1. Educação Patrimonial II: Recursos, Técnicas e Estratégias
A definição de patrimônio citada acima, norteará as discussões propostas na disciplina Educação Patrimonial I. Ao analisá-la percebemos que, atualmente, a concepção de patrimônio tem sido ampliada. Com a Constituição de 1988, no seu art. 216, a expressão "Patrimônio Histórico e Artístico Cultural, usada desde 1937, foi substituída por “Patrimônio Cultural”. Além disso, amplia-se o rol do que pode ser considerado Patrimônio Cultural:
...os bens de natureza material e imaterial, tomados individual mente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II– os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1988).
Entretanto, algumas vezes nos perguntamos se tudo o que for considerado patrimônio deve ser preservado? A criação de políticas públicas voltadas para sua proteção e valorização tem contemplado os diversos interesses da sociedade brasileira?
A partir de que momento o tema da diversidade cultural passou a ser pauta das agendas políticas? Para compreendermos esse processo é necessário retomar alguns aspectos do processo histórico brasileiro nas últimas décadas.
Uma valorização cada vez maior da cultura nas sociedades em um tempo de globalização tem ocorrido em todo o mundo. "Os processos culturais vêm sendo considerados importantes, seja como fontes e geração de renda e emprego, seja como elementos fundamentais na configuração do campo da diversidade cultural e da identidade nacional" (CALABRE, 2005, p. 18-19).
No Brasil, a partir da década de 1980, debates e discussões foram estabelecidos com o fim de possibilitar o reconhecimento da diversidade cultural que caracteriza a nossa sociedade e o resultado desses embates pode ser conferido em alguns artigos da Constituição de 1988, que tratam do pluralismo cultural como princípio constitucional:
- A proteção do poder público "O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.” (art. 215 §1º);
- A incorporação de datas no calendário cívico-nacional "A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais." (art. 215 § 2º);
- O ensino de História do Brasil "O ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro." (art. 242 § 1º); Página 129
- Em relação especificamente ao segmento afro-brasileiro, podemos citar a decisão do Poder Público em tombar todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, conforme estabelece o art. 216, § 5º. Fernandes (2008) ressalta que com esse dispositivo constitucional, o legislador abriu uma exceção e criou uma nova modalidade de tombamento pela via legislativa, pois o tombamento, pela legislação que lhe é específica (Decreto-Lei nº. 25/37), é ato administrativo do Poder Executivo que declara o valor histórico- cultural de um determinado bem material. No art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o legislador constituinte teve a sensibilidade histórica de reconhecer a importância dos quilombos e quilombolas na formação de nossa identidade cultural ao estabelecer que: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir os títulos respectivos."
- As comunidades indígenas também têm seu lugar na atual Constituição brasileira, através de capítulo específico, e a demonstração por parte do legislador da necessidade de se preservar essa cultura milenar. É o que estabelecem os seguintes artigos: "Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições." Às comunidades indígenas remanescentes são-lhes asseguradas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, conforme estatui o art. 210 § 2º da Constituição."
A conclusão a que chega Fernandes (2008) é que a atual Constituição tentou corrigir uma omissão, ao estabelecer em vários dispositivos a importância de outros elementos formadores do processo civilizatório nacional e que devem ter suas manifestações culturais preservadas para as atuais e futuras gerações de brasileiros. Segundo o autor, pode-se concluir que tal iniciativa foi uma tentativa de se criar uma memória plural, que subsidie uma nova política cultural para o País.
Quanto aos bens que compõem o patrimônio cultural brasileiro, sejam naturais ou culturais, materiais ou imateriais, tangíveis ou intangíveis, devem ser alvo das políticas de preservação, desde que os mesmos sejam significativos e se tratem de elementos de referência para a identidade e a memória dos diferentes elementos étnico-culturais formadores da nação brasileira.
Anteriormente à promulgação de nossa atual Constituição, a prática da preservação do Patrimônio Histórico em nosso país era algo restrito aos profissionais da área (arquitetos, historiadores, juristas, antropólogos e demais cientistas sociais), que lidavam com a questão da memória no seu métier e ofício ou, quando muito, dizia respeito à tutela oficial dos órgãos de preservação (FERNANDES, 2008, p. 214).
Fernandes destaca que uma das propostas da Constituição de 1988 é que novos atores atuassem na luta pela preservação do patrimônio cultural, pois, desse modo, sem se eximir da tarefa de preservação de nosso acervo cultural, dá à comunidade o papel de colaboradora e corresponsável nessa tarefa.: "O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro..."
Página 130Considerando o exposto acima, surgem outras questões: será possível despertar na comunidade o interesse pela promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro? Que instrumentos poderão contribuir para que ações voltadas para a valorização do patrimônio cultural brasileiro sejam implementadas em um país tão diverso culturalmente? De que forma o patrimônio é "lido" pelas comunidades? Qual sua importância para o desenvolvimento local sustentável?
Varine (2012) destaca que "o desenvolvimento local, mesmo considerado em sua dimensão econômica, é antes de tudo um assunto de atores, e, sobretudo, de atores locais: políticos e funcionários, trabalhadores e dirigentes de empresas são membros de uma comunidade" cuja vida e cultura compartilham. Até mesmo os turistas, considerados moradores temporários das localidades que exploram o turismo, também são atores nesse processo. Entretanto, quando se ignora o patrimônio que se tem, aumentam as possibilidades de erros no que tange ao desenvolvimento urbano ao não considerar os patrimônios tanto materiais quanto imateriais locais.
Para que o desenvolvimento ocorra de maneira sustentável é necessário lembrar que suas raízes "devem se nutrir dos numerosos materiais que, na maioria, estão presentes no patrimônio: o solo e a paisagem, a memória e os modos de vida dos habitantes, as construções, a produção de bens e de serviços adaptados às demandas e necessidades das pessoas" (VARINE, 2012, p. 18). Se, assim como afirma Varine, o patrimônio é também um quadro, uma moldura para o desenvolvimento, de que forma tal patrimônio deve ser gerido?
As opiniões em relação à gestão do patrimônio cultural são diferenciadas e atualmente existe uma complexidade de políticas e normas que regem as práticas de preservação. Em relação a esse assunto, Heloísa Buarque de Hollanda salienta a dificuldade que enfrentou para responder “adequadamente ao desafio de enfrentar os paradigmas correntes da reflexão sobre o patrimônio e, sobretudo de tentar superar a dicotomia entre o saber especializado dos técnicos e a compreensão de um processo cultural em evolução” (HOLLANDA, 1994, p. 10). Desse modo, quando nos deparamos com as políticas de preservação e as práticas voltadas para a conservação de determinados elementos arquitetônicos, percebemos que apenas uma elite seleta que se julga conhecedora do assunto, define as regras a serem seguidas. Então, grande parte das pessoas, que possuem relação íntima com eles é excluída do processo. Algumas vezes, o ato da preservação acaba por se caracterizar como elitista, estratificante ou mesmo, excludente. Resta-nos dizer que o saber especializado é fundamental para o desenvolvimento de nossas políticas de patrimônio, mas é necessário também levar em conta a opinião das pessoas cuja experiência de vida se relaciona com o bem ou a prática cultural a ser preservada. A autora ressalta ainda que:
Pode-se mesmo observar que, conjugado ao direito ao saneamento, habitação e transporte, as políticas públicas em relação ao espaço urbano expressam agora a preocupação com uma novíssima reivindicação, o "direito à cidade". Este direito seria, mais ou menos, o direito de todos os cidadãos ao gozo do espaço urbano como duplo exercício da história e da estética (HOLLANDA, 1994, p. 11).
Porém, apesar da reivindicação existir, não se constata que as práticas do poder público estejam voltadas para o seu atendimento, pois o que se vê é que os órgãos administrativos das cidades estão relegando a planos secundários quaisquer ações que objetivem a preservação das tradições e da história daqueles que habitam as cidades. As ações realizadas acabam se restringindo, principalmente, aos maiores centros urbanos.
Página 131Quando se trata da preservação do patrimônio arquitetônico e cultural, apesar de considerar que algo deve ser feito privilegiando uma conscientização maior neste sentido, me reporto novamente a Jerôme Monnet (2002). Para ele, a questão do patrimônio é problemática, pois, ao admitirmos que tudo é patrimônio, consequentemente, admitimos que tudo deve ser conservado. No entanto, quando se trata da cidade e do país, sabemos que isso é impossível. Então, é necessário fazer antes uma crítica radical e interrogar-se sobre o uso do conceito de patrimônio, sobre os supostos da palavra. Segundo essa lógica, não há dúvida de que tudo pode ser considerado patrimônio. Mas ele só existe porque protegemos algo que nomeamos assim. Designação e proteção vão juntas. Segundo Monnet, quando postulamos um objeto como sagrado, deduzimos que ele deve ser preservado e, "do fato mesmo de protegê-lo, o sacralizamos, isolando-o do destino habitual das coisas; por ser sacralizado, ele deve ser protegido" (MONET, 2002, p. 228).
Acredito que a valorização do patrimônio cultural depende do quanto as comunidades conhecem sua própria história. Por isso, penso ser de grande importância que ações de educação patrimonial sejam implementadas tanto no ensino formal como no ensino não-formal, pois, por meio delas será possível despertar o interesse dos membros da comunidade para a relevância dos seus bens culturais.