Licenciatura em Artes visuais Percurso 4
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Cultura Popular: É popular? É pra pular? Deslocamentos históricos e conceituais em torno do tema

Autora

Drª Leda Maria de Barros Guimarães Possui graduação em Licenciatura Plena Em Educação Artística pela Fundação Armando Álvares Penteado (1985), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Piauí (1995) e doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (2005). Pós Doutorado na Universidade Complutense de Madrid. Atualmente é professora titular da Universidade Federal de Goiás. Criou (2005/2007) e coordenou o curso de Licenciatura em Artes Visuais na modalidade EAD do programa Universidade Aberta do Brasil (2007-2011). Tem pesquisado formação de professores em artes visuais, arte e cultura popular e sobre o ensino de artes visuais por meio das Tecnologias de Informação e Comunicação - TICs. Foi vice-presidente da Federação de Arte Educadores do Brasil -FAEB vigência 2011/2012. É membro do Conselho Mundial do InSea (International Society for Education through Art) para a América Latina, e membro do Conselheira do CLEA - Consejo Latinoamericano de Educación por el Arte.

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Apresentação

Para tratar deste tema, primeiro quero me apresentar e dizer de forma sucinta como surge meu interesse investigativo e docente por “arte e cultura popular”. É na relação de um tempo/espaço histórico, cultural, estético e pedagógico que tenho me debruçado sobre certos aspectos do popular, tais como as visualidades urbanas – grafites, cartazes, anúncios, murais e outras visualidades fora de contextos urbanos ligados a manifestações de indústrias do viver, como mobiliários, formas de decoração, de vestir, artesanato nas suas diversas formas de produção, os saberes e fazeres ligados a estéticas dos cotidianos e outras experiências, sempre no âmbito da investigação da cultura visual do povo, sob a perspectiva de uma crítico reflexiva dos dados levantados.

Não sou autoridade no popular, nem creio que existam definições fechadas que expliquem do que se trata. Como professora envolvida com formação de professores de artes visuais numa universidade pública, apresento reflexões parciais, frutos de inquietações ligadas a minha docência, a pesquisas, a projetos de iniciação científica, projetos de extensão realizados na Faculdade de Artes Visuais (FAV) da Universidade Federal de Goiás (UFG), onde exerço minhas “professoralidades”.

Também sou docente do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual e, ao longo dos cinco anos de exercício de orientação, tenho abraçado projetos que instiguem e alimentem essas “variações em torno do tema arte e cultura popular” sob a perspectiva da cultura visual. As formas culturais pesquisadas apresentam estéticas que fogem da “arte” com “A” maiúsculo, ou do que é considerado estritamente artesanato, ou arte popular. Procuro com isso visões mais abrangentes de arte, em favor de leituras mais significativas das visualidades da cultura. Assim, entram na minha agenda investigativa uma variedade de manifestações “marginais”, como, por exemplo, os trabalhos manuais, artesanais, cópias, reproduções etc.

Nem todos concordam com essa “miscelânea”. Para muitos, continua valendo a separação entre artes maiores e artes menores, na qual artesanato ou o objeto popular são considerados inferiores esteticamente e, como tal, não podem ser estudados na universidade, principalmente, num curso de artes visuais. Convivi com esses impasses e conflitos na disciplina Arte Popular Brasileira que lecionei nos anos de 1997 a 2000 na FAV-UFG, como relatado na minha tese “A Linha Vermelha do Ensino da Arte” (GUIMARÃES, 2005).

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Em 1999, decidi montar um projeto de pesquisa, que investigasse essas questões, buscando atrair a participação de alunos colaboradores de todos os cursos da FAV, para que através, da experiência da pesquisa, pudessem refletir sobre a importância da investigação do popular sob outras lentes, estabelecendo conexões com as diferentes áreas de formação ou de interesse. Tive a sorte de ter aprovados, simultaneamente, o projeto de pesquisa com alunos bolsistas de iniciação científica (PIBIC) e apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa da UFG. Além dos bolsistas, outros alunos participaram como voluntários, realizando levantamentos fundamentais para as reflexões que hoje estão aqui neste texto.

Enfim, esse projeto procurou abrir brechas conceituais nas áreas de artes visuais/plásticas e do design, ao mostrar a importância de, como diz Ana Mae (1991, p. 34), “de reforçar a herança artística e estética dos alunos com base em seu meio ambiente e o universo cultural da comunidade”. Precisamos conhecer e buscar compreender os códigos visuais e estéticos, seus trânsitos, seus contextos, as inquietações que provocam, as estruturas sociais que sustentam, os desejos que despertam; enfim, investigar como transitam no tempo e no espaço para que façam sentido no trabalho que fazemos como professores de artes visuais.

Ao longo da história, diferentes definições de arte têm criado debates entre críticos e historiadores, geralmente levando a polarizações. Superar essa controvérsia é importante para aproximar a arte que se encontra nos dois lados da tela. De um lado, uma arte de imagens reconhecidas como tal; do outro, vários afazeres humanos não reconhecidos como arte. Proponho que superemos estas dicotomias antigas entre artesanato e artes visuais, costura e escultura, paisagismo e jardinagem (McFee, 1991), em favor de um conceito mais robusto e transformador. Essa visão integra processos criativos menos consagrados e relativiza paradigmas tradicionais. Hoje depois de uma década, vejo que essa discussão continua pertinente e instigando professores de artes que começam a discutir outras noções de artes, mais amplas, mas complexas, menos dicotômicas. O que é muito bom. Mas também a discussão é necessária porque as visões deterministas e naturalizadas permanecem. Assim, penso que as indagações/provocações/informações discutidas ao longo deste texto podem servir para gerar mais inquietações e novas provocações.

Uma questão que se costuma colocar quando defrontamos com o tema é a seguinte: Cultura popular ou cultura das camadas populares? A mesma coisa para arte Popular ou arte das camadas populares? Antes de iniciarmos, a discussão vamos problematizar a nomenclatura “arte popular”. Essa denominação sempre existiu?

Se pensarmos na produção de objetos “artísticos” da antiguidade até a Idade Média, será difícil separamos essa produção em classes tão distintas tais como erudito e popular. Mário Pedrosa (1995) lembra que essa divisão não existia nas civilizações antigas, só aparecendo na época moderna.* “A diferenciação entre ambas nasce com a sociedade capitalista, com a formação da burguesia, com a divisão da sociedade em classes”. Nela se expressa a dominação ideológica e de classe da burguesia (que se identifica com a arte erudita) sobre as classes dominadas e sobre a arte popular de origens camponesa ou proletária.

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Pedrosa lembra-nos ainda que a arte popular nunca participou da historiografia da arte erudita. Mesmo em países como o México, cujas tradições de criatividade popular são tão respeitáveis e tão antigas, a arte popular ficou de fora da história da arte nobre. De fato, como já abordamos na introdução, encontramos referências da cultura popular e de arte popular nos campos da sociologia, antropologia e história.

Professora Leda Guimarães

Unidade 1: Breve rastro histórico das concepções de popular

Em 1846, surge o neologismo folk-lore (saber do povo), campo de estudos até então identificado como “antiguidades populares” ou “literatura popular”. Os interessados por esse campo ficaram conhecidos como Antiquários e foram autores dos primeiros escritos que, no século XVII, retratavam costumes populares, tendo como características o colecionismo, a classificação, o diletantismo e a valorização moral do popular. Em 1870, é fundada a Folklore Society na Inglaterra, com um novo espírito que procura definir o estudo das tradições populares como ciência, estabelecendo metodologias de pesquisa como a etnologia (descrição), evitando assim posturas diletantes e exóticas.

Para os estudiosos do século XIX, a cultura folclórica sofria a ameaça de desaparecimento em função do avanço da industrialização e modernização da sociedade. O historiador inglês Peter Burke observa no seu livro Cultura Popular na Idade Moderna (1989) o surgimento, na Alemanha, de uma série de terminologias para definir as produções populares, tais como: volkislied para designar a canção popular, volksmärchen e volkssage para falar de conto popular e bilder-reimen nomeava versos para imagens. Para Burke (1989, p.29).

[a arte popular] é resgatada das mãos do vulgo para obter um lugar nas coleções do homem de gosto. Versos que poucos anos atrás eram considerados dignos somente da atenção das crianças são agora admirados por aquela simplicidade natural que outrora recebeu o nome de grosseria e vulgaridade.

Conforme o historiador, esse interesse surge justamente no momento em que a cultura tradicional da Europa do Antigo Regime desaparece sob o impacto da Revolução Industrial. Evidencia-se a ideia de que a cultura popular é algo que se opõe à cultura erudita. Surgem as coletâneas de cantigas folclóricas e de contos, como os compilados pelos Irmãos Grimm. As canções populares, a música popular, a xilogravura ganharam lugar de prestígio na ‘classe alta’.

Ou seja, as manifestações populares passaram a ser consideradas elegantes pelos fidalgos, e o povo torna-se objeto de interesse para intelectuais. Esse movimento amplo de descoberta do popular tem raízes estéticas, intelectuais e políticas. O objetivo era construir sobre a singularidade das expressões culturais do povo, a singularidade de cada nação, e o artista devia expressar a individualidade coletiva. O povo era, para os intelectuais, natural, simples, inculto, instintivo, irracional, enraizado nas tradições e no solo da sua região. Três pontos qualificam essa noção de popular: o primitivismo, o comunalismo e o purismo. Primitivismo diz respeito à tentativa de localização da origem das expressões populares em um tempo remoto indeterminado. Comunalismo é a teoria formulada pelos Irmãos Grimm, segundo a qual a poesia floresce espontaneamente, não existindo ator e estilo individualizados. Purismo fala das qualidades da produção popular como expressão da natureza inculta, simples, instintiva e irracional do próprio povo.

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1.1. Popular: primitivo

Em 1871, Sir Edmund Taylor explica, no seu livro Cultura Primitiva, o folclore como sobrevivência de uma cultura selvagem também compartilhada por todas as classes. Toda a espécie humana estava destinada a sair da barbárie para a civilização, no entanto, a classe que detinha o folclore, já tinha parado seu estágio evolutivo. Para ele, o rude camponês serviria de lembrança ao homem educado do seu passado selvagem, ou seja, todos continham um bárbaro dentro de si.

Assim, para diversos autores, enquanto certas “raças” tiveram a capacidade de “evoluir”, outras permaneceram nesse “estágio primitivo”, ou evoluíram, mas não o bastante, tendo parado a meio caminho da condição civilizada. Entre os privilegiados da cadeia evolutiva, a educação era uma ferramenta importante para não deixar aflorar essa alma primitiva. Educação esta, que as camadas populares não tinham acesso, pois eram considerados incapazes de ser educados. Quando muito, poderiam ser civilizados.

1.2. Popular: de povo a multidão (massas)

Com a expansão e intensificação da urbanização, as cidades passam pelo fenômeno da superpopulação. Logo, surge outra noção de popular, aquela ligada à multidão na qual se distinguia povo de massa. “Povo” seria aquela camada rural fadada a desaparecer, não aquela outra que passava a incomodar, com sua presença, a vida nas cidades (veja Figura 1).

Figura 1. Jean-François Millet (1814-1875): “Colheita” e “Rabisco”.

A “não cultura” das massas era vulgar, ligada ao entretenimento. O Livro Cultura e Anarquia de Matthew Arnold em 1869 instaura as bases da cultura popular como cultura de massa, diferenciando-a da verdadeira cultura que teria um caráter desinteressado. Storey (2003) ilustra bem essa “anarquia” que ameaçava as classes dominantes comentando a maneira como Ortega e Gasset, já no século XX, em 1936 referiam-se as massas:

Parte do problema era que tinha gente demais nos lugares que Ortega e Gasset desejava frequentar. Cidade e vilas, hotéis e cafés, parques e praias, teatros e casas de concertos estavam cheios de pessoas. Quanto mais ele olhava, mais ele ficava aborrecido, paranoico e com asco. (pp.24 e 25).

Se com os românticos iniciadores do interesse, a cultura do “povo” estava ligada a ideia de autêntico, enquanto que a erudita representaria algo artificial, com o advento das massas, essa distinção é re-elaborada em outras formas de polarizações, como, por exemplo, culta e inculta. Canclini (1999) diferencia três usos do popular. “Os folcloristas falam quase sempre do popular tradicional, os meios massivos de popularidade e os políticos de povo” (pp. 271–272)

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Vemos então que a concepção de popular vai-se deslocando. Para os estudiosos do século XIX, a cultura folclórica sofria a ameaça de desaparecimento em função do avanço da industrialização e modernização da sociedade e a categoria “popular” estava ligada a populações de áreas rurais ou exóticas, que não tinham chegado ainda na cidade. Mas, esse “povo” passa a habitar o espaço urbano, e a concepção de popular se torna a de “massa” (Figura 2). A partir da segunda metade século XX, essas oposições começam a ser abaladas e revisadas. Vários fatores contribuem para essa revisão, que, embora não destruasse as concepções mais arraigadas, contribuíam para diminuir o fosso entre essas categorias.

Figura 2. Daumier, Honoré (1808-79). O vagão de Terceira Classe.

O enfoque da cultura popular pluralizou-se ao longo do século XX, de acordo as mudanças na compreensão do “outro” e da noção de cultura menos etnocêntrica. Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, assiste-se à progressiva falência de conceitos totalitários, tais como ciência e progresso e até mesmo futuro. Os campos disciplinares, ao invés de proclamarem grandes verdades, preocupam-se mais com a inter-relação de saberes e de formas culturais diversas. A cultura popular volta à cena, como espaço de tráfegos, trânsitos e contágios, no qual a ideia de purismo e/ou primitivismo não faz mais sentido – mas é fecunda a ideia da circulação dos níveis culturais, que deve um tributo tanto ao marxismo como à antropologia.

Muda-se de uma visão monocultural para a compreensão da pluralidade. As duas tradições “puras” (a popular e a clássica) foram-se diluindo paulatinamente, misturando-se às vezes entre si, transformando-se ao longo do processo, gerando uma multiplicidade de formas, tanto orais como escritas e, finalmente eletrônicas (como a cultura de massa), circulando pelas várias camadas sociais da população dos países europeus e latino – americanos até os dias de hoje.

Em 1947, Adorno e Horkheimer cunharam o termo indústria cultural para designar os produtos e os processos da cultura de massa. Para os autores, a situação cultural agravara-se com o caráter de mercantilização e homogeneidade das novas formas de cultura tais como o filme, o rádio ou as revistas. A mudança fundamental em relação aos intelectuais anteriores é que, ao invés da ameaça da anarquia, a cultura, de massas promoveria o controle, a manipulação, não deixando espaço para a imaginação e a reflexão das massas. No entanto, as ideias desenvolvidas pelos alemães, na passagem do século XVIII para o século XIX, tiveram uma enorme influência sobre o conceito de cultura popular, tal como ainda encontramos hoje em dia.

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1.3. Popular na terra de pindorama

Segundo Ortiz (2001), no Brasil, o estudo do popular está sempre ligado à busca de definição da nossa identidade. Os vários momentos dessa busca conectam-se as diferentes tradições das abordagens dos séculos XIX e XX. No bojo do popular, encontramos concepções ligadas a produções folclóricas, artesanais, massivas e eruditas. Também discussões sobre políticas educacionais, comunicacionais, patrimoniais, estéticas e artísticas. Tensões entre local e global, entre ações de preservar e outras que adotam os ecletismos e apropriações culturais.

É preciso atenção para os deslocamentos e especificidades da das tensões e deslocamentos, pois não temos os mesmos componentes históricos sociais e econômicos da Europa do século XVII e XVIII, como, por exemplo, a Revolução Industrial.

No Brasil, também foram os românticos os primeiros a manifestar interesse pelo patrimônio cultural de raízes populares (Figura 3). Em nosso caso particular, especialmente mesclado ao pensamento mítico do negro e do índio. Aqui em Pindorama as expressões da cultura popular eram consideradas expressão autêntica do povo brasileiro, o gérmen de uma nacionalidade, livre das influências européias. Logo a seguir, movida pelo cientificismo, parte da elite intelectual procurou justificar a constituição da nacionalidade a partir do argumento da miscigenação das três raças.

Figura 3. José Maria de Medeiros, A personagem Iracema do romance de José Alencar, RJ, Museus Nacional de Belas artes, 1881.

Determinismo, evolucionismo, positivismo, romantismo e naturalismo – essas as palavras-chave que, com suas derivações e ramificações, formariam a constelação de ideias e dariam as balizas para a atividade crítica no Brasil do século XIX. Artistas passaram a empregar elementos da cultura popular na criação de obras destinadas aos círculos ilustrados, como parte de um projeto, estimulado e desenvolvido pelo governo de Dom Pedro II, de construção de um corpo de símbolos nacionalistas que poderia contribuir para a afirmação do Brasil entre as nações civilizadas.

A partir do apoio de D. Pedro II aos intelectuais e artistas, o Romantismo brasileiro se transformou em projeto oficial, expressando sua ligação com a política. Para valorizar as origens da nacionalidade, escolheu-se o índio, visto como parte integrante e como fundador da nação brasileira. Em 1856, quando Gonçalves de Magalhães publicou o poema épico A Confederação dos Tamoios, obra financiada pelo Imperador, o índio passou a ser considerado o símbolo nacional. Idealizado, corajoso, puro e honrado, transformou-se na própria encarnação da jovem e independente nação brasileira, conduzida agora por D. Pedro II.

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Enquanto que, na Europa, os escritores românticos valorizavam os temas heróicos da Idade Média, no Brasil, o nacionalismo exaltava o indígena, o “bom selvagem”, transformado em herói nas páginas dos romances e nas poesias de nossos escritores. As paisagens da nossa terra, os índios, a vida no campo e na cidade passaram a ser os temas da nossa literatura, teatro, pintura e música.

Sílvio Romero in Vilhena (1997) recomendava: “Na construção de um ideal de nação, os intelectuais ocupam papel de destaque, na medida em que teriam em mãos a possibilidade de atingir, por métodos científicos, a realidade da vida popular”. Na conexão com o nacional, o povo aparece como um campo de conhecimento e, ao mesmo tempo, como campo político.

Cabia aos intelectuais mostrar o lado puro, não poluído de suas tradições. Aos educadores também cabia uma ação nacionalizadora. Os mestres deveriam ressaltar as tradições sociais, que falam aos sentimentos e que são substancialmente identificadores do indivíduo com sua terra e sua gente (Figura 4).

Figura 4. Imagem retirada do livro Através do Brasil.
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Veja a imagem 4 do livro “Através do Brasil”, destinado às primeiras séries das escolas primárias publicado em 1910, escrito em parceria por Olavo Bilac e Manoel Bomfim. Esse livro sintetizou um ideal da pedagogia do início do século XX, comprometida com a implementação de uma conduta cívica para assegurar o fortalecimento da identidade nacional. O livro formou gerações de brasileiros, transmitindo uma imagem otimista do País, sem cair no ufanismo exagerado que se verifica em obras contemporâneas do gênero.

Essa ação objetivava fornecer um conjunto de aquisições apuradas e seguras ao patrimônio comum de conhecimento, podendo se servir dele: historiadores, etnólogos, sociólogos e outras ciências do homem; prestar serviço ao País, despertando carinhoso interesse à nação; fornecer sugestões à arte e à literatura. Santos e Oliva (2004) observam que

Várias parcerias literárias foram constituídas no período que vai do final do século XIX à primeira década do século XX para a escrita de livros didáticos. Assim, em 1886 apareceu o livro Contos Infantis de Adelina Lopes Vieira e Julia Lopes de Almeida; em 1892, Fausto Barreto e Vicente Souza publicaram Seleção Literária; no ano seguinte foi a vez de Ventura Bóscoli e Pacheco da Silva Jr, com Análise gramatical; em 1895, Fausto Barreto e Carlos de Laet, com Antologia Nacional; no mesmo ano, Pacheco da Silva Jr. e Lameira de Andrade, com Gramática da língua portuguesa. Em 1906, foi a vez da parceria de Sílvio Romero e João Ribeiro para o Compêndio de história da literatura brasileira; em 1909, Coelho Neto e Olavo Bilac escreveram Pátria brasileira; em 1911, Costa Cunha e Santos Sabino fizeram o Segundo Livro de Leitura enquanto Arnaldo Barreto e Romão Puiggari também escreveram o Segundo e Terceiro Livros de Leitura. Olavo Bilac e Manoel Bomfim escreveram juntos três obras: o Livro de composição em 1899, o Livro de Leitura em 1901 e Através do Brasil em 1910.(p.2)

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Com esse exemplos de publicação temos aqui a preocupação com a educação patriótica do povo, mas com uma parcela mínima da infância que tinha esta condição de estudar. Para entender esses livros no seu contexto, é importante levar em consideração um parque gráfico nascente e a evolução das técnicas gráficas. Esse é o primeiro livro dessa natureza impresso no Brasil; os outros eram impressos na França. Chama atenção também o papel que a imagem tem na tarefa pedagógica de construir identidades nacionalistas. Um elemento que chama a atenção é o conteúdo iconográfico de Através do Brasil. Os cartões somam um total de 26 unidades, correspondendo a 38,2% das ilustrações, destacando aspectos das mais distintas regiões do Brasil, variando entre paisagens naturais e urbanas, trazendo raramente a presença humana.

Esse exemplo nos revela a crença da educação e seus aparatos para a missão que os intelectuais e educadores tinham a sua frente. De fato, acreditaram e se empenharam na capacidade transformadora da educação animados por um extraordinário otimismo pedagógico, por uma fé no poder do conhecimento, associada, por vezes, à fé no engrandecimento moral do indivíduo pela educação. Durante mais de quarenta anos, escolas brasileiras em todo o País adotaram a leitura de ‘Através do Brasil’.

1.4. De Iracema a Carmem: penas e balangandãs

Em virtude das transformações sociais e econômicas experienciadas no Brasil, já em fins do século XIX, a representação simbólica da totalidade do povo brasileiro por um segmento étnico singular (o elemento indígena) cai em desuso no campo intelectual. Na capa do livro Iracema vemos os elementos da natureza, praia, sol, passaros. Iracema representa o primeiro momento romântico do interesse pelo povo (Figura 5). Já no selo americano, série América Latina, traz Carmem Miranda como representação da cultura brasileira (Figura 6).

Depois dessa fase idílica, a geração de 1870 sob os ventos do cientificismo, entendia a raça enquanto signo de primitivismo e empecilho ao progresso da nação. Nosso caipira–povo antes portador da cultura nacional passa a ser visto como portador do atraso. É o povo Jeca Tatu, com vermes e preguiça, concebido por Monteiro Lobato, tornam se ambos personagens do Biotônico Fontoura (Figura 7).

Figura 5. Capa do livro Iracema, de José de Alencar.
Figura 6. Selo americano, série América Latina.
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Figura 7. Almanaque do biotômico, 1935, p. 4 (ilustração de J.U. Campos).

Roberto Bitencourt da Silva no livro O “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato: Identidade do Brasileiro e Visão do Brasil, informa-nos que, de acordo com Alves Filho, no curso das décadas de 1910 a 1940, Lobato refina a caracterização do “Jeca Tatu”, submetendo o personagem a três metamorfoses: na primeira, “Jeca” se encontra doente e desassistido pelo Estado; na segunda transformação sofrida pelo personagem, “Jeca” consiste em uma representação do Brasil agrário e rural, subdesenvolvido, em total descompasso com a tessitura urbano-industrial que tipificava os países que comandavam o cenário político e econômico internacional; por fim, em sua última metamorfose, o “Jeca” é convertido em “Zé Brasil”, arquétipo literário do trabalhador explorado e de um país submetido à espoliação internacional. Para cada versão do “Jeca” re-elaborada por Lobato e, por extensão, para cada interpretação do Brasil e do seu povo, segundo Bitencourt (2007) Aluizio Alves Filho salienta uma etapa da trajetória de vida de Monteiro Lobato e as matrizes teóricas e ideológicas por ele mobilizadas – dentre estas, pode-se realçar o higienismo de Osvaldo Cruz, o desenvolvimentismo industrializante, o nacionalismo e o marxismo.

A introdução do tema regional pode ser vista também nas obras do pintor José Ferraz de Almeida Júnior. Oswald de Andrade, um dos críticos mais influentes do período modernista aponta o artista como precursor de uma pintura genuinamente brasileira. Entre suas principais obras, estão O Violeiro e o Caipira picando fumo (Figura 8).

Figura 8. Caipira Picando Fumo”, 1893. Almeida Jr. Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Mas outra noção de Brasil estava a ser requerida pela elite do País. Regis de Morais (1989) enfatiza nossa entrada no século XIX, tendo a França como modelo cultural não como um europeísmo imposto como o dos primeiros tempos da nossa colonização, “mas aquele nascido do reconhecimento das conquistas verdadeiramente excepcionais de um outro povo”. p.84.

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Na chamada belle époque, o afrancesamento da cultura brasileira era visível a ponto das pessoas cumprimentaram-se nas ruas do Rio de Janeiro com um “Viva la France” (figura 9)!

Figura 9. Imagem da exposição “Flanando pela belle époque carioca”, montada no coreto do jardim do Museu da República. Fonte: www.museus.gov.br/primavera_2009.

Essa influência perdura não só nos hábitos cotidianos, mas na literatura e na própria língua. Era comum, nossos intelectuais exercitarem-se poeticamente em francês. Como isso afeta nossa cultura a concepção de povo e em particular a maneira de lidar com a cultura do povo? Vejamos como Sevcenko (1992) enumera quatro princípios básicos que regeram a metamorfose pela qual a República passava a sociedade brasileira:

  1. A condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional;
  2. A negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem da sociedade dominante;
  3. Uma politica rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade;
  4. Um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.

Sabe-se que, com o processo de urbanização, muitos negros forros constituíam verdadeiros clãs, que funcionavam como redutos culturais nos centros das cidades. Música, capoeira, danças, rituais religiosos eram praticadas nesses redutos (Figura 10).

Figura 10. Jongo do Quilombo São José, RJ. Fotos de Domingo Peixoto.

Uma nova monarquia africana reestruturava-se em solo brasileiro e no coração das cidades. Situação insustentável para um cosmopolitismo europeu que se desejava implantar. Têm-se notícias das proibições de manifestações folclóricas e que a ação da polícia foi eficaz para que “os instrumentos musicais de seresta e batuque” fossem expulsos “das rodas de bom gosto, transformados em símbolos de grosseria e vadiagem”. (MORAIS,1989:87)

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Os centros das cidades foram reurbanizados e as famílias mudaram de endereço indo geralmente para os morros. Paralelamente, uma versão de povo “idealizado” é produto exportação, os pares de oposição são morro x cidade, cidade versus campo, folclore versus ciência a fim de podermos dialogar com os países desenvolvidos, posição a qual começamos a aspirar. Mas qual a nossa moeda de troca? Precisamos de uma cara para o Brasil. Como mostrar o “south american way? Nossa grande musa/representante e porta-voz oficial foi a estrela Carmem Miranda. Mas também o bom malandro, ela e ele fantasiados de “rumbeiros”, roupa mais afeita à cultura de outros países da América Latina.

1.5. Entre a europa e os quintais brasileiros

O movimento modernista dos anos 1920 retoma de forma diferente, parte do projeto ideológico no qual as tradições culturais do povo são identificadores de um nacionalismo impregnado de uma missão política e ideológica. Se até 1922 a preocupação dos artistas e intelectuais era uma renovação estética nas artes, num segundo momento, a partir de 1924, esboça se o projeto de uma cultura nacional que coloca em seu centro a questão da brasilidade. Ao contrário da geração de 1870, que entendia a raça enquanto signo de primitivismo e empecilho ao progresso da nação, a ênfase na cultura nacional mesclada dos modernistas revelava um aspecto positivo de nacionalidade, como podemos ver nas imagens das capas de Raul Bopp (Figura 11).

Figura 11. Capa do livro que contém o poema Cobra Norato, de Raul Bopp.

Cobra Norato, importante obra do movimento antropofágico ostenta a grandeza do mundo em formação, que é o Amazonas. Traz de uma forma lírica as raízes populares. O poema é relacionado ao Primitivismo do primeiro modernismo brasileiro, apresenta forma inspirada nas vanguardas europeias, especialmente na forma de compor cubista.

Na segunda fase do modernismo, após a semana de 1922, o contexto nacional é caracterizado por uma mescla de surto industrialismo e combate ao atraso. Getúlio Vargas, por um lado, elegia símbolos da identidade nacional tais como o samba e a feijoada, e, por outro, combatia ferozmente as manifestações afro-brasileiras, o que incluía a capoeira e demais formas de canto, jogos e danças.

Era preciso fazer algo antes que o imenso acervo popular brasileiro desaparecesse, fosse pela repressão policial, fosse pelo avanço da vida urbana e industrialização. Mário de Andrade organiza a Missão de Pesquisas Folclóricas (Figura 12).

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Figura 12. Missão de Pesquisas Folclóricas. (Fonte: http://galileu.globo.com/edic/104/con_mario1.htm.
Para refletir

O último sonho de Mário de Andrade: Missão de Pesquisas Folclóricas, uma aventura no alto sertão pela salvação da cultura popular

Por Cláudio Fragata Lopes

Em 1938, em plena ditadura do Estado Novo, quatro homens saíram de São Paulo com destino ao Norte e Nordeste do País. Eram os integrantes da Missão de Pesquisas Folclóricas, patrocinada pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo. Tinham um objetivo urgente: fazer registros científicos do folclore musical antes que o rádio – o grande veículo de massas de então – deturpasse as raízes culturais brasileiras mais genuínas.

O governo de Getúlio Vargas já vinha fazendo a sua parte naquelas regiões, decretando perseguição policial aos cultos afro-brasileiros, considerados “baixo espiritismo”. Algo precisava ser feito rapidamente. Munidos com a melhor tecnologia da época, nossos heróis partiram levando quase uma tonelada em equipamentos, que incluía um aparelho para gravação em campo, microfones, discos virgens de acetato, filmadora e máquina fotográfica. Penetrando o sertão por leitos secos de rios, a bordo de um caminhão e incorrendo no risco de toparem pela frente com Lampião e seu bando, os quatro homens, misto de pesquisadores e aventureiros, não perderam tempo.

Durante cinco meses, a missão percorreu mais de 30 cidades do interior de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão e Pará, em busca de passistas, cantadores, violeiros e repentistas. O saldo foi muito positivo: 1.500 melodias anotadas, seis rolos de filmes documentando danças dramáticas e rituais folclórico-religiosos, centenas de fotos com o registro de personagens, costumes e arquitetura popular, 7 mil páginas de diário de viagem e letras de músicas. Também foram coletados cerca de 600 objetos, como ex-votos, esculturas, instrumentos musicais e ritualísticos.

Fonte: http://galileu.globo.com/edic/104/con_mario1.htm.

As viagens renderam publicações. Mário lança, em 1946, o livro sobre a Missão e ainda outras reflexões. A “redescoberta do brasil” está presente também nas telas de Tarsila do Amaral, que mostram uma temática em torno do povo urbano (Figura 13 ) e do povo idílico (Figura 14) ambos como matrizes para pensar a identidade nacional e, portanto, a produção artística produção e estética.

Figura 13. Tarsila do Amaral, Operários.
Figura 14. Tarsila do Amaral, Paisagem com touro.
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Tão importante quanto Mário no estudo e catalogação das manifestações culturais brasileiras foi Rio Grandense do Norte Luís da Câmara Cascudo (Natal, 30 de dezembro de 1898 — Natal, 30 de julho de 1986). Cascudo foi um historiador, folclorista, antropólogo, advogado e jornalista brasileiro. Dedicou toda a sua vida ao estudo da cultura brasileira. Foi professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e contam que quase chegou a ser demitido por estudar figuras folclóricas como o lobisomem.

Cascudo deixou uma extensa obra, inclusive o Dicionário do Folclore Brasileiro (1952). Entre seus muitos títulos destacam-se: Alma patrícia (1921), obra de estréia, Contos tradicionais do Brasil (1946). Estudioso do período das invasões holandesas, publicou Geografia do Brasil holandês (1956). Suas memórias, O tempo e eu (1971) foram editadas postumamente. O “folclorista” era monarquista convicto e simpatizante do movimento integralista “verde e amarelo” de Plínio Salgado que também reclamava para o Brasil uma identidade cultural, só que, nesse caso essa identidade teria que ser pura, não maculada pelos estrangeirismos.

O grupo formado por Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo em resposta ao nacionalismo do Pau-Brasil, criticou o “nacionalismo afrancesado” de Oswald. Sua proposta era de um nacionalismo primitivista, ufanista, identificado com o fascismo, evoluindo para o Integralismo. Idolatria do tupi e a anta é eleita símbolo nacional. Anauê (Figura 16) é um vocábulo de origem tupi, que servia como saudação entre os indígenas. É uma palavra com conteúdo afetivo que significa: “Você é meu irmão” que foi incorporada como saudação oficial entre seus integrantes e foi consagrada em louvor do Sigma.

Figura 15. Mestre José Claudino da Nóbrega, Memórias de um viajante antiquário. São Paulo: Raízes, 1984Raízes, 1984.
Figura 16. Mestre Vitalino.

Com o Movimento Integralista, Plínio Salgado exaltava o Nacionalismo como forma de se fazer a verdadeira revolução brasileira, como afirmado em seu livro A Quarta Humanidade. Salgado afirmou que a exaltação do passado colonial de qual resulta a herança étnica do povo brasileiro, a “verdadeira brasilidade”, dado o estado de “abandono” que Portugal relegou ao Brasil; foi nesse abandono que nasceu uma nacionalidade espontânea, que seria corroída pelos estrangeirismos após a independência e que o integralismo pretendia resgatar. Em maio de 1929, o grupo verde-amarelista publica o manifesto “Nhengaçu Verde-Amarelo — Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta”.

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1.6. Retomada do popular

O galerista e estudioso sobre arte popular, Rugiero (2007), observa que depois da Missão de Pesquisas Folclóricas, empreendida por Mário de Andrade em regiões menos conhecidas do Norte e do Nordeste do País, em 1938, a década seguinte terá iniciativas que colocarão a arte popular novamente em destaque: José Claudino da Nóbrega (1909-1995) (Figura 15) vai a Cuiabá e traz à tona o barroco de Cuiabá, que não era visto nem estudado àquela época. Depois, vai à região do São Francisco e descobre Mestre Guarany (1884-1985) (Figura 16), um gênio da escultura, com suas carrancas. Na mesma década, Mestre Vitalino (1909-1963) (Figura 16) também é descoberto em Caruaru por Augusto Rodrigues e vira uma celebridade, depois de matéria na revista O Cruzeiro. E, no interior de São Paulo, José Antônio da Silva (1909-1996) (Figura 17) também tem sua obra reconhecida.

Figura 17. Mestre Guarany.

1.7.Dilema: ser moderno, mas ao mesmo tempo popular

Napolitano cita que no final dos anos de 1940, o Brasil era um país recém-democratizado e que sonhava em se tornar moderno e industrializado. A volta de Getúlio ao poder em 1950 consolidou uma nova forma de política de massas: o populismo. Prometia libertar o País do subdesenvolvimento através da política de industrialização com a criação de grandes empresas estatais.

A sociedade brasileira era compreendida como Rio e São Paulo. Nas duas cidades (especialmente a segunda), dá-se um considerável processo de urbanização aliado aos fenômenos de migração e industrialização. Palco perfeito para a consolidação de uma cultura popular massificada. O Rádio tem um papel fundamental como fonte de informação de lazer de sociabilidade de cultura. Atinge todas as classes: ricos e pobres colam o ouvido no mundo. Outro fenômeno do cotidiano ligado à cultura popular urbana são os programas de auditórios. Nesses programas a música popular (samba, forró, baião, bolero) e as telenovelas ajudam o Brasil a reinventar as imagens sobre o seu povo.

As representações simbólicas do popular se adequaram às manipulações ideológicas, por parte das elites brasileiras, na construção de um tipo popular ideal: conformado, mas com vontade de subir na vida; malandro, mas, no fundo ordeiro; crítico, porém nunca subversivo. Válvula de escape – vistas pela elite como uma representação de subdesenvolvimento – típica do terceiro mundo provinciano, produto da mistura das raças e do atraso sociocultural.

Essa contradição se agrava nas décadas seguintes. De um lado, a manipulação ideológica e de outro a vergonha (elite ligada à cultura e à educação) dos conteúdos banais ao gosto do popular.

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Para sair desse impasse, alguns segmentos da sociedade elaboram outro projeto de cultura para representar a face civilizada e educada do povo brasileiro. São Paulo é elevado a capital cultural como modelo do mundo desenvolvido. Tentativas de atualização no teatro, cinema e artes plásticas. Nesse projeto, forjava-se outra identidade brasileira preocupada em mostrar modernidade e sofisticação. Criação de espaços culturais tais como o MASP, com obras de “gênios da arte ocidental”, e o MAM com trabalhos que, apresentavam novas tendências e artísticas. Ainda em Napolitano, encontramos que “No Brasil, em fins dos anos 1950, para amplos setores da sociedade, era preciso ser moderno, mas ao mesmo tempo popular. Esse era o dilema da cultura brasileira até o início dos anos 1960” (p.35). Mas, o que era ser moderno? Para as massas populares, os circuitos culturais eram as rádios e as chanchadas.

A preocupação com o desaparecimento do folclore foi comum nas décadas de 1950 a 1970 aos povos latino-americanos devido ao momento expansionista da industrialização e do desenvolvimento dos meios modernos de comunicação. De certa forma, o processo de “americanização” despedia o passado agrário, pré-moderno das sociedades na América Latina. Na medida em que a modernização enraizava-se nesses solos, um sentimento apocalíptico de perda definia o folclore como “elementos básico constitutivo da cultura de nossos povos”. Objetivou-se a criação de Institutos, aptos a desenvolverem “programas para a preservação, compilação e estudo do Folclore musical americano”.

Em 1951 é lançada a Carta do Folclore Brasileiro resultante de uma campanha em defesa do Folclore Brasileiro. A preocupação com as formas tradicionais era procedente. É importante lembrar que, no final da década de quarenta, o Brasil sonhava com a superação do atraso, tornando-se moderno e industrializado. A partir da década de 1950, a urbanização e a industrialização foram fatores indispensáveis para a consolidação da cultura de massa, tendo no rádio e na televisão as grandes vedetes populares. Daí o pânico por parte de uma camada de intelectuais frente aos fatores desenvolvimentistas, que, afetando as tradições populares, afetavam, por consequência, nossa identidade cultural. Atitudes de resgate e conservação eram imprescindíveis, uma vez que o folclore era entendido como elemento básico constitutivo da cultura de nossos povos.

A tônica das questões era a preocupação com a resistência da cultura tradicional. O Brasil, nação que nunca se irmanou com as outras nações da América Latina, parece, nesse ponto, ter encontrado laços identitários. Em 1970, a Carta do Folclore Americano – preocupava-se em legitimar os estudos do folclore como científicos e fixa sua atenção nos “valores tradicionais”, como sendo um aspecto comum da cultura latino-americana. Palavras de ordem como resgate e conservação são fundamentais neste momento.

Ortiz (2000, p. 37) diz que “a discussão sobre cultura popular reforça a dimensão da separação, segregação, heterogeneidade”. A separação implica a concepção do “outro”. As manifestações populares para serem preservadas devem ser afastadas da cultura da elite para não serem contaminadas e sobreviverem de forma autêntica. Paradoxalmente, mesmo tendo o povo como fonte de “pureza” e “autenticidade”, os intelectuais o consideravam como fonte de atraso e subdesenvolvimento. Muitos projetos voltados para “o povo” foram pensados para a superação desse problema.

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No período das duas décadas (1970 a 1990), o cenário cultural brasileiro passou por transformações e entrechoques de opiniões e posturas ideológicas. Depois de 1968, o regime militar aperta o cerco aos artistas, intelectuais e a imprensa. O Governo decreta o AI-5. O debate sobre cultura popular tem facetas diversificadas. A juventude e intelectuais divididos entre o discurso educativo da esquerda engajada e o desbunde dos movimentos de contracultura.

Figura 18. José Antônio da Silva, Cavalgada, 1977.

Unidade 2: Popular engajado revolucionário

Outra vertente do popular é representada pela ideologia da arte engajada da esquerda. O Partido Comunista Brasileiro tinha influência marcante nos meios artísticos e intelectuais. Literatos, músicos, jornalistas circulavam nos meios sindicais. Para a doutrina estética e política cultural do realismo socialista (entre 1947 e 1955), a arte deveria ser feita a partir de uma linguagem simples e direta, quase naturalista.

A aquarela apreendida em 10/05/1937 (Prontuário 712, de Fúlvio Abramo/Figura 19) faz parte de um dossiê e arquivos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops) com informações sobre operários, judeus, negros, mulheres, comunistas, fascistas, japoneses, alemães, lituanos, entre outros segmentos sociais. A organização do trabalho é da professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora do PROIN. De acordo com Maria Luiza, algumas dessas pessoas chegaram a ser presas, outras foram apenas fichadas, mas passaram a ter suas atividades vigiadas pela Polícia Política: histórias de repressão vividas por diversos grupos sociais que atuaram na cidade de São Paulo entre os anos 1924 e 1954. A obra São Paulo, Metrópole das Utopias – histórias de repressão e resistência no arquivo do Deops traz 17 artigos, escritos por 19 autores, sendo todos eles pesquisadores do Projeto Integrado Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo (PROIN), um projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

O conteúdo deveria ser portador de uma mensagem exortativa e modelar para as lutas populares. Heróis e figuras do bem deveriam ser pessoas simples, positivas e otimistas, dispostas à luta e ao sacrifício em nome do coletivo. Os valores populares, nacionais e folclóricos, deveriam ser fundidos com ideias humanistas e cosmopolitas, herdados da arte ocidental dos séculos XVIII e XIX.

Figura 19. Fúlvio Ábramo, aquarela.
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2.1. O engajamento do popular: o papel da gravura

Nos anos 1950, com o Clube de Gravura de Porto Alegre, a gravura adquire maiores contornos políticos e populares, seguindo o exemplo dos artistas mexicanos. Com essa atitude, seus participantes, como os modernistas no passado, reinstalam os fundamentos de uma identidade nacional. Seus integrantes eram Carlos Scliar, Glênio Bianchetti, Vasco Prado, Glauco Rodrigues e Danúbio Gonçalves.

Vejamos nas duas gravuras de Lívio Abramo (Figuras 20 e 21) a representação heroica do povo. Suas imagens mostram a visão comprometida e solidária com o drama operário. Jacob Klintowitz assinala, por sua vez, que Lívio Abramo “... é artista emergente do proletariado, preocupado com o registro realista da vida e da luta do povo brasileiro”.

Figura 20. Lívio Abramo, ITAPECERICA (CASAL CON JEGUE) Linografia, 17 x 15,5 cm, 1938.
Figura 21. Lívio Abramo, Três Mulheres em Desespero” Lívio Abramo - xilogravura 1940.

2.2. Movimento Armorial: a realeza do imaginário popular nordestino

O Movimento Armorial surgiu no início dos anos 1970 sob a direção do escritor Ariano Suassuna, com participação e colaboração de muitos outros nomes da cultura pernambucana como Raimundo Carrero, Francisco Brennand, Gilvan Samico, Hermilo Borba e vários outros que tiveram papel de grande importância.

Embora possamos estabelecer conexões com os objetivos do Movimento Modernista dos anos 1920, ao buscar a brasilidade do Brasil, os objetivos do Movimento Armorial fechavam a questão nos purismos dessa brasilidade. Nessa busca, objetiva-se “a criação de uma arte que pudesse ser denominada erudita e, ao mesmo tempo, popular, baseada no que se entendia por raízes populares da cultura brasileira”, como disse o próprio Ariano no manifesto que publicou sobre o movimento, valorizando assim a cultura popular do Nordeste brasileiro. Desse modo, todos os elementos populares e sua expressão artística são colocados em destaque, considerando a música, a dança, as artes plásticas, o teatro, a arquitetura, o cinema, a literatura, entre outras, como a capa de cordel a História do Pavão Misterioso (Figura 22) um dos romances populares mais conhecidos.

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A visualidade das produções ligadas ao Movimento Armorial é inspirada na xilogravura popular, utiliza dos arquétipos do imaginário medieval. Um exemplo são as capas dos grupos musicais ligados ao movimento: Quinteto Armorial e Orquestra Armorial (Figura 23 e 24). O primeiro mais “popular” em termos de mídia e o segundo um popular mais cult. A terceira capa é do músico Antônio da Nóbrega (Figura 25), que tem as influências do movimento e reúne da sua obra a cultura popular e a erudita.Para Josafá Gomes, estudante da UFPE, o movimento, inicialmente, era conhecido entre acadêmicos, principalmente da Universidade Federal de Pernambuco, pois Ariano Suassuna dirigia, na época, um programa de extensão cultural nessa universidade; mas logo recebeu outros apoios, e o movimento se expandiu, afirmando uma arte mais preocupada com a prática criativa do que com a teoria que carregava a chamada “linha rígida de princípios”, propondo um movimento aberto. Mesmo carregando a filosofia do “aberto”, o movimento tinha suas leis e sua rigidez. Ariano se encarregava de selecionar aquilo que considerava importante e que atendia aos objetivos que foram definidos para compor a arte que propunha.

Figura 22. Capa do cordel Pavão Misterioso.
Figura 23. Capa do disco Quinteto Armorial.
Figura 24. Capa do disco Orquestra Armorial.
Figura 25. Capa do disco de Antônio da Nóbrega.
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2.3. Popular: a resistência revolucionária do reciclado

Uma ruptura entre o erudito e o popular se dá com o trabalho da arquiteta italiana Lina Bo Bardi, quando assume a direção do Museu de Arte Moderna da Bahia, transformando-o em Museu de Arte Popular (1959-1964). Nelson Aguillar, curador-geral da mostra Brasil 500 anos Artes Visuais, comenta a força política das atitudes de Lina que incomodou os militares. Segundo Aguilar, “A arte popular no Brasil sofre uma reavaliação radical quando Lina Bo Bardi assume a direção do Museu de Arte Moderna na Bahia”. Conferir as hipóteses políticas e sociológicas de Antônio Gramsci, transpondo para o Nordeste as análises do bloco agrário meridional,...potencialidades anticapitalistas – consciência revolucionária. Longe do Folclore, “contempla-se o objeto reciclado como um produto que guarda a possibilidade de não alienação, de resistência cultural”. Escapa-se ao dualismo arte erudita/arte popular, baseado numa ideologia romântica, de cunho paternalista. O que interessa é o potencial dos reciclados para cumprir seu valor de uso, esquivando-se dos bens de consumo impostos de fora para dentro.

Para Lina, Folclore é uma palavra que deveria ser eliminada por ser uma classificação em “categorias”, própria da cultura central que coloca no seu devido lugar as posições da cultura popular periférica. Lina diz que o projeto do desenho industrial não cumpriu suas promessas libertárias. “A poética de Jonh Ruskin e William Morris, que pretende dar consciência estética à produção de bens de consumo para as massas, cai no vazio..” Para ela, a pobreza do nosso artesanato é a sua força, e procurar as bases culturais de um País, (sejam quais forem: pobres, míseras, populares) quando reais, não significa conservar as formas e os materiais, significa avaliar as possibilidades criativas originais (Figura 26 e 27). Arte Popular não é arte pela arte. Não é alienação.

Figura 26. Fotos do Livro “Tempos de Grossura - O Design no Impasse” de Lina Bo Bardi. Colcha feita de Panos de Algodão. (branco, preto, vermelho e amarelo) emendados, proveniente de Brejo da Madre de Deus/Pernambuco.
Figura 27. Fotos do Livro “Tempos de Grossura - O Design no Impasse” de Lina Bo Bardi. Fifós (lamparainas de latas de óleo.
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Na página 26 do livro Tempos de Grossura (Figura 28) encontramos: “Não existe um artesanato brasileiro importante. Não existe um artesanato importante em nenhum país do mundo que esteja no estágio da civilização industrial, independente do grau de desenvolvimento atingido”. A organização social artesanal pertence ao passado; o que temos hoje são sobrevivências naturais em pequena escala, como herança de ofício, ou por determinações artificiais, como exigências turísticas.

O texto que Jorge Amado (Figura 29) escreveu para a Exposição Bahia, primeira grande exposição de arte popular nordestina em 1959 também revela a inclinação do popular:

“Aí estão os fifós que iluminam as casas mais pobres, aproveitamento de vidros vazios de remédios e pedaços de latas. Mostrando a arte do povo e, ao mesmo tempo, sua vida(...) Esteiras, redes, panelas de barro, potes para água fresca, aquilo de que o homem se serve para o cotidiano da vida, pobres objetos que iluminam sua pobreza com a poesia de um desenho, de uma flor, de um figura. Tudo o que o povo toca, nesta terra da Bahia transforma-se em poesia, mesmo quando o drama persiste.” (Catalógo, 1959)

Lina também viaja Brasil adentro e olha as invenções e reinvenções cotidianas do povo brasileiro ligadas a vida prática: utensílios (Figura 30) e mobiliários registrados por ela vão influenciar seu próprio processo criativo, sua arquitetura e seu design.

Parte do acervo coletado no Nordeste brasileiro – entre os anos 1950 e 1960 – pela italiana Lina Bo Bardi (1914-1992) está exposto no Centro Cultural Solar Ferrão, desde março de 2009. Guardadas em depósitos, depois do Golpe Militar de 1964, as mais de 800 peças hoje expostas (carrancas, ex-votos, imaginária de culto católico e de matriz africana, cerâmicas, utensílios de madeira, entre outros) apresentam o livre design de expressão popular, encontrado em diversos estados nordestinos do País. A expografia é assinada pelo arquiteto André Vainer, que trabalhou com Lina Bo Bardi, entre 1977 e 1986.

Lina tinha por base ideológica o humanismo marxista do também italiano Antônio Gramsci que propunha uma concepção mais democrática de cultura e de intelectual, diminuindo o fosso entre o popular e o erudito. Para Gramsci “a história não é uma tapeçaria que se faz com “pontinhos”, ela só tem sentido se for uma história problema”. Nessa reformulação conceitual coloca-se a interdisciplinariedade como elemento fundamental de renovação e lança-se as bases da história das mentalidades na aproximação da antropologia com a psicologia e a história.

Figura 28. Capa do livro Tempo de Grossuras.
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Figura 29. Jorge Amado
Figura 30. Potes de barro.

Unidade 3: Contracultura: o popular nas lentes tropicalistas

O desafio cultural da geração da década de 1970 foi construir o árduo caminho da resistência democrática. De 1970 a 1975, encontrava se simultaneamente, o “desbunde”, a diversão e resistência. Ao longo dos anos 70 a população universitária cresceria mais de dez vezes e, na sua maioria, era constituída de jovens egressos de famílias de classe média, com poder aquisitivo significativo. A década de 1970 foi a era de ouro da televisão brasileira- considerada pelos setores mais intelectualizados e engajados, um grande instrumento de manipulação de opinião pública e de alienação das classes trabalhadoras que tomavam contato com o mundo artificial, que não tinham acesso ao real.

Com a mídia, temos a consolidação de uma cultura de massa considerada popularesca. No caminho da popularização, a década de 80 foi a era do sambão joia, do pastiche da música pop, e de uma tentativa de reedição da música ufanista. Instala-se a dicotomia entre cultura popular valorizada e cultura popular desvalorizada ligada aos processos midiáticos e da indústria cultural (rádio, televisão)ou seja, a cultura popular de massa.

Ao contrário da esquerda nacionalista que atuava no sentido de uma superação histórica dos nossos males de origem (subdesenvolvimento e conservadorismo), o Tropicalismo nascia expondo e assumindo esses elementos, essas relíquias. Justaposição de elementos diversos e fragmentados da cultura brasileira (nacionais e estrangeiros, modernos e arcaicos, eruditos e populares) retomando o princípio da antropofagia de Oswald de 1920.

O Movimento Tropicalista surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, como o pop-rock dos Beatles (Figura 31) e o concretismo; mesclou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais. Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960.

Figura 31. Capa do disco Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band, os Beatles 1967.
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O movimento repercutiu principalmente na música, mas outras manifestações também foram importantes. Nas artes visuais, destaco o trabalho de dois artistas nos quais a temática povo/popular se apresenta sob uma nova ótica: a proposta arte/vida de Hélio Oiticica (1937–1980) no Morro da Mangueira e as Lindonéias do gravador Rubens Gerchman (1942–2008).

O contexto tropicalista é o das misturas urbanas, caóticas. Em 1964, Hélio Oiticica começa a fazer as chamadas Manifestações Ambientais e se aproxima da cultura popular e do carnaval, ao criar os famosos Parangolés – capas, tendas, bandeiras, estandartes coloridos de algodão e náilon com poemas em tintas sobre algodão, que eram usados sobre o corpo (Figura 32). Os Parangolés era chamado por Oiticica de “antiarte por excelência”.

Figura 32. Moradores do Morro da Mangueira usando a capa Parangolé, de Hélio Oticica.

3.1. Desaparecidas nas paradas de sucesso

A Bela Lindonéia ou A Gioconda do Subúrbio (Figura 33), de 1966, que pode ser assim descrita: o suporte é um espelho; no centro, há o desenho de uma imagem feminina jovem, com marcas sombreadas, junto ao olho esquerdo, nariz e lábio inferior. Esse recurso da sombra pode ser simplesmente só a sombra, mas também sugere que tal pessoa possa ter sido agredida.

Figura 33. Lindoneia.

Tal como alguém posando seriamente para uma fotografia 3x4, Lindonéia destila em seu olhar uma expressão de susto ou irritação. O desenho caricatural, de vertente serigráfica e efeito pop nas cores alaranjado e preto, é emoldurado com motivos florais pintados no estilo rococó abrasileirado, kitsch, tal como os antigos entalhes nos vidros que cobriam os porta-retratos de casamentos de nossos avós. O espelho é montado num suporte de cartão na medida de 60 x 60 cm, na mesma cor alaranjada, onde aparecem, como se fossem uma página de jornal sensacionalista, os títulos e legendas: “UM AMOR IMPOSSÍVEL”. “A BELA LINDONÉIA DE 18 ANOS MORREU INSTANTANEAMENTE”, fazendo uso dos registros textuais, tão ao gosto da pop art – “antropofagiza” e vai além de Andy Warhol. (AMARAL, 2008).

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Amaral Rocha (2008) enfatiza que “Lindonéia (representação gráfica) e “Lindonéia” (música), ambas cumprem assim a função de dar sentido a uma realidade perversa, uma tragédia brasileira”.

Remete ao centro da representação e define a possível origem branco/mulata da personagem, no seu cotidiano de trabalhadora, talvez empregada doméstica, um tipo brasileiro, imigrante, despossuída, e descreve retratos do cotidiano de Lindonéia, sua religiosidade, sua denguice, seu sonho de se aproximar do sucesso, de vencer na vida, entrecortado com a lembrança de que este não será um sonho com final feliz, pois Lindonéia está morta. É um retrato do alto e do baixo, do sublime e do cruel.

3.2. Massa, Kitsch, desbunde e artesanato

Até 1985, outro movimento cultural significativo – a cultura alternativa e independente. “o meio social universitário era a base da cultura alternativa e sofrera, nos anos 1970, uma grande expansão, incluindo cada vez mais jovens da classe média baixa, bastante influenciados pela indústria cultural”. Essa juventude marcada pela ambigüidade – vontade de participar politicamente e discutir os temas nacionais e um certo descompromisso em nome da liberdade comportamental e existencial.

A marca dessa geração era a busca por novos espaços e formas de participação política, como os movimentos de minoria (homossexuais, mulheres, negros), o movimento ecológico e os movimentos culturais. (Vila Madalena, Bexiga). Seguiam a tradição dos malditos e do desbunde, marcas da cultura underground do início dos anos 1970. A produção artística resistia ao esquema da indústria cultural e criticava o esquema de produção comercial.

Na contracultura o recurso do deboche e à linguagem kitsch, tentativa de romper as fronteiras entre estilo de vida, autoconhecimento e experiência estética. Como exemplo temos os Happenings, feiras as feiras de artesanato, o deslocamento para regiões culturais, tais como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e a pesquisa musical feita por Marlui Miranda que coleta e grava cantos indígenas. Em Pernambuco e Paraíba o Movimento Armorial liderado, por Ariano Suassuna mescla folclore e música erudita na reinvenção de uma cultura nordestina de raízes medievais.

Na década de 1990 a perspectiva underground e o espírito libertário dos independentes passou para o movimento cultural das periferias das grandes cidades sob outras bases sociológicas, estéticas e ideológicas. São exemplos os rappers paulistanos, as galeras funks do Rio de janeiro e o movimento Mangue bit de Recife.

As cidades brasileiras, como quaisquer outras do mundo ocidental globalizado, em maior ou menor escalas, passam por transformações que afetam a produção de suas formas culturais. O processo de urbanização acelerada promove novas formas de sociabilidade, gera novas formas culturais altamente sincréticas com um universo simbólico mais aberto e transitório, distinto do caráter totalizante e estável dos símbolos culturais tradicionais, não necessariamente fazendo parte da indústria cultural. Por exemplo, hoje no Brasil, mais de 70% da população vivem em cidades. Com isso, a chamada cultura camponesa (foco da atenção dos estudiosos de folclore) já não representa parte majoritária da cultura popular.

3.3. Cultura Popular internacional

Ao longo deste texto, tenho colocado em pauta os deslocamentos das concepções de popular especialmente, no contexto brasileiro. Ligado a manifestações de identidade nacional, a discussão desloca-se na contemporaneidade para hibridizações, cruzamentos, apropriações de referências que passam a ser coletivas. Assim, não poderia deixar de trazer um aspecto ressaltado por Renato Ortiz, que o da internacionalização do popular, pois este também está conectado com a contemporaneidade vivida no Brasil e no planeta.

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Para Ortiz, está em curso um jogo de deslocamentos dos símbolos tradicionais: o circuito de cultura rural nas cidades já não é tão fechado. Grupos transplantados do interior são refeitos, suas culturas reinterpretadas. Vários símbolos que no campo funcionavam como fortes elementos de caracterização e consolidação de identidades, na cidade passam a ser celebrações rituais do estilo anterior de vida.

É preciso entender que da mesma forma que se fala em crise quando nos referimos ao ideal da cultura tradicional e da sua situação real no mundo de hoje, podemos falar também da crise da chamada “cultura clássica” considerada autêntica- extrato simbólico definidor das elites dominantes- dimensão da cultura tida como mais alto prestígio. Ambas estão fragmentadas.

Renato Ortiz chama atenção para a necessidade de entendermos as transformações atuais trazidas pela globalização das sociedades e a mundialização da cultura. Ortiz afirma que a constituição de um mercado global e o advento das tecnologias (novas ou velhas) fazem a modernidade ter cada vez mais um caráter planetário e que vivemos o que ele denomina uma cultura popular planetária ou cultura popular internacional. Essa já não pode mais ser a conexão identitária com as expressões de um local, região, território, povo ou tempo.

Ele já não pode ser mais pensado como equivalente ao território que nos circunda. Na verdade, até então falávamos de cultura, desde que citássemos um território determinado. Quando dizemos “cultura nacional”, “cultura ocidental”, “cultura árabe”, partimos de alguns pressupostos. Nação, Ocidente e Árabe são qualificativos que amarraram os costumes e os modos de vida a fronteiras precisas. A arte contemporânea tem vários exemplos dessa desterritorialização, como podemos ver no trabalho de arte pública, a Cow Parade (Figura 34).

Figura 34. Cow parade.
Saiba mais

Cow Parade é o maior e mais bem-sucedido evento de arte pública no mundo. As esculturas de vacas em fibra de vidro são decoradas por artistas locais e distribuídas pelas cidades, em locais públicos como estações de metrô, avenidas e parques. Após a exposição, as vacas são leiloadas e o dinheiro é entregue para instituições beneficentes. Desde 1999, já passou por mais de 55 cidades em todo o mundo, incluindo Chicago (1999), New York City (2000), Londres (2002), Tóquio (2003) e Bruxelas (2003). Dublin (2003), Praga (2004) e Estocolmo (2004), Cidade do México (2005), São Paulo (2005), Curitiba (2006), Belo Horizonte, (2006), Boston (2006) Paris (2006), Rio de Janeiro (2007), Milão (2007) e Istambul ( 2007), Madrid (2008), Taipei (2009). Ao redor do mundo, mais de 5.000 artistas participaram da CowParade, estima-se que mais de 150 milhões de pessoas tenham visto uma de nossas vacas famosas e US$ 22 milhões foram levantados para entidades beneficentes através do leilão das vacas. Por que vacas? Há algo de mágico sobre a vaca. Ela representa coisas diferentes para pessoas diferentes ao redor do mundo: é sagrada, é histórica, mas o sentimento comum é de carinho. Ela simplesmente faz todos sorrirem. Servindo como uma tela de arte, não existe nenhum outro animal ou objeto que fornece a forma, flexibilidade e amplitude de uma vaca. As três formas (de pé, pastando, repousando) fornecem aos artistas ângulos e curvas para criarem obras de arte únicas. Seu modelo também permite que ela seja caracterizada. Ela pode se transformar em, outros animais, pessoas ou objetos. As vacas são pintadas por artistas locais. Pintores, escultores, artesãos, arquitetos, designers e outras pessoas criativas e artísticas são bem-vindas para apresentar um projeto para a seleção, desde amadores e desconhecidos até profissionais e famosos. (http://www.cowparade.com.br/cowparade.php).

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Os objetos, as coisas, as referências culturais encontram-se assim desenraizados, já não pertencem a um só “lugar”. Assim, termos como “cultura ocidental”, “ cultura brasileira”, cultura judaica e outros não se sustentariam diante do conjunto de mudanças que afetam a vida dos habitantes do planeta. Isso não quer dizer que as tradições tenham desaparecido ou que estejam fadadas a desaparecerem. Ortiz diz que elas se reafirmam ou se reinterpretam. O autor afirma que

Vivemos hoje um momento de “desterritorialização”, no qual o espaço perde a sua especificidade física. Evidentemente, isso só é possível devido às conquistas tecnológicas. Telefone, fax, televisão, computadores, aviões, etc., são tecnologias que encurtam as distâncias, transformando a própria noção de lugar.

Concordemos ou não com o termo proposto por Ortiz, devemos pensar nessa circulação cultural que atravessa fronteiras de tempo e espaço, promove mesclas para todos os lados, futuro e passado e geram um cenário onde cada ator faz o seu jogo, não cabe mais encarar o popular sempre como dependente. Os movimentos populares também estão interessados em modernizar-se, e os setores hegemônicos em manter o tradicional, ou parte dele, como referente histórico e recurso simbólico contemporâneo. A assimetria entre as partes continua existindo. Mas é mais intrincada do que aparenta a simples divisão entre tradição e modernidade.

A cultura intermediária está cada vez mais viva, ou seja: a cultura popular urbana e a cultura de massa. As duas tradições “puras” (a popular e a clássica) foram-se diluindo paulatinamente, misturando-se às vezes entre si, transformando-se ao longo do processo, gerando uma multiplicidade de formas, tanto orais como escritas e, finalmente eletrônicas (como a cultura de massa), circulando pelas várias camadas sociais da população dos países europeus e latino-americanos até os dias de hoje.

Unidade 4: Problematizações

Depois desse esforço de situar os deslocamentos historicamente faço agora reflexões que visam a problematizar as questões trazidas no texto, e pensa-las no contexto do ensino de artes visuais. Em oposição ao termo arte, com “A” maiúsculo , encontramos os termos arte naif, arte popular, ínsita, etc. frequentemente ligados a manifestações/produções da criação do povo. Vimos na primeira parte desse texto que os conceitos de primitivos, ingênuo, marginal e alguns outros são usualmente ligados à arte popular e seus desdobramentos foram construídos em determinado momento da história atendendo a interesses de uma classe específica.

Esses conceitos concorrem para situações de exclusão, violência e anomalia. Lidos no papel e aplicados a determinadas produções, parecem nomenclaturas inocentes, mas revelam as formas de opressão, de colonização. Situam-se sempre à margem. Marginalidade é um conceito construído não só em oposição à norma culta, mas também em oposição à sociedade, àqueles que vivem à margem dela, indicando grupos díspares, tais como primitivos, alienados e até mesmo crianças, mas reunidos sob uma mesma identidade, ou seja, os periféricos.

Durante muito tempo, ensinaram nos que a cultura dos nossos indígenas era inferior por não terem o domínio da escrita. A cultura letrada, como um dos mecanismos de colonização e homogeneização, exclui ou se apropria das formas orais e visuais dos dominados. O primeiro livro em Tupi-Guarani é escrito pelo jesuíta José de Anchieta, para efeito de catequização. Além do extermínio físico dos indígenas brasileiros, o extermínio identitário na negação, apropriação ou no silenciamento da sua arte é também evidente.

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A ocidentalização cobre o conjunto dos meios de dominação introduzidos na América pela Europa do renascimento: a religião católica, os mecanismos do mercado, o canhão, o livro ou a imagem. Assumiu formas diversas, quase sempre contraditórias, às vezes em franca rivalidade, já que foi a um só tempo material, política, religiosa-caso da conquista espiritual – e artística (GRUZINSKY, 2001: 94).

Por meio do percurso histórico, podemos compreender como, entre os séculos XVIII e o século XX, foram sendo instâncias de legitimação e distintas “nomeações”, foram sendo criadas para as artes “periféricas” para diferencia-las da chamada “arte erudita”. Na construção dessas classificações critérios, internos foram estabelecidos para criar categorias valorativas hierárquicas.

As noções de primitivo, artes tribais, arte ínsita, popular, são posicionadas perifericamente à margem da sociedade ocidental. É importante não naturalizar e universalizar os conceitos e não esquecer a carga histórica do processo de colonização implícita na formatação dos significados desses conceitos.

Quais as aproximações possíveis entre a arte dos pacientes da Dra. Nise da Silveira e a arte “ingênua” dos artistas apresentados por Lélia Coelho Frota? Seriam todos autodidatas? Quais as características de um e de outro?

Convencionalmente o conceito do que seja popular, “é definido pela sua diferença com algo que não é”, a saber, a literatura erudita e letrada, a arte feita e encenada em espaços oficiais, até mesmo o catolicismo oficial com base na tradição culta etc. (Chartier, 1999:55). Embora essas oposições sofram reavaliações e desconstruções por vários campos teóricos na contemporaneidade, podemos dizer que ainda perdura um modelo binário de distinção cultural tais como isso é

A perspectiva pós-colonial – como vem sendo desenvolvida por historiadores culturais e teóricos da literatura – abandona as tradições da sociologia do subdesenvolvimento ou teoria da ‘dependência’. Como modo de análise, ela tenta revisar aquelas pedagogias nacionalistas ou ‘nativistas’ que estabelecem a relação do Terceiro Mundo com o Primeiro Mundo em uma estrutura binária de oposição. (BHABHA, 2001:241)

Problematizar conexões

Problematizar essas divisões classificatórias é uma maneira de questionar o papel marginal e periférico dado às manifestações de arte e cultura fora dos parâmetros dominantes. Desobedece também à condição também periférica desses temas dentro do mundo das artes e seu ensino. Nas discussões sobre as artes “marginais”, a dicotomia entre os conceitos acima é demarcada como se não houvesse espaço para as “contaminações” entre as diversas manifestações artísticas e seus contextos de produção e a subjetividade de cada criador.

Problematizar a linearidade da relação LOCAL + cultura = identidade cultural ligado à ideia de nação nos ajuda a fugir das nomenclaturas impostas. Além desses a discussão da problematizaçao nos permite considerar reconhecimentos e reconstruções identitárias pode nos ajudar a refletir sobre relações entre dominador/dominado e como diferentes encontros culturais são construídos.

Deslocamentos
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Hoje já não cabe, por um lado, o viés esquerdista popular, que procurava maneiras de “resguardar” a cultura popular da contaminação e da vulgarização da mídia e, por outro lado, o viés do discurso nacionalista promovendo as formas populares como formas identitárias de um Brasil tradicional. Proposta utópicas da esquerda e ufanistas da direita tem um ar redentor e se encontram em projetos que tentam regular, formatar manifestações culturais em “isto ou aquilo”.

4.1. Deslocamentos: de arte e cultura popular a visualidades populares

No início desse texto, situei minhas inquietações como docente no campo da cultura visual, investigando o que chamo de visualidades populares. O trabalho com a cultura popular no ensino de arte permite refletir, vivenciar e trabalhar processos de conscientização sobre:

a) questões multiculturais de raça, gênero, classe;

b) lidar com os desafios da cultura visual;

c) estética do cotidiano;

d) as questões de comunidade;

e) aspectos cognitivos de ensino-aprendizagem da arte na produção visual popular. Esses aspectos são muitas vezes camuflados como espontâneos”, “ingênuos” ou autodidatas;

f) Contranarrativas e metáforas

O diálogo com abordagens multiculturais e proposições da Cultura Visual enquanto ensino de arte foi proveitoso no sentido de confrontar ideias e ações pedagógicas nas perspectivas de teorias contemporâneas. Um ponto leva a outros pontos.

Percepções problemáticas

Ao longo desse texto procurei ampliar o enfoque de arte popular para uma visão de cultura visual do povo na contemporaneidade de abordagens teóricas que se preocupam com a inter-relação de saberes diversos. Ana Mae Barbosa usa esse termo para discutir a diversidade e refletir sobre a terminologia Naïf por ocasião da Bienal Naïfs do Brasil 2006 [entre culturas] e sua consequente contaminação pelo popular:

“Sugiro para esta Bienal a incorporação do termo ‘entre culturas’ para continuarmos expandindo as relações entre arte naïf, arte popular, cultura visual do povo e as representações eruditas que incorporam o popular. Esta provavelmente não será uma Bienal da pureza naïf, mas da contaminação, da afirmação de diferentes testemunhos visuais comprometidos com a cultura do nosso povo” [BARBOSA, 2006]

As visualidades populares como um tráfego de mão dupla, da ideia da circulação dos níveis culturais, dos hibridismos culturais e da fusão de códigos estéticos. Contrariando todas as construções conceituais ao longo da história, as chamadas tradições “puras” (a da cultura popular e a da cultura erudita) foram-se diluindo paulatinamente, misturando-se às vezes entre si, transformando-se ao longo do processo, gerando uma multiplicidade de formas, tanto orais como escritas e, finalmente eletrônicas circulando pelas várias camadas sociais da população dos países europeus e latino americanos até os dias de hoje. No entanto, códigos de “alta cultura” são permanentemente reelaborados para a manutenção de ideologias das classes dominantes.

Se os campos culturais hibridizam-se, as relações sociais permanecem criando distinções. Quando a obra de um artista como Bispo do Rosário é comparada aos ready-made de Duchamp ocorre uma operação de legitimação artística em favor de um código com status referencial mais forte do que o outro.

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Para se trabalhar com as matrizes populares ou da cultura visual do povo precisamos de várias portas de acesso, de entender os cruzamento de vários caminhos teóricos que, ao longo do século XX, colocaram a cultura popular como um lugar de enunciação na compreensão de cultura e conhecimento. As micro-histórias, a história vista de baixo, o conhecimento cotidiano, a esfera doméstica, os trabalhos manuais, o afeto, as relações comunitárias, a ecologia, enfim, uma série de aspectos que estão sendo revalorizados dentro de perspectivas da pós-modernidade, mas que são simples fórmulas ou receitas a serem seguidas.

As teorias multiculturais (na educação, arte e cultura), na sua vertente crítica, não se esgotaram e podem provocar conversas/olhares/movimentos instigantes sobre uma produção diversificada. Termos como aliada a discussão sobre cultura visual constitui-se em valioso campo de interlocução. As contribuições da antropologia, da história das mentalidades, da psicologia e psicanálise, dos estudos culturais e pós-coloniais, formam um feixe necessário para a percepção de arte entreculturas, entrefronteiras, numa perspectiva mais contemporânea. Experiências de fronteiras implicam possibilidade de entrar e sair de lugares, de ir e voltar. Implica em passagens. Cruzamentos transculturais a experiência diaspóricas acontecem de várias formas na contemporaneidade.

No lugar de arte popular ou cultura popular, passei a chamar os diversos interesses investigativos como visualidades populares. A arena de atuação que me incluo nessa investigação, a Cultura Visual, como “o estudo da estrutura social da experiência visual” (HERNANDÉZ, 2006, p. 21), focaliza o campo das visualidades como o lugar onde os significados são criados e debatidos. A noção de visualidade é central para o estudo da cultura visual. Enquanto o termo visual faz referência ao processo fisiológico de percepção da luz e sua posterior tradução em imagens pelo cérebro, visualidade toma conta das relações sociais que alteram a produção de sentidos em torno daquilo que observamos, inclusive condicionando ou alterando o modo como percebemos ou deixamos de perceber algo.

O estudo da cultura visual não se encontra contemplado por algum campo de estudo já formatado; pelo contrário, ele transita entre a história da arte, a antropologia, a comunicação, a história, a estética etc., a fim de reunir esforços para analisar um objeto que também não pertence exclusivamente a nenhuma dessas áreas.

Nas palavras de Mirzoeff (2004), cultura visual é uma tática, é uma estrutura interpretativa fluida, centrada na compreensão da resposta aos meios de comunicação visual tanto de indivíduos como de grupos. Sua definição é a partir de questões que são colocadas e de questões que visa a fomentar. (p. 4). Assim as investigações sobre visualidades populares podem levar a investigações metodológicas, estéticas, artísticas e culturais.

A mudança de foco que a educação da cultura visual propõe exige o enfrentamento das noções de ‘releitura’ e ‘leitura da obra de arte’, assim como da noção de ‘contextualização’, instaurando no nosso campo de trabalho a consideração e trânsito entre as diversas possibilidades de manifestação estética, incluindo aquelas que ocupam os lugares da arte (museus, galerias etc.) e aquelas oriundas da chamada indústria cultural. (MARTINS, TOURINHO, DIAS, GUIMARAES E MARTINS, 2009)

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Busco apresentar uma visão híbrida de visualidades populares, fruto de encontro intercultulturais e dinamizações da indústria, da mídia e do próprio resgate de formas tradicionais de manifestações culturais na contemporaneidade. Indago como vários campos culturais se interelacionam, se comunicam e geram diferentes visualidades que são “consumidas” das mais diferentes maneiras. Assim, este texto tenta pensar em “voz alta” sobre questões em torno variações em torno desse tema tentando sair do imobilismo de concepções tradicionais sobre o assunto. No mesmo texto da “troupe de atolados”, assumimos que:

“A pluralidade de perspectivas de interpretação assentadas na vida social das imagens sustenta propostas de educação da cultura visual nas quais não apenas os significados são entendidos como instáveis, mas também as próprias delimitações de campos disciplinares”.

Como integrante dessa troupe, minha discussão sobre visualidades populares conecta-se com abordagens contemporâneas da arte e seu ensino, nas quais a história de vida e a estética do cotidiano são valorizadas e o trabalho manual feminino, antes excluído do mundo das artes, apresenta-se como forte componente estético. Podemos ainda acrescentar que na compreensão pós-moderna de cultura as fronteiras entre alta e baixa cultura, entre arte e cotidiano são questionadas.

A cultura visual do povo é transversal, intra e intercultural. Plural, híbrida, sincrética essa cultura visual abarca um amplo leque de manifestações de arte, design, moda, objetos, arquitetura, danças e festas, religiosidades que se reinventa a cada momento. Como arte-educadora meu interesse pedagógico não se resume as suas manifestações das linguagens ou expressão artística. Interessam-me os modos de subversão e interação com outros códigos, interessam-me os modos de ensino aprendizagem, os modos de recepção e apreensão estética, me interessa os conflitos estéticos, as (re)apropriações e releitura, as bricolagens, a invenção. Interessam-me uma história escondida que ainda não foi desvelada, de pessoas, de momentos, e aquelas que estão sendo feitas no presente e continuam sendo esquecidas ou folclorizadas. E por que me interessa tudo isso?

São muitas as razões, desde os traços de uma trajetória de formação cultural dentro das visualidades populares, de menina crescida entre as bugigangas das feiras nordestinas e no meio do imaginário de histórias de reinos encantados, de batalhas do bem e do mal, de assombrações e tantas outras que alimentaram meu imaginário. No entanto, como docente, essas outras formas estéticas e culturais que transitam nas margens me interessam porque contam histórias de colonização, de opressão e de dualidades entre colonizador e colonizado, entre opressores e oprimidos. Ajuda-me a reconhecer meu próprio discurso colonizador na fala dos artistas do povo. Fala-me do oprimido de Paulo Freire e do seu conhecimento do mundo. Informa-me sobre processos de resistência e de reconstruções identitárias, de táticas e de manhas. Desvelam incorporação e reapropriações artísticas culturais. Nenhuma forma artística/cultural pode ser vista como totalidade, pois toda cultura é fragmentada, e, quando se trata de assuntos relativos a “cultura popular”, a atenção deve ser redobrada para não adotarmos uma visão essencialista e transformar a produção do povo na esfera do exótico.

Questionar a ingenuidade atribuída às manifestações da cultura do povo implica ressaltar trânsitos e contágios com outros populares, com as culturas erudita e de massa, os quadrinhos, como o código escrito, com outros artistas, como o próprio conceito de naif ou de popular. Há, por parte dos artistas populares, a apropriação da discussão conceitual entre “artista ou artesão”, “arte ou artesanato”, “cópia ou originalidade”, por exemplo, entrando no seu repertório, questões discutidas na academia ou paralela a esta.

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Nessa perspectiva, não faz mais sentido o purismo dos tempos de Herder e Grimm nem a atitude passiva das massas em relação à indústria cultural, nem uma oposição frontal ante à cultura erudita. Os cruzamentos que formam as ligas culturais são complexamente incorporados uns aos outros: para Chartier “todas as normas culturais nos quais os historiadores reconhecem a cultura do povo surgem sempre, hoje em dia, como conjuntos mistos que reúnem, uma meada difícil de desembaraçar, elementos de origens bastantes diversas.” (1990: 56)

Operações de desconstrução não significa eliminar ou refutar códigos já instituídos e sim atingi-los transversalmente com outros códigos culturais em propostas multi/inter/transculturais e intertextuais. A arte/cultura do popular não é fixa e representativa de uma cultura nacional estanque. Abriga diásporas, estranhamentos, alteridades, (re)elaborações identitárias no cotidiano e nas tradições permanentemente redesenhadas.

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