Difusão e transmissão das informações culturais para o acesso e a valorização da(s) cultura(s)
Welbia Carla Dias
É bacharel em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação e Informação da Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPHAN/UFRJ). Atuou como coordenadora adjunta de tutoria e professora formadora na EIPDCC. É pesquisadora nas áreas de Comunicação, Cultura e Direitos Humanos e; professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), onde ministra disciplinas para o curso de Cinema e Audiovisual.
INTRODUÇÃO
Na prática, a complexidade da vida e as condutas da sociedade contemporânea - especialmente com o surgimento da cultura digital -, têm provocado e, porque não dizermos, contribuído para a difusão e transmissão das informações culturais e dos preceitos estruturais dos Direitos Culturais e Humanos.
É preciso destacar que a cultura não se transforma em digital, na verdade, ela se apropria dos recursos digitais, conhecidos também como TICs - Novas Tecnologias da Informação e Comunicação -, para se beneficiar e adequar as manifestações e a produção dos bens culturais ao mundo virtual.
Para Ana Goldberger, os “direitos culturais designam direitos e liberdades que tem uma pessoa, isoladamente ou em grupo, de escolher e de expressar sua identidade e de ter acesso às referências culturais, bem como aos recursos que sejam necessários a seu processo de identificação, de comunicação e de criação” (GOLDBERGER, 2014, p. 30-31).
Ao se referir ao conceito cultura digital, o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil (2003-2008), em um depoimento, em 2004, registrado no site da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural , destaca que:
MINISTÉRIO DA CULTURA. Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural. Disponível em: <http://www2.cultura.gov.br/culturaviva/category/cultura-e-cidadania/cultura-digital/>. Acesso em: 2 ago. 2016.
“[A] cultura digital é um conceito novo. Parte da ideia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte”.
Apesar do depoimento do ex-ministro da Cultura não ser recente, pois foi proferido há pouco mais dez anos, observamos que o conteúdo e o sentido de suas ideias permanecem atuais.
Por meio do uso da tecnologia digital, além de receptores e consumidores de bens culturais (informações, músicas, filmes, obras de arte, etc.), disponíveis na rede, nos tornamos autores-produtores, ou seja, também podemos produzir uma série de obras intelectuais, culturais e artísticas e as tornar conhecidas mediante a internet ou outros meios. Seguindo essa lógica, os “tradicionais” meios de comunicação e as novas tecnologias da informação devem ser percebidos como recursos importantes para democratizar o acesso à informação e a comunicação, evidenciando ou criando novas formas de expressão artística e\ou cultural. Por meio da utilização de tais recursos é possível aproximar e envolver diversos segmentos ou atores sociais, promover a diversidade cultural, descentralizar a criação, a produção e a distribuição da cultura brasileira, bem como fomentar a discussão acerca da criação e implementação de políticas públicas para o desenvolvimento do setor cultural.
6Além de possibilitar o acesso e incentivar a participação dos grupos nas discussões que envolvem a cultura, a difusão e transmissão das informações culturais, visando a divulgação dos bens, as novas tecnologias da informação e comunicação contribuem, ainda, para a preservação da memória e o desenvolvimento da identidade cultural dos grupos. Nesse sentido, os relatórios que sobrevêm a este texto de apresentação buscam, de alguma forma, refletir sobre tais aspectos.
Tendo, também, como referência os Artigos 5, 7 e 11 da Declaração de Friburgo , nos próximos parágrafos procuramos destacar algumas ideias ou preocupações comuns apontadas nos relatórios técnico-científicos dos autores-alunos, indicados para comporem esta parte da publicação.
Segundo consta na Declaração de Friburgo, o Artigo 5 refere-se ao “Acesso e participação à vida cultural”; o sétimo à “Informação e comunicação” e o Artigo 11 à ‘’Responsabilidade dos atores públicos”. A Declaração pode ser reconhecida como um guia para a reflexão e implementação dos direitos relacionados à cultura, previstos no acordo internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Ela reúne e explicita os direitos culturais que já são reconhecidos, de maneira dispersa, em inúmeros documentos que tratam sobre o tema.
PROCESSOS E ATORES ENVOLVIDOS
A partir da adoção da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005), diversas instituições governamentais, como o Ministério da Cultura (MinC), as Secretarias Municipais e Estaduais de Cultura (quando não extintas por gestores públicos) e os organismos internacionais, como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), além de formular políticas públicas de cultura mais democráticas, que promovam a inclusão social, o desenvolvimento econômico e o debate sobre a diversidade cultural e a relação entre cultura e educação, cultura e comunicação, cultura e turismo e, cultura e economia, entre outros setores, tem procurado estabelecer canais ou meios que possam ser utilizados pelos grupos sociais para manifestação de suas produções, demandas e direitos às atividades e bens culturais.
CONVENÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE DAS EXPRESSÕES CULTURAIS. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224POR.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2016.
Além disso, com o intuito de garantir o direito à cultura, assim diz o Artigo 215 da Constituição Brasileira (1988): “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. O que não fica claro no Artigo em questão e nos incisos que o sucedem é como, de que forma, ou seja, quais ações ou mecanismos deverão ser utilizados para a efetividade da lei. No entanto, é possível vislumbramos algumas ações do poder público nesse sentido.
A partir, principalmente, da década de 1990 é possível observarmos uma melhor participação estatal no financiamento de atividades ou programas culturais que estimulem a divulgação, o acesso e a preservação das manifestações culturais. Dentre alguns instrumentos significativos podemos citar a Lei Rouanet, o Fundo Nacional e os Fundos Setoriais de Cultura; Programas como Cultura Viva, Cultura Digital e o Vale-Cultura; cursos de capacitação e formação de gestores culturais; seleção de projetos culturais por meio de editais específicos contribuindo, assim, para uma descentralização regional e setorial de recursos públicos investidos nos projetos culturais, entre outros.
7Entretanto, também é preciso destacar que há falhas na execução de algumas dessas políticas públicas e projetos estatais no setor cultural, entre elas:
O dilema da aplicação do orçamento e dos cortes orçamentários no campo da cultura ameaçando, assim, a continuidade de diversos programas e ações culturais;
A falta de acesso ou desconhecimento dos artistas e produtores culturais em relação às leis de incentivo e fomento à cultura;
A burocracia que deve ser cumprida para concorrer a alguns editais públicos e, ainda;
As leis de incentivo criadas por meio de dedução de impostos, como a Lei Rouanet, acabam por beneficiar mais as empresas que destinam uma parte do seu imposto aos projetos culturais do que os próprios artistas. Levando em consideração que a aprovação de um projeto ou uma ação cultural no Ministério da Cultura não significa que o mesmo será patrocinado, ou seja, o artista ou o produtor cultural receberá apenas uma autorização para buscar incentivo das empresas que, em troca, recebem abatimento de imposto referente ao valor do projeto patrocinado.
Todas as situações apontadas acabam afetando diretamente os profissionais que produzem cultura no Brasil, impossibilitando o desenvolvimento de ações que dão vida à diversidade cultural brasileira, à democratização e ao acesso de produtores aos recursos financeiros, de consumidores aos bens e serviços culturais; impedindo o acesso às informações culturais de qualidade; a preservação do patrimônio, das memórias e; o reconhecimento das identidades dos grupos culturais.
Geralmente, é o Estado que tem maior participação na formulação e implementação de políticas públicas para o campo cultural, mas, segundo o sociólogo Néstor Garcia Canclini (2001, p. 65), devemos ampliar esta noção ao contemplar a atuação de outros atores sociais neste processo, tendo em vista o contexto atual da globalização onde as produções e as manifestações culturais tornam- se cada dia mais complexas.
Paralelo à ampliação e atuação de novos atores no campo cultural, devemos nos atentar para a criação de novas modalidades de participação cívica que favoreçam a construção da cidadania. Nesse sentido, “as novas tecnologias podem auxiliar os indivíduos e grupos a estabelecerem laços comunicativos capazes de ampliar a opinião pública e de trazer novas contribuições para o debate sobre questões de interesse coletivo” (MATOS, 2009, p.15).
Sem esquecermos, é claro, que há grupos hegemônicos que se apropriam das novas tecnologias ou dos meios de comunicação para estabelecer e valorizar um único modelo de cultura, marginalizando, assim, a diversidade das manifestações artísticas e culturais do povo brasileiro. Portanto, dependendo da forma como os grupos utilizam tais meios eles podem aprofundar as desigualdades culturais ou contribuir para a difusão e transmissão das informações para um grande número de pessoas e, também, para o fortalecimento da identidade cultural dos diferentes grupos.
De acordo com Dias (2015):
8Por meio do uso de tais recursos pode-se estabelecer uma aproximação entre diversos atores. Podemos aproximar a nossa cultura com a de outros povos e a partir dessa aproximação existir processos de identificação e de valorização da cultura do outro. A internet nos permite isso, pois por meio dela temos acesso à cultura de diferentes povos em diferentes regiões do globo e, inclusive, podemos aprender mais sobre a nossa própria cultura (Ibid., 2015, p. 45).
Nesse sentido, o campo da organização da cultura envolve uma série de pessoas, instituições, projetos e recursos que precisam ser gerenciados. Se por um lado com o surgimento de novas tecnologias da informação e comunicação temos mais contato com diversas formas de produção e manifestação cultural, por outro, tal cenário impõe novas demandas, como a necessidade de melhorar o desempenho das instituições relacionadas à cultura e, consequentemente, a necessidade de novas formas de qualificação e atuação profissional. Dessa maneira, novas categorias profissionais ligadas à cultura começaram a surgir, como a dos gestores e\ou produtores culturais.
De acordo com Rômulo Avelar (2008), os produtores culturais são agentes que devem ocupar uma posição central, desempenhando o papel de interface entre os profissionais da cultura e os demais segmentos. Atuam como “tradutores” das diferentes linguagens artísticas, sejam elas do setor das artes plásticas, do circo, do teatro, do cinema, da literatura, do patrimônio cultural.
Uma coisa é certa, não podemos viver sem referências culturais. Se a cultura reflete o modo de vida de uma sociedade, logo, podemos considerá-la como um fator determinante para o desenvolvimento econômico, social e humano e, ainda, como um meio de fortalecimento da memória e identidade de um povo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como já mencionado na introdução, este texto de apresentação representa o esforço de refletir sobre algumas argumentações comuns apontadas nos relatórios técnico-científicos dos autores-alunos, indicados para comporem esta parte da publicação. Nesse sentido, observamos a preocupação deles em estudar e divulgar distintas realidades ou manifestações culturais brasileiras da região central.
Ao investigarem suas formas de expressão e a importância da difusão e transmissão das informações culturais para a preservação da memória e o desenvolvimento da identidade cultural dos grupos, observamos a dimensão e a importância que os meios de comunicação ou as novas tecnologias da informação podem assumir neste contexto. Já que eles, também, podem ajudar a divulgar e a valorizar o conhecimento, as diversas manifestações culturais e artísticas de um povo; aproximar e contribuir para o estabelecimento de um processo comunicativo com todos os atores envolvidos no processo.
Se entendermos as manifestações artísticas e\ou culturais de um grupo como um reflexo da ação humana, logo, podemos afirmar que a cultura, além de ser dinâmica, se constitui por meio de ação e reação do homem na sociedade. Assim, a partir do momento que nos identificamos ou nos sentimos parte de determinada cultura, somos capazes de criar formas, objetos e de dar significação e valor cultural a elas mediante diversos meios.
Para finalizar, partindo do pressuposto de que todos têm o direito de criar, promover e participar da vida cultural, das conquistas políticas, científicas e tecnológicas, do direito moral e material à propriedade intelectual, entre outros aspectos preconizados nos Artigos da Declaração de Friburgo, podemos dizer que a formulação dos direitos culturais constitui uma ampliação dos direitos humanos.
REFERÊNCIAS
AVELAR, Rômulo. O avesso da cena: notas sobre produção e gestão cultural.. Belo Horizonte: DUO Editorial, 2008.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Capítulo III - da Educação, da Cultura e do Desporto. Seção II - Da Cultura, Artigo 215. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Constituicao_Federal_art_215.pdf>. Acesso em: 1 ago. 2016.
CANCLINI, Nestor Garcia. Definiciones em transición. In:MATO, Daniel (Org.)Estudios latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales em tiempos de globalización. Buenos Aires: Clacso, 2001.
CONVENÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE DAS EXPRESSÕES CULTURAIS. Texto oficial ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224POR.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2016.
DIAS, Welbia Carla Dias. A memória cultural como um direito público: o uso dos meios de comunicação na trajetória institucional do IPHAN.In: VIEIRA, Marisa Damas (Org.) Especialização interdisciplinar em patrimônio, direitos culturais e cidadania: ciclos de webconferências. Goiânia: Gráfica UFG, 2015.
GOLDBERGER, Ana. Afirmar os direitos culturais: comentário à Declaração de Friburgo. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda., 2014. (Coleção os Livros do Observatório Itaú Cultural).
MATOS, Heloiza. Capital social e comunicação: interfaces e articulações. São Paulo: Ed. Summus, 2009.
MINISTÉRIO DA CULTURA. Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural. Disponível em: <http://www2.cultura.gov.br/culturaviva/category/cultura-e-cidadania/cultura-digital/>. Acesso em: 2 ago. 2016.
OS DIREITOS CULTURAIS. Declaração de Friburgo. Disponível em: <http://docplayer.com.br/9239102-Os-direitos-culturais-declaracao-de-friburgo.html>. Acesso em: 26 jul. 2016.