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Memórias da Luta Antimanicomial em Goiás: Visões a Partir dos Usuários do Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca

O principal ponto controverso e polêmico acerca do que poderíamos chamar de “patrimônio da luta antimanicomial” é justamente o fato de que se trata de um patrimônio “maldito”, no sentido de que a lembrança não é um ato prazeroso para as pessoas que viveram em hospitais psiquiátricos ou passaram por longos períodos de internação. É uma memória de dor, que no âmbito do senso comum integra todas as coisas que deveriam ser esquecidas e/ou superadas. No entanto, não é através do esquecimento que a ação de conter e asilar a loucura será superada. É necessário construir uma ponte entre passado e presente, entre trabalhadores e usuários dos serviços de saúde mental, que siga reivindicando o direito à cultura e à inserção social. A educação patrimonial demonstrou ser uma importante metodologia na construção dessa consciência crítica junto ao grupo de teatro do Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca.

Palavras-chave: Educação Patrimonial. Reforma Psiquiátrica. Luta Antimanicomial.

Aluna: Carolina Machado dos Santos

Polo: Goianésia

Orientadora Acadêmica: Fátima Regina Almeida de Freitas

Coordenadora de orientação: Vânia Dolores Estevam de Oliveira

1. MEMÓRIAS DA LUTA ANTIMANICOMIAL

A intervenção planejada, a qual o vídeo se refere, delineou-se através de uma inquietação observada ao longo dos três anos que trabalho enquanto instrutora de teatro no Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca. Essa unidade, ou dispositivo, mais popularmente conhecido por Cuca Fresca e carinhosamente apelidada apenas por “Cuca”, flutua entre as fronteiras das políticas públicas em cultura e saúde e apesar de ser uma unidade de saúde, com plaquinha do SUS, seus profissionais são todos provenientes de outras áreas do conhecimento, que não a da saúde. Formamos, então, um time que nada entende de diagnósticos e aprende a lidar com os indivíduos que buscam atenção no serviço na forma como eles são: pessoas em suas complexidades.

Esta intervenção possibilitou a produção de um vídeo, o qual não temos autorização para divulgar, visto ter sido um compromisso com a instituição não expor esse material publicamente. O vídeo foi utilizado como recurso para o projeto de intervenção e foi apresentado à banca, por ocasião da avaliação e aprovação deste trabalho.

A essas pessoas que nos buscam, frequentemente chamamos usuários, enquanto resumo do longo conceito de “usuários da rede de saúde” ou “usuários dos serviços de saúde mental”. São apenas “os usuários”, mas poderiam ser “os pacientes”, em outras cidades chamam-lhes de “os clientes”. Esses usuários, em sua maioria, estão vinculados aos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), ou CAIS, ou Ambulatório de Psiquiatria, ou mesmo, em alguns casos, vinculados a clínicas psiquiátricas ou hospitais-dia . Um número menor é formado por pessoas da comunidade circundante e que se apresentam espontaneamente interessados em participar de alguma das oficinas de arte-cultura, educação física, informática e etc.

Hospitais-dias ou “Serviço de Internação Parcial" se destinam ao atendimento de pacientes psiquiátricos que estão sendo reintegrados ao convívio social, sendo que o atendimento é intensivo, ou seja, o paciente frequenta a unidade hospitalar diariamente durante o período diurno, passando o restante do dia com a família e a comunidade onde reside.

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Logo, nesses três anos, esses usuários me apresentaram informações sobre quase tudo que atualmente sei sobre transtornos mentais, crise, preconceito, carência, vulnerabilidade, dificuldade de relacionar-se. Minha formação acadêmica foi construída sobre o viés das ciências sociais e minha formação em artes cênicas apenas sob o enfoque do teatro do oprimido. Sempre trabalhamos, portanto, a partir de uma visão crítica da realidade, buscando localizá-los enquanto sujeitos de direito, que desejam emancipar-se daquilo que lhes oprime no universo a que estão inseridos – discutimos a família, a cidade, o direito ao tratamento em liberdade. E assim, temos construído nossas peças de teatro a partir dessas discussões: em 2013, enquanto coletivos de várias cidades explodiram as manifestações por transporte público de qualidade, nós nos apresentamos em plena Praça do Bandeirante – Centro de Goiânia, com nosso teatro de bonecos, reclamando dos serviços precários e a falta de respeito aos usuários do serviço de transporte coletivo.

Em 2014, discutimos a relação entre a emigração do campo para a cidade e o adoecimento da população, trazendo histórias que eles mesmos contaram sobre o atendimento nas unidades de saúde. Fui entendendo, então, que nossas oficinas eram mesmo um caso de saúde coletiva e que tudo acabava em música e festa porque era essa a linguagem que nos unia – mesmo com a limitação de cada um, nunca deixaram de tentar tocar um instrumento ou mesmo de manejar um boneco. Quem tinha limitação motora foi se esforçando até conseguir tocar o que queria, quem tinha limitação de fala foi se esforçando até conseguir expressar em palavras aquilo que tinha a dizer. Entre altos e baixos, desenvolvemos uma grande confiança entre nós.

Desde o início em que fui contratada a atuar nessa unidade – em maio de 2012 -, desejava trabalhar com o tema das internações psiquiátricas. Mas me parecia sempre delicado, algumas pessoas se agitavam e não gostavam muito de lembrar de suas experiências quando, em algum momento, foram internadas pelas próprias famílias. Geralmente, as histórias de internações representam momentos de ruptura da vida de muitos. Ruptura essa que deixa sequelas por toda a vida. Ainda que a internação possa significar, principalmente para as famílias dos pacientes, momentos de paz e alívio, onde, pelo menos por certo tempo os familiares descansam do lidar diário com a crise, para os indivíduos que sofrem a ação de internação, a experiência é quase sempre dramática. Mesmo quando não há reclamações de maus tratos ou excessiva medicação, ser internado uma, duas ou sucessivas vezes é como receber um carimbo na testa de “inapto ao convívio social” ou “não confiável” ou mesmo “inumano”. A última internação pode ter ocorrido há muitos anos, mesmo assim, uma sombra de preconceito lhes persegue.

A partir da promulgação da Lei nº 10.216, de 2001, a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) é consolidada como um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária, garantindo a livre circulação das pessoas com transtornos mentais pelos serviços, comunidade e cidade, e a oferta de cuidados com base nos recursos de que a comunidade dispõe (BRASIL, 2005).

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O Centro de Convivência está alinhado com os objetivos da Reforma Psiquiátrica, que a partir do final da década de 70 começa a organizar-se,  fortalecendo-se nos anos 80 e, finalmente, transformando-se em política pública nos anos 90. Tem como um dos objetivos oferecer um espaço substitutivo ao modelo manicomial, com o entendimento de que a inclusão social seria o primeiro e importante passo rumo à “desconstrução do manicômio”. Tem como fundamento a ideia de que, a partir do exercício de convivência, estruturado sob o eixo da solidariedade e da não segregação, é possível dar contorno a uma abordagem em saúde mental de ruptura com a cultura manicomial para efetivação de relações democráticas, “desalienantes”, antidiscriminatórias e antipaternalistas (CASTRO, 2014).

Se todas as outras formas que já tinha buscado anteriormente trabalhar a questão da internação tinham sido inférteis. Se, muitas vezes, nós parávamos nossas conversas no momento em que alguém declarava: “essas histórias são tão tristes, não vale a pena lembrar”. A única forma foi começar pelo esquecimento. Não de nossos usuários – pois esses por mais que queiram, não podem se esquecer. Mas começamos pelo esquecimento coletivo dos manicômios, na cidade, no local onde antes estavam edificados.

Começar pelo esquecimento - parece uma contradição! Mas os estudos da especialização em Direitos Culturais, Patrimônio e Cidadania ofereceram muitos insights. A memória e o esquecimento, seus usos e manipulações, estão inseridos na tessitura social e também sujeitos às relações de poder estabelecidas. Principalmente no que tange à questão da reforma psiquiátrica e à luta pelos direitos das pessoas consideradas “loucas”, no contexto brasileiro é possível assistir enormes avanços ao lado de retrocessos. A partir de uma olhadela na realidade goianiense, uma simples visita às instituições com fins de internação psiquiátrica, é possível afirmar a existência de uma contrarreforma que continua avançando e, em tantos casos, burlando as leis. Sendo um pouco mais específica, segundo a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que rege a reforma psiquiátrica, todo caso de internação involuntária deveria ser comunicado, no prazo de setenta e duas horas, ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta. Pelo menos em Goiânia isso não acontece e segue sendo relativamente simples internar uma pessoa a partir do desejo de outras pessoas.

O tema das internações acabou sendo um fio condutor por onde as memórias fluíam entre como as situações se davam no passado e como se dão agora no presente. A internação é uma reminiscência presente da violência manicomial. É moeda de chantagem entre familiares e pacientes. É valor de lucro para donos de clínicas e indústrias farmacêuticas. Aos poucos, foi ficando cada vez mais claro porque a cultura local não se lembra do Adauto Botelho. Destruir o espaço físico e deixar as ruínas quiçá não poderia ser uma forma astuta de dizer que “o pesadelo acabou”, ao mesmo tempo em que as medidas efetivas, em termos de políticas públicas, não são levadas adiante no sentido de garantir o princípio do tratamento em liberdade conforme rege a lei. O princípio, de prender, destratar e torturar pessoas que se encontram em sofrimento psíquico, segue em vigor em outros espaços físicos, sob fachadas mais modernas, utilizando um pouco mais de maquiagem.

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Esse procedimento não é novidade na história brasileira se compararmos por exemplo com a ditadura militar – podem ter destruído documentos e espaços físicos de tortura, porém, não destituíram o princípio da repressão e do assassinato que hoje segue regendo os procedimentos da polícia. Não há como evitar ligar os pontos e perceber um desenho eugênico, limpando a cidade, excluindo ou matando os loucos, os varridos, os drogados, a juventude da periferia, os negros.

A preocupação com a saúde mental no Brasil começa a ser contemplada na segunda década do século XX com a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental. Anos depois, no governo de Getúlio Vargas, é criado o Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), dirigido pelo psiquiatra Adauto Botelho. Aqui a psiquiatria brasileira se consolida, sofrendo influências diretas da psiquiatria organicista alemã, que é pautada em ideais eugênicos mais tarde utilizados na Alemanha para consolidação dos princípios nazistas.

As linhas históricas ainda estão tão vivas que nos ligam direto às continuações do tema nos dias atuais. Nossa trajetória atrás da história do antigo Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho revelou-se interessantíssima. Na mesma tarde em que nos dedicamos a visitar o local, desviamos um pouco a rota para tentar visitar o pronto socorro psiquiátrico Wassily Chuc, herdeiro direto do Hospital Adauto Botelho. No primeiro semestre de 2015, o referido pronto socorro foi alvo de muitas críticas, justamente por se tratar de uma unidade que segue os padrões manicomiais e não oferece condições físicas e nem atividades humanizadas aos seus pacientes. Tentamos visitar a unidade no dia 7 de julho, porém, tivemos que permanecer na recepção do mesmo, pois alegaram não haver funcionário disponível para apresentar as instalações. Na recepção estava uma senhora junto a sua filha, uma mulher supostamente “louca”, ambas provenientes do interior do estado e que aguardavam vaga para internação na rede conveniada (clínicas psiquiátricas privadas). Depois de nossa saída, um dos participantes do projeto veio até mim e em suas palavras disse que a jovem mulher não estava louca, mas apresentava claros sinais de estar “dopada” de remédios.

Quanto mais fui me aproximando das histórias pessoais do senhor Dagoberto e do senhor Luiz, da senhora Divina, da jovem Josveth, dos jovens Matheus e Giriê, mais fui desmistificando o tema das internações. Há quem pense que basta ser internado para ser louco, mas não é bem assim. Quem já esteve internado pode ter chegado a vê-los, mas não chegam a sê-los. Se, no início de nosso trabalho eu tinha uma pergunta estranha que não ousei fazer, advinda do fato de que, em seus relatos, sempre diziam terem visto os “loucos” nas clínicas de internação e esses “loucos” serem sempre os “outros” e nunca eles mesmos. Então, quem são os loucos? São os que sucumbiram a essa identidade frente a um sistema médico-hospitalar muito mais poderoso que seus delírios? Aqueles que nunca mais acordaram de um sono medicamentoso?

2. EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E A CIDADANIA DOS LOUCOS E NÃO LOUCOS

Em 2015, o Fórum Goiano de Saúde Mental (FGSM) comemorou vinte anos de luta antimanicomial. Ao lado da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental do Estado de Goiás (AUSSM/GO), desenvolveu diversos projetos em defesa da cidadania da pessoa com transtornos mentais, buscando vencer o preconceito e a institucionalização. Suas presenças no cenário político do estado, desde 1994, têm impulsionado a reforma psiquiátrica e a implantação dos CAPS.

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Para desenvolver seu trabalho, os dois movimentos sociais estabelecem parcerias com diversas entidades e outros movimentos na defesa dos direitos humanos, pela implementação de políticas públicas inclusivas. O FGSM e a AUSSM/GO participaram de diversos eventos da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial e das lutas e manifestações que garantiram a realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM); a Marcha dos Usuários e se mantém participante no controle social.

No seu cotidiano, seus membros reúnem periodicamente para discutir a pauta apresentada e deliberar pelo encaminhamento mais adequado ao caso, produzindo documentos, textos, vídeos, eventos, debates e manifestações públicas, como a passeata do 18 de Maio. Essas reuniões acontecem no espaço do Centro de Convivência e contracenam com as demais atividades ofertadas no dispositivo. Esta rica produção encontra-se em acervos particular e na memória dos militantes, sendo de grande interesse para a história da luta social goiana e a formação dos novos trabalhadores que não viveram este período.

As oficinas de teatro do Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca acolhem indivíduos de vários perfis, são homens e mulheres, jovens e idosos, portadores de sofrimento ou deficiência mental. Todos possuem um alto índice de vulnerabilidade social. Nessas oficinas temos nos voltado sistematicamente para a interface cultura e saúde, cientes da noção sintetizada por Paulo Amarante, de que,

A dimensão sociocultural é, portanto, uma dimensão estratégica, e uma das mais criativas e reconhecidas, nos âmbitos nacional e internacional, do processo brasileiro de reforma psiquiátrica. Um dos princípios fundamentais adotados nesta dimensão é o envolvimento da sociedade na discussão da reforma psiquiátrica com o objetivo de provocar o imaginário social a refletir sobre o tema da loucura, da doença mental, dos hospitais psiquiátricos, a partir da própria produção cultural e artística dos atores sociais envolvidos (usuários, familiares, técnicos, voluntários) (AMARANTE, 2012, p. 73).

Nesse sentido,

A educação popular traz enorme mudança no conceito de popular, compreendendo-o não apenas direcionado àqueles que fazem parte das classes populares, mas a todos comprometidos com o processo de libertação daqueles que vivem em situação de opressão, como desafio ontológico de autonomização (COSTA, 2013, p. 550).

Para que aconteça o fortalecimento desses grupos, a expressão cultural deve ser utilizada na consolidação de sua identidade e na organização social e comunitária; na educação e conscientização; na superação do sentimento de inferioridade e alienação e no ingresso no sistema econômico pela produção de bens.

Neste contexto, a educação patrimonial surgiu como uma das ferramentas possíveis no processo de reconstrução da cidadania desta parcela da população. Como afirmam os próprios militantes que ao lado dos pacientes lutaram pela reforma psiquiátrica no Estado de Goiás, "resgatar esta memória é imprescindível para o reconhecimento do valor da participação popular no processo de transformação social e qualificar a capacitação permanente sobre o tema". Trata-se de uma luta permanente pela inclusão de novos sujeitos de direitos e de novos direitos para os sujeitos em sofrimento mental (AMARANTE, 2012, p. 69-70).

O material audiovisual apresentado é um resumo dos vários momentos que estivemos juntos discutindo o tema. Nas primeiras semanas, cuidamos do resgate das memórias individuais das internações. O tema internação foi escolhido justamente por ser uma reminiscência do modelo manicomial que segue presente na vida dos usuários da rede de saúde mental. Várias histórias surgiram, algumas relacionadas diretamente ao passado de internações no Hospital Adauto Botelho, outras relacionadas a outras clínicas de abordagem manicomial semelhante.

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Imagem 1: Recepção do Centro de Reabilitação Henrique Santillo lotada enquanto participantes da oficina de teatro circulavam perguntando sobre a história do Adauto Botelho.
Foto: Carolina Machado

No recolhimento de depoimentos, como demonstrado na cena em que pergunto ao paciente Luiz Carlos: “Você acha que hoje você seria internado novamente?” E sua resposta: “Seria. Hospital não é bom, só tem louco lá dentro”. Ao que lhe pergunto: “E quem são os loucos, Luiz?”. Ele responde: “Quem tem depressão, esquizofrenia... eu tenho depressão, esquizofrenia”. Eu digo: “Mas no caso aqui, no Centro de Convivência, não tem louco não?”. E ele contesta: “Louco que eu falo são as pessoas descontroladas, nos hospitais as pessoas estão muito descontroladas, estão piores do que nós que estamos aqui”.

Quis muito inserir esse depoimento para ilustrar o tema da identidade paradoxal do sujeito portador de transtorno psíquico. Resgatando as afirmações de Foucault, de que a loucura, enquanto doença, é construída na relação entre médico e paciente, pois:

Parece, em todo caso, que todos os grandes abalos que sacudiram a psiquiatria desde o final do século XIX colocaram essencialmente em questão o poder do médico. Seu poder e o efeito por ele produzido sobre o doente, mais ainda que o seu saber e a verdade daquilo que dizia sobre a doença. Digamos, mais exatamente, que de Bernheim a Laing ou Basaglia, o que foi posto em questão era a maneira como o poder do médico estava implicado na verdade do que ele dizia e, inversamente, a maneira como esta podia ser fabricada e comprometida por seu poder (FOUCAULT, 1997, p. 51).

Fora do contexto médico-hospitalar, as identidades pululam e a riqueza de subjetividades volta a existir. Por isso, mais uma vez, o exercício de visitar as ruínas de um hospital e refletir sobre isso é chocante. Tentei demonstrar essa sensação no início do filme, jogando em cena imagens do passado e do presente. No presente, temos cenas da apresentação da Banda Delírios do Cuca, onde vários pacientes são convidados a se expressar e a “delirar” cenicamente. No passado, temos cenas dos pacientes do Adauto Botelho em expressões apáticas de um cotidiano privado de liberdade. Ao reivindicar qualquer espécie de “patrimônio da loucura”, é necessária essa percepção crítica dos desdobramentos e manipulações acerca da identidade dos loucos ao longo dos séculos. A partir da abordagem de Foucault é possível repensar a relação da loucura com a psiquiatria, concebendo tais relações em uma dimensão ética e política: estabelecer novas relações com o louco e com a loucura, com as experiências subjetivas dos sujeitos (TORRE; AMARANTE, 2001).

Como é ilustrado no vídeo, utilizei os bonecos para encenarmos uma situação em que um dos pacientes foi internado à força pela família. E de fato, a utilização dos bonecos para encenar histórias difíceis nos trouxe a outro patamar, um nível em que o tema pode ser desmistificado enquanto tabu e transformado em ação cultural. É possível escutar, enquanto acontece o desenrolar da cena, outros participantes expressando que passaram por situação igual. Essa prática social, de contenção e asilamento dos sujeitos considerados “em crise”, é parte, portanto, da memória coletiva dessa população – memória repleta de sons, cheiros, gestos, dor e até mesmo afeto.

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Imagem 2: Oficina de teatro de bonecos.
Foto: Carolina Machado

Em algumas das oficinas semanais foram propostos só exercícios corporais, em que todos foram estimulados a desmecanizar, resgatando gestos do manicômio e buscando compará-los com gestos do cotidiano em que realizam seus tratamentos na atualidade. No registro audiovisual, tentei ilustrar os depoimentos intercalando-os aos gestos resultantes desse exercício “Três gestos do manicômio”. Particularmente, achei os resultados surpreendentes dada a dificuldade real da maioria da turma em expressar emoções. Uma das participantes, que traz uma expressão de medo ou susto, até então – e já são quase três anos juntas – ela nunca havia conseguido expressar uma emoção usando todo o corpo, integrado com os olhos, boca, todo o rosto, com tamanha dramaticidade.

Imagem 3: O medo segundo Josveth, no exercício “Os três gestos do manicômio”.
Foto: Carolina Machado
Imagem 4: O que não se quer ver, segundo Marília, no exercício “Os três gestos do manicômio”.
Foto: Carolina Machado

Conduzir as oficinas sob este tema me pareceu ao fim um exame de maturidade do grupo. Tanto minha, enquanto profissional, quanto deles, enquanto atores e atrizes. Há sempre um medo velado de que falar sobre o tema “crise” e “internação” – termos quase sinônimos da vida de muitos ali – possa desencadear uma nova crise. Mas o grupo tirou de letra e todos conseguiram projetar suas experiências a um nível objetivo, ou reificado, sobre o qual transitávamos em nossas reflexões posteriores. Nesse sentido, gostaria de destacar a afirmação de Freire de que o educador e pesquisador não necessita ter uma posição neutra, mas buscar métodos de ação política estimulando a reflexão crítica, a criatividade e a afetividade dos sujeitos, rompendo com uma posição fatalista que não enxerga as possibilidades de mudança.

Também acredito que conseguir transitar por memórias tão dolorosas e fronteiras tão imprecisas quanto as da racionalidade só foi possível porque o grupo já possui um outro sistema de significados constituído pelas práticas artísticas. No entremeio de nossos trabalhos, houve a apresentação da Banda Delírios do Cuca, a que o vídeo também se remete enquanto exemplo de patrimônio cultural em construção que estabelece um contraponto poderoso ao imaginário comum que predispõe os loucos a uma fatal e total letargia. Como resume IlenoIzidio Costa,

No campo da saúde mental, compreendemos que esse posicionamento pode ser colocado como uma atitude de trabalhar com o projeto de vida do sujeito, utilizando suas potencialidades e seus movimentos esperançosos em direção à saúde, mediados por instrumentos simbólicos da cultura popular. Em muitos casos, onde predominam a falta de esperança e de projeto de vida, o primeiro esforço é reconstruir essa possibilidade de projetar o futuro por meio de seu presente e passado, construído dialeticamente (COSTA, 2013, p. 550-551).

Imagem 5: Usuários observam placa que identifica as ruínas do Hospital Adauto Botelho (atual CRER).
Foto: Carolina Machado

Como previsto no projeto de intervenção, foi possível através das oficinas de teatro realizar uma ação de educação patrimonial, iniciando um diálogo acerca do tema junto aos indivíduos que se encontram quase ou completamente desinseridos das discussões sobre direitos e cidadania, justamente por serem estigmatizados enquanto pessoas que, encontrando-se em um processo considerado patológico, não são consideradas aptas a produzir ou participar da cultura. Através dos processos criativos fomentados nas oficinas foi possível discutir a noção de patrimônio e entender sua importância no contexto social.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS OU “COMO É QUE SE ESQUECERAM QUE A VIDA NO ADAUTO BOTELHO ERA OSSO DURO DE ROER?”

As oficinas de teatro do Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca buscam reconhecer o papel ativo dos usuários do SUS na construção de sua saúde e participação social. Com isso, é proposto que sejam estabelecidos espaços de construção criativa em relação a seu projeto terapêutico, pela convivência no cotidiano por meio do diálogo entre profissionais, usuários e familiares. A partir disso, pensamos que os serviços de saúde mental podem se tornar espaços para o fazer criativo e o estímulo à criticidade pela construção do sujeito com a cultura, para além da mera adaptação social ou o papel normatizador desta (COSTA, 2013, p. 551).

Na proposta de intervenção apresentada, tracei uma estratégia para trabalhar a educação patrimonial, partindo principalmente de uma identidade política que percebo emergir cada vez mais forte dos discursos individuais – a identidade de cidadão que se utiliza dos serviços de saúde mental. A verdade é que há muitas identidades possíveis para estes sujeitos, mas relacioná-los com o patrimônio cultural de uma cidade que a maioria mal conhece seria “forçar a barra”. A primeira compreensão é que este grupo passou boa parte da vida entrando e saindo de internações. Quando não estavam internados, passavam o tempo em casa ou no máximo iam às igrejas. Logo, a pergunta é bastante válida: como a educação patrimonial pode ajudar a incluir os indivíduos que se encontram às margens da produção de cultura? Como reivindicar o direito à cultura aos indivíduos que são sistematicamente isolados do convívio social?

Partindo da identidade política, um outro patamar de entendimento tornou-se possível. Nesse nível, já está consolidada a ideia de que lembrar e reivindicar a história da transformação da psiquiatria no Brasil é necessária para que semelhantes horrores que ocorreram, em termos de violações de direitos humanos, não voltem a acontecer. Existe aí a consolidação de uma espécie de “filosofia do patrimônio” em seu nível mais elementar: o nível em que um povo, relacionado a uma identidade específica, delimita o que é necessário ser lembrado e o que deve ser esquecido.

Em nosso percurso, constatamos que são poucos os que lembram. Que a cidade escolhe as tragédias pelas quais chorar e rememorar, mas esqueceu a história do Adauto Botelho, que acabou virando ponto de referência para os entregadores, ou ruína invisível para os distraídos olhares urbanos. Ninguém se lembra de que a vida no Adauto era osso duro de roer. Só quem viveu e permanece sobrevivendo às suas sequelas.

Destacando a proposta de Canclini (2000), por uma teoria social do patrimônio, realmente entender que a noção de patrimônio e desigualdade social deve estar atrelada, pois o mesmo, ainda hoje, não é de todos e para todos, como se costuma afirmar. Mesmo que o patrimônio seja utilizado sob a lógica de unificar pessoas, é necessário estudar como ele se configura enquanto espaço de luta simbólica entre as classes, etnias e grupos.

A experiência gerou indignação e a percepção da identidade marginal. Quando contaram no grande grupo, alguns diziam que as pessoas com quem conversaram não percebiam suas “verdadeiras” identidades. Como se, ao perguntar àquelas pessoas que lhes disseram saber que ali antigamente viviam os loucos, houvesse alguma expectativa de serem reconhecidos enquanto continuidade dos mesmos. Mas eles escaparam dessa identidade tradicionalmente imposta, do louco que mal articula palavras ou que vaga feito um zumbi. Transcenderam e se misturaram novamente ao mundo social e agora cantam, dançam, atuam, e secretamente entrevistam pessoas em uma pesquisa de campo que a professora de teatro orientou. De alguma forma são subversivos. E a medida que tomaram liberdade para falar, gritaram cada vez mais alto que internação não é solução, que a loucura não pode ser quimicamente adestrada e sequestrada do dia a dia, trancafiada em muros visíveis ou não.

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Enxergar ou não enxergar os muros do Adauto Botelho faz uma diferença enorme. Talvez, se esse projeto puder terminar enquanto recomendação, eu aconselharia que muitos outros trabalhos de educação patrimonial fossem realizados no local, que construíssem um museu interativo, que pendurassem fotos, que levassem as escolas.

Posso citar pelo menos dois museus que hoje, no Brasil, se preocupam em contar a história da loucura:

a) O Museu da Loucura, em Barbacena-MG, localizado no antigo Hospital Colônia de Barbacena, palco da morte de milhares de pessoas, história narrada por Arbex, em seu livro “O Holocausto Brasileiro”;

b) O Museu do Inconsciente, no Centro Psiquiátrico Pedro II, Rio de Janeiro, onde se encontra um rico acervo de artes plásticas produzido junto aos pacientes do hospital quando a doutora Nise da Silveira empenhou-se no papel de se opor aos tratamentos utilizados (eletrochoque, lobotomia, insulinoterapia) e instalou diversos ateliês para terapia através da arte.

Em Goiânia, no ano de 2012, foi realizado pelo Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca a Mostra de Arte Insensata que, além de reunir acervo de artes plásticas produzidas pelos pacientes dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), montou também uma Linha do Tempo da Reforma Psiquiátrica, expondo no Museu Antropológico toda a história da loucura em Goiás. Infelizmente, essa exposição ainda não conseguiu tornar-se permanente, mas o tema continua em pauta e os preparativos para uma próxima mostra seguem em andamento.

Se há alguma pretensão de se construir uma educação baseada no respeito aos direitos humanos, não se deve esquecer jamais o que foi praticado nos manicômios e o que continua a ser reproduzido, mesmo maquiada ou com outros nomes, nas instituições psiquiátricas que ainda mantém seus muros intactos.

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