Identidade e patrimônio culturais
A Declaração de Friburgo, em seu artigo 3º, afirma que toda pessoa, individualmente ou em coletividade, tem o direito de “escolher e ver respeitada a sua identidade cultural, na diversidade das suas diferentes formas de expressão. Este direito é exercido em conexão com, nomeadamente, as liberdades de pensamento, consciência, religião, opinião e expressão” . Essa identidade reflete múltiplos valores e significados; existe uma identidade cidadã, uma identidade psicológica, uma identidade de gênero, de grupo étnico e social, que em seu conjunto conformam uma identidade cultural, individual ou comunitária ou grupal.
Todas a referências ao texto constitucional estão disponíveis em <http://direitoshumanos.gddc.pt/3_20/IIIPAG3_20_4.htm>. Acesso em: 18 jul. 2016.
Da mesma forma, a Declaração defende que toda pessoa, ou grupo social, tem os direitos:
de escolher e ter respeitada sua própria cultura, assim como as culturas que em suas diversidades constituem o patrimônio comum da humanidade; isso implica particularmente o direito ao conhecimento dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, valores essenciais desse patrimônio; [...] de ter acesso, particularmente pelo exercício dos direitos à educação e à informação, aos patrimônios culturais que constituem expressões das diferentes culturas bem como dos recursos para as gerações presentes e futuras .
O texto integral da Declaração de Friburgo encontra-se disponível em <http://direitoshumanos.gddc.pt/3_20/IIIPAG3_20_4.htm>. Acesso em: 18 jul. 2016.
A Constituição Brasileira em vigor estabelece, em seu artigo 215, que o Estado garantirá a “todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”, dedicando atenção e texto especial a esse direitos e aos conceitos que lhe são pertinentes, tais como: liberdade de expressão, bem cultural (art. 23), patrimônio cultural (art. 216), ação popular (art. 5º, LXXIII), identidade cultural e diversidade cultural. Sem esses conceitos e suas articulações não é possível pensar a realidade multi e pluricultural do país, nem propugnar pelo seu efetivo usufruto.
Vamos nos reportar ao conceito de cultura com que a própria Declaração de Friburgo trabalha:
O termo “cultura” abrange os valores, as crenças, as convicções, as línguas, os saberes e artes, as tradições, as instituições e os modos de vida através dos quais uma pessoa ou grupo exprime a sua humanidade e o significado que atribui à sua existência e ao seu desenvolvimento;
Por sua vez, o patrimônio compreende, conforme reza o Art. 216 da Constituição, os “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Esses bens incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Assim, se a identidade é formada pelo conjunto de valores individuais ou grupo de pessoas, e patrimônio cultural é tudo aquilo que é reconhecido por esse conjunto de indivíduos como marcas ou produtos de sua ação sobre a natureza, os dois conceitos são inseparáveis. Não é possível abordar um, sem se reportar ao outro.
6O Curso de Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania (EIPDCC) deu especial ênfase à discussão da identidade, do patrimônio e dos direitos culturais, buscando proporcionar aos seus cursistas um ambiente livre e favorável à ampla abordagem e reflexão sobre tais temas. Isso se reflete nos assuntos escolhidos pelos cursistas em seus trabalhos finais, que navegam por universos temáticos e campos disciplinares os mais diversos.
Outro ponto a ser ressaltado é que, a despeito dos questionamentos atuais sobre a metodologia da educação patrimonial, percebe-se que os cursistas foram positivamente afetados pelos temas tratados nas disciplinas voltadas para a educação, em suas implicações para o efetivo exercício dos direitos culturais pelo cidadão. Quase todas as intervenções se utilizaram direta ou indiretamente dessas noções aprendidas ou recordadas durante o curso, o que pode ser visto como saldo bastante positivo desta Especialização.
A interdisciplinaridade das formações acadêmicas e as diferentes atividades profissionais de cada um dos cursistas pode contribuir fortemente para os enfoques e as tipologias das intervenções realizadas, vindo corroborar a importância e necessidade de cursos interdisciplinares no âmbito das discussões em torno dos direitos culturais, patrimônio e cidadania. Professores, cientistas sociais, museólogos, advogados e assistentes sociais trouxeram suas contribuições particulares para enriquecimento das reflexões aqui apresentadas.
O texto dos cursistas Abadia Maria de Oliveira, Luana Ribeiro Brás e Michel Duarte Ferraz, intitulado “Teares do Xixá: Fiandeiras em Ação”, refere-se à atividade de tecelagem manual, ainda em execução por fiandeiras nos municípios goianos. Este relatório descreve em detalhes e riqueza iconográfica as ações propostas na intervenção, que visou à valorização da atividade dessas mulheres, como patrimônio cultural goiano e brasileiro, e importante elemento formador de suas identidades.
Várias intervenções elegeram os “lugares de memória” como foco central. A exemplo disso temos o texto que nos relata o “Projeto de Intervenção Mercado Municipal e Cidadania Patrimonial”, realizado por Alcione Francisca Marques, Aline de Oliveira Rezende e Ana Carolina Ferreira de Faria. O projeto buscou identificar o grau de envolvimento dos habitantes da Cidade de Goiás com aquele patrimônio e com as ações de preservação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que é responsável pela sua conservação. Para isso, pautou-se pela visão de três grupos distintos: jovens e adultos, idosos, e crianças cursando o 5º ano de uma escola municipal do ensino fundamental. Foi utilizada a metodologia da educação patrimonial, aliada à fotografia como lugar privilegiado de preservação e registro da memória.
Da mesma maneira o faz o terceiro texto desta categoria, “Apropriações e Usos dos Espaços Patrimonializados em Jaraguá-GO”, de autoria de Carla Ismaela de Oliveira Pinto, tendo como ponto de partida a pergunta: de que maneira os sujeitos se apropriam e se utilizam dos espaços patrimonializados da cidade de Jaraguá e quais referências possuem sobre o patrimônio cultural? Em uma intervenção junto a crianças da quarta série do ensino fundamental, busca respostas à sua indagação, que deixam patente a desvinculação da seleção do patrimônio, de seus criadores e daqueles que dele deveriam usufruir.
7No mesmo sentido, a cursista Elenice Belcholina da Serra apresenta em seu relatório da intervenção “Praça da Matriz de Itaberaí-GO: diálogos e memórias em prol da preservação do patrimônio cultural local”, os resultados da atuação junto a jovens entre treze e dezoito anos, bem como seus familiares. A atividade buscou levantar as referências ainda presentes na memória social dos moradores do entorno da Praça da Matriz, foco irradiador do núcleo urbano inicial do município, em uma tentativa de resgate e valorização dos significados daquele logradouro para a memória da cidade e de seus habitantes.
Completa esse bloco temático, a cursista Renata Vieira Pinto, trabalhando em sua intervenção com a “Igreja de São José de Mossâmedes: Memória e Patrimônio Cultural Material no Município de Mossâmedes”, objetivando a preservação e o reconhecimento da importância desse patrimônio histórico para a história daquela cidade de Goiás.
O texto de Delmar Ferreira Rezende aborda o papel das instituições culturais, como museus, arquivos, centros culturais e outros, ao analisar a “Biblioteca Comunitária Contribuindo para a Melhoria do Processo Educacional e das Ações Culturais no Sertão em Alto Paraíso de Goiás”. Com uma experiência de pesquisa-ação, a intervenção atuou no sentido de ampliar os direitos culturais da população rural de Alto Paraíso, através da dinamização da Biblioteca Comunitária do Sertão local, e teve como objetivos o “resgate do patrimônio cultural, o aumento das opções de lazer da comunidade local e a diminuição do êxodo rural”.
Dois textos voltaram-se para o patrimônio arqueológico brasileiro, alvo constante de depredações, vandalismos e tráfico ilícito. Um foi o relatório da intervenção “As Réplicas dos Fósseis da Maior Floresta Petrificada do Mundo e os seus Desdobramentos no Processo de Ensino e Aprendizagem em Educação Patrimonial”, do cursista Evandro Silva Carvalho. Esta ação de educação patrimonial, além da difusão do conhecimento sobre tal patrimônio natural, visou a preservação e proteção desses fósseis contra o tráfico ilegal desses bens.
O segundo texto descreve “A Trilha da Educação Patrimonial: Sítio Arqueológico Bisnau em Formosa-GO”, do cursista Geisson Esteves de Alcântara. Para além do necessário conhecimento, valorização e preservação dos sítios arqueológicos brasileiros, a intervenção contribuiu também para a atualização dos elementos da arte rupestre (linhas, pontos, retas e formas), através da correlação com a arte contemporânea, e com as pichações e grafites dos espaços urbanos de hoje.
Quatro textos nos falam, por intermédio de enfoques diferentes, sobre paisagens culturais. Um deles é o relatório da intervenção “Oficina de Educação Patrimonial - Território e Lugar: Transformações Históricas na atual cidade de Jussara-Goiás”, da cursista Hilda Freitas Silva, que trabalhou com alunos do ensino fundamental e médio do município de Jussara, no conhecimento da história local em sala de aula, visando levar os participantes a se perceberem como sujeitos na construção de sua realidade, cultura e, consequentemente, seu patrimônio.
O segundo texto “Aprender, Reconhecer e Preservar: Arquitetura Goiana - Art Déco”, intervenção de Maria de Fátima dos Santos Marques, abordou a degradação da paisagem cultural de Goiânia, sobretudo de sua área central, através da leitura de suas edificações e das políticas preservacionistas e de revitalização desses espaços urbanos.
8Na mesma direção foi realizada a intervenção “Educação Infantil e Patrimônio Cultural”, pela cursista Miguelina Martins dos Passos, junto a alunos da educação infantil na faixa etária entre cinco e seis anos, visando levar o conhecimento desse patrimônio da cidade, despertar o interesse e a valorização do conjunto arquitetônico Art Déco da região central de Goiânia.
Na crença da “Educação Patrimonial como Ferramenta que Contribui na Construção, no Reconhecimento e Transformação da Memória e da Identidade Cultural São Joanense”, a cursista Wanda Marques Araújo atuou junto a alunos do ensino médio do Estado, tendo como objetivo contribuir para a valorização e preservação do patrimônio cultural e natural do município de São João d’Aliança, em Goiás.
A cursista Madalena Maria Vieira Alves, na intervenção “Educação para o Patrimônio: Vivências na Alfabetização Cultural Infantil”, teve como foco crianças do ensino fundamental e adultos com elas envolvidos, em oficina voltada para a iniciação teórica no campo da preservação do patrimônio, e para a sensibilização e o despertar do sentimento de pertencimento e de identificação com o patrimônio histórico cultural local”, enquanto elementos para construção de sua identidade e exercício da cidadania.
O relatório da “Folia de Reis Goiana e Mineira na Cidade de Goianésia – GO”, de José da Costa, trabalhou com a história, elementos da identidade local e com a importância e manutenção das práticas da cultura popular na comunidade de Goianésia e regiões adjacentes. O texto aborda a necessidade do estudo e preservação das Folias de Reis goiana e mineira, que em Goiás apresenta características bem particulares que as distinguem de outras regiões.
Tendo a mesma Goianésia como foco e numa demonstração de que a identidade e o patrimônio culturais permeiam todas as esferas da vida, a cursista Rute Mendes Barbosa pôs em relevo a importância da manutenção das práticas agrícolas tradicionais, que são geralmente de cunho familiar e utilizam-se de processos artesanais em seus fazeres. Sua intervenção intitulada “Cultura Popular, Direitos Culturais e Patrimônio Imaterial: Valorização da Cultura Tradicional da Mandioca e seus Derivados em Goianésia” teve como público-alvo os alunos do curso Técnico em Agricultura do Instituto Tecnológico Goiano Governador Otávio Lage. Aos futuros técnicos em Agricultura também cabe o papel de incentivadores da preservação das práticas agrícolas tradicionais e artesanais no município, ao lado das modernidades impostas por interesses econômicos.
Ao finalizar esta apresentação, queremos convidá-los a ler e compartilhar os textos a seguir, na certeza de que todos os autores - cada qual a seu modo e com sua bagagem profissional e seus saberes particulares - atuaram em suas intervenções no sentido de motivar e desenvolver o pleno exercício dos direitos à educação, à informação, e aos bens culturais que conformam as identidades e constituem os diversos patrimônios culturais, como expressão das diferentes culturas que se fizeram representar através dos alunos da EIPDCC e dos recortes temáticos eleitos como seus objetos de estudo.
Boa leitura!
Vânia de Oliveira
Professora autora, professora formadora e Coordenadora de Orientação da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania.