samambaia em crescimento incessante, o que pode ser percebido tanto pela construção do Complexo Cultural quanto pela instalação do parque ecológico Três Meninas, que também representa um potencial para a qualidade de vida na cidade. Some-se a isso o fato de Samambaia ser uma cidade que recebe imigrantes de países como o Paquistão e Bangladesh, que chegam até aqui para trabalhar nos abatedouros e, “como toda comunidade de imigrantes, constitui uma riqueza cultural com potencial de trocas interculturais intensas e, consequentemente, de inovação na área cultural, social e de empreendedorismo” (DRAVET, 2017, p. 02). Ademais, conforme as informações levantadas pela professora, Samambaia apresenta uma diversidade cultural representativa de várias regiões do Brasil em sua população, inclusive com uma diversidade social também rica em potenciais criativo, comunicativo e empreendedor.

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2. Economia Criativa: perspectivas para uma cultura sustentável

O relatório da economia criativa 2010 da UNCTAD a caracteriza este conceito como multidimensional, embora não haja consenso sobre a sua definição e a sua abrangência. Em todo caso, seu caráter não monolítico, segundo a UNCTAD (2010), permite que a economia criativa contribua de várias formas, não apenas para a dimensão econômica, social e cultural, como também para o desenvolvimento sustentável.

Entendemos, além disso, que a economia criativa tem se apresentado como uma maneira de pensar em saídas possíveis, dentro de um contexto econômico altamente fluido e instável, dado que demandas por uma espécie de economia da experiência (portanto, efêmera) têm definido os modelos econômicos vigentes. Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015) definiram esta emergência econômica de caráter estético como “capitalismo artista”:

O capitalismo artista tem de característico o fato de que cria valor econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como um sistema conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de encantamento. Em troca, uma das funções tradicionais da arte é assumida pelo universo empresarial. O capitalismo se tornou artista por estar sistematicamente empenhado em operações que, apelando para os estilos, as imagens, o divertimento, mobilizam os afetos, os prazeres estéticos, lúdicos e sensíveis dos consumidores. O capitalismo artista é a formação que liga o econômico à sensibilidade e ao imaginário; ele se baseia na interconexão do cálculo e do intuitivo, do racional e do emocional, do financeiro e do artístico. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 43)

Esta face sofisticada do capitalismo tem se forjado, também, por meio de ecanismos políticos que podem ser percebidos em uma breve abordagem histórica da concepção e da aplicação da economia criativa em alguns países, até a entrada do filão “criatividade/empreendedorismo” no contexto de estratégias políticas para a cultura e a economia brasileira.

No livro Economia Criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento (2008), organizado por Ana Carla Fonseca Reis, concebe-se o projeto Creative Nation, da Austrália, como projeto inspirador de ações posteriores que deram corpo às chamadas indústrias criativas e, subsequentemente, à economia criativa. Esse projeto defendia a “importância do trabalho criativo, sua contribuição para a economia do país e o papel das tecnologias como aliadas da política cultural” (REIS, 2008, p. 16).

Posteriormente, no Reino Unido, em uma espécie de análise de tendências de mercado e levantamento das vantagens competitivas nacionais, identificaram-se treze setores economicamente potenciais para o país que passaram a ser nomeados de indústrias criativas, entendidas como “indústrias que têm sua origem na criatividade, habilidade e talentos individuais e que apresentam um potencial para a criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração de propriedade intelectual.” (REIS, 2008, p. 17). A partir de então, conforme sublinha Ana Carla Fonseca Reis, o exemplo do Reino Unido tornou-se paradigmático, tendo sido replicado em países como Cingapura, Líbano e Colômbia:

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Embora o modelo britânico tenha sido alvo de críticas pela sua grande abrangência e, consequentemente, difícil delimitação, ele foi considerado pioneiro na formulação de critérios. São eles: 1) A contextualização do programa de indústrias criativas como resposta a um quadro socioeconômico global em transformação; 2) privilegiar os setores de maior vantagem competitiva para o país e reordenar as prioridades públicas para fomentá-los; 3) divulgar estatísticas reveladoras da representatividade das indústrias criativas na riqueza nacional; 4) reconhecer o potencial da produção criativa para projetar uma nova imagem do país, interna e externamente, sob os slogans ‘Creative Britain’ e ‘Cool Brittania’, com a decorrente atratividade de turismo, investimentos externos e talentos que sustentassem um programa de ações complexo. (REIS, 2008, p. 17)

Com base nessa informação, a autora esclarece que o sistema britânico interferiu em camadas sociais que não somente aquelas estritamente ligadas à economia e à cultura. Para Reis (2008), seu mérito esteve, sobretudo, em favorecer áreas como a educação; em incitar as discussões e estudos em setores não puramente ligadas a uma política industrial ou econômica; e em levantar questionamentos vinculados à adequação de perfis profissionais hodiernos, lançando, assim, projeções referentes à emergência de novas profissões.

Importa destacarmos aqui que tais temas e discussões têm se apresentado na ordem do dia, especialmente ao considerarmos o contexto educacional, sociocultural e econômico que o Brasil tem vivenciado nos últimos anos. Igualmente, reforça-se o grau de relevância do tratamento do tema para o Brasil se incluirmos, no cerne deste debate, questões como: projetos de requalificação de áreas urbanas, que incentivam e oferem ferramentas para a geração de clusters criativos; a valorização do intangível cultural, por meio de iniciativas privadas e/ou instituições financeiras; o reposicionamento do papel da cultura em estratégias econômicas; e a revisão da estrutura econômica, de cadeias setoriais para redes de valor, incluindo novos modelos de negócio (graças às novas tecnologias e à emergência de criações colaborativas).

Antes de ser legitimado como política pública no Brasil, a economia criativa foi objeto de dois grandes debates globais: em 2001 e 2004, durante a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD); e em 2006, na Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da UNESCO. Nesses encontros de dimensão global, três documentos de ordem conceitual, analítica e metodológica foram elaborados: O relatório de economia criativa de 2008 e o Relatório de Economia Criativa de 2010: Uma opção de desenvolvimento viável, da UNCTAD; e o relatório Creative Economy Report 2013, da UNESCO.

O ponto de partida das respectivas convenções, tal como seus objetivos e preocupações, girou em torno da relevância do capital material e imaterial resultantes das capacidades criativas humanas para o desenvolvimento social, econômico e políticos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Constituem, assim, elementos-chave para a criação de trabalho, inovação e comércio.

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Segundo Valiati et al. (2017), no trabalho Economia Criativa e da Cultura: conceitos, modelos teóricos e estratégias metodológicas, os relatórios da UNCTAD (2010) e da UNESCO (2013) definem os anos posteriores à década de 1980 como ponto de virada, pois que, a partir de então, acadêmicos e formuladores de políticas públicas passaram a reconhecer que a relação entre cultura e economia não precisaria, necessariamente, ser tão negativa como aquela definida pela Escola de Frankfurt por meio da Indústria Cultural. Nesse sentido, conforme descrevem os autores, “ao invés da degeneração, os mercados poderiam, também, se transformar em pontes para a preservação das diversas formas de expressão cultural.” (VALIATI et al. p. 13). Com isso, as políticas públicas deveriam olhar com mais atenção para o potencial de geração de renda, ocupação e valorização social de artistas e artesãos assim como de produtores de bens e serviços com potencial de geração de valor simbólico.

No Brasil, é somente em 2011 que se implementa a Secretaria de Economia Criativa vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), que lança o Plano da Secretaria da Economia Criativa: Políticas, diretrizes e ações 2011 a 2014, cujos princípios norteadores pautaram-se pela diversidade cultural, pela sustentabilidade, pela inovação e pela inclusão social A secretaria passa a ser nomeada Secretaria da Economia da Cultura em 2015 publica, em 2016, o Programa Nacional de Economia da Cultura (PNEC), norteando-se, em grande parte, pelos dados e diretrizes traçados pela UNESCO.

Com base nessa mudança conceitual, a Secretaria de Economia da Cultura estabeleceu novas metas, de forma que a economia criativa não se restringisse unicamente ao escopo do Ministério da Cultura, mas que pudesse atuar em articulação com o Ministério da Indústria, do Comércio Exterior e Serviços, com o BNDES, Sistema S e juntamente com o IBGE. Especificamente neste último, definiu-se a criação da conta-satélite de cultura, que consiste num levantamento contínuo dos dados da cultura e da economia criativa em território nacional.

A dimensão econômica da cultura tem se tornado o foco das discussões de instituições internacionais e já se configurou como um dos mais dinâmicos conjuntos de atividades produtivas do mundo. A diversidade cultural brasileira é reconhecida, cada vez mais, como um elemento estratégico de construção do país, passando a exercer uma dimensão essencial ao desenvolvimento (PNEC, 2016, p. 20).

Em paralelo, esforços realizados no âmbito da delimitação taxonômica e da definição de métodos e modelos para a mensuração das chamadas indústrias criativas no Brasil foram conduzidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Além de contribuir para a classificação das atividades e áreas consideradas do escopo das indústrias criativas, o modelo de classificação do Ipea reuniu outros seis modelos sistemáticos, incluindo o da UNCTAD, e acrescentou na última coluna da tabela o modelo adotado pelo Brasil.

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Tabela 1. Classificação das indústrias Criativas e o modelo adotado pelo Ipea (Ipea, 2012, p 17).

Por fim, apresentamos um quadro de definições, no intuito de sistematizar as descrições e classificações contidas nos relatórios, artigos e documentos aqui citados, o que nos permite contribuir para as formulações taxonômicas relativas aos estudos da economia criativa.

Tabela 2. Quadro de Definições (elaborado pelo autor com fontes: Unctad (2010) e Ipea (2013))
Economia Criativa Economia da Cultura Indústria Criativa Indústria Cultural
O termo “indústrias criativas” é de origem relativamente recente. Conforme Cunningham (2002), surgiu na Austrália em 1994 com o lançamento do relatório Creative nation: commonwealth cultural policy. Ele ganhou maior exposição em 1997, quando os formuladores de políticas no Departamento do Reino Unido da Cultura, Mídia e Desporto criaram a Força Tarefa Indústrias Criativas, conforme o DCMS (2001). A partir de então a designação “indústrias criativas” se desenvolveu e ampliou o âmbito das indústrias culturais para além das artes e marcou uma mudança na abordagem a potenciais atividades comerciais que até recentemente eram consideradas puramente ou predominantemente em termos não econômicos. “Economia cultural” é a aplicação de análise econômica a todas as artes criativas e cênicas, às indústrias patrimoniais e culturais, sejam de capital aberto ou fechado. Ela se preocupa com a organização econômica do setor cultural e com o comportamento dos produtores, consumidores e governos nesse setor. O tema inclui uma variedade de abordagens, de correntes principais e radicais, neoclássicas, de economia do bem-estar, de política pública e de economia institucional

O termo “indústrias criativas” é de origem relativamente recente. Conforme Cunningham (2002), surgiu na Austrália em 1994 com o lançamento do relatório Creative nation: commonwealth cultural policy. Ele ganhou maior exposição em 1997, quando os formuladores de políticas no Departamento do Reino Unido da Cultura, Mídia e Desporto criaram a Força Tarefa Indústrias Criativas, conforme o DCMS (2001). A partir de então a designação “indústrias criativas” se desenvolveu e ampliou o âmbito das indústrias culturais para além das artes e marcou uma mudança na abordagem a potenciais atividades comerciais que até recentemente eram consideradas puramente ou predominantemente em termos não econômicos.

Indústrias criativas são definidas como aquelas que requerem habilidade, criatividade e talento, com potencial de riqueza e a criação de emprego por meio da exploração de sua propriedade intelectual (DCMS, 2001).

A abordagem da UNCTAD para as indústrias criativas se fundamenta no conceito da criatividade como componente simbólico para gerar produtos e serviços, com uma forte dependência de propriedade intelectual e para um mercado tão amplo quanto possível.

O conceito de indústria cultural surgiu no período pós-guerra como uma crítica radical do entretenimento de massa por membros da Escola de Frankfurt, liderada por Theodor Adorno e Max Horkheimer. Naquele tempo, indústria cultural era um conceito de contraposição.

Para a UNCTAD (2010), por exemplo, as indústrias culturais são consideradas como as indústrias que “combinam a criação, produção e comercialização de conteúdos que são intangíveis e culturais por natureza. Estes conteúdos são tipicamente protegidos por direitos autorais e podem assumir a forma de bens ou serviços”. Um aspecto importante das indústrias culturais, segundo a UNCTAD (2010), é que elas são “centrais na promoção e manutenção da diversidade cultural e na garantia de acesso democrático à cultura”. Essa dupla natureza – combinando o cultural e o econômico – dá às indústrias culturais um perfil distinto.

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3. Arte e Cultura Periférica: uma breve apresentação

De um modo geral, Cultura e Arte são conceitos amplamente debatidos e explorados nas mais diversas áreas do conhecimento. Certamente, seus sentidos e significados distintos e alastrados na sociedade se devem ao fato de que a humanidade, em constante movimento de transformação, cria e recria-se numa construção simbólica contínua e de ressignificações de si mesma. Porém, sob a difícil missão de condensar diversas linhas teóricas em uma única obra, Terry Eagleton (2000), em A Ideia de Cultura, elabora uma espécie de estado da arte que problematiza o conceito de Cultura. No ensejo de sua investigação, a cultura “pode ser resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem a forma de vida de um grupo específico” (EAGLETON, 2000, p. 52). Ainda à luz do antropólogo E. B. Tylor, podemos incluir nesta definição: “a arte, a moral, a lei, e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (TAYLOR apud EAGLETON, 2000, p. 52).

Com isso, neste embate teórico, a cultura se relaciona aos bens simbólicos de elevada significação social, tais como a pintura, a literatura, a música clássica, o saber erudito e especializado advindo do letramento e balizados por um “parâmetro de perfeição”, em detrimento de uma compreensão do que Raymond Williams (1969) distinguiu “como hábito mental individual; como estado de desenvolvimento intelectual de toda uma sociedade; como o conjunto das artes; e como uma forma de vida global de um grupo de pessoas ou de um povo” (WILLIAMS, 1969, p. 16). Logo e brevemente, o que nos interessa aqui é exatamente a determinação de um posicionamento frente às tensões teóricas, pois, para fins desta pesquisa, consideramos a última elucidação elaborada por Williams, onde a noção alargada de cultura nos permitirá alcançar um motivo político, dado que:

[...] restringir a cultura às artes e à vida intelectual é arriscar excluir a classe trabalhadora da categoria. A partir do momento, porém, em que o conceito é largado para incluir instituições – sindicatos e cooperativas, por exemplo – é possível afirmar, com justiça, que a classe operária produziu uma cultura rica e complexa, embora não primacialmente artística (EAGLETON, 2000, p. 54).

Ademais, uma definição de cultura que abranje a prática social ao exprimir significados coletivos é, sem sombra de dúvidas, mais abrangente e inclusiva. Podemos acrescentar aí outro ponto de intersecção da cultura, a “estrutura de sentimento” (WILLIAMS, 1969). Uma noção que condensa os significados concretos com o impalpável. Sendo assim, a ideia de “estrutura de sentimento”, para Williams, delineia-se através de uma ousada junção do objetivo e do afetivo. Ela é “uma tentativa de reconciliação entre a duplicidade da cultura enquanto realidade material e experiência vivida.” (EALGETON apud WILLIAMS, 2000, p. 54). Nesse contexto, podemos aplicar diversas conexões entre cultura enquanto material/necessidade e cultura enquanto experiência/simbólico no âmbito das produções de caráter cultural e artístico. Incrementa-se, portanto, o antigo embate ontológico entre funcionalidade e futilidade que acompanha constantemente as discussões prático-teóricas no âmbito da arte.

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Por conseguinte, ao optarmos pelo termo “cultura periférica” no título deste artigo, propomos um olhar exatamente para esse ponto de compreensão, deste lócus em que operam as camadas sociais de baixa renda, bem como as estruturas de sentimentos que as envolvem. Por isso, é importante destacar que a cultura, abordada sob este aspecto, passa a revelar-se como um instrumento eficaz de transformação social e econômica. Podemos afirmar que estamos tratando a cultura através da noção de “cultura como recurso”, ao modo de Heloísa Buarque de Hollanda:

O novo quadro da cultura como uma potente indústria criativa define sua inserção direta na economia de uma cidade ou mesmo de um país. Entretanto, a noção de cultura como recurso não vem sendo apenas um fator potencializador do chamado capitalismo cultural. Cada vez mais vemos a cultura dinamizando a criatividade no campo das artes e das letras para gerar uma série de resultados culturais, sociais, políticos e econômicos bastante concretos. (HOLLANDA, 2012, p. 20)

O que se percebe nos últimos anos no Brasil tem sido o crescimento das capacidades de produção e habilidades criativas advindas das periferias e das favelas dos principais centros urbanos, reafirmadas pela visibilidade em meios tecnológicos digitais e, sobretudo, através das mídias tradicionais. Em tempo, a cultura encarada como recurso nos permite enxergar, também, a grande capacidade para promoção da autoestima, geração de emprego e renda, e inclusão social (HOLLANDA, 2012).

Adiante, veremos os esforços que o Governo do Distrito Federal tem empenhando na direção deste tratamento cultural em relação à Região Administrativa de Samambaia.

4. SAMAMBAIA: uma periferia em transformação

De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD, 2015), realizada pela Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão (Codeplan) do GDF, o surgimento da RA de Samambaia foi resultado das diretrizes adotadas no Plano Estrutural de Organização Territorial (PEOT) “elaborado em 1978, que determinava vetores de ampliação das áreas urbanas em decorrência do rápido crescimento populacional do DF e da consequente demanda habitacional.” (PDAD, 2015, p. 14)”. Contudo, o projeto foi implementado oficialmente apenas em 1982,

Na sua origem, Samambaia tornou-se o destino de um grande contingente populacional oriundo de invasões, cortiços e inquilinos de fundo de quintal, principalmente em decorrência do grande fluxo migratório. Segundo o PDAD, “O Governo do Distrito Federal – GDF agregou essa população sob o ‘Sistema de concessão de uso’ em lotes ainda semiurbanizados.” (PDAD, 2015, p 14). Samambaia é criada formalmente pela Lei nº 49/89 de 25 de outubro de 1989, definida como RA XII.

Os dados estatísticos da PDAD indicam que a RA XII possuía, em 2015, 254.439 habitantes, dos quais 51,13% eram mulheres na faixa etária de 25 a 59 anos. Quanto ao nível de escolaridade, a população concentrava-se na categoria dos que têm ensino fundamental incompleto. Os que possuíam nível superior completo representavam somente 7%. No mesmo período de levantamento de dados da pesquisa, a população ocupada concentrava-se essencialmente no comércio e serviços gerais, enquanto que as categorias profissional liberal, microempreendedor individual e microempreendedor somavam 3,86%, e a renda per capita média mensal girava em torno de R$ 914,61.

Por fim, um quadro evolutivo e comparativo dos anos em que foram realizadas as PDAD’s demonstra, ao longo dos anos, um crescimento, embora sutil, na renda mensal, nos números de postos de trabalho e na escolaridade da população de Samambaia:

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Tabela 3. Evolução de indicadores Socioeconômicos - Samambaia - 2011/2013/2015 (PDAD, 2015, p. 53)

Na via desses demonstrativos de transformação social e no que tange ações públicas de valor cultural e artístico para a região, Samambaia recebeu em 2017 do GDF o Complexo Cultural de Samambaia, composto por cinco salas para oficinas de dança, música e outras modalidades de arte, biblioteca, galpão multiuso e tenda de 600 metros quadrados com objetivo de funcionar como anfiteatro. Segundo o site da Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal, os investimentos utilizados saíram do Fundo de Desenvolvimento Urbano do Distrito Federal (Fundurb), totalizando R$ 4,8 milhões.

Não diferentemente de outras obras públicas brasileiras, o Complexo Cultural de Samambaia (imagem 1) não foi entregue integralmente à população, não possui nenhuma estratégia de gestão e já se encontra em estado de precarização, conforme registrado no relatório da 272a reunião ordinária do Conselho Cultura de Samambaia, realizada em 23 de janeiro de 2018. Mesmo havendo um movimento de interesse pelos integrantes do Conselho de Cultura, percebido nos registros do relatório citado, há aí uma espécie de ação mobilizadora e principalmente de resistência, sobretudo se considerarmos que, no Brasil, como de costume, o limite para o abandono e o descaso da coisa pública é bastante tênue.

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Imagem 1. Vista lateral e da entrada do Complexo cultural. Fonte: Elaboradas pelo autor.

Oportunidades e diálogos não faltam, afirmou o conselheiro de cultura, Élton Skartazini, evidenciando a predisposição em incluir a comunidade local no engajamento a fim de potencializar o funcionamento do espaço. Os alunos do curso técnico em Móveis do IFB de Samambaia participam do projeto, contribuindo na execução de móveis e utensílios sob medida para o Complexo Cultural.

Mesmo distante, parece haver luz no final do túnel. O que o Complexo Cultural de Samambaia nos apresenta, dentro desse contexto sociocultural e econômico frágil, é, em certa medida, uma oportunidade à deriva e, ao mesmo tempo, um jeito brasileiro – naturalizado e tornado comum –, em tratar a valorização do patrimônio cultural e artístico de valor coletivo. A cultura deveria se voltar para o centro das questões políticas, sociais e econômicas, pois, como bem definiu o cantor, compositor e ex-ministro da cultura Gilberto Gil: “não é a economia que coloniza o mundo da vida e da cultura, mas a cultura com sua dinâmica de inovação que torna-se tecnologia, fonte de uma relação de comércio justo no Brasil e no mundo” (GIL, 2007, p. 3).

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Considerações Finais

No Brasil, a formação de riqueza versus o quadro de crise econômica que se tem instaurado desde2014 levaram o país a uma reformulação das suas políticas de incentivo ao chamado empreendedorismo criativo e de inovação. Estamos assistindo a uma crescente defesa do discurso de sustentabilidade econômica, incentivada pela promoção de modelos de trabalho autônomo e individual: desde o aumento da terceirização dos serviços, passando pelos chamados trabalhos estilo home office.

Tudo isso poderia ser incrementando se a noção de economia da cultura e economia criativa se alastrasse pela sociedade e ganhasse corpo, sobretudo por meio de incentivos do Estado e da iniciativa privada. Contudo, o que se encontra, a exemplo do que se relatou sobre o caso do Complexo Cultural de Samambaia, é exatamente um ponto de tensão entre o ideal e a realidade. Ainda há muito que construir, muito a se desenvolver, sobretudo no que diz respeito à apropriação dos saberes locais para promoção de uma economia baseada no capital cultural e simbólico.

Por fim, assinalamos através desta pesquisa bibliográfica e exploratória, que é possível prover engajamentos microrregionais, pequenos movimentos que se agrupam em torno de interesses comuns: música, esportes, street art, culinária, cinema etc. Tudo isso, se mobilizado através de uma séria de ações coletivas de caráter social e sustentável (a exemplo do que nos mostram os relatórios internacionais), principalmente se considerarmos o papel das tecnologias digitais no que concerne aos novos modelos de oferta e aquisição de serviços ou mercadorias e de compartilhamento de informação. Deste lugar, centenas de ideias poderiam surgir e reinventar os modos de vivenciar e usufruir os espaços urbanos da periferia, ainda mais se baseadas em modelos já explorados e adaptados às diversas e distintas realidades culturais brasileiras.

Referências

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DE MASI, D. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.

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O termo indústria cultural nasce com as reflexões da Escola de Frankfurt sobre a captura da cultura pela lógica mercantil. Trabalhos como a “Dialética do Esclarecimento”, originalmente publicado em 1944 (ADORNO; HORKHEIMER, 2002), e “Eros e Civilização” (MARCUSE, 1955) passaram a fundamentar uma perspectiva pessimista sobre a relação entre as esferas da economia e da cultura.

O termo “a economia da experiência” foi cunhado em 1999 por B. Joseph Pine II e James H. Gilmore. Eles sugerem que, num futuro próximo, as pessoas estariam dispostas a desembolsar altas quantias para desfrutar de novas e diferentes experiências de vida. Os desejos por experiências emocionais estariam, portanto, relacionados ao consumo de serviços e produtos criativos altamente especificados e diferenciados, em comparação a um simples negócio de commodity.

Ana Carla Fonseca Reis ganhou o prêmio Jabuti 2007 na categoria Economia, administração, negócios e direito. Professora e pesquisadora, ela coordena cursos de pós-graduação em economia da cultura, economia criativa e cidades na Fundação Getúlio Vargas/SP, na Universidade Candido Mendes/RJ e na Universidade Nacional de Córdoba (Argentina). Sua tese de doutorado defendida na USP em 2011 é considerada a primeira tese brasileira a abordar o tema Cidades Criativas.

O projeto foi implementado pelo governo trabalhista de Paul Keating, foi o primeiro documento de política cultural da Commonwealth na história da Austrália. “A cultura neste contexto foi entendida como aquilo que produz uma sensação de ‘nós mesmos’, afirmando a pluralidade cultural e a noção de pertencimento. Seu impacto inicial foi significativo, com Keating comprometeu US $ 252 milhões de gastos adicionais ao longo de quatro anos para as indústrias de artes e cultura na Austrália.” Disponível em: https://theconversation.com/paul-keatings-creative-nation-a-policy-document-that-changed-us-33537, acessado em: 28 de dezembro de 2017.

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Disponível em: https://blogccs.wordpress.com/relatorios-das-reunioes-do-conselho-regional-de-cultura-de-samambaia, acessado em 25 de janeiro de 2018

Disponível em: http://www.ifb.edu.br/samambaia/13730-ifb-campus-samambaia-avanca-parceria-com-o-complexo-cultural-samambaia, acessado em 25 de janeiro de 2018