Licenciatura em Artes visuais Percurso 1
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Arte/Educação contemporânea

Autora

Drª Ana Mae Barbosa Possui graduação em Direito - Universidade Federal de Pernambuco (1960), mestrado em Art Education - Southern Connecticut State College (1974) e doutorado em Humanistic Education - Boston University (1978). Atualmente é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo e professora da Universidade Anhembi Morumbi. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Arte/Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Ensino da Arte e contextos metodológicos, História do Ensino da Arte e do Desenho , Ensino do Design, Administração de Arte, Interculturalidade,Pedagogia Visual, Estudos de Museus de Arte, Mediação Cultural e Estudos Visuais.

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Nos últimos anos, o esforço de entendermos a área de Arte/Educação ou Ensino da Arte em relação com a cultura que nos cerca gerou novas teorias e retornou a estudos muito significativos. O conceito de Arte como experiência elaborado em 1934 por John Dewey circulou entre os pragmatistas e fenomenologistas com sucesso, mas não teve larga aceitação entre artistas e críticos de arte durante o alto modernismo. Porém, o pós modernismo retomou o conceito embebendo-o em um contextualismo esclarecedor que amplia a noção de experiência e lhe dá uma densidade cultural. Arte é experiência subjetiva e cultural que estimula a cognição.

Em The Arts and the Creation of Mind, Elliot Eisner estabelece uma taxonomia das visões de Arte/Educação que persistem na contemporâneidade. Suas conceituações de Arte e de Educação o aproximam de John Dewey e Paulo Freire. Conceitua Educação como um processo de aprender como inventarmos a nós mesmos. Paulo Freire, menos confiante nas nossas invenções pessoais ensinou-nos que a Educação é um processos de vermos a nós mesmos e ao mundo a volta de nós. Enquanto Eisner enfatiza Imaginação, Paulo Freire valoriza-a mas, sugere diálogos com a Conscientização Social.

Para ambos, a educação é mediatizada pelo mundo em que se vive, formatada pela cultura, influenciada por linguagens, impactada por crenças, clarificada pela necessidade, (PF) afetada por valores e moderada pela individualidade. Trata-se de uma experiência com o mundo empírico, com a cultura e a sociedade personalizada pelo processo de gerar significados, pelas leituras pessoais do mundo fenomenico e das “paisagens interiores” É aí na valorização da experiência que os três filósofos e/ou epistemólogos se encontram, Dewey, Paulo Freire e Eisner. Se para Dewey experiência é conhecimento, para Freire é a consciência da experiência que podemos chamar conhecimento. Já Eisner destaca da experiência do mundo empírico, sua dependência de nosso sistema sensorial biológico, que é a extensão de nosso sistema nervoso ao qual Susanne Langer chama de “orgão da mente”

Segundo Eisner, refinar os sentidos e alargar a imaginação é o trabalho que a Arte faz para potencializar a COGNIÇÃO. Cognição é o processo pela qual o organismo se torna consciente de seu meio ambiente. Novamente os três gigantes da filosofia da Educação se encontram e nos alertam acerca da importância da arte para nos permitir a tolerância à ambigüidade e a exploração de múltiplos sentidos e significações. Esta dubiedade da Arte a torna valiosa na Educação; Arte não tem certo e errado, tem o mais ou o menos adequado o mais ou o menos significativo, o mais ou o menos inventivo.

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Arte na Educação se contrapõe as supostas verdades da Educação e às mais suspeitas ainda, certezas da Escola.

São muitas as visões da Arte/Educação as quais dependem da ênfase que se dá às funções da Arte na Educação. Para Eisner as que operam até nossos dias são:

  1. Auto expressão criadora;
  2. Solução criadora de problemas;
  3. Desenvolvimento cognitivo;
  4. Cultura Visual;
  5. Ser disciplina;
  6. Potencializar a performance acadêmica;
  7. Preparação para o trabalho.

A leitura de Eisner, como sempre, me estimulou a pensar em termos de Brasil e de nossa trajetória histórica. Cada livro novo dos três grandes teóricos da Arte/Educação: Efland, Parsons e Eisner é uma provocação intelectual.

Comecemos a analisar as mais recentes visões categorizadas por Eisner Vejamos a ideia de preparação para o trabalho, enfocando a necessidade de flexibilizar o indivíduo para ser capaz de mudar de emprego pelo menos uma vez na vida e estar consequentemente preparado para desempenhar mais de uma tarefa. Para mim, essa é uma função apontada pela ideologia neo liberal. Encontramos na História do ensino da Arte no Brasil a configuração da visão da arte como preparação para o trabalho no fim do século XIX ancorada nas ideias liberais de Rui Barbosa, André Rebouças, Abílio César Pereira Borges.

Porém, com uma conotação libertaria ligada ao antiescravagismo e à aparentemente nobre preocupação de preparar os escravos recém-libertos para conseguir empregos. Não deixavam de ser hipócritas como os neo-liberais de hoje, que querem que tudo continue o mesmo: eles ganhando muito dinheiro às custas de manter a maioria na instabilidade empregatícia. Os nossos liberais de antigamente pensaram em preparar os escravos para trabalhos de pintura de gregas e frisas decorativas, ornatos sobrepostos como rosáceas e vitrais assim como em métodos de ampliação de figuras para que trabalhassem na construção civil , portanto assimilando-os nas mais baixas classes sociais.

Quanto à Arte na Educação para melhorar a performance acadêmica, esta concepção ainda não chegou ao Brasil. É típica da Arte/Educação Norte- Americana dos últimos anos depois que em uma pesquisa mostrou-se que os dez primeiros10 lugares do exame SAT (equivalente ao ENEM), por uma década, haviam cursado pelo menos duas disciplinas de Arte. No ensino médio, nos Estados Unidos, os alunos escolhem as disciplinas que vão cursar. No Brasil não há liberdade de escolha, o currículo parece prescrição médica. Portanto nem se poderia fazer uma pesquisa dessas no Brasil.

A Arte como disciplina configurada no Disciplined Based Art Education que mudou o ensino da Arte nos Estados Unidos na década de 90 também não emplacou no Brasil , apesar de várias arte-educadores brasileiros terem sido enviados pela iniciativa privada para cursar o instituto de preparação para o DBAE, mais fraco dos financiados pela Getty Foundation, na região pobre de Chattanooga, numa forçada tentativa de ressaltar nosso suposto subdesenvolvimento.

Na realidade, não temos uma Arte/Educação subdesenvolvida mas temos até pensamento próprio. Um amigo da Austrália um dia me perguntou:

Como vocês no Brasil escaparam do DBAE enquanto os países da Asia estão por eles colonizados? Dialogamos com o pós-modernismo ou ultramodernismo e sistematizamos nosso próprio sistema com a Proposta Triangular, inspirada em múltiplas experiências estudadas em diferentes lugares. Hibridizamos falando nossa própria linguagem de necessidades e somos hoje um dos países que junto com Cuba e Chile estão na liderança do ensino da Arte na América Latina com um sistema bem desenvolvido de Arte/Educação. A Colômbia, graças aos esforços dos últimos anos, está prestes a se integrar a esse grupo de qualidade.

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No Modernismo, os lugares de excelência do Ensino da Arte, na América Latina, eram a Argentina e o México.

Das visões da Arte/Educação de que Elliot Eisner nos fala, as que dizem respeito à nossa história e aos nossos dias no Brasil são, em ordem cronológica, a expressão criadora, a solução criadora de problemas, a cognição e a cultura visual. Quanto a essa última, há uma grande diferença em relação ao caso americano.

Eisner dá a entender que foi a decisão de ampliar a análise visual circunscrita à Arte para outros universos visuais, como a publicidade, o cinema, o vídeoclipe que fizeram surgir, nos Estados Unidos, a preocupação com a Multiculturalidade.

No Brasil, o movimento foi inverso. Ao sairmos de uma ditadura de vinte anos, o processo de redemocratização, nos anos 1980, trouxe, em seu bojo, o preocupação plural com a multiculturalidade. Durante a ditadura, os únicos suspiros democráticos no ensino da Arte foram os festivais, especialmente os de Ouro Preto nos quais professores, alunos, artesãos locais e povo em geral podiam intercambiar. Através dos festivais os universitários de arte tinham contato com o povo e suas culturas. Quando os resultados daqueles intercâmbios puderam chegar mais abertamente às Universidades manifestaram-se na necessidade de respeito à produção de todas as classes sociais. Foi o Multiculturalismo baseado na diferença de classes sociais que primeiro eclodiu no Brasil. O revigoramento das ideias de Paulo Freire que voltou ao Brasil em 1980, com uma recepção popular nunca vista para um educador, assim como o início do Pós-Modernismo na Arte/Educação no Festival de Inverno de Campos de Jordão em 1983, consolidaram o valor do reconhecimento das diferenças que depois orientou a política multicultural do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (de 1987 a 1993), que era bastante ampla incluindo a cultura visual do povo como os lateiros, os carnavalescos, os pintores de placas de bar, etc.

Esse esforço Multicultural trazia a necessidade de ver criticamente a produção do povo, das minorias e das “mídias” especialmente a publicidade e a programação da Rede Globo, que fora durante a ditadura e, pelo menos até 2002, mais poderosa que o Ministério de Educação. No Festival de Campos do Jordão(1983), teve lugar o primeiro curso de análise de Televisão oferecido a arte-educadores (oferecido por Mariazinha Fusari e Manuel Moran), que fora precedido de cursos de TV em estúdio, vídeo e cinema, em 1980, durante a Semana de Arte e Ensino da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. (dados providos por Walter Silveira e Tadeu Jungle).

Só nos anos 1990, começamos a usar a expressão Cultura Visual (TV, internet, softwares interativos, etc.) para falar das “mídias” que modelam nossa mente, ensinam-nos sobre Arte e comandam a nossa Educação, embora já viéssemos trabalhando-as criticamente como imagem e como significação. O conceito já era conhecido, mas o termo Cultura Visual só entrou no vocabulário dos nossos Arte-Educadores, depois de criado por Svetlana Alpers e difundido pelos Estados Unidos. Alpers, para escrever o livro A Arte de Descrever viu-se obrigada a criar outra categoria de estudos, porque as categorias até então usadas para estudar a História da Arte europeia não serviam para analisar uma de suas vertentes, o século XVII holandês, seu objeto de estudo. Alpers destaca a tendência do século XVII na Holanda ao estabelecer a equivalência entre pinturas e mapas privilegiando a descrição em ambas as representações. A obra “A Arte de Pintar” de Jan Vermeer exemplifica esta tendência. Em nenhum outro país mapas tiveram uma presença pictórica tão forte. O ponto de vista através do qual os pintores miravam o mundo era, para italianos e espanhóis, uma janela enquanto para os holandeses era a cartografia. Eles foram os primeiros a transformar grandes mapas em tapeçaria e clamar por uma visão de História da Arte expandida que tivesse em consideração imagens de outra categoria além da Arte.

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Até hoje, o debate entre os Estudos Visuais ou Cultura Visual e a História da Arte é incandescente, mas entre Arte/Educação e Cultura Visual no Brasil não há incompatibilidade.

A designação estrangeira Cultura Visual achou no Brasil o caminho preparado por práticas de inclusão de estudos de publicidade, design, TV, etc. no currículo e por livros como A imagem no Ensino da Arte (1991), Metodologia do Ensino da Arte (1993) e outro bem anterior, Teoria e Prática da Educação Artística (1975), que já falava de experiências na Escolinha de Arte de São Paulo com a análise de Imagens da TV.

Mas voltemos ao início, a ideia da arte na escola como expressão criadora difusa data do início do modernismo, tendo como patronos Franz Cizek, artista do Movimento de Secessão de Viena, Viktor Lowenfeld e Herbert Read que para teorizar sobre Arte/Educação recorreram, o primeiro à Freud e o segundo à Jung, tendo como base filosófica comum Martim Buber. Portanto, as primeiras sistematizações teóricas na Arte/Educação foram de origem psicanalitica e psicológica. Embora nenhum desses autores houvessem receitado explícitamente, a análise visual através do desenho de observação da natureza era a única forma aceitável de estimulo à expressão.

Glossário
  1. . Ver: Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: Comarte, 1998.
  2. A Arte Popular chamo “Arte do Povo”. É a Arte reconhecida em separado pelo código hegemônico como arte do povo resultando em que o artista do povo que a faz também se reconhece como artista. Exemplo: Vitalino.
  3. Chamo “Arte das Minorias”, “Estética do Povo” ou Cultura Visual do povo quando o produto tem alta qualidade estética, não é codificado pela cultura dominante e o próprio criador não se vê como artista. Exemplo: o lateiro, as bancas dos feirantes, os bonecos de escapamento, a confeiteira de bolo. Estética das massas quando ligada aos valores visuais dos grandes mitos e manifestações populares, como o Carnaval, o Candomblé.
  4. A Popular Art dos americanos chamo de cultura de massa (no singular).

Como diz Eisner, a ideia do Ensino da Arte como solução criadora de problemas esteve influenciada pela Bauhaus (1919-1932-Weimar-Dessau.

A função do Ensino da Arte era produzir soluções para a vida e para o Design tecnicamente eficientes, esteticamente prazerosas e socialmente relevantes. A ideia era desafiar expectativas tradicionais quando a forma melhor de resolver problema fosse encontrada. Na Escolinha de Arte de São Paulo, trabalhamos não só no desenho de observação de objetos e roupas de bom desenho, visitando lojas da moda, mas ensaiamos o desenho gráfico de capas de discos e livros e a construção de objetos de madeira.

Atualmente, a abordagem mais contemporânea de Arte/Educação, na qual estamos mergulhados no Brasil é a associada ao desenvolvimento cognitivo.

Embora concorde com Eisner de que a visão de Arte/Educação mais fortemente implantada no imaginário popular é a ligada à expressão criadora difusa interpretada como algo emocional e não mental, como atividade concreta e não abstrata, como trabalho das mãos e não da cabeça, o movimento de Arte/Educação como cognição vem-se impondo no Brasil. Através dele se afirma a eficiência da Arte para desenvolver formas sutis de pensar, diferenciar, comparar, generalizar, interpretar, conceber possibilidades, construir, formular hipótese e decifrar metáforas.

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Rudolf Arnheim, foi um dos expoentes da ideia de Arte para o desenvolvimento da Cognição. Sua concepção se baseia na equivalência configuracional entre percepção e cognição. Para ele, perceber é conhecer. Eisner aponta Ulric Neisser e Nelson Goodman como colaboradores dessa visão. Arrisco a afirmar que o Projeto ZERO, que Goodman iniciou e financiou pessoalmente foi a maior fonte de pesquisas sobre a Cognição em Arte, e a Cognição através da Arte foi um forte argumento cognitivo.

Evidenciou-se que Arte depende de julgamento, mas obriga a poucas regras que precisam ser conhecidas antes de se ousar desafiá-las.

Essas regras são para Arnheim, a gramática visual subjacente a todas as operações envolvidas na cognição, como recepção, estocagem e processamento de informação, percepção sensorial, memória, pensamento, aprendizagem, etc. Acusado de formalista, nos inícios dos anos 1980, na efervescência do Pós-Modernismo, Arnheim, entretanto, vem sendo recuperado pelos cognitivistas, pois sua gramática visual não se comprazia apenas na forma mas derivava de uma negociação com o contexto.

A principio, trabalhava-se a percepção dessa gramática visual só a partir da percepção do mundo fenomenico. Nos anos 1980, precisamente a partir de 1983 (Festival de Inverno de Campos do Jordão), o esforço cognitivo de apreender a imagem da Arte se ampliou e outras “mídias” visuais também passaram a interessar à Arte/Educação e a um novo grupo, o de especialistas de Educação e Comunicação.


Referências bibliográficas

AGIRRE, Imanol. Teorías y Prácticas en Educación Artística. Pamplona: Universidad Pública de Navarra, 2000.

ALPERS, Svetlana. A Arte de Descrever, SP: EDUSP, 1999. (Primeira edição em inglês 1982).

BARBOSA, Ana Mae. Teoria e Prática da Educação Artística. São Paulo: Editora Cultrix, 1975.

BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.

BARBOSA, Ana Mae. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: Editora Com/Arte,1998.

DEWEY, John. Art as Experience. New York: Perigee Books, 1980 (1a edição 1934).

EISNER, Elliot. The Arts and the Creation of Mind. New Haven: Yale University Press, 2002.

ERRAZ, M. Heloísa e FUSARI, M. F. Metodologia do Ensino da Arte. São Paulo: Editora Cortez, 1993.

PERKINS, David and LEONDAR, Barbara. The Arts and the Cognition. Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1977.