Apresentação: O literar no enfrentamento do (des)conhecido

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Num esforço coletivo de incentivo à leitura e à contação de histórias infantis durante o período de isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19, este e-book é uma obra resultante do desenvolvimento de um projeto de extensão que visou promover atividades de literar para e com a infância, com a divulgação de livros e acervos de literatura infantil e de histórias contadas já existentes, produção de novas contações de histórias, sugestões de leituras e propostas de diálogo que permitissem reflexões sobre o (des)conhecido.

No momento de incertezas e enfrentamento histórico de uma pandemia, refletimos sobre a nossa sobrevivência, não mais como indivíduos, mas como espécie. E diante do fechamento das escolas e do afastamento social, a literatura, especialmente a literatura infantil e infantojuvenil, oferece narrativas que, além de proporcionar prazer na leitura, fornecem elementos de crítica, reflexão e capacidade de seguir em frente.

Como arte de conectar histórias, imagens e afetos, a literatura favorece a construção de pontes entre nosso mundo e um outro, idealizado pelo autor, que materializam e (re)criam realidades, imaginações e perspectivas pelo leitor. Por meio da literatura somos levados a lidar com o diferente, com situações não pensáveis ou ainda não imagináveis. Assim, aprendemos mais sobre nós mesmos e os outros, ampliando capacidades criativas de enfrentar o (des)conhecido. A literatura não tem a ambição de resolver os enigmas ou curar as dores do mundo, mas certamente favorece compreensões, desvelamentos e enfrentamentos.

Este projeto reuniu alunos e egressos dos cursos de Pedagogia e Psicologia da UFG, alunos e professores do curso de licenciatura em Pedagogia do IFG (Câmpus Goiânia Oeste), professores da Rede Municipal de Educação de Goiânia e outros interessados, num trabalho coletivo de incentivo ao literar na/com a infância. Para a concretização das atividades o projeto foi organizado por meio de grupos de trabalho que desenvolveram: 1) Diagramação/Divulgação do material produzido pelo projeto; 2) Curadoria de links, sítios de contação de história e livros disponíveis nos meios digitais; 3) Seleção semanal de temas/títulos e elaboração de propostas de incentivo à leitura e diálogo com as crianças; 4) Gravação de sessões de contação de histórias; 5) Leitura dos títulos escolhidos e efetivo diálogo sobre a leitura com as crianças – “Literar em campo”.

Como o projeto ocorreu em período de distanciamento social em virtude da pandemia de Covid-19, todas as atividades foram realizadas remotamente pelos participantes: foram desenvolvidas mídias sociais do projeto, envolvendo as plataformas Instagram, Facebook e Youtube, e um canal de comunicação foi estabelecido a partir do WhatsApp para que os conteúdos pudessem ser enviados com mais facilidade, principalmente para a parcela do público que não possuía acesso às referidas redes sociais.

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Fundamentados em Sartre (2006) e em Cândido (2002, 2011), acreditamos que o tema da literatura sempre foi o homem no mundo. Assim, a literatura testemunha cultura e é um valor e direito humano. Britto (2009, 2012) afirma que é preciso valorizar a literatura como possibilidade de realização da liberdade e do autoconhecimento e como prática social circunstanciada que favorece o alargamento do espírito e das possibilidades de atuação e intervenção na sociedade: “Disso se pode concluir que promover a leitura seria promover uma forma de pertencimento crítico ao mundo. Um valor, portanto. Um valor que carrega um princípio de humanidade e que implica, mais que o simples hábito, uma atitude” (BRITTO, 2012, p. 29).

Assim, a experiência de leitura revela-se na partilha entre o ouvinte e o contador da história, o que pode ocorrer, por exemplo, entre o professor e o aluno, ou entre familiares e crianças, numa experiência de mediação, de interação com o texto e pelo texto, de reconstrução da narrativa. Esse aspecto é importante, pois é fundamental que os mediadores da leitura desenvolvam a noção de que sempre é preciso interrogar o texto, “analisar todos os aspectos da configuração textual” (MORTATTI, 2001), para que a leitura seja crítica, aberta a possibilidades criativas e interpretativas, e não instrumental. Assim, um livro não precisa ser didático para “ensinar” algo, da mesma forma como não deve ser prescritivo, sobretudo o livro literário.

A ideia de literar que fundamenta o presente projeto se distancia, portanto, de uma concepção instrumental de leitura/literatura, bem como de uma ideia de autoajuda (SANTOS, 2015). Entende-se que:

Literar é criar o novo. É ler com novos olhos, é apresentar diferentes perspectivas sobre um mesmo assunto e levantar um questionamento crítico sobre aquilo. Literar é ser neologismo: reagrupar partes e dar nova identidade ao todo. É estimular a leitura a partir do próprio ato de ler. É mostrar que a literatura nunca cai em desuso, e que há sempre algo novo a ser descoberto e explorado. (MORAIS; ROCCA; MARCATTO, 2020).

O ato de literar compreende, portanto, uma visão ampla de leitura e de promoção de ações de leitura que se referem à “inclusão do sujeito num determinado ‘modo de cultura’ e na disseminação de hábito, práticas e formas de cultura mais densas e elaboradas” (BRITTO, 2012, p. 28). Essa ação remete ao sentido do humano e da pessoa completa, como lembra Wallon (2007), que afirma que os indivíduos se constituem no entrelaçamento de aspectos motores, cognitivos e afetivos, sendo que é exatamente à emoção que compete o papel de unir os indivíduos entre si, constituindo-se como seres sociais.

Por fim, como afirma Britto (2018, p. 28) a escolha dos textos literários deve se dar com base em critérios como:

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Textos com intensidade e densidade cultural; Textos que provoquem reflexão metalinguística e o gesto epilinguístico; Textos que propõem experiências rítmicas, rímicas e prosódicas; Textos que projetam e provocam sentimentos – investimentos subjetivos, processamentos psíquicos; Textos que instigam a invenção e a imaginação de coisas, lugares, bichos gentes e acontecimentos; Texto com linguagem que contrasta com a linguagem comum e a linguagem infantil. (BRITTO, 2018, p. 28).

Este foi o desafio: escolher textos cuja leitura fosse formativa em um sentido amplo, auxiliando inclusive na “formação do gosto” que, conforme argumenta Britto (2012, p. 28), “não é a manifestação de determinações biológicas ou genéticas nem fruto de uma aprendizagem autodirigida e imanente; gosto se aprende, se muda, se cria, se ensina”.

Segundo Saldanha e Amarilha (2016, p. 395), “um professor que conhece a relevância da literatura para a formação humana e degusta o texto literário estará mais preparado para formar leitores de literatura, sobretudo para aqueles que estão fazendo o rito de passagem para a cultura letrada”. E a perpetuação dessa cultura pela via da arte de ler e contar histórias está estritamente vinculada ao seu valor nas relações humanas, nos meandros da educação formal e não formal.

O literar em ação

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As ações do Literar transcorreram de junho a novembro de 2020. Semanalmente, um calendário editorial de postagens foi elaborado com materiais escolhidos, sugeridos e desenvolvidos pelos participantes do projeto, de forma a tecer um eixo temático que criasse conexão entre os conteúdos abordados. As produções foram elaboradas a partir de grandes blocos de temas, e o tempo designado a cada um foi estabelecido a partir da relevância para o período e do próprio desejo dos participantes de produzir sobre eles.

Alguns dos temas foram estabelecidos desde a gênese do projeto, levando em conta o que os participantes consideraram como essencial para o enfrentamento do período de isolamento e das consequências da pandemia. Outros surgiram organicamente, frutos de experiências de membros, datas comemorativas ou atravessamentos inesperados na realidade. Em ordem cronológica, os temas foram: O que é literar?; Ser criança; Amizade e saudade; Medo e (des)conhecido; Brincadeiras e férias em casa; Folclore brasileiro; cordel; Infância e natureza; Diversidade; e Continue a literar.

Após a apresentação inicial do projeto e da proposta de literar (no mês de junho de 2020), abordamos a infância como um processo cultural e simultaneamente único para cada criança. O intuito foi estabelecer uma percepção diferenciada da experiência da infância, de modo a convidar o público a se deparar com suas próprias condições e significados construídos para si. Essa pavimentação foi também base para a provocação da curiosidade, da criação de símbolos e das potencialidades das crianças, ainda que tenha servido também como estímulo para que os adultos e participantes observassem a realidade com um novo olhar.

Depois, em julho, momento em que a pandemia já se estendia por alguns meses e as crianças se depararam com a incerteza dos reencontros com colegas, amigos, professores e familiares, vimos a necessidade de indicar possibilidades de conexões que extrapolassem os limites do contato físico. Além disso, a saudade, compreendida também como um luto relativo à rotina que incluía laços já estabelecidos, adquiriu novos contornos durante a pandemia. Esse foi o gancho para o tema seguinte, no qual empreendeu-se uma tentativa de criar bordas para os diversos lutos e medos suscitados pela possibilidade de contaminação pela doença, pela perda de pessoas, experiências e contextos e pelo desamparo frente ao (des)conhecido. Ao apresentarmos a concepção de que o conhecido está contido no desconhecido, pretendeu-se estabelecer que, apesar da aparente falta de referências frente à pandemia, seria possível encontrar relações com outras experiências já vividas, retomando afetos e maneiras de enfrentamento.

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Com o início das férias de julho de 2020 e sua não concretizada promessa de liberdade e exploração do mundo fora das paredes residenciais, foi necessário abordar a desilusão frente ao novo formato do período: agora em casa e somente com a família. Decidimos fomentar a criatividade e as possibilidades de (re)exploração não mais do fora, mas do dentro. Foi também nas férias que conseguimos convidar outros participantes para o projeto em formato de lives, ou transmissões ao vivo, a partir das mídias sociais. Foi possível, assim, realizar tardes de brincadeiras e canções, que contaram com presença significativa do público.

Ao pesquisar e elaborar o conteúdo para as férias, chegamos à conclusão de que muitos brinquedos, passatempos e propostas de lazer remetiam ao folclore brasileiro. Com a aproximação de agosto, mês em que usualmente o folclore é celebrado, decidimos dedicar espaço às manifestações culturais constitutivas de nossa identidade pessoal e sociocultural. O mergulho nesse baú de memória e história empreendeu apresentar facetas regionais e culturais que pudessem despertar novas irrupções do simbólico e do imaginário no dia a dia do público. Nesse sentido, logo seguiu-se para o trabalho do tema cordel, conectado à cultura brasileira. A apresentação de diferentes formas de prover sentido e simbolização à dura realidade foi importante para a valorização das diferentes formas de enfrentamento, míticas e/ou poéticas, desenvolvidas pelo povo brasileiro.

A chegada da primavera, em setembro, suscitou produções relativas à descoberta da natureza, mesmo que de dentro de casa, e ao desabrochar de novas possibilidades. A indicação de diversos tours virtuais, vídeos e livros foi fundamental para possibilitar o conhecimento sobre animais, plantas e ecossistemas, assim como a relação indivíduo-meio ambiente. Também foi possível realizar uma live com uma escritora de livros infantis voltados à natureza.

O Dia da Árvore, 21 de setembro, que é também o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, marcou o início da temática de diversidade. A eleição coincidente da data remete à expressão da diversidade e ao contínuo nascimento para conquista e florescimento de reivindicações. Assim, procuramos explorar não somente a diversidade no que tange diferenças particulares e pessoais entre sujeitos, mas também em relação a inúmeros fatores, como história, faixa etária, condição orgânica ou de saúde, tipo físico, contexto sociofamiliar, classe social, cultura, educação e experiências subjetivas. No âmbito desta discussão, realizamos um diálogo, também em formato de live no Youtube, com uma professora especialista nos temas educação especial, inclusão e autismo, participante do projeto.

Ao fim, na abordagem da última temática, objetivamos incitar o público a criar novas maneiras de continuar a literar, com a divulgação e elaboração de dicas, indicações e conteúdos voltados para os professores, famílias e interessados por literatura infantil. O propósito de finalizar o projeto desta forma foi o de deixar um legado, não somente para o público como também para os participantes, transformadores e transformados por essa experiência. A disponibilização de todo o conteúdo neste e-book facilita ainda mais o acesso e divulgação e é parte do convite feito pelo projeto, para que todos continuem a literar!

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