02. Patrimônio cultural: conceitos, usos e conflitos
Em seu significado original, que vem do latim o patrimonium, estava ligado às estruturas familiares e às leis de cada lugar, e consistia nos bens de família, transmitidos por herança de pai para filho. No seu trajeto através da história, o termo recebeu vários outros significados e adjetivos (financeiro, genético, histórico, natural etc.), agregando também o conceito utilizado hoje de patrimônio cultural para designar o conjunto dos bens materiais e imateriais de uma nação, estado, cidade, que constituem herança coletiva, a partir do reconhecimento de sinais de uma identidade, e são transmitidos de geração a geração ou criados no presente (ZANIRATO E RIBEIRO, 2006). Para Chagas (2007), a esse conjunto de determinados bens tangíveis, intangíveis e naturais, que envolvem saberes e práticas, são atribuídos valores que devem ser transmitidos de uma época a outra ou de uma geração a outra.
Segundo Choay (2006, p. 13), “o próprio século XX [quando importantes edificações foram demolidas, tal como o Hotel Imperial de Tóquio] forçou as portas do domínio patrimonial”.
Para Chagas (2007), essa dilatação nos limites do patrimônio é devido a um número cada vez maior de pessoas que se interessam por esse campo, tanto pelo direito que a elas pertence quanto pela dimensão sociocultural que o patrimônio passou a admitir. Além disso, Chagas (2007) ressalta a necessidade de reconhecimento da herança que caracteriza o conceito para além do patrimonial (do latim patri – pai), incluindo o matrimonial e o fraternal, aumentando as possibilidades e variedades de bens a serem transmitidos:
Assim como falo em patrimônio, eu deveria falar em matrimônio, não para me referir a uma união conjugal, mas no sentido de uma herança de vida, de uma conexão com a grande mãe, de uma opção pelo sensível, de uma forma especial de olhar o mundo; assim também eu deveria falar em fratrimônio para me referir ao conjunto de bens que valorizo e partilho sincronicamente com os meus irmãos e amigos, eles e eu produzimos no mundo objetivo e nos mundos subjetivos diversos bens e partilhamos esses bens entre nós e com os nossos contemporâneos, produzimos e partilhamos fraternalmente, amigavelmente (CHAGAS, 2007, s/p.).
Devido à sua importância para a memória, cultura e identidade de um povo (como será visto mais à frente), a preservação do patrimônio cultural para a posteridade é garantida por lei. No entanto, preservar não é somente guardar um bem, é manter vivos os usos e costumes de um povo, mesmo que com alterações (LEMOS, 1981). E apesar da expansão dos limites do patrimônio, a eleição de um conjunto de bens a ser preservado não representa o todo e sim um campo de batalhas de interesses entre diferentes grupos sociais. Choay (2006, p. 12), em livro sobre o tema do patrimônio, discute profundamente o “culto midiático [...] que se rende hoje ao patrimônio histórico” e também alerta que ele “deve merecer de nós mais do que simples aprovação”. Nesse alerta, entre outras coisas, a autora aponta para os usos políticos e ideológicos que podem derivar desse ‘culto’.
Nesta disciplina tentaremos discutir tais usos e os conflitos daí decorrentes. Para isso, começaremos abordando os principais conceitos envolvidos e a legislação brasileira referente ao patrimônio.