Licenciatura em Artes visuais Percurso 5
45

Cultura, Currículo e Avaliação

Autora

Drª Irene Tourinho É Bacharel em Música pelo Centro Universitário - Conservatório Brasileiro de Música (RJ), Mestre em Artes pela Universidade de Iowa, (EUA), doutora em Currículo e Instrução pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e pós-doutora em Cultura Visual pela Universidade de Barcelona (Espanha). Foi Professora Visitante na Universidade de Barcelona (Espanha) e na Ambedkar University (Nova Delhi, Índia). É professora titular aposentada da Faculdade de Artes Visuais (FAV) e do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual. Foi Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual - Mestrado/Doutorado da FAV/UFG (2004-2005 e 2009-2012). Foi Professora Adjunta da Universidade de Brasilia (UnB -1987-1992) e da Universidade de São Paulo (USP, 1992-1996), onde também atuou como vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC/USP). É membro do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) da Universidade Federal de Santa Maria, do Grupo de Pesquisa em Cultura Visual e Educação, da Universidade Federal de Goiás e do Grupo de Pesquisa Transviaçoes, da Universidade de Brasília. É, também, membro da International Society for Education through Art (INSEA), da Rede Iberoamericana de Educação Artística (RIEA), da Associação Nacional de Pesquisa em Artes Plásticas (ANPAP), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED) e da Federação de Arte Educadores do Brasil (FAEB). Tem experiência na área de artes, com ênfase em currículo de artes, atuando e pesquisando principalmente nos seguintes temas: formação de professores, cultura estética e currículo.

Saiba mais

Apresentação

Prezados alunos(as),

O início de uma nova disciplina sempre gera expectativas. Vocês tiveram muitas experiências e desafios, trocaram e conheceram ideias dos colegas, de autores e autoras, refletiram sobre imagens, conceitos e formas de aprender e ensinar arte. As expectativas nascem, antes de tudo, do desejo de aprender, de compreender os sentidos das experiências para nossas vidas pessoal e profissional. Criamos expectativas porque somos sujeitos inquietos, ativos, questionadores. Nesta disciplina, nossa atenção estará voltada para o estudo de relações entre cultura, currículo e avaliação, cujo foco está nas diversas decisões que tomamos, a cada dia, como professores, participantes do processo de escolarização.

Somos sujeitos e produtores de cultura, e nossas expectativas, anseios e desejos são regulados, “filtrados” pelo currículo. Avaliar é traduzir em critérios, críticas e sugestões, acontecimentos do cotidiano escolar. A reflexão sobre alguns desdobramentos dessas ideias é o objetivo desta disciplina. Espero que possam discutir e compreender aspectos do currículo como um sistema de mensagem que constitui identidades nas instituições. Com base nas discussões, espero que re-construam suas experiências estéticas projetando um currículo para uma escola “imaginária”. Detalharemos este projeto mais adiante.

Professora Irene Tourinho

Unidade 1: Construindo a noção de currículo

1.1. Por que estudar currículo?

Nem sempre nos damos conta de que estamos envolvidos, cotidianamente, com as questões de currículo. Muito antes do termo “currículo” tornar-se presente nas discussões educacionais e pedagógicas, professores e professoras se preocupavam com ele através de suas reflexões sobre como organizar a atividade pedagógica e como abordar o conteúdo nas salas de aula. As preocupações com a organização e com o método são, talvez, as que tiveram maior ênfase durante a trajetória inicial desse campo de estudo. Mas o currículo não se resume a essas questões, e estudá-lo significa aproximar-se de uma ampla paisagem onde as ideias que se tem de educação e de escola, apesar de fundamentais, representam apenas uma parte daquilo que a paisagem maior pode mostrar. Isso porque a educação se dá de muitas maneiras, e a escola é um dos lugares onde podemos aprender e, também, um espaço onde coisas imprevisíveis acontecem. Podemos dizer que a escola é um palco — às vezes, pouco iluminado; e, outras vezes, escuro — onde as mais variadas situações tomam lugar, onde se aprende o que há de bom e, também, o que há de ruim.

Dica

Vale a pena ler “Conto de Escola”, de Machado de Assis, para conhecer como, na escola, também se aprende a corrupção e a delação.

46
Conto De Escola — Machado de Assis

A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente, disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior, tinha feito dois suetos e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou, naquela manhã, para o colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada, com cautela, para não ser ouvido pelo mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois, relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

— Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

— O que é que você quer?

— Logo, respondeu ele com voz trêmula.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia, foi a mesma coisa: tão depressa acabei como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

— Não diga isso, murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

— Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.

— Que é?

— Você...

— Você quê?

Ele deitou os olhos ao pai e, depois, a alguns outros meninos. Um desses, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...

— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.

— Então agora...

— Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo com o filho, buscava-o, muitas vezes, com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro e continuamos a ler. Afinal, cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

— Sabe o que tenho aqui?

— Não.

— Uma pratinha que mamãe me deu.

— Hoje?

— Não, no outro dia, quando fiz anos...

— Pratinha de verdade?

— De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

— Mas então você fica sem ela?

— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida, propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, — e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera, e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. - Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

— Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

— Dê cá...

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

— Diga-me isto só, murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo à mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

— Venha cá! bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o Policarpo.

— Eu...

— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

— Perdão, seu mestre... solucei eu.

— Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!

— Mas, seu mestre...

— Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

— Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti à minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão n os pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E, contudo, a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

Fonte: “http://www.dominiopublico.gov.br”, acesso em 06/12/2008.

47
Sugestão de atividade

Como Machado de Assis, através das inquietações de Pilar, distingue situações dentro e fora da escola? Como estas distinções podem ser pensadas nos dias de hoje? Que situações do conto lembram experiências que você viveu na escola? De que forma as atitudes de Raimundo, Pilar e Curvelo poderiam ser incluídas como parte do currículo daquela sala?

Para refletir

Faça um inventário das situações que o conto revela (por exemplo: a pressão e expectativas dos pais sobre Pilar; as avaliações de Pilar sobre a inteligência dos colegas e dele; as observações sobre o jeito de vestir, de olhar e de agir do mestre Policarpo etc.) e reflita sobre como o currículo é um emaranhado que entrelaça diversas questões de ordens diferentes e complexas: sociais, culturais, econômicas, psicológicas, didáticas etc.

Quando falamos que a escola é um palco não queremos dizer que existe ali um público passivo – os estudantes - que se deixa conduzir pelo professor(a). No conto de Machado de Assis fica claro como minúcias do comportamento de ambos - professores e alunos – formam e dirigem ações uns dos outros. São comportamentos, posturas, olhares, falas, entonações, gestos e atitudes, vividas e sentidas a cada dia, que constroem os “espetáculos” da escola. Portanto, o(a) professor(a) não é aquele profissional que caminha à frente, mas aquele que faz a caminhada em conjunto com o aluno.

Assim como a escola, o currículo também é uma construção humana e social. Por isso, o currículo é passível de ser visto a partir de várias interpretações e pontos de vista. Neste sentido, ele é vulnerável às condições de aceitação e oficialização de saberes e práticas em determinados contextos e sociedades. É através do currículo que a sociedade, família, religião, arte, política, cultura, economia e outras dimensões da experiência humana se encontram na escola e contribuem para definir seus papéis e funções. Estudar o currículo é olhar criticamente para ele. É buscar uma compreensão não apenas sobre o que ele é, mas, principalmente, como ele funciona para estabelecer visões de mundo, legitimar valores sociais, estéticos e morais, delimitar saberes e reforçar práticas e atitudes.

Saiba mais

O termo currículo aparece pela primeira vez por volta de 1633 num certificado de Graduação conferido pela Universidade de Glasgow, Inglaterra.

Estudar o currículo significa refletir sobre nossas cumplicidades educacionais e pedagógicas. Significa tentar “desocultar” laços que nos colocam visceralmente mancomunados com determinadas concepções sobre “ser” humano, sobre aprendizagem e sobre conhecimento. Podemos começar este estudo pensando sobre o que entendemos por currículo. Este começo visa levantar alguns pontos de convergência para seguirmos nossa discussão. Antes de continuar, é importante pensar que, para além de definições, nossa curiosidade é saber que perguntas um currículo busca responder. Tomaz Tadeu da Silva escreve que “a questão central que serve de pano de fundo a qualquer teoria do currículo é a de saber que conhecimento deve ser ensinado”.

Referência

SILVA, Tomaz Tadeu da. Teorias do currículo: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p.13.

Retomaremos esta questão central que o autor coloca, mas, primeiro, vamos dar alguns passos neste terreno volúvel, maleável, que é o das definições. Não há apenas um sentido para a palavra currículo e, portanto, as definições também variam. A forma como definimos o currículo diz o que ele é para nós. Podemos, por um lado, entender o currículo como o conteúdo de uma área específica de ensino. Por exemplo, falamos do currículo de geografia, de música, de língua portuguesa ou de artes visuais. Por outro lado, podemos nos referir ao currículo como o programa geral de uma escola ou de um curso universitário. Assim, falamos do currículo da escola tal, ou, no caso que vocês estão vivenciando, falaríamos do currículo do curso de licenciatura em Artes Visuais à distância.

48

Tanto uma visão como outra oferece questões complexas para nossa compreensão. Ambas permitem níveis de ampliação e de redução, dependendo de onde e como você olha. Vejamos: posso falar de um currículo de artes visuais, porém, posso ser ainda mais específica e reduzir meu foco para falar do currículo de artes visuais para o 3º ano do ensino fundamental. Ainda caberia pensar se este currículo está proposto para uma escola urbana, rural, pública, ou outro tipo de escola.

Geralmente, as questões que acompanham a discussão curricular, embora digam respeito a matérias individuais, tomam como eixo de questionamento uma noção de currículo mais ampla, relacionada ao programa geral da instituição. Não fora assim, correríamos o risco de perder os vínculos entre o que deve ser ensinado, onde, para quem, quando e por quê. Correríamos o risco de criar remendos de conteúdos e propostas sem nos atentar para as necessidades e demandas que orientam nossas escolhas e, principalmente, sem considerar o contexto de aprendizagem no qual e para o qual o currículo está sendo proposto.

Saiba mais

A palavra curriculum vem do latim e significa “caminho, trajeto, percurso, pista ou circuito atlético”, e que currerre é uma palavra latina que significa “correr, um curso de um carro, pista de corrida”.

Para refletir

A rapidez das mudanças e transformações que vivemos exige uma constante atualização de informações, conhecimentos, atitudes e práticas. De que maneira a visão de currículo como “pista de corrida” ainda sobrevive e interfere no cotidiano escolar?

Além desta peculiaridade sobre a noção que construímos de currículo, outras questões contribuem para esclarecer o que estamos falando quando pensamos em currículo. Uma delas está relacionada com as imposições de limites aos tipos de atividade que entendemos fazer parte do currículo. Alguns educadores entendem que o currículo compreende apenas aqueles conteúdos explicitados no programa. Outros resistem a esta noção e uma evidência disso é a discussão sobre o chamado “currículo oculto”. Vocês provavelmente ouviram falar deste conceito e, sem dúvida, todos somos afetados por este currículo.

De forma breve, quando falamos de currículo oculto estamos nos referindo às aprendizagens que acontecem na escola, mas que não estão claramente incluídas no planejamento. São experiências que não foram deliberadamente planejadas, mas, nem por isso, deixam de ser significativas e marcantes. Muitos aspectos da vida, como os papéis sociais e sexuais, são aprendidos na escola através do currículo oculto. São aprendizagens implícitas, acidentais, mas que se revelam poderosas na constituição das nossas formas de ver, sentir, valorizar, interagir, desejar, posicionar-se. Nem sempre o currículo é oculto para, ou, de todos. Certas regras e rotinas das escolas são ensinadas deliberadamente, mesmo sem aparecer no planejamento.

Para nós professores, o currículo oculto deve ser alvo contínuo de problematização. Ele sempre existe e não temos como escapar dele; porém, tomar consciência das maneiras como ele opera pode nos ajudar a compreender melhor as implicações que ele tem sobre os acontecimentos cotidianos da nossa prática.

Outra distinção importante para a noção de currículo diferencia o “oficial” do “real”. Esta distinção pode ganhar vários níveis e denominações diferentes. Por exemplo, podemos falar do currículo formal (oficial), aquele que está impresso, documentado, determinado publicamente. Também falamos do currículo praticado (real), vivenciado no dia-a-dia. Já falamos do currículo oculto, mas ainda poderíamos falar do currículo nulo, ou seja, aqueles conhecimentos que são deixados de fora, que não entram na escola.

49

Nas últimas décadas, principalmente após os anos sessenta, muita discussão movimentou a teorização curricular, em parte porque alguns pesquisadores começaram a fazer perguntas-chave: (1) o que conta como conhecimento oficial?; (2) o que conta como transmissão válida do conhecimento?, e (3) o que conta como realização deste conhecimento? Estas questões levantaram não apenas suspeitas sobre as definições curriculares oficiais como mostraram a forma como o poder, as relações de interesse e, também, o mercado, interferem na esfera educacional privilegiando e legitimando alguns conhecimentos em detrimento de outros.

Olho vivo

Vale a pena ler o Capítulo IV – SANTOMÉ, Jurjo Torres. Os Conteúdos Culturais, a Diversidade Cultural e a Função das Instituições Escolares. In: Globalização e Interdisciplinariedade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, de Jurjo Torres Santomé, para refletir sobre as Vozes Ausentes na Seleção da Cultura Escolar.

As três questões apontadas acima dizem respeito ao currículo, à pedagogia e a avaliação, sistemas de mensagens que a escola utiliza e que, na prática, não podem ser separados. Uma questão ainda mais importante que movimentou e movimenta os debates curriculares é saber “a quem” interessa a inclusão de determinados conhecimentos e “a quem” tais conhecimentos privilegia. Fica claro, então, que escolher – incluir e excluir - é dieta básica e cotidiana daqueles que fazem e pensam o currículo. Que fragmentos do conhecimento devem ser retidos e quais devem ser abandonados em favor de novos conhecimentos é outra questão que acompanha a construção curricular.

Para percebermos como muitos temas ficam ocultos ou simplesmente não participam das experiências escolares, vale a pena pensar sobre uma lista de ausências de conhecimentos nos currículos, adaptada para nossa discussão:

as culturas dos diferentes estados brasileiros;

as culturas infantis e juvenis;

as etnias minoritárias e sem poder;

o mundo feminino;

as sexualidades lésbicas, homossexuais, bisexuais, transgêneros e trasnsexuais;

a classe trabalhadora e o mundo das pessoas pobres;

o mundo rural e ribeirinho;

as pessoas portadoras de deficiências físicas e/ou psíquicas;

os homens e mulheres da terceira idade;

as vozes do terceiro mundo.

Cada uma destas ausências silencia vozes e elimina do currículo sua potencialidade para ensinar a aceitar e valorizar identidades múltiplas, diferenciadas, flexíveis.

Para refletir

Pensando na lista de “vozes ausentes na seleção da cultura escolar”, como você avalia a sua formação? Quais destas vozes fizeram parte do seu currículo? Quais você aprendeu através do currículo oculto? Quais ficaram ausentes?

Referência: SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e Interdisciplinariedade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

O currículo como uma prática de inclusão e exclusão, como resultado de relações entre saber, poder e identidade, como um campo de batalha que reflete conflitos diversos e denuncia um projeto de sociedade, cultura e identidades desejáveis são questões que ampliam as nossas responsabilidades como professores. A importância de cada professor no desenvolvimento do currículo ainda é tema que precisa ser estudado com mais atenção. Porém, é indiscutível que nosso papel é fundamental pois somos nós que traduzimos o currículo oficial para a prática, recriando e/ou sabotando as mudanças e perspectivas propostas.

Saiba mais

Horace Mann (1796-1859) é reconhecido como o fundador, no final da primeira metade do século XIX, da primeira Escola de Formação de Professores?

50
Dica de filme

Donde está la Casa de mi Amigo?

Ainda não encontrei ninguém que não tenha gostado deste filme. O diretor, o iraniano Abbas Kiarostami, é reconhecido por entrelaçar ética e estética nos argumentos que desenvolve e, também, por trabalhar com pessoas comuns, que não são atores. Nessa história, você se encantará com a odisseia do menino Ahmed que percorre caminhos insólitos, inseguros e perturbadores para devolver um caderno de tarefas escolares a um colega, evitando que ele fosse expulso da escola. Mesmo que você não encontre o filme dublado ou com legendas em português, não desista! Os diálogos são curtos e você compreenderá a história sem problemas. Tente e se espantará com sua capacidade de seguir e entender a saga de Ahmed, além de se emocionar.

Para refletir

Depois de assistir Donde está la casa de mi amigo?, faça uma lista de palavras-chave sobre o filme. Reflita sobre as questões seguintes e discuta suas respostas com os colegas:

Que pontos de vista são enfatizados no filme?

Que tipos de questionamentos o filme levanta?

Que tipos de “filtros” pessoais (gênero, raça, educação, idade...) interferem na sua compreensão do filme e como?

Como você descreve a relação professor-aluno e a relação entre os alunos?

Construir noções sobre o currículo e entender porque estudá-lo foram os objetivos desta primeira parte. Você percebe como é intricado e complexo falar de currículo? Ao mesmo tempo, como professores, nunca estamos livres dele. Fazemos escolhas todo o tempo e elas vão delineando a “pista” de experiências e convivência entre nós e os alunos. Agora, nesta parte seguinte, vamos pensar sobre questões mais recentes que têm movimentado o campo dos estudos curriculares.

1.2. Que transformações caracterizam o pensamento curricular nas últimas décadas e que temas têm marcado esta teorização na contemporaneidade?

Conforme mencionamos, esta disciplina reflete, com vocês, sobre o currículo como um artefato cultural que inscreve, no processo de escolarização, os ideais, práticas e valores da formação. Inscreve não apenas o que olhamos no mundo, mas o modo como devemos olhar para ele. O termo currículo, como vimos, carrega diversidade e ambiguidade. É claro que esta concepção de currículo como artefato cultural que impregna nossa concepção de mundo resulta de muitos debates e de uma longa história que foi, aos poucos, deslocando as preocupações dos pesquisadores e professores das questões de seleção, organização e método para questões da reprodução social e cultural que a escola, através do currículo, faz acontecer. Entretanto, o currículo não contribui apenas para a reprodução; ele é também um instrumento ativo, produtivo de maneiras de pensar, desejar, sentir.

Antes de destacar algumas transformações mais recentes na teorização curricular, é relevante lembrar que, já no início do século XX, a escola preocupava-se em buscar respostas para os crescentes desafios sociais que marcavam a vida dos indivíduos. Questões econômicas, ideológicas e, com elas, as mudanças nas maneiras de aprender também influenciavam as discussões e definições curriculares. Um nome de destaque naquela época e que ainda hoje inspira fortemente os debates sobre a educação e o currículo é o do filósofo norte americano John Dewey (1859-1952). Através de seus escritos e de sua atuação como professor, ele propôs uma nova concepção educativa - a educação progressiva. Dewey enfatizou a experiência e defendeu a ideia de que a educação é uma reconstrução contínua da experiência vivida. Para ele, os alunos deveriam ser o centro de todo processo educativo e a experiência educativa envolveria, acima de tudo, continuidade e interação entre quem aprende e o que é aprendido.

51
Dica

Para melhor compreender o significado de experiência e sua relação com a educação na concepção de Dewey, vale a pena ler sua conferência que mais tarde virou um pequeno texto intitulado Experiência e Educação. Tradução de Anísio Teixeira. São Paulo: Editora Nacional, 1976.

Para refletir

Pense sobre algumas experiências que você viveu recentemente. Como elas interferiram na sua aprendizagem? Que conexões e links elas sugerem para sua compreensão de temas incluídos nas diversas disciplinas deste curso?

As ideias de Dewey contribuíram muito para questionar uma noção que merece ser retomada antes de prosseguirmos com a caracterização do pensamento curricular contemporâneo. É a noção de accountability, termo que significa “responsabilidade, prestação de contas”. Retomar esta noção é importante porque percebemos que, gradativamente, ela vem dominando políticas educacionais recentes, porém, pendendo mais para o lado da prestação de contas do que da responsabilidade. Na época de Dewey, a noção de accountability já representava uma preocupação da cultura pedagógica norte-americana. As implicações desta ideia de prestação de contas são muitas: a padronização das experiências escolares, a homogeneização dos processos de ensino, a aprendizagem baseada nos conteúdos dos testes etc. Isso não significa que a prestação de contas não seja responsabilidade do Estado e Municípios. Porém, o que está em jogo é como estas prestações de contas são utilizadas, que acompanhamento é oferecido e quem deve ser favorecido com elas. Faça um registro desta ideia para sua reflexão posterior. Em síntese, muito do que pensamos sobre avaliação tem a ver com prestação de contas. Entretanto, no caso da accountability, como vimos antes, há uma predominância, quase exigência, de homogeneização e manutenção de certos padrões. Objetivos, metas e estratégias claramente definidas de cima para baixo, de fora para dentro das escolas, impõem conteúdos, atividades e atitudes que as escolas são obrigadas a cumprir, e a partir das quais serão cobradas. Os currículos nacionais, definição de conteúdos para todo o território do país, representam uma operação nesta direção que favorece o controle e a verificação da aprendizagem, alimentando a noção de accountability. Ao mesmo tempo, os currículos nacionais tendem a esvaziar a autonomia das instituições e de seus profissionais para pensar, desenhar e desenvolver currículos que sejam sócio-culturalmente contextualizados.

Vimos, no início desta seção (1.2) que o pensamento curricular contemporâneo deslocou sua preocupação das questões de seleção, organização e método, para questões de reprodução social e cultural que ele favorece na escola. Lembramos o nome de John Dewey, da ênfase que ele dá à experiência e ao debate acerca das políticas de prestação de contas. Mas isso faz parte apenas de um primeiro conjunto de deslocamentos que o século XX vivenciou. Neste conjunto de deslocamentos, é preciso salientar um caminhar lento, porém determinado, que após os anos sessenta aponta em direção à crítica aos tipos de conhecimento que o currículo privilegiava, às formas como as instituições educacionais se estruturavam e aos modelos sociais dominantes nas escolas. Esta visão crítica do currículo acontece associada a um período de grande turbulência social e cultural não apenas no Brasil, com as lutas contra a ditadura, mas em muitos outros países. É um período de intensos embates pela libertação sexual, de mobilização e manifestação pelos direitos da mulher e de uma agitação dos movimentos de contracultura que mudaram a cara e o jeito de ser de toda uma geração, com impactos nas gerações seguintes.

52

Este contexto de questionamentos sobre o conhecimento validado no currículo é conhecido porque marca uma passagem das teorias tradicionais para as teorias críticas e destas, para as teorias pós-críticas. As mudanças nas discussões sobre elaboração de currículo, sob a perspectiva crítica, foram se articulando com a contribuição de cientistas sociais e da educação, refletindo sobre o papel da escola sem buscar verdades absolutas, mas alternativas para incorporar novos paradigmas sociais. As teorias críticas do currículo questionam a neutralidade ideológica e política de qualquer saber e buscam entender as razões e intenções que orientam as escolhas curriculares no sentido do desenvolvimento de formas democráticas de vida social.

Para construirmos uma visão organizada do que se entende por teoria crítica, vale a pena pensar sobre alguns traços que a caracterizam, conforme expõe Boaventura Santos: (1) uma preocupação epistemológica com a natureza e a validade do conhecimento científico, (2) uma vocação interdisciplinar, (3) uma recusa da instrumentalização do conhecimento científico a serviço do poder político e econômico (4) uma concepção de sociedade que privilegia a identificação dos conflitos e interesses, e (5) um compromisso ético que liga valores universais aos processos de transformação social.

Referência

Santos, B. S. Por que é tão difícil construir uma teoria crítica? Revista Crítica de Ciências Sociais. Ed. 54, p. 197-215.

Uma ideia básica que a teoria crítica assume diz respeito à relação constante e inevitável entre as práticas pedagógicas e as práticas sociais. Esta base de renovação teórica ganhou espaço em vários países de uma só vez, colocando para o educador crítico a tarefa de atuar sobre as injustiças presentes nestas relações entre prática pedagógica e social. Entretanto, o papel do educador crítico não é apenas pensar as mudanças, mas, sobretudo, pensá-las em referência a contextos específicos e não pretendendo atingir uma totalidade. São as teias pedagógicas cotidianas, contingentes e singulares que contam para os processos de mudança que queremos implementar. Esta foi uma ideia importante que a teorização curricular crítica trouxe para nossa reflexão. Também é importante lembrar que o equilíbrio da ação crítica consiste não apenas em inovar objetivando o que deve ser mudado, mas refletir sobre o que precisa permanecer. Neste sentido, tradição e inovação caminham juntas. Problematizar e questionar seriam as duas ferramentas principais do educador crítico e é com elas que enfrentamos e damos as boas vindas às tensões e conflitos sobre a validade de certos conhecimentos.

Três domínios de argumentação formaram a base dos questionamentos que a teoria crítica desenvolveu e que as teorias pós-críticas levaram adiante sugerindo formas de compreender, investigar e identificar. Estes três domínios que fundamentam as discussões são: raça, classe social e gênero. Exploração, opressão e dominação são processos que as teorias críticas e pós-críticas enfatizam como resultado de práticas padronizadas, discriminatórias e de relações de poder que beneficiam certos segmentos da sociedade. Posteriormente, a argumentação pós-crítica chamou a atenção para outros domínios tais como faixa etária, crenças, local de moradia, formas de lazer e outras práticas sociais que também são foco e evidenciam como a dominação e a exploração operam. Cabe a nós, portanto, refletir e compreender os processos que, através do currículo e de mecanismos de poder e controle, vamos sendo o que nos tornamos. Para organizar as ideias que caracterizam a teorização curricular crítica e pós-crítica, o quadro abaixo pode ser útil. Não podemos esquecer que “enquadrar” ideias e conhecimentos é sempre uma redução dos assuntos. Por isso, cada tópico deste quadro pode e deve ser aprofundado e ampliado, incorporando pensamentos que possam expressar detalhes de cada ideia.

53
TEORIAS CRÍTICAS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS
- Análise do currículo fundamentada numa economia política do poder;
- Análise materialista (marxista);
- Hipótese de determinação econômica;
- Marxismo;
- Ideologia.
- Teorização baseada em formas textuais e discursivas de análise;
- Análise textualista/culturalista;
- Hipótese de construção discursiva;
- Pós-estruturalismo;
- Pós-modernismo / discurso.
Dica

Este quadro foi inspirado na análise e discussão que Tomaz Tadeu da Silva faz sobre as Teorias do Currículo no livro que leva este mesmo nome. Vale a pena dedicar um tempo para conhecer como o autor apresenta e explica estas correntes teóricas. O livro é da Editora Autêntica, de Belo Horizonte (MG) e foi impresso em 1999.

Antes de seguirmos para a Unidade II, destaco algumas questões que ganharam força na teorização curricular recente. Enquanto você faz a leitura destas questões, comece a pensar sobre que relações elas ativam sobre o currículo de artes visuais, sua história, tendências e possibilidades.

Uma das questões importantes que tem provocado nossas reflexões curriculares é a distinção, ainda muito frequente, entre conhecimento cotidiano, conhecimento da chamada “cultura de massa” e conhecimento escolar. A investigação das possíveis interpenetrações entre estes conhecimentos tem agitado as ações de professores e pesquisadores. Sabemos que nenhum aluno chega à escola “virgem”, destituído de saberes e fazeres. Conceitos e preconceitos estão continuamente nos constituindo. Os professores também planejam e atuam a partir da bagagem social e cultural que carregam. Assim, entrelaçar estes conhecimentos, muitas vezes não distinguíveis, é tarefa que nos confronta e provoca. Nossa aprendizagem se dá justamente na inter-relação entre estes saberes e é com eles, não apenas a partir deles, que vamos nos reconstruindo enquanto sujeitos que pensam, sentem e agem para transformar realidades. Tomaz Tadeu da Silva (1999), no livro indicado acima, deixa claro que “o que caracteriza a cena social e cultural contemporânea é precisamente o apagamento das fronteiras entre instituições e esferas anteriormente consideradas como distintas e separadas” (p. 147). Muitas pessoas que insistem em distinguir conhecimento cotidiano, da cultura de massa e conhecimento escolar, tendem a pensar a cultura como algo fora do sujeito, algo que está lá – não sei onde – e que precisa ser descoberto, aprendido, apreendido. Esquecem eles que a cultura é um conjunto de valores, hábitos, histórias, formas de sentir e interagir que carregamos conosco e que nos fazem enquanto humanos.

Outra questão que a teorização curricular recente colocou em pauta foi a teoria Queer. O surgimento deste corpo teórico tem como base os estudos gays e lésbicas. As noções de normalidade, singularidade e estabilidade, em relação à identidade, são focos sobre os quais a teoria Queer levanta seus principais questionamentos. Em síntese, a teoria Queer questiona estas noções não apenas com referência à identidade sexual mas, também, à identidade social e cultural. Apesar do caráter depreciativo do termo ‘queer’, o movimento homossexual, “numa reação à histórica conotação negativa do termo, recupera-o, então, como uma forma positiva de auto-identificação”. Estas palavras de Tomaz Tadeu da Silva introduzem a discussão sobre a teoria Queer no texto que está referenciado abaixo. O importante é pensar no caráter cultural das noções de identidade e diferença entendendo-as como processos relacionais e que só existem de maneira interdependente. Em síntese, a ideia principal é compreender, como nos ensina Tadeu da Silva, a necessidade de “perturbar a tranquilidade da normalidade”.

54
Referência

(1) Uma coisa estranha no currículo: a teoria queer. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Teorias do Currículo – Uma introdução crítica. Porto: Porto Editora, 1999, p.109-114. (2) Dias, Belidson. Entre Arte/Educação multicultural, cultura visual e teoria queer. In: p.277-291. Arte/Educação Contemporânea – Consonâncias Internacionais. Ana Mãe Barbosa (Org.), São Paulo: Cortez Editora, 2005.

A ideia de perturbar a tranquilidade da normalidade é muito cara aos professores de arte. Já disseram que uma das piores coisas que pode acontecer a alguém é ser uma pessoa “normal”. Nessa afirmação, “normalidade” tem o sentido de “mesmice”. O sujeito normal (se é que alguém pode ser considerado completamente normal... Vamos lembrar que Caetano Veloso foi astuto quando disse: de perto ninguém é normal!) seria aquele que não surpreende: sempre fala e age em conformidade com as expectativas dos outros. Em contraponto com a mesmice temos o elemento “surpresa”, condição indispensável para uma educação de qualidade – Paulo Freire dizia isso, com graça e lucidez. Entretanto, temos uma tendência a querer formatar as pessoas em padrões que consideramos normais. Fazemos isso na escola quando favorecemos as atitudes “adultas” das crianças recompensando-as sempre que elas agem como se fossem adultas. Esta obsessão pela normalidade nos leva à pretensão de poder provocar um curto circuito na energia que dá corpo à liberdade – coisa impossível – e, ainda, a desconsiderar a diversidade como elemento gerador de possibilidades de diálogo e caminhos de ação e transformação. Na próxima unidade vamos reunir algumas ideias, observações e orientações para pensar a arte no currículo escolar.

Unidade 2: Revisitando ênfases do currículo em arte

2.1. Como podemos refletir sobre a arte no currículo escolar?

Uma primeira ideia que pode nos ajudar a refletir sobre a arte no currículo escolar nos foi apresentada pelo professor inglês Ivor Goodson, teórico renomado do currículo com alguns livros publicados no Brasil. Num texto que ainda não foi publicado, ele faz uma análise que coloca em jogo a relação entre status e significado das disciplinas escolares.

Segundo observa Goodson, as disciplinas que se preocupam com a criatividade e a educação de todos – arte sendo um exemplo, tecnologia outro – tendem a ter seu status e recursos reduzidos justamente porque não estão exclusivamente ocupadas com a preparação de uma minoria profissionalizada. Como nestas disciplinas partimos do princípio de que todos podem aprender, todos podem experimentar, elas recebem menos status na hierarquia do currículo escolar. Talvez, então, de alguma maneira – diz o autor – apesar de todos os problemas de status e recursos que as artes enfrentam, elas ocupam uma posição afortunada em relação às possibilidades educacionais que oferecem para todos os estudantes. Concordando com Goodson, não posso pensar em melhor critério para dar significado a uma disciplina, ou seja, o critério de que elas podem ser úteis a qualquer um, em qualquer momento da escolarização.

O que chama a atenção nesta reflexão é justamente o paradoxo que ela expõe: disciplinas muito significativas podem ter um baixo status na pirâmide do conhecimento escolar. É importante pensar neste jogo entre status X significado porque ele revela muito sobre como a arte foi e vem sendo tratada nos currículos. Pare um pouquinho e pense sobre suas experiências com as aulas de arte na educação básica: quantas vezes essas aulas foram suspensas por motivos menores, inexplicáveis, alheios à vontade dos alunos e professores? Quantas vezes essas aulas apenas supriam a necessidade da escola de celebrar, comemorar, reunir pais e agregar a comunidade? Como e quantas vezes as aulas de arte foram substituídas por outras atividades? Como certas práticas – de colorir, colar bolinhas de papel, fazer cópias – ocuparam o tempo das aulas de arte e resultaram em notas e avaliações que ninguém sabia como apareciam? Quantas vezes você ouviu professores de arte falarem, para você ou para colegas, que deveriam desenhar “mais bonito”, “mais colorido”, “mais alegre”, “maior”, ocupando toda a página?

55

Pois bem, não vamos esquecer que essas práticas denotam baixo status da disciplina, mas não eliminam a importância, o significado, que representam para muitos alunos e professores. Também me parece um erro pensar que ao usar a arte para fazer festas, comemorações e reunir pessoas, estamos praticando algo que não ensina, que não forma. Longe disso! Aprendemos muito com essas iniciativas, mesmo que essa aprendizagem não nos aproxime eficazmente de práticas e experiências artísticas como processos de compreensão, crítica e reconstrução social e estética. De toda forma, gosto de lembrar que esta face “social” da arte na escola – torná-la veículo para agregar pessoas da comunidade escolar em torno de uma festa, por exemplo – também demonstra o significado da arte para a educação; ou seja, ela é necessária para a interação das pessoas dentro e fora da escola.

Mas como esta questão das festas e celebrações que professores de arte são muitas vezes “obrigados” a fazer é sempre retomada em discussões de profissionais da área, acompanhada de protestos, quero compartilhar com vocês uma recordação.

Trata-se de uma ex-aluna, professora de arte do 6º ano de uma escola pública que, há algum tempo atrás, indignada com este papel da arte de servir ao calendário de celebrações do currículo da escola (que acaba por se tornar um currículo paralelo), resolveu romper e transgredir esta condição. E assim fez. Preparou com os alunos um conjunto de cartazes, murais, cartões e outros materiais para “celebrar” o dia das mães. Entretanto, colocou o foco no tema “Mãe..., menores!”. Com isso, ela encheu a escola de imagens e comentários reflexivos, além de dados oficiais que reforçavam e levantavam questões sobre a gravidez precoce. Pensem em como a celebração do dia das mães converteu-se numa possibilidade de problematização e conscientização acerca de uma realidade até então intocada na escola. Não apenas esta professora contribuiu para conscientizar os alunos sobre a questão, como também contribuiu para que ela fosse vista com a gravidade e atenção que merece. Este exemplo serve para pensarmos que o caso da participação dos professores na realização das festas escolares pode não encontrar soluções em protestos e sim em propostas. É claro que esta professora teve que enfrentar sérias resistências – de colegas, da diretora e até de pais – mas com persistência e jogo de cintura, diplomacia, cautela, cuidado, ela conseguiu implementar o projeto com adesão e envolvimento dos alunos.

Dica de filme

Sociedade dos Poetas Mortos. Esta produção estadunidense de 1989, dirigida por Peter Weir, foi sucesso retumbante em vários países. A história se passa no final da década de 50 e tem em Keating, professor da reputada e burguesa Welton Academy – só de rapazes - o centro da narrativa. Responsável por um currículo nada convencional e por um método avesso às normas tradicionais de ensino, Keating consegue criar discórdias e polêmicas entre os jovens e suas famílias.

Cenas do filme “Sociedade dos Poetas Mortos” (1989). Distribuição: Buena Vista Pictures / Estúdio: Touchstone Pictures.
56
Para refletir

Apesar do apelo ao prazer de aprender que perpassa o enredo – no caso, principalmente, poesia e literatura - há críticas sobre a forma pretensiosa como o filme celebra a inconformidade em relação à autoridade e aos esquemas tradicionais de ensinar e aprender. Ao mesmo tempo, também se questiona a contradição que emerge entre o desejo de Keating de que seus alunos pensem com autonomia e sua orientação para que todos ajam em consonância com a forma como ele “define” autonomia. Enquanto assiste ao filme, reflita: Que significados sobre currículo, ensino e aprendizagem você constrói e aceita? Que significados você constrói e rejeita? Que outro final você projetaria para o filme?

Voltemos a pensar sobre como podemos refletir sobre a arte no currículo escolar. Fernando Hernandez, professor da Universidade de Barcelona, Espanha, discute alguns mitos que, segundo ele, podem explicar a pouca atenção dada às artes na educação. O primeiro deles diz respeito à noção de criatividade, qualidade apregoada como das mais importantes tanto para justificar o ensino de arte como para orientar seus resultados. O mito da criatividade é profundamente difundido e forte. Constrói-se a partir da ideia de que o sujeito criativo tem um dom especial, inato. E mais: apenas alguns poucos, privilegiados, possuem este dom. Como uma qualidade individual, dádiva da natureza (divina?), a criatividade não pode ser ensinada e, consequentemente, uma educação em arte não é necessária, nem possível.

Para refletir

Busque o significado da palavra criatividade em diversos dicionários. Procure dicionários mais antigos e de origens diferenciadas. Observe os significados da palavra. Quais você entende como relevantes para o ensino de arte? Quais ainda guardam uma acepção ligada ao dom, ao inatismo, à ingenuidade? Pense em como você definiria criatividade. Pense, ainda, que critérios você utilizaria para avaliar um trabalho como sendo criativo. Se você fosse avaliar uma “pessoa criativa” utilizaria os mesmos critérios que elaborou para avaliar um “objeto criativo”? É possível falar em processo criativo de aprender e de ensinar? Como?

Outro mito, relacionado à criatividade, é aquele difundido pela ideia de que arte é inútil. Ou se é criativo e nasce com o dom, ou de nada servirá a aprendizagem da arte. Neste viés, o currículo de arte deveria sempre propor experiências alegres, contagiantes, divertidas, prazerosas. Esta versão de arte como “deleite” desobriga professores e alunos de posicionarem-se criticamente em relação às experiências com e/ou sobre arte. A difundida inutilidade da arte tem um estreito vínculo com a crença na superioridade da razão e o atrelamento da arte apenas com a emoção, com a subjetividade. O fato de que as experiências artísticas integram, conectam, interligam e fazem interagir razão e emoção fica esquecido, de acordo com esta versão. Ganha proeminência um sentido de menos-valia para as práticas subjetivas, como se as práticas artísticas apenas se vinculassem a esse domínio da experiência.

Entretanto, é preciso observar que tanto o mito da criatividade como o da inutilidade da arte não encontram acolhida no pensamento de muitos estudantes. Numa pesquisa que meus alunos estagiários e eu desenvolvemos recentemente, coletamos respostas de mais de cem alunos sobre o que eles gostariam de aprender nas aulas de artes. A análise das respostas mostrou que não apenas os alunos têm interesse em aprofundar e refinar suas aprendizagens sobre, por exemplo, desenho e pintura, como têm uma preocupação com a qualidade dessas experiências e, principalmente, com a utilidade daquilo que aprendem, no futuro. As respostas evidenciaram que os alunos consideram a aprendizagem da arte como possibilidade de atuação profissional, seja como artistas ou como educadores. Assim, os mitos ainda presentes nas concepções sobre arte e seu ensino carecem de investigação, de estudos sistemáticos sobre como alunos e professores pensam o papel da arte nas suas vidas e sobre como aprendem e avaliam sua aprendizagem em arte.

57
Dica

Se você tem interesse em conhecer detalhes desta pesquisa, indico o seguinte texto, de minha autoria: “Ouvindo escolhas dos alunos: nas aulas de artes eu gostaria de aprender...”, publicado em Visualidade e Educação – Coleção Desenredos. Raimundo Martins (Org.). Goiânia: FUNAPE/Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, 2008, pp.71-86.

De qualquer forma, a noção de criatividade é de extrema importância para nós professores. Elaborar currículos de arte significa abrir espaços para que o ensino não seja uma mera transmissão de conhecimentos e sim, a criação de possibilidades para a produção e construção de experiências com, sobre e através da arte. Neste caso, a imaginação é sempre uma aliada da criatividade para a elaboração e vivência de currículos.

Uma das condições para se construir um conhecimento flexível e um pensamento criativo, partes fundamentais da arquitetura curricular no campo da arte, é experimentar a variedade de interpretações e de entendimentos possíveis sobre as manifestações artísticas e culturais. Não há, aqui, um retorno à ideia de criatividade atrelada ao mito da descoberta original, ou da força divina ou, ainda, da inspiração, como sugeri acima. Nem há, nesta defesa da criatividade como foco importante do pensamento curricular em arte, uma concepção atrelada à ingenuidade, à pureza, à falta de informação, como alguns ainda pensam. A noção de criatividade que atende às demandas da pós-modernidade pressupõe uma experimentação responsável, crítica, contextualizada, elaborada, experimentação que não é apenas individual, mas também coletiva.

Para encerrar esta parte, trago a contribuição do espanhol Imanol Agirre que discute e propõe superar preconceitos relativos à criatividade artística considerando oito pontos que traduzem, com clareza e abrangência, os desafios que ainda teremos que enfrentar neste âmbito de investigação para que nossos currículos possam abrir caminhos para práticas inovadoras de ensino, de aprendizagem, de produção e compreensão crítica da arte. Destaco-os aqui pode servir para futuros exercícios de reflexão:

(AGIRRE, I. Teorias y Prácticas en Educación Artística. Barcelona: Octaedro, 2005, pp.200-203).

Para conhecer um pouco sobre como a noção de criatividade acompanha o ideário de professores e alunos, sugiro que você faça uma entrevista com dois professores e dois alunos. Peça a eles uma definição de criatividade e um exemplo de uma pessoa e um objeto que considerem criativos, explicando a razão da escolha. Para encerrar, pergunte qual o papel da criatividade na formação dos indivíduos. Analise os pontos comuns entre as respostas e os fatores que ganham relevância na definição e nas razões para os exemplos que selecionam. Que percepções são privilegiadas? Que elementos vêm à tona na compreensão de criatividade e até que ponto os mitos ainda se mantêm?

58

2.2. Que orientações podem contribuir para pensar a avaliação, o ensino e a aprendizagem em arte?

Não é fácil delimitar o currículo e os saberes que devem fazer parte dele. Além disso, por razões diversas – tempo, espaço, recursos etc. – as questões que deixamos de fora do currículo são sempre “maiores” do que aquelas que incluímos. Michael Young, um dos nomes mais representativos da construção curricular crítica, levanta um questionamento que pode deslanchar muitas inquietações e ansiedades sobre os limites do currículo escolar. Reproduzo abaixo a provocação do autor, pois considero que ela nos acompanha insistentemente, durante nossa trajetória de atuação docente:

A afirmação feita por sociólogos de que todo saber é produzido socialmente para propósitos particulares é, hoje, relativamente incontroversa. Contudo, será que isso quer dizer que o que é considerado saber na sociedade ou o que é escolhido para ser incluído no currículo num determinado momento nada mais é do que aquilo que aqueles que estão em posições de poder decidem ser o saber? (YOUNG, M., 2000, p.13)

Vejam que retomamos questões já apresentadas no início deste módulo: Que saberes são considerados mais importantes? Por quem? Sinteticamente, podemos destacar algumas orientações necessárias para pensar a avaliação, o ensino e a aprendizagem em arte. O perigo de “enquadrar” questões tão amplas, complexas e ambíguas é o reducionismo. Porém, apesar dessa inevitável redução, o quadro abaixo oferece uma visão panorâmica de dimensões e questões referentes à construção curricular em arte, de maneira sucinta e objetiva.

Dimensões

(1) Filosóficas e conceituais.

(2) Afetivas e psicológicas.

(3) Contexto sócio-histórico e cultural das práticas artísticas e investigativas:

(4) Ecologia do sistema educacional

Questões

Como os conceitos de arte e artista têm mudado?

Que objetivos o ensino de arte visa alcançar?

Como as artes são construídas – condições de produção, apresentação, circulação, valoração (pensar nos componentes do ambiente da arte: instituições; mercado; publicações; crítica; pesquisa; curadoria; patrocinadores)?

Como a arte se relaciona com o restante do currículo, com a comunidade e com a sociedade?

Que impactos sociais e culturais podem ser destacados para o ensino da arte?

Com que fins utilizamos a arte na escola?

Como se caracterizam as comunidades – reais e virtuais – com as quais os alunos convivem?

Que conhecimentos e práticas artísticas eles valorizam e desenvolvem?

Quais os efeitos de uma maneira particular de ensinar?

Como avaliamos sucessos e fracassos na aprendizagem da arte?

Que temas, projetos e propostas os alunos oferecem para as aulas de arte?

De que maneiras a arte pode contribuir para a compreensão crítica das realidades dos alunos?

O que vem sendo produzido em arte, como e por que?

Que ambientes e condições têm sido favorecidas e valorizadas?

Como as formas e locais de apresentação da arte têm sido transformadas?

Como artistas profissionais, educadores, estudantes e público têm interagido?

Que misturas culturais, sociais e históricas a arte tem produzido, registrado, impulsionado?

Como a arte está representada no projeto político pedagógico da escola?

Como tem sido a participação de professores de arte no planejamento curricular?

Que espaços e tempos podem ser ocupados para aprender e produzir arte?

Que parcerias disciplinares podem ser propostas e que projetos multidisciplinares podem ser implementados?

59

Volto a dizer que estas dimensões e questões podem ser ampliadas, revistas, complementadas. Não é possível, além disso, tratar estas dimensões de maneira estanque. Há, por exemplo, focos que não aparecem explicitamente neste quadro mas que representam noções contundentes para pensar o currículo de arte como, por exemplo, o multiculturalismo, o hibridismo cultural, identidades individuais e coletivas, a diferença, questões de raça, etnia, sexualidade, crença, formas de lazer etc. que marcam e configuram jeitos de ser, pensar e sentir que os currículos intensificam, reconstroem, qualificam e revelam. Desenhe seu quadro de questões e discuta com alunos e colegas a validade, significado, representatividade e viabilidade de persegui-las.

Uma das questões do quadro parece ser a única dirigida à avaliação: Como avaliamos sucessos e fracassos na aprendizagem da arte? Entretanto, é bom lembrar que estamos o tempo todo avaliando. É lógico que nossas avaliações rotineiras, do tipo: Será que agi de forma adequada? Será que devo me vestir dessa maneira? Fui coerente na minha argumentação? Disse o que era necessário ou me excedi? – têm outro caráter, impacto e profundidade. Porém, avaliar é uma ação constante na vida docente.

Uma ideia que tem orientado as discussões sobre avaliação é pensá-la não apenas como avaliação “da” aprendizagem, mas, também, como avaliação “para” aprendizagem. Isso faz uma grande diferença na forma de conceber e desenvolver a avaliação visto que não pensa somente sobre o que já foi feito, mas também, sobre o que ainda pode ser feito. Quando pensamos a avaliação desta maneira, uma das abordagens que ganha predominância é a da autoavaliação.

Geralmente, a auto-avaliação tem se centrado nos alunos. Porém, não é essa a ideia que queremos implementar. A autoavaliação tem múltiplas funções, tanto para professores como para alunos: rever e refletir sobre o que foi aprendido, sobre as dificuldades no processo, sobre as questões mais envolventes e sobre os projetos para o futuro. Somente através da autoavaliação os professores podem redirecionar suas práticas e intensificar suas capacidades de observação. Enfatizo esta capacidade de observação porque ela é fundamental no nosso percurso docente e tem sido menosprezada tanto no dia-a-dia da escola como nos cursos de formação e formação continuada de professores. Defendo a ideia de que aos professores em formação e nos processos de formação continuada, práticas de observação deveriam ser privilegiadas. É esta capacidade que impulsiona e refina as decisões cotidianas que temos que tomar nas salas de aula.

Além da autoavaliação, fortemente vinculada à capacidade de observação de ambos, professores e alunos, outras propostas têm sido sugeridas para a avaliação em arte. Algumas tradicionalmente utilizadas, como as provas escritas, ainda oferecem benefícios para a verificação da aprendizagem de aspectos teóricos e técnicos. Os diários de bordo – anotações escritas ou registros audiovisuais sobre as experiências vividas – oferecem contribuições para a reflexão sobre como aprendemos, sobre impactos da aprendizagem e sobre o processo de construção de novas ideias e relações entre conhecimentos. Outra forma de avaliação que vem se tornando cada vez mais comum nas aulas de arte é o portfólio.

60

Através do portfólio, podemos visualizar, analisar e tecer considerações críticas sobre o processo e produtos da aprendizagem. Esse instrumento nos permite perceber como os alunos organizam o conhecimento, que questionamentos levantam e que informações visuais e textuais reúnem sobre determinado assunto. A produção de ensaios e narrativas que podem ou não integrar o portfólio também é uma maneira eficaz de conhecer como o aluno pensa, que argumentos apresenta e que opinião crítica elabora sobre conceitos, temas e produções visuais. Os ensaios/narrativas são comentários curtos com focos delimitados que permitem aos alunos elegerem questões e organizarem suas ideias em torno delas. Os professores também podem escrever e apresentar seus ensaios aos alunos provocando uma discussão, complementação ou pequenos textos “em resposta” ao do(a) professor(a).

Certamente que mostras e exposições de trabalhos de alunos, ou outros (de artistas da comunidade, de coleções dos alunos etc.) são formas de avaliar diretamente vinculadas às especificidades da área. Cabe lembrar que essa modalidade de avaliação pode ter várias etapas, todas elas passíveis de serem comentadas, analisadas e avaliadas criticamente. Ou seja, uma exposição pode começar com um projeto que defina o recorte de obras a serem expostas, a maneira como serão apresentadas, a museografia, os requisitos para montagem e outras possibilidades como luz, cenografia e meios de divulgação, etapas que alunos e professores podem propor, elaborar e realizar coletivamente ou em duplas.

Resumidamente, temos que considerar que as concepções de educação, de arte, de aprendizagem e de ensino são subjacentes aos processos de avaliação. Isso significa que não podemos pensar a avaliação como um processo isolado. Também se avalia a instituição e o sistema. Eles são responsáveis pelo desdobramento das atividades, pela sua efetiva realização e entrelaçamento com as demais propostas da escola.

Nesse exercício de levantar questões que dão contorno às propostas curriculares que você pode projetar, cabe repensar outras ideias que apresento no esquema ao lado.

À esquerda encontramos a referência a “processos seletivos”. Relembramos que o currículo, qualquer currículo, é um processo seletivo contínuo, ativo e absorvente. Intenso. Selecionamos o quê?, como?, por quê?, quando?, por quanto tempo?, de que forma? e para quê? Isso não significa que o(a) professor(a) aja sozinho. A legitimação, institucionalização e operacionalização dos conteúdos e práticas através de processos seletivos dependem de um jogo de poder que compreende, aceita, neutraliza e rejeita desde manifestações culturais mais tradicionais até as inovações experimentais; desde produções artísticas convencionais, individualizadas, até criações coletivas, reais e virtuais. Assim, conteúdos e práticas artísticas que ganham espaço no currículo são experiências culturais que a educação, na sua história e contexto social, legitimou, permitiu que existissem na escola. Podemos nos perguntar, por exemplo, por que certas obras de arte não entram nas salas de aula? As ações de resistência e transgressão também são parte dos processos seletivos que acompanham as construções curriculares.

À direita do esquema encontramos palavras que sinalizam características dessa construção: “aberta”; “dinâmica/plural”; “relatividade/continuidade”, e “finalidade/transcendência”. A relação entre o que pode e deve ser selecionado para o ensino e aprendizagem é aberta no sentido de que não há como dizer onde começa e termina a arte, onde começa e termina a aprendizagem ou o ensino. Também é aberta porque a história retira e inclui certos conhecimentos em razão de demandas e necessidades sociais e econômicas.

61

Os processos seletivos que “criam” as experiências que os currículos incluem e promovem são, ainda, resultado de relações dinâmicas e plurais, pois colocam em jogo interesses, crenças, desejos, expectativas e projetos de uma sociedade. Nesse sentido, os conhecimentos têm significados que são ativos, constantemente reconstruídos, dependentes do contexto e opostos à universalização. Relatividade e continuidade reforçam a existência de múltiplas verdades, múltiplas lógicas e saberes que se entrecruzam. Por último, encontramos as palavras “finalidade” e “transcendência”. Jogo ambíguo, feito e refeito através de discursos – textos, falas, imagens – os currículos de arte têm que lidar, por um lado, com as exigências do sistema educacional em busca de resultados, de fins para suas ações, e, por outro, com a responsabilidade social e cultural de transcender o sistema, transcender as predeterminações do currículo e imaginar caminhos e possibilidades alternativas para construir instituições mais sensíveis aos apelos de emancipação humana.

Unidade 3: Refletindo sobre currículos vividos e praticados

3.1. Por que refletir sobre as experiências que marcaram nossa vida escolar?

Você já pensou nas histórias que aconteceram durante sua vida de estudante? Que acontecimentos marcaram sua trajetória estudantil? Quais deles você vincula a seu interesse pelo ensino de arte? Que imagens e manifestações artísticas tiveram impacto na sua formação? Que professores foram significativos e por quê? Como eles ensinavam? Você já se sentiu discriminado(a) nas aulas de arte ou percebeu algum colega sofrendo discriminação ou sendo silenciado?

Dizem que, geralmente, ensinamos da forma como fomos ensinados ou da forma como melhor aprendemos, ou, ainda, segundo um modelo de ensino de um(a) professor(a) que admiramos. Talvez aconteça uma mistura desses caminhos. Porém, pensar sobre seu jeito de ensinar e seu jeito de aprender é importante porque entendemos o currículo como um discurso que reflete e articula valores e crenças sociais e históricas, da mesma forma que sucede em outros campos da vida social e cultural. Assim, pensamos em currículo não tanto em termos de conteúdos, mas nos efeitos e impactos que ele provoca no corpo, no comportamento e nas relações sociais.

Muitas vezes nos sentimos perturbados com essa ideia de “estar dentro” da própria história, de se ver “com história”, mas essas reflexões nos colocam frente a novos sentidos de participação, responsabilidade e posicionamento crítico. A premissa que guia e justifica reflexões desta natureza é o fato de que todos nós começamos nossa aprendizagem quando nascemos e já não podemos mais falar que nos tornamos o que somos e, sim, que somos o que vamos nos tornando. Nossas identidades são, portanto, mutantes, plurais, inacabadas e, mais ainda, dependentes de nossas interações com o outro.

A participação ativa nos processos seletivos e decisórios da construção curricular exige de nós um olhar atento e detalhado para experiências da nossa vida cotidiana, pois as possibilidades de intervenção e contribuição para a emancipação social dependem desse mergulho crítico nas vivências que vêm nos formando. A dificuldade de selecionar, descrever e explicar certos processos que vivenciamos não deve nos abater. Devemos ser estimulados pela ideia de que nossas relações com o mundo à nossa volta e as definições de possíveis ações sobre ele dependem desse olhar atento e detalhado que direcionamos às nossas experiências vividas.

62

Compreender significados do seu processo de escolarização é um caminho que lhe ajudará a construir questionamentos, a expor razões a partir de uma lógica que é, ao mesmo tempo, retrospectiva e prospectiva, pois oferece consistência e continuidade para sua atuação docente criando relações inteligíveis e sensíveis entre etapas e momentos vividos durante sua trajetória escolar e profissional. Nessa perspectiva de auto-reflexão, de narrar histórias de vida, entrelaçamos trajetos, buscas e sonhos colocando nossas motivações como elementos centrais do currículo. Nesse sentido, a aprendizagem é vista como uma das estratégias que as pessoas empregam como resposta para os acontecimentos de suas vidas, conforme discute Ivor Goodson no seu texto Currículo, narrativa e futuro social.

Refletir sobre as experiências que marcaram nossa vida escolar é, então, uma via de acesso à compreensão do currículo para além das grades, para além dos conteúdos, da prescrição. É uma postura que privilegia interesses e necessidades dos alunos e professores, buscando, através do engajamento e contextualização de experiências vividas, a motivação fundamental para mudar concepções sobre o currículo.

Referência

GOODSON, I. In: Revista Brasileira de Educação. Campinas: Editores Associados, Maio/Agosto, 2007, v.12, n.35, p. 241-252.

3.2. Como construir narrativas que me ajudem a compreender o currículo que vivencio e promovo?

Nessa parte, faço quatro propostas de narrativas individuais com o intuito de contribuir para que você experimente significados com os quais compreende o mundo e intensifique seu comprometimento com objetivos, paixões e propósitos que lhe motivam a ensinar e aprender. Apesar das propostas serem individualizadas, organize maneiras de compartilhar suas experiências e narrativas com colegas, discutindo o processo para realizá-las, os desafios e resultados alcançados.

Proposta I: Escolha e escreva seu Conto de Escola. Pense na sequência dos fatos que configuraram o acontecimento, mas não se esqueça de contextualizar a cena e o desenvolvimento das situações. Não há necessidade de fazer um longo relato, mas é importante que você selecione um acontecimento marcante e que possa descrevê-lo com os detalhes que guarda como mais impactantes. Para ajudar nesse relato, sugiro algumas perguntas: Como era o ambiente? Quem estava presente? Era um dia especial? Que circunstâncias provocaram a situação? Qual foi sua reação imediata? Como se sentiu na hora do ocorrido? E depois? Lembra-se da reação de outras pessoas próximas? Como você analisa a situação neste momento? O que você aprendeu com ela?

Proposta II: Pense em um(a) professor(a) que tenha sido importante para sua formação. Descreva algumas características dele ou dela. Porque e como certas práticas deste(a) professor(a) marcaram seu jeito de ser e de ver o mundo, as coisas, as pessoas? Como você incorporou e rompeu estas marcas? Que relações você pode criar entre este(a) professor(a) e suas motivações atuais? Você se lembra de ideias e pensamentos que ele(a) defendia? Que expressões corporais e faciais ele(a) manifestava?

Caso você tenha acesso a este(a) professor(a), esta proposta pode ser complementada com uma entrevista. Defina um roteiro de três ou quatro temas, para não sobrecarregar o encontro, e inicie a conversa deixando que o entrevistado fale sobre lembranças que guarda da vida docente, sem direcionamentos. Não se prenda ao roteiro, mas não deixe de elaborá-lo para que você não deixe escapar questões que lhe interessem.

63

Proposta III: Escolha uma imagem de sua preferência. Descreva-a como se a estivesse mostrando a alguém que nunca a viu. Pense no percurso que seu olhar desenha para ver esta imagem. Descreva os indícios visuais que provocam este percurso. Imagine como esta imagem está vendo você. Que questões você pensa que esta imagem lhe faria? Por quê? Como você responderia? Que perguntas você faria à imagem? Como ela lhe responderia? Que relações seu olhar pode criar com esta imagem? Que conhecimentos sobre você e sobre o mundo podem ser provocados pela sua interação com esta imagem? O que você faria com esta imagem numa sala de aula? Que outra imagem você escolheria para dialogar com esta? Por quê?

Proposta IV: Escolha algumas fotografias suas (quatro ou cinco, por exemplo) – que você apareça nelas. Faça um relato comentando cada fotografia: Onde você estava? Quando? Por que? Que memórias lhe vêm a mente? O que lhe chama atenção no cenário onde você se expõe? Que experiências afetivas envolvem o momento da foto? Como você vê sua imagem, sua postura corporal, sua expressão, seu figurino? Para quem você daria esta imagem? Por quê? Que modificações você faria nesta imagem? Em que ordem você organizaria as imagens e por quê (não se prenda à cronologia)?

Invente outras propostas. Pense nas questões que elas podem suscitar. Procure se acercar das suas experiências vividas e das de seus colegas. Inventariar as formas pelas quais você já foi avaliado(a), os lugares que já visitou, capas de livros, revistas e CDs que lhe atraíram podem ser sugestões para explorar.

Proposta V: Planeje um mini-currículo de 15 horas, por exemplo, imaginando que você tem qualquer recurso que deseje. Imagine aulas presenciais e virtuais desenvolvendo temas atuais e polêmicos. Não se esqueça de incluir assuntos conflituosos, pois os conflitos são produtivos para nosso crescimento analítico e crítico.

Para encerrar, apresento questões que, segundo Fernando Hernández, podem acompanhar o desenvolvimento de currículos. Pense como você pode explorá-las:

Quem sou eu e para onde eu vou?

Como dou sentido ao mundo e me comunico com ele?

Quais são as minhas responsabilidades em relação à comunidade?

Como descrevo, interpreto e configuro o mundo que me rodeia?

Boas ideias!!!

Referências Bibliográficas

(1) Uma coisa estranha no currículo: a teoria queer. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Teorias do currículo: uma introdução crítica. Porto: Porto Editora, 1999, p.109-114. (2) Dias, Belidson. Entre Arte/Educação multicultural, cultura visual e teoria queer. In: p.277-291. Arte/Educação Contemporânea – Consonâncias Internacionais. Ana Mãe Barbosa (Org.), São Paulo: Cortez Editora, 2005.

AGIRRE, I. Teorias y Prácticas en Educación Artística. Barcelona: Octaedro, 2005, pp.200-203.

GOODSON, I. In: Revista Brasileira de Educação. Campinas: Editores Associados, Maio/Agosto, 2007, v.12, n.35, p. 241-252.

SANTOMÉ, J. T. Globalização e Interdisciplinariedade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

SANTOS, B. S. Por que é tão difícil construir uma teoria crítica? Revista Crítica de Ciências Sociais, 54, p. 197-215.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Teorias do currículo: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p.13.

YOUNG, M. O currículo do futuro: da nova sociologia da educação a uma teoria crítica do aprendizado. Campinas: Papirus, 2000, p.13.