Licenciatura em Artes visuais Percurso 6
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Ateliê de poéticas urbanas

Autora

Profª Drª Lilian Amaral Artista Visual, Pesquisadora e Curadora Independente. Pós-Doutora com Bolsa PNPD da CAPES junto ao Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.Docente junto ao PPGACV, Disciplina Tópicos Especiais em Arte e Visualidade: Cartografias e Territórios, 2014. Pós-Doutorado em Arte, Ciência e Tecnologia pelo IA/UNESP. Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ?Derivações da Arte Pública Contemporânea?, (2006-2010) e Universidade Complutense de Madrid / Espanha. Mestre em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ?Fronteiras do Visível. Arte Pública na Avenida Paulista: um estudo intervenção na cidade de São Paulo?, (1995-2000). Graduada em Licenciatura em Artes pela Fundação Armando Álvares Penteado ? FAAP, (1981-1986). Pesquisadora Capes/CNPq - GIIP - Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergência entre Arte, Ciência e Tecnologia - IA/UNESP. Coordenadora Linha de Pesquisa Arte e Media City. Membro do Grupo de Pesquisa BR :: AC, Barcelona Reserca Arte Contemporàni. Membro do Núcleo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas da UFG (MediaLab UFG. Integra o Grupo de Pesquisa Design, Arte e Memória: perspectivas contemporâneas, junto à linha de Pesquisa Design e Arte: crítica, curadoria, museus e memória, PPGDesign e Arte, UAM. Diretora e Membro do Comitê Científico do I e II Congresso Internacional de Educação Patrimonial, Ministério da Cultura da Espanha / Observatório de Educação Patrimonial, OEPE, 2012 - 2014. Curadora da Plataforma Paranapiacaba. Memória e Experimentação. PMSA/ IPHAN/MinC/UNESCO (2014/2016). Coordenadora Geral da Rede Internacional de Educação Patrimoniual em contexto iberoamericano . Curadora do Festival Internacional TRANSPERFORMANCE, Oi Futuro, SEC RJ, 2011. Curadora iD Bairro SP#01 Santo Amaro Bom Retiro, 2010 e iD Bairro SP#02 Observatório Bom Retiro, 2011, Ministério da Espanha, CCE SP, SEC SP, Oficina Cultural Oswald de Andrade. Coordenadora projeto de Extensão R.U.A.: Cartografias Inventadas: São Paulo, Barcelona, Montemor-o-Novo, 2012. Prêmio Viagem Intercâmbio Internacional Secretaria do Fomento, Ministério da Cultura, 2012. Curadora Projeto Cartografias Artísticas Contemporâneas, Galeria do Memorial da América Latina, articulada ao projeto de Pesquisa R.U.A.: Realidade urbana Aumentada, IA/UNESP, GIIP, 2013. Curadora da Casa da Memória - Núcleo da Memória Audiovisual da Paisagem Humana de Paranapiacaba / Museu a Céu Aberto, IPHAN/UNESCO. Curadora do Programa Arqueologia da Memória: uma micro história na megacidade, Vila Mariana, 2004 e Nas Trilhas do Paço ? FCC Curitiba / PR, IPHAN/UNESCO, 2008. Dirigiu o Museu Universitário da PUC Campinas (2006 e 2007), tendo criado o Museu Virtual. Professor visitante das Universidades de Barcelona, Politécnica de Valência, do Máster Interuniversitário de Artes Visuales y Educación, Universidade de Girona, e daUniversidade Complutense de Madrid, Es e da Academia de Bellas Artes de Foggia, IT. Ministra conferências, cursos e workshops relacionados à revitalização urbana, memória, imaginário social e práticas artísticas colaborativas. Extensa produção de Vídeos e Documentários apresentados no Brasil e exterior Seminário Internacional Sentidos Tansibéricos, Beja, Portugal, 2008; Jornadas Abiertas Miradas al Arte Público Contemporáneo: Geografias de La Inclusión y Transformación Social, Madrid, España, 2008; Arqueologia da Memória: nas trilhas do Paço, Fundação Cultural de Curitiba/Monumenta/UNESCO, 2008, Acciones Reversibles, ACVIC, HAssociació D´Art Contemporani, Vic, Espanha, 2008. Pesquisadora no Campo da Museologia Urbana Contemporânea com ênfase em Curadoria e processos colaborativos, Arte Pública, Preservação do Patrimônio Material e Imaterial, Educação Patrimonial e Cidades Criativas.

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Apresentação

Esse texto é muito mais um roteiro de ideias e experiências para se pensar o espaço urbano do que propriamente afirmações fechadas sobre poéticas no espaço público e poéticas dele. Isso porque entendemos a arte como provocadora de encontros e esses encontros como constituintes de novas paisagens humanas.

Milton Santos comenta que, quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado e vai, pouco a pouco, substituindo a sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário.

William Michell aponta que a mobilização do público em torno de um projeto de interesse da comunidade é tão importante quanto o resultado por ele desenvolvido, uma vez que problematiza o cidadão-participante em relação à sua realidade cotidiana. Ao ver seu “produto artístico” inserido no circuito urbano e fruído por inúmeras pessoas, o artista/público é levado a refletir sobre as formas de circulação e consumo da arte contemporânea a partir dos mecanismos utilizados pela publicidade e comunicação de massa.

Para conceituar arte pública na atualidade, tema dessa investigação acerca da cidade e do espaço urbano, temos que nos reportar ao passado e atualizar, no presente, o significado e implicações da arte na sua inter-relação com o urbano.

Unidade 1: Arte e espaço público

Esse texto é muito mais um roteiro de ideias e experiências para se pensar o espaço urbano do que propriamente afirmações fechadas sobre poéticas no espaço público e poéticas dele. Isso porque entendemos a arte como provocadora de encontros e esses encontros como constituintes de novas paisagens humanas.

Milton Santos comenta que, quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado e vai, pouco a pouco, substituindo a sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário.

William Michell aponta que a mobilização do público em torno de um projeto de interesse da comunidade é tão importante quanto o resultado por ele desenvolvido, uma vez que problematiza o cidadão-participante em relação à sua realidade cotidiana. Ao ver seu “produto artístico” inserido no circuito urbano e fruído por inúmeras pessoas, o artista/público é levado a refletir sobre as formas de circulação e consumo da arte contemporânea a partir dos mecanismos utilizados pela publicidade e comunicação de massa.

Para conceituar arte pública na atualidade, tema dessa investigação acerca da cidade e do espaço urbano, temos que nos reportar ao passado e atualizar, no presente, o significado e implicações da arte na sua

Conceito de monumento e escultura contemporânea

A interseção entre arte e cultura cotidiana — arte e vida — esteve sempre presente na história das manifestações artísticas, porém positivamente como transcendência e imanência do poético ao sagrado, do decorativo aos rituais. Inicialmente, os monumentos constituíam os elementos do vocabulário da Arte Pública e tinham uma função pedagógica de transmitir valores ligados à celebração, à valorização de temas e personagens ligados às estruturas de poder.

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O monumento tem função informacional. Elaborado para durar, o monumento seria a expressão da permanência, evocando, programaticamente, a projeção de conteúdos emotivos. Os monumentos são construídos como meio de preservar algo, tendo, portanto, função comemorativa, ritualística. Assim, ligam-se a uma rede de atributos e conteúdos simbólicos que extrapolam sua presença física. Segundo o cientista social Jeudy, os monumentos públicos propiciam uma “teatralização social dos valores e “consagram as imagens da memória coletiva para além da temporalidade da vida cotidiana”.

Os monumentos são construções cujo perfil, ora arquitetônico, ora escultórico, mistura cidade e museu. Conforme nos aponta o urbanista Camillo Sitte, os monumentos ocupavam lugar de destaque nas cidades antigas, pois a partir deles é que se estabeleciam os traçados urbanos, absolutamente integrados a eles. As cidades cresciam ao seu redor.

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Monumento é um substantivo que tem origem etimológica no verbo latino monere — significa fazer lembrar, estando relacionado, também, ao termo mausoléu, ou ainda, a museu.

Já a escultura contemporânea não é nem evocativa nem pretende resgatar conteúdos além de sua própria presença, materialidade. Salienta-se a contribuição da escultura minimalista, a partir dos anos 1960, como um momento em que os artistas passaram a incorporar no próprio trabalho certas contingências das experiências perceptuais atinentes ao contexto em que esse se situa. Mudou-se o foco do interior da obra para as condições que a conformam e nas quais se assenta.

A escultura passou a incorporar materiais perecíveis, menos nobres; portanto, o mármore e o bronze passam a ceder lugar ao efêmero e industrializado. A permanência foi substituída pela transitoriedade. Relações entre as formas espaciais e os processos econômicos e sociais que moldam as esculturas passaram a ser destacadas no campo artístico, favorecendo-se a possibilidade de trabalho com a especificidade do lugar da obra como uma prática crítica, articulando as percepções do espaço com percepções históricas, estabelecendo tensões entre espaço e espectador, numa revelação mútua.

Arte pública contemporânea

A Arte Pública contemporânea não está centrada, exclusivamente, no objeto estético, tendo-se expandido para um conceito mais amplo, que incorpora a intervenção no social. Os movimentos políticos e socioculturais que marcaram os anos 1960 até os dias atuais, como o feminismo, a articulação das minorias, as migrações, as questões étnicas, a queda do muro de Berlim, o desenvolvimento tecnológico e a decorrente globalização, alteram os discursos e projetos artísticos na sua interface com a comunidade, problematizando o cotidiano urbano. Como aponta a crítica norte-americana Eleonor Heartney, “uma das características mais importantes da arte recente é o grande número de artistas que incorpora a incoerência da cidade moderna em seu trabalho criando um tipo de escultura social, que define a noção de Arte Pública.” (1989, p. 230)

O excesso das imagens no espaço urbano propicia a perda das referências, obscurecendo tudo o que, porventura, possa funcionar como um marco. Desde os elementos da propaganda até as mensagens de comunicação de massa que povoam o espaço visual da cidade, tudo é fonte de inspiração e informação para obras que, muitas vezes, confundem-se, nesse ambiente, com a propaganda.

Na década de 1980, as norte-americanas Barbara Kruger e Jenny Holzer, por exemplo, utilizam-se dos elementos urbanos e das ruas das grandes cidades para alimentar sua poética e, ao mesmo tempo, muitas vezes, expor suas obras. Nessa perspectiva de atuação, estabelecemos analogias com as formas de reflexão/intervenção com as quais vimos operando nessa investigação. No Brasil, são inúmeros os exemplos nesse sentido. Nelson Leirner foi um dos primeiros artistas brasileiros a utilizar, nos anos 1960 o outdoor para veicular suas obras. O rosto de uma mulher ali impresso em diversas cores foi interpretado como uma propaganda de escola de arte.

Agnaldo Farias. Nelson Leirner. Catálogo da exposição. Secretaria de Estado da Cultura. São Paulo, Paço das Artes, 1994.

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A informação e a comunicação que caracterizam a cidade contemporânea parece emergir de uma lógica própria, aliada que está à sociedade de consumo. Tudo está para ser visto e consumido. Nessa medida, quando os artistas aproximam a arte da cidade, muitas vezes, suas obras são interpretadas dentro do universo da propaganda.

A visibilidade da obra artística não está, contudo, relacionada apenas à sua monumentalidade. A visibilidade é resultado da interação, da apropriação e atribuição de valores, mesmo considerando a mutabilidade de significados atribuídos às obras ao longo do tempo. Conforme nos aponta Abeele:

“a visibilidade não se realiza através das grandes dimensões ou da dureza dos materiais (...) a opacidade original que fez com que os monumentos caíssem na invisibilidade deve ser transformada por um diálogo sincero, através do qual a atitude indiferente do espectador se transforme num compromisso ativo.”

Van den Leeven Abeele. The monument in the XX century sculpture. Monumenta. 19ª. Bienal de Escultura do Museu de Middelheim, Antuérpia, 1987, catálogo de exposição.

Portanto, a visibilidade dos monumentos está relacionada à apropriação por parte do público, à sua função social revigorada. Portanto, arte e comunidade são elementos de uma mesma equação. A historiadora e crítica de arte norte-americana Mary Jane Jacob (1997) refere-se à Arte Pública como um processo de cooperação:

“(...) A obra cooperativa é um processo de troca mútua, um diálogo. O plano de obra do artista deve permitir flexibilidade e mudança. O artista deve constantemente ultrapassar as barreiras que separam arte e vida (...) estabelecendo uma aliança vigorosa entre arte e vida cultural das comunidades com a possibilidade de que artistas saiam de museus e galerias e entrem no espaço público e vivo da cidade, de que eles encontrem sua própria voz artística enquanto ajudam a expressar a voz dos outros.”

Mary J. Jacob, Bienal na Rua. JORNAL DA TARDE. São Paulo, Caderno Especial, Jan., 97, p.08.

Ana Mae Barbosa, educadora e historiadora de arte brasileira (1997), amplia essa discussão, introduzindo o conceito de estética participatória, estabelecendo uma diferenciação entre arte pública e arte do público:

(...) Diferentemente de um trabalho apresentado em um museu ou galeria, a arte do público acontece na via pública, provoca a percepção, inspira, informa e resulta de ou conclama a uma experiência compartilhada. Joseph Beyus fez arte do público e Christo continua fazendo”.

IDEM, p. 05.

Relação entre público e privado

Em meio à atmosfera de mutação e flexibilidade, características da paisagem pública atual, a presença de objetos duráveis, expressando permanência/perpetuidade, tem dado lugar a manifestações do efêmero e do surpreendente. Nesse contexto sem pontos fixos, a arte e a vida públicas vão refazendo suas texturas continuamente, movimentando, com isso, a própria definição de público, assim como a relação entre público e privado que a sustenta.

Nessa trama, a Arte Pública mostra-se como sendo, ao mesmo tempo, específica e temporária. Não vigora, nesse campo, a ideia de exprimir valores eternos para uma vasta plateia nem a expectativa de expressar um tema irrepreensível e acessível a todos. Irreverente a esses aspectos, a Arte Pública contemporânea, frequentemente, suscita controvérsias no âmbito de sua recepção, permitindo-se ocorrer e instalar em lugares indiscretos, marginais e não tradicionais.

Filia-se, historicamente, à escultura ambiental — de grande porte —, não devendo, contudo, ser com ela confundida. Em conotações mais recentes, sua denominação, como sendo “pública” transcende a estrita referência da obra locada em espaços externos nos quais pode ser amplamente apreendida, atendo-se ao seu modo de acesso ou massa de espectadores. Tem sido definida como uma manifestação de atividades e estratégias artísticas que tornam a ideia de público como gênese e tema de análise. Em outros termos, sua adjetivação tem sido construída sobre sentidos, situações ou conflitos urbanos para os quais se volta, e não em função do seu volume de audiência.

Apud PHILLIPS, P. C. “Temporality and Public Art”. H. S. Senie, S. Webster (eds.), Critical issues in Public Art — content, context, and controversy. Nova York, Harper-Collins, 1992, pp. 297-298.

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Noções estéticas idealistas que tratam a arte como “linguagem universal”, assim como paradigmas que afirmam haver na arte uma “essência estética independente”, são inoperantes no confronto com essa prática urbana. Categorias como autor/estilo/obra são esmaecidas em suas acepções tradicionais diante de trabalhos, como “NAMES Project Quilt”, por exemplo, o qual, em 1992, começou em San Francisco com a execução de um painel dedicado a vítima da AIDS e em menos de um ano constituiu-se em cinco mil outros, provenientes de todas as regiões norte-americanas, tornando-se uma manifestação em escala nacional e, posteriormente, internacional. No Brasil, foi realizada a versão “Contato”, desdobramento local do “Cerimonial NAMES”, integrando 30 artistas na realização de outdoors e a comunidade, na criação de centenas de colchas que evocavam o nome de amigos e familiares, portadores do vírus HIV, acompanhado de seminários articulados a uma campanha de sensibilização que envolveu os meios de comunicação de massa, a formação de profissionais da área de saúde. Por onde itinerava, o projeto envolvia a comunidade local, incorporando elementos dos diversos grupos culturais (com ênfase mais no processo que na obra acabada e assinada).

SESC-SP, “Contato – Campanha de Sensibilização sobre a AIDS”, São Paulo, 1995. Iniciativa institucional que ajudou a dar voz aos grupos de portadores e familiares, problematizando, por meio de projeto de Arte Pública, questões relativas à segregação, exclusão, preconceito. No contato com os meios de comunicação e artistas plásticos,foram criadas imagens transpostas para camisetas, postais e outdoors inscritos no espaço urbano. Entre os artistas, eu participei com a criação de uma obra, ”FLUXO” – “releitura” re-contextualizadora do ”Índio Pescador”, escultura de Francisco Leopoldo e Silva, instalada desde os anos 1920 na Avenida Paulista. O projeto teve início na capital e percorreu diversas cidades do interior do Estado e Brasília.

No âmbito da recepção estética, existem aspectos de rejeição e aceitação que têm sido tema de debate público, como ocorreu no caso de Tilted Arc, de Richard Serra. Comissionada em 1979 pela General Services Administration (GSANY), por US$175.000,00, para a New York Federal Plaza, essa obra, instalada em 1981, foi alvo de hostilidade de certas facções de seu público, a ponto de culminarem na sua remoção do local em 1989. R. Cembalest, em “Public sculpture: race, sex and politics”

STORR, Robert. Tilted Arc: Enemy of the people?. A. Raven (ed.), Art in the Public interest. Londres, Ann Albot, UMI Research Press, 1989, p. 269 ss. A partir de então, Richard Serra tem desenvolvido seu trabalho principalmente na Europa.

Para experimentar

Faça um percurso pelas ruas de sua cidade, observando monumentos e esculturas públicas. Observe também outros objetos urbanos, como árvores, muros, placas, hidrantes etc. que possam ser significados. Tente perceber como eles são vistos. Se possível, faça um registro fotogrático do que lhe chama atenção ou procure fotografias antigas que mostrem como eram tais espaços. Depois faça um pequeno texto descrevendo como você (e a comunidade) significam ou significavam as obras públicas e esses outros elementos de sua cidade ou compare o sentido atual com os sentidos atribuídos em outros momentos.

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Visualidade e visibilidade

Configurados no âmbito da experimentação de práticas artísticas contemporâneas que investigam os imaginários urbanos a partir das fronteiras e potências entre linguagens, meios e contextos, muitas produções, como as apresentadas pela Rede Nacional de Artes [Áudio] Visuais, tem como base processos colaborativos com perspectivas de apropriação, pertencimento e ressignificação do patrimônio material e imaterial urbano, encontrando, na arte pública/relacional, sua plataforma de operações.

Tais processos fundam-se na concepção ampliada da Arte como Experiência, tendo os lugares — reais e imaginários — como suporte para criações coletivas que envolvem artistas e não artistas, estimulando a documentação e apropriação crítica e criativa. Do espetáculo à experiência da cidade, passa-se às diferenças entre visualidade e visibilidade, passa-se da cidade ao lugar. Opera-se uma distinção entre visualidade e visibilidade, entre recepção e percepção, entre comunicação e informação. Entre todas essas diferenças, produzem-se metamorfoses do olhar.

Do objeto ao discurso

O movimento em direção à desmaterialização do objeto de arte vai contra a natureza de hábitos e desejos institucionais e continua a resistir à comodificação da arte ao mercado. A arte site specificity (ou sítio específico) adota estratégias que são ou “agressivamente” antivisuais (informativa, textual, expositiva) ou imateriais (gestos, eventos ou performances agrupados pelas fronteiras temporais), pois “a ‘obra’ não pretende mais ser um substantivo/objeto, mas um verbo/processo, provocando a acuidade crítica do observador (não só física), relativamente às condições ideológicas de suas observações”.

Se a crítica do confinamento cultural da arte via instituições foi “o problema crucial” das práticas orientadas pelo sítio, segundo Mwon Kwon, hoje se debruça na busca de um engajamento mais intenso com o mundo real e o cotidiano, o que corresponde a uma crítica da cultura, inclusive de espaços, instituições e problemas não artísticos, o que diluiu a divisão entre arte e não arte.

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Miwon Kwon é Ph.D. em Teoria e História da Arquitetura pela Universidade de Princeton (1998), tornando-se professora assistente de história da arte contemporânea da Universidade da Califórnia (Ucla) no mesmo ano. Foi editora de Documents, revista de arte, cultura e crítica (1992-2004), além de ter colaborado com diversas curadorias no Whitney Museum of American Art, em Nova York. Desenvolve estudos sobre arte e arquitetura contemporâneas, bem como sobre a relação entre arte e cidade.

Revista October 80, primavera, 1997, p. 85-110.

As manifestações recentes de site specificity, preocupadas em integrar a arte mais diretamente com o domínio do social, seja para restabelecer problemas sociais urgentes (crise ecológica, sem-tetos, homofobia, racismo), seja mais genericamente para relativizar a arte como uma entre muitas formas de cultura, tendem a tratar a estética e a história da arte como problemas secundários.

Os trabalhos contemporâneos de site specificity ampliaram sua inserção em termos espaciais, ocupando outros lugares, físicos e virtuais; em termos conceituais, informados por um espectro mais amplo de disciplinas; e em termos de comunicação de massa, sintonizados mais nitidamente com discursos populares. Para além dessa expansão da arte na cultura, que diversificou a ideia de sítio, a característica que distingue a atual arte de sítio específico é o esgarçamento no modo como se relaciona com a realidade do local e com as condições sociais do quadro institucional, ambas subordinadas a um lugar determinado discursivamente, que é entendido como campo de conhecimento de troca intelectual e debate cultural.

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Diferentemente dos modelos prévios, esse sítio não é definido como pré-condição; antes, é produzido como “conteúdo” pelo trabalho e depois, verificado por suas convergências com uma formação discursiva existente. Essas novas práticas refletiram também em questionamentos do próprio sítio específico como um “lugar”, interrogando sua ocorrência em relação aos imperativos estéticos, institucionais, sociais, econômicos e políticos. A partir delas, os diferentes debates culturais passam a ser entendidos como sítios, tomando por sítio desde um conceito teórico, uma questão social ou política, um enquadramento institucional (não necessariamente uma instituição de arte), uma condição histórica, até mesmo formações particulares de desejo.

A arte como experiência, compartilhamento e exercício de alteridade.

Em um panorama complexo como o que se apresenta, a figura do artista mediador, ou, como informa Rita Irwin, o artographer — artist/researcher/teacher — artista/professor/pesquisador ,é elemento-chave nos processos de intercâmbio cultural, compartilhamento de saberes e gerador de experiências, contribuindo para a dinamização das interações e redes sociais por operar na articulação e no agenciamento da criatividade social, ação coletiva e práticas artísticas.

Referência ao conceito de ARTografia [A/R/Tographer – artist/researcher/teacher, termo que designa o trãnsito e deslocamento da figura do artista, pesquisador, professor por contextos que articulam a participação do outro/comunidade como coautor do trabalho criativo e investigativo, termo e prática pedagógica desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Cultura Visual da Univeridade British Columbia, no Canadá, desenvolvido por Rita Irwin no artigo A/r/togrfia: uma mestiçagem metonímica in Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac SP / Edições Sesc, págs 87-104.

O alargamento em relação a afirmação da arte como área do conhecimento tende a potencializar e ampliar a performance mediadora naquilo que ela tem como proposta de prática crítica para promover relações significativas entre sujeitos e contextos. Não corresponde, assim, a uma suposta anulação de conflitos e insucessos. Opostamente, ao abrir mão de estratégias apriorísticas e apaziguadoras, o artista mediador assume e cultiva uma atitude investigativa, de escuta, sustentando as incertezas em lugar de recusá-las, extraindo delas e dos conflitos sua potencialidade criativa e sua força de resistência cultural, atribuindo valor às dúvidas, buscando perceber as singularidades dos sujeitos e especificidades do processo em meio ao qual está imerso e onde opera como agenciador.

Atua, assim, em uma plataforma que, por não estar definida de antemão, pode dar-se a partir dos elementos existentes e com as respectivas características e contribuições, com a duração da interação com os sujeitos e os contextos que os sustentam. A plataforma da mediação que sustenta as práticas artísticas no campo ampliado da cultura, ao agregar e dinamizar os interesses e vozes polifônicas envolvidas, tem o potencial de configurar-se como lugar de encontro, criando arquiteturas de relações.

É nesse lugar transitório e consciente de sua posição interterritorial que o artista mediador busca provocar, estimular e articular os diversos repertórios, códigos e inquietações dos sujeitos em suas relações entre si e com os contextos nos quais se inscrevem. Busca, então, trazer para o lugar do encontro os códigos — linguagens, desejos e visões de mundo dos indivíduos, grupos sociais e contextos –, criando um campo relacional no qual todos esses componentes configuram-se como plataforma sobre a qual se desenvolve o processo e os dispositivos da arte contemporânea como práxis de mediação.

Portanto, os recursos que compõem a referida plataforma poderão, ao longo do processo, produzir novas e flexíveis experiências, espaços de entrecruzamentos, entrechoques, recodificações e negociações.

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Quanto aos contextos, entendemo-los como “categoria” abrangente, podendo incluir conjuntos de saberes, manifestações culturais, produções artísticas, tradições, fenômenos sociais e naturais, objetos, códigos, repertórios, enfim, tudo aquilo que integra os universos culturais, material e imaterial, histórico e conceitual, passível de análise, interpretação e rearticulação. O mediador transita por esses territórios, experimentando estabelecer recortes e investigações em campos e sobre temas de interesse coletivo, desenvolvendo, a cada plataforma experienciada, formas de aproximação e provocação do diálogo entre os sujeitos e o mundo.

O processo de mediação proposto por tais práticas artísticas extrapoladas colocará, em relevo, determinados conteúdos e proposições em detrimento de outros, considerando-se a formação e repertório do artista-mediador. O que está em jogo é compreender seu papel de forma alargada, não propriamente como um especialista nesse ou naquele campo, justamente para nunca perder de mira as zonas de fronteira e intersecção entre os saberes, interterritorialização de espaços e tempos.

O artista-mediador é um observador atento das dinâmicas interpessoais que alinhava os modos de perceber dos sujeitos e os objetos com os quais interage, sendo, também um propositor. Por essa razão, as noções de identidade/alteridade, reciprocidade, negociação, deslocamento, recombinação, flexibilidade, reconhecimento, recodificação e ressignificação lhe são tão caras, posto que contribuam para o agenciamento de experiências coletivas.

Dessa forma, privilegia a experiência, interação e o compartilhamento. Permeada por diálogos, negociações, interpretações, acordos e divergências, a experiência de arte expandida no campo cultural adquire um valor em si, distanciando-se da perspectiva utilitarista e instrumental que tenderia a reduzi-la à mera condição de reprodutora do mercado e sistema das artes ou transmissora de informações e explicações.

Permeada por uma ética do compartilhamento, o artista, nesse contexto, busca deflagrar e impulsionar situações nas quais os sujeitos envolvidos participem de maneira efetiva e singular das experiências e discussões em processo, expondo e contemplando seus múltiplos pontos de vista, instaurando uma integração alocêntrica, que foge de um centro predeterminado e se organiza por meio de centros emergentes e que conta também com a participação do observador e ator para criação de múltiplos centros organizativos.

Parece complicado, mas é esse processo que Ramon Parramon, artista visual e curador de Arte Pública Contemporânea na Espanha chama de Ações Reversiveis e a que chamo de interterritorialidade, que vai além da interdisciplinaridade” . Assim, propicia-se uma pluralidade de falas e movimentos de deslocamento que caracterizam a qualidade da dinâmica da arte mediadora de experiências, proporcionando efetivos espaços de intercâmbio e alternância de hierarquias entre os diversos interlocutores, instigando, assim, a uma escuta atenta e ao exercício de alteridade.

Parramon, Ramon, Acciones Reversibles – Arte, educación y territorio. ACVIC, EUMO EDITORIAL, 2010.

BARBOSA, Ana Mae. “Interterritorialidade na Arte Eeducação e na Arte” In AMARAL, Lilian; BARBOSA, Ana Mae. Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac / Edições Sesc SP, 2009, p. 43.

Imaginários urbanos

Configurados no âmbito da experimentação de práticas artísticas contemporâneas que investigam os imaginários urbanos a partir das fronteiras e potências entre linguagens, meios e contextos, diversos trabalhos apresentados tanto nas Jornadas Abiertas Interculturales: Miradas al Arte Público Contemporáneo: Geografias de la Inclusión y Transformación Social, na Universidade Complutense de Madrid, 2008, quanto no entorno do Seminário Internacional Acciones Reversibles, em Vic, Espanha, partem de processos colaborativos como base para perspectivas de ressignificação dos patrimônios material e imaterial urbanos, encontrando na arte pública relacional, sua plataforma de operações. Tais processos fundam-se na concepção ampliada da Arte como Experiência, tendo o território como contexto para criações coletivas que envolvem artistas e não artistas, estimulando a pesquisa, criação, documentação, difusão e apropriação crítica e criativa.

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Madrid Abierto http://madridabierto.com

Coordenado e dirigido pelo curador independente, filósofo e gestor cultural Jorge Díez, Madrid Abierto configura-se como uma plataforma estável de projetos de arte pública na cidade de Madrid. Projeto estabelecido a partir de convocatórias abertas à participação de artistas de todo o mundo, ocorre concomitantemente à realização da ARCO, Feira de Arte Contemporânea.

Aponta para uma linha de atuação cultural e curatorial mais focada na ideia da cidade como suporte para prática artística, assemelhando-se, de certa forma, ao modelo e procedimentos adotados pelo projeto brasileiro Arte/Cidade, que, de uma maneira ainda que aberta à novas experimentações, aproxima-se da ideia da cidade-espetáculo, sendo por isso, revista e repensada pelo grupo de profissionais que atuam na gestão crítica do projeto, tentando ampliar seus canais de inserção e participação. Estimula práticas emergentes que se engendram de modo fundamental com o entorno urbano da cidade de Madrid, apontando exemplos de uma ampla variedade de artistas e de formas artísticas que estabelecem sua respectiva solidez desempenhando papéis ampliados que aspiram a obter resultados no terreno social do exercício da arte e da participação do público.

Promove a criação e exposição de obras que estabelecem relação com diversas disciplinas e que sejam abertas a colaborações entre artistas, arquitetos, designers, programadores informáticos, cientistas sociais, planejadores urbanos e outros. Centra-se em espaços que têm sido dados como “públicos”, mas que dão sinais de privatização cada vez maiores. Madrid Abierto, segundo Jorge Diez, “aponta questões acerca da combinação de recursos como os métodos alternativos de trabalho entre grupos interdisciplinares ou a forma como podem a inércia e a nostalgia serem substituídas por ferramentas visionárias e inspiradoras que atuem como catalizadores da transformação”.

Ao longo dos anos de 2008 e 2009, o projeto Madrid Abierto, Centros de Cultura e Arte de Madrid, por meio do programa educativo desenvolvido a partir das Jornadas Abertas “Miradas al Arte Público Contemporáneo Geografías de la Inclusión y Transformación Social” por nós propostas e organizadas, ampliaram suas conexões e inserções no tecido vivo da cidade e do circuito de arte local, formulando propostas relacionais que passaram a contemplar as múltiplas demandas culturais, criando dispositivos de diálogo com a diversidade de grupos sociais que integram as tessituras urbana e humana, configurando um renovado campo de prática estética que, por sua vez, podem inspirar, incidir e configurar novas cartografias culturais contemporâneas.

Investidos de uma nova atitude estético-crítica pautada numa maior proximidade entre arte e política, identificamos, por meio de inter[in]venções, percursos e composições urbanas, “a concepção da arte calcada no enraizamento das práticas sociais coletivas, indicando uma relação produtiva entre arte e gestão do espaço público (...) resultando em invenções criativas para formas do habitar” (Veloso, 2004-5, p. 113).

Apresentam uma visão dialógica de espaço da arte, vida cotidiana, corpo e lugar, acreditando, firmemente, que é possível construir e reconstruir outros tipos de cidades, reais e imaginárias. Na (re)invenção da cidade, o urbanismo cidadão é exercido pelos habitantes e potencializa os imaginários urbanos (Silva, 2001). Estudar os urbanismos cidadãos é não somente examinar práticas cidadãs na construção de identidades sociais e de ações contra os poderes, mas uma intenção de compreender esses novos modos de apresentação cidadã que consolidam ou desafiam os modos estabelecidos de viver o presente e de imaginar o futuro.

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No que tange ao direito à cidade, podemos entender que a gestão participativa está no centro de todas as questões que afetam seu desenvolvimento democrático, criando o mapa simbólico da cidade para visualizar narrativas em conflito, capturando a imagem e identidade do lugar. Críticas contrárias ao marketing urbano tais como exercícios simplistas e elitistas, emergem, em paralelo, a uma demanda para incrementar o orgulho local e a crença de que, utilizando atividades culturais como elemento catalisador para a recuperação da cidade, pode-se ajudar a criar uma ponte entre as necessidades de imagem externa e identidade local.

Nesse sentido, a produção e representação de uma história e/ou imagem consensual sobre o processo de revitalização urbana podem ser consideradas como uma manifestação-chave da gestão democrática da cidade, criando linhas de atuação que giram em torno das políticas de representação, das práticas de legitimação discursivas e da crítica aos modelos de visualidades curatorial, midiática e urbanística. As mercadorias simbólicas serão lidas a partir de suas relações com as práticas artísticas contemporâneas, com o trabalho criativo e com as novas formas de produção de subjetividades através da representação cultural, dando visibilidade a um conjunto de práticas de produção e consumo das identidades locais — capitais simbólicos culturais — em um contexto bem definido, como o do espaço público intercultural das cidades contemporâneas.

As representações da cidade, fixas ou fluidas, dimensionam características ao mesmo tempo sociais e semióticas. Enquanto sociais, são representações que surgem na cidade e demarcam sua inserção na história do espaço urbano. Enquanto semióticas, são informações/ações que se processam pela cidade que lhes é suporte. Considerando-se que essas informações/ações são fluidas e velozes, elas correspondem aos fluxos que inspiram e patrocinam ações na simultaneidade espaço-temporal que caracteriza os processos eletrônicos da comunicação e são responsáveis pelo diálogo e tensão entre cidades distantes ou próximas no tempo e no espaço ou entre lugares de uma só cidade.

Hábito e experiência representam-se visualmente, porém a natureza da imagem produzida tem ontologias diversas. Essas ontologias permitem falar em visualidade para designar a imagem que se insinua na constatação receptiva do visual físico e concreto das marcas fixas que referenciam a cidade e a identificam, e visibilidade, que corresponde à elaboração perceptiva e reflexiva das marcas visuais que ultrapassam o recorte icônico para ser flagrada em indícios.

Do espetáculo à experiência da cidade, passa-se às diferenças entre visualidade e visibilidade, passa-se da cidade ao lugar e de uma semiótica visual da cidade a uma semiótica do lugar invisível. Opera-se uma distinção entre visualidade e visibilidade, entre recepção e percepção, entre comunicação e informação, entre padrão e dinâmica de valores culturais. Em todas essas diferenças produzem-se metamorfoses do olhar.

A visibilidade do lugar, como criadora de sentidos e significados da cidade e na cidade, leva-nos a rever conceitos de espaço próximo ou distante, local ou global; e, parecendo um que rejeita o outro e se podem anular como diferença. Em cada lugar, processam-se conexões entre lugares próximos ou distantes, vizinhos ou longínquos; em cada lugar confrontam-se diversidades, diferença e identidades. A percepção do lugar não depende da forma na cidade, mas do olhar do leitor capaz de superar o hábito e perceber as diferenças: um olhar que se debruça sobre a cidade para perceber suas dimensões e sentidos que estabelecem o lugar como fronteira entre a cidade e o sujeito atento. Para esboçar uma conclusão, ainda que processual, evocamos as ideias de Lucrecia Ferrara (2003) que aponta ser essa a base epistemológica da visibilidade da cidade pelo lugar, porque, se a visualidade da cidade está nas formas que a constroem, a visibilidade está na possibilidade de o sujeito debruçar-se sobre a cidade, seu objeto de conhecimento para, ao produzi-la cognitivamente, produzir-se a si mesmo e perceber-se como leitor, criador e cidadão.

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Para experimentar

Agora que artista-mediador e a arte como investigação lhes foram apresentados, a proposta é pensar em dupla sobre as temáticas sociais, políticas ou culturais relativas à realidade de sua cidade, do País ou do Mundo. Convide um colega para trabalharem juntos, escolham uma palavra-chave dentro desse universo de temas e discutam ideias e ações, relacionando o espaço público de seu município à palavra ou ao tema escolhido. Não deixem de registrar as ideias.

Interterritorialidades

Operamos com um conceito expandido de Arte com base em ideias concebidas por criadores de imagens, sons, movimentos e textos, confrontadas por críticos, escritores, antropólogos, psicanalistas e educadores, potencializando discussões acerca dos dispositivos de criação, recepção, mediação, ensino e difusão educativo-culturais, aprofundando questões e apresentando experiências cujas origens se dão em outros territórios e contextos e que, no contato intercultural, poderão iluminar novas práticas e reflexões.

Ao atravessarmos domínios, discutimos os mecanismos de produção e apropriação da cultura visual na atualidade, a interterritorialidade das diversas linguagens: verbal, audiovisual, cênica, assim como as diversas mídias e contextos nos quais operam as multissignificações humanas.

Transitar entre territórios converteu-se em condição humana contemporânea marcada pela mobilidade, deslocamento, fluxos e aceleração. Territórios entendidos como contextos definem os lugares de existência. Territórios culturais, étnicos, religiosos parecem definir melhor a noção contemporânea de lugar. Que lugares, num mundo marcado pelo nomadismo, impermanência e simultaneidade, as manifestações artísticas podem ocupar?

Hoje debatemos com muita insistência e clarividência o lugar da arte – fora do museu, no cotidiano — e mais ainda, a própria instituição “museu” se vê pressionada a conquistar um lugar no cotidiano urbano na era do espetáculo, ora confundindo-se, ora competindo com shopping centers. A informação e a comunicação que caracterizam a cidade contemporânea vêm-se tornando cada vez mais agudamente crítica para transcender a sociedade de consumo. Tudo está para ser visto, consumido, assumido ou descartado.

Cada lugar é um mundo

A megalópole constitui-se como entidade urbana específica, própria de um período e do meio técnico-científico-informacional; é espaço heterogêneo e fragmentado; locus de múltiplas racionalidades, espacialidades, temporalidades; locus de blocos de sensação (blocos de infância, de “adultidades”, de trabalhadores, de pesquisadores... nos quais estamos imersos como pessoas). A megalópole é espaço de potencializar densidades, especificidades, diversidades, intercomunicabilidades, interterritorialidades, interculturalidades.

Incorporar a questão do cotidiano e suas práticas permite compreender a realidade dialética interna do espaço megalopolitano: entre a razão sistêmica, de dominação, e o mundo vivido (SANTOS, 1994), atreladas às sensações de corpos em relações, em atos e em situações (num mundo de mudanças constantes).

A metrópole como subespaço tem na rua.praça.pracialidades, sínteses de lugares. Territórios e lugares permitem compreensões maiores do que se tomássemos cada um isoladamente. Conforme Milton Santos, “(...) tudo começa com o conhecimento do mundo e se amplia com o conhecimento do lugar, tarefa conjunta que é hoje tanto mais possível porque cada lugar é o mundo. Daí advém uma possibilidade de ação” (SANTOS,1994, pp. 116-117) e de múltiplas diferenças.

A praça constitui um dos mais importantes espaços, se não o mais importante, para os encontros na esfera da vida pública. Consideramos a praça um lugar simbólico, político, cultural, essencialmente voltado para o encontro. A praça, como espaço, não é apenas forma ou paisagem, cenário ou palco para as ações humanas. A praça é um conjunto indissociável entre um sistema de objetos, de ações, de invenções de pessoas e suas inter-relações.

Podemos formular uma categoria de entendimento do lugar, qual seja, a da “pracialidade”: um “estado de praça”, uma prática espacial , específica da esfera da vida pública. “Pracialidades são concretudes, existências que se situam no tempo-espaço, participando da construção e das metamorfoses da esfera da vida pública“ (QUEIROGA, 2001).

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Praticando a cidade

Tanto os métodos de análise contemporâneos das disciplinas urbanas quanto o que poderia ser visto como um de seus resultados projetuais, a cidade-espetáculo, distanciam-se cada vez mais da experiência urbana, da própria vivência ou prática da cidade. Ser errante poderia ser um instrumento dessa experiência urbana, uma ferramenta subjetiva e singular, ou seja, o contrário de um método ou de um diagnóstico tradicional. A errância urbana seria uma apologia da experiência da cidade, um tipo de ação que poderia ser praticada por qualquer um: um dispositivo para ampliação da percepção.

Os praticantes das cidades atualizam os projetos urbanos e o próprio urbanismo, através da prática dos espaços urbanos. Os urbanistas indicam usos possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. São diferentes ações, apropriações ou improvisações mediadas pelo pensamento crítico apontado pela Arte Pública Relacional Contemporânea que podem extrapolar a circunscrição das experiências nos espaços convencionados ao consumo privado da arte em direção aos espaços da vida, das experiências no espaço público pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam tais espaços em seu cotidiano.

Os significados de uma obra ou ação artística são construídos no encontro entre a subjetividade daquele que a propõe e a subjetividade de cada um daqueles que ativamente a tomaram para si. No entanto, no momento em que a proposição começa a tomar forma e o momento em que é ativada por um e por outro sujeito, deve haver um desejo de alcance público. Quando se decide apresentar, publicamente, o resultado ou o processo de um pensamento é porque se acredita que ele pode ser pertinente para outros. E não somente para aqueles com quem, sabidamente, entendemo-nos e, frequentemente, encontramo-nos, mas também para outros com quem compartilhamos coisas que talvez ainda não tenham nome.

Redes de afetos e perceptos

Os percursos descritos por experiências, como Casa da Memória, ativaram espaços e resultaram em escrituras coletivas, possivelmente incompletas, mas que pretendem dar margem a discussões profundas a respeito do futuro das cidades e, sobretudo, do lugar que os homens devem nelas ocupar.

Com base nos projetos realizados por artistas, curadores, críticos, educadores, gestores e agentes socioculturais nos diversos contextos articulados, bem como nas interfaces estabelecidas em tais lugares (reais e simbólicos), delineamos aqui rotas para possíveis leituras, interpretações e apropriações do sentido alargado dessa “Rede de Afetos”, urdida numa perspectiva interdisciplinar que tem contribuído decisivamente para diluir fronteiras e operar nos interstícios do pensamento-ação e da prática artístico-crítica contemporânea. Criam-se, assim, dispositivos de interlocução, mediação sociocultural e difusão da arte em rede no contexto da vida cotidiana, tecendo arquiteturas de relações, do local ao global.

Delas resultam uma certa “geografia do atrito”, entendida menos no sentido do confronto, mas, ao contrário, no da fricção, provocando encontros e novos sentidos para tais percursos e deslocamentos existenciais e poéticos.

No interior de um amplo espectro de trabalhos realizados em contextos, meios e linguagens tão variadas quanto à procedência e as poéticas de seus autores, encontramos blocos de sentidos e práticas interculturais convergentes, a partir das quais, por afinidades, definimos conjuntos que articulam arte colaborativa, memória e identidade.

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Práticas que investigam o imaginário urbano

Diante de um panorama caracterizado por tamanha complexidade, surgem algumas questões com as quais nos deparamos ao refletir sobre a arte pública:

Qual a possibilidade que ainda nos resta de uma relação estética com as coisas, agora, dentro de um contexto ampliado, a cidade?

Qual é o destino da Arte na era da publicidade?

Como o papel da Arte Pública tradicional alterou-se na cultura contemporânea?

Como pensar a relação da Arte e o público no espaço urbano, uma vez que esse espaço, na atualidade, alterou a lógica do monumento, sendo ele próprio o monumento contemporâneo, instaurando cidades-museu, estabelecendo analogias entre cidade e indústria cultural, turismo e entertainment?

Para pensar tais proposições, alguns métodos/processos de investigação são sugeridos tais como:

Memória

Trabalhos artísticos pautados pela utilização dos meios fotográficos, videográficos, resultando em projeções em espaços urbanos reapropriados, produções que investigaram referências na história oral, em álbuns de família, compondo arqueologias do agora, inscrevem-se nesse conjunto que articula espaços da memória, espaço arquitetônico e espaço da experiência.

A memória é um fenômeno construído social e individualmente, sujeito a constantes transformações, que estabelece estreita ligação com o sentimento de identidade, o qual deve ser entendido como a imagem que um indivíduo ou grupo faz de si, para si e para os outros.

Tempo presente e a história

O mundo contemporâneo caracteriza-se por transformações aceleradas da noção relacionada ao tempo, ao espaço e à individualidade. Todas elas abrigam a figura do excesso, característico da supermodernidade.

O “lugar antropológico” passa a ser definido como aquele que é vivido para quem vive lá e também para aqueles que vêm de fora e tentam interpretá-lo. Tal lugar opõe-se ao que se denomina “lugares da memória”, os quais suscitam a nostalgia, a recordação.

Antropologia do aqui e agora

O etnólogo em exercício é aquele que se encontra em algum lugar [seu aqui do momento]. A pesquisa antropológica trata, no presente, da questão do outro. Ela o trata no presente, o que basta para distingui-la da história. Enquanto no “lugar antropológico” seu habitante “não faz a história, mas vive na história” [práticas socioculturais do presente], nos “lugares da memória” apreende-se “a imagem do que não somos mais”, pois seu significado está na memória, no passado.

Outra noção de tempo presente articula-se com o conceito de história de Walter Benjamim. Em tal conceito, o passado ainda tem algo a dizer, e o presente contém o passado que não foi redimido.

Documentário: realidade/ficção

Olgária Matos vê a imagem localizada a meio caminho entre o sensível e o inteligível. É a “imaterialidade material” (Matos, 1991, p.17) que remete a uma força fora do comum, excedente a si mesma e referida a uma efetuação mágica [imagem no sentido de reprodução, de representação].

Representação

A aproximação do filme documentário com aquilo que se vive ou viveu é o que leva à afirmação de que é nas representações que esse gênero de filme faz que o diferencia da ficção, e não na sua construção como texto, porque ambos são textos.

Diferenciação

Essa diferenciação é importante, mas, com os recursos disponíveis atualmente, o “documentarista/historiador/artista/cartógrafo” (Irwin, 2008) pode alterar de tal modo a imagem, recriar situAÇÕES, que o documentário final não será mais uma representação do mundo vivido, e sim algo que diz respeito ao mundo imaginado.

a/r/tographer — artist-researcher-teacher, proposições de escritura coletiva na qual artista e comunidade são coautores de uma mesma narrativa ou texto. Ver Rita Irwin.

De que outro modo pode um “passado”, por definição constituído de eventos, processos, estruturas etc. não mais perceptíveis, ser representado em qualquer consciência ou discurso, a não ser de modo “imaginário”?

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Documentação: o artista como documentarista ou etnólogo

A Autoria Compartilhada: proporcionada pelo recurso da história audiovisual pautada pelo trabalho coletivo. A montagem: O momento em que se busca uma articulação entre as etapas que a antecederam, envolvendo todos os elementos constitutivos do documentário.

História oral, história audiovisual

A história audiovisual tem forte relação com a história escrita. As palavras faladas, ao serem transcritas, transformam-se em palavras escritas. Logo, constituem-se em meio idôneo de reconstrução da história. Na História Oral em vídeo, a palavra reaparece, com importância vital também, só que a palavra filmada, colada à imagem, quando editada, é colada a outras linguagens, o que resulta em novos tipos de história que os meios audiovisuais podem oferecer, uma História que corre paralela à história escrita.

História audiovisual: propiciada pela mudança de suporte

Ver, conforme Marilena Chauí, é pensar por meio da linguagem. Ver, ainda segundo a autora, leva as pessoas ao mundo exterior, enquanto ouvir leva-as ao mundo interior (Chauí, 1988). Na História Oral em vídeo, ver e ouvir são diferentes faces de uma mesma moeda. A expressão “história visual” guarda certa impropriedade porque a narrativa fílmica evoca outras narrativas ou linguagens para além da imagem, tais como a verbal, a escrita, a sonora e a gestual. Se a denominação de história visual é inadequada ou não, o que importa é que a história que surge do suporte vídeo é diferente da história que decorre apenas da linguagem escrita. No embate entre a história escrita e a história audiovisual, há certa desconfiança, incompreensão ou recusa em aceitar os meios audiovisuais no processo de recriação histórica, pois advém da pluralidade e diversidade metodológica.

Corporeidade, percurso e composição urbana

Investidos de uma nova atitude estético-crítica pautada numa maior proximidade entre arte e política, identificamos um conjunto significativo de propostas que evidenciaram, por meio de inter[in]venções, percursos e composições urbanas, “a concepção da arte calcada no enraizamento das práticas sociais coletivas, indicando uma relação produtiva entre arte e gestão do espaço público [...] resultando em invenções criativas para formas do habitar” (Veloso, 2004-5, p. 113).

Para experimentar

Você experimentou, no trabalho com o colega, propor ideias sobre o espaço público e questões socioeconomico-culturais. Nesse capítulo, ficou de juntar as ideias e a prática. Ainda em dupla, escolha uma das práticas apresentadas para produzir sua ideia. Vocês podem trabalhar com fotos, recortes de jornal ou revista, objetos urbanos, intervenções, participação do público ou o que mais desejarem. O importante é experimentar a produção, significar o espaço público, apropriando-se dele e interferindo nele, e fomentar debates. O ideal é que toda a turma dialogue durante o processo, trocando experiências e dúvidas, para que, ao final, o grupo faça uma curadoria coletiva dos trabalhos produzidos que resultarão em uma mostra real ou virtual. Pode ser num espaço também público ou no polo, por exemplo.

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