À guisa de conclusão: continuidades do Literar
É inegável que, apesar de ter como objetivo primordial o amparo às crianças na elaboração do período pandêmico vivenciado, o projeto teve resultados colaterais em seus participantes. Contar histórias a partir de livros de forma a não ferir direitos autorais fez com que fossem desenvolvidos artifícios e estratégias criativas, criando uma versão como que autoral, uma “tradução” da história a partir da subjetividade de cada contadora. Buscar, sintetizar e desenvolver listas de títulos, obras e peças artísticas de outras mídias, como vídeos, músicas, pinturas e esculturas referentes a cada tema, levou as responsáveis a criar conexões com a arte e enriquecer seu repertório. Desenvolver textos e imagens para as postagens possibilitou a expressão de afetos e conteúdos através de outras linguagens, articulando conhecimentos científicos, literários e artísticos em geral. De maneira similar aos delicados processos de elaboração de design gráfico e ilustração para as obras de literatura infantil, foi necessário desenvolver um olhar pictográfico representativo. Portanto, ainda que estivéssemos responsáveis por variadas funções, o contato constante com a literatura em suas diversas esferas, abrangendo todas as etapas de trabalho do projeto, trouxe também uma “fuga estética e poética” para cada uma de nós, participantes.
Como referem Barros e Azevedo (2019), o trabalho com a literatura que envolve temas considerados “difíceis” serve para propor reflexões e questionamentos sobre temas que os adultos tendem a afastar das crianças, ainda que devido a justificativas de proteção. Entretanto, a evitação ou esquiva desses assuntos não está restrita à relação com as crianças. Percebemos que algumas temáticas enfrentaram mais obstáculos em sua produção no grupo, indicando, para além das dificuldades e processos pessoais de cada participante em relação ao contexto de pandemia, a marginalidade na qual estão inseridas. Explorar a morte, o luto, a angústia, o medo, e até o desenvolvimento de um posicionamento crítico com o qual abordar temas como diversidade e natureza, permitiu a percepção de que é necessária uma escavação nas prateleiras de bibliografia infantil para encontrarmos possibilidades imaginativas para além do senso comum e da literatura infantil de autoajuda.
Nesse sentido, é preciso ressaltar que as escolhas relativas aos títulos para contação de histórias ou para recomendações de leitura, feitas no âmbito do projeto, foram sempre pautadas pela noção de que é preciso trazer reflexões para o universo infantil, sem censura que busque o "politicamente correto" que, de acordo com Brenman (2012), acredita em um ideal de não perturbação da alma infantil, como se a criança não vivenciasse tristezas ou não experimentasse frustrações. O autor lembra que a defesa de que certos assuntos sejam evitados na literatura infantil e infantojuvenil tem como princípio a noção de que se deve dar às crianças "[...] certas doses de felicidade enlatada, narrativas que anestesiam as pulsões monstruosas dos nossos infantes" (BRENMAN, 2012, p. 216). Ao contrário de esconder ou anestesiar, o Literar teve como princípio a noção de que quanto mais se lê e conhece livros infantis, mais é possível impressionar-se com a força, poesia e simplicidade complexa das crianças, incluindo sua força criadora de novas palavras para antigos sentimentos.
Nessa perspectiva, esperou-se mobilizar professores, em formação e em atuação, no ato de literar para e com as crianças. E agora, a partir da provocação para a literatura infantil e suas possibilidades pelos conteúdos desenvolvidos, almejamos que o projeto não finde com seu término oficial, mas que tenha depositado sementes e despertado curiosidade nos participantes e no público. As postagens finais do tema “Continue a literar” permitem que professores e famílias criem seus próprios “momentos literar”, seja em clubes de leitura, seja com visitação a bibliotecas e livrarias infantis ou até mesmo com a simplicidade de um momento compartilhado de contação de história. É importante que a ideia de que a literatura está sempre posta como possibilidade, como meio ou como fim em si mesma nos mais diversos contextos, tenha ficado registrada a partir da multiplicidade de expressões e formatos apresentados no material desenvolvido e disponibilizado neste e-book.
Durante o projeto foram produzidas mais de cem (100) postagens com textos, poemas, vídeos e sugestões sobre literar. Em termos quantitativos, as contações de histórias veiculadas no Youtube somam mais de sete mil (7000) visualizações. Com a participação na Semana do Bebê (programação da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia) estivemos presentes em mais de noventa (90) instituições de ensino da cidade, abrangendo todas as regiões de Goiânia. Além disso, participamos de programas na TV UFG e assim levamos o convite do Literar para famílias e educadores de todo o Estado de Goiás. Tais dados evidenciam que o projeto alcançou êxito, pois facilitou o acesso a links de acervos de livros e contações de histórias disponíveis gratuitamente na internet, assim como possibilitou a divulgação da literatura infantil em geral e especificamente relativa à temática do enfrentamento do (des)conhecido.
Somado a isso, o projeto favoreceu adultos (a começar das participantes do projeto) quanto a literar por meio de gravações de novas contações de histórias e por meio de experiências de leitura para e com as crianças nesse período de isolamento social. Possibilitou, assim, que atravessassem essa (des)conhecida pandemia tendo a literatura como aliada, ao passo que também alcançou as crianças com a experiência de ouvir e repensar narrativas.
Assim, o desenvolvimento do Literar deixa em cada um de nós um convite ao mundo da literatura infantil, pois descobrimos aquilo que Lewis (2009, p. 743) já dizia, que “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”. As histórias que contamos falam com as crianças, mas também falam conosco, pois dizem respeito ao que é humano. Então, te convidamos: vamos juntos continuar a literar?
Referências:
BARROS, L. M.; AZEVEDO, F. Literatura infantil e temas difíceis: mediação e recepção. In: KIRCHOF, E. R.; SOUZA, R. J. (Orgs.) Literatura para crianças e jovens: temas contemporâneos. Brasília: INEP/MEC, 2019. p.77-92.
BRENMAN, I. A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil. Belo Horizonte: Aletria, 2012.
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_____. Leitura: acepções, sentidos e valor. Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 21, n. 22, 2012, p. 18-31.
_____. Ler com crianças. Revista Exitus, Santarém/PA, v. 8, n. 3, 2018, p. 17-31.
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_____. O direito à literatura: vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.
LEWIS, C. S. Três maneiras de escrever para crianças. In: As crônicas de Nárnia. Volume Único. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
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WALLON, H. O orgânico e o social no homem. In: ______. Objetivos e métodos da psicologia. Trad. Franco de Sousa. Lisboa: Editorial Estampa, 1975. p.109-120.
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