Resumo
Este relatório técnico-científico descreve as ações do projeto de intervenção cultural que interligou o Centro de Ensino Médio 02 de Ceilândia e o Museu da Limpeza Urbana, no Distrito Federal, à educação formal e não formal, estimulando a valorização e o reconhecimento desse museu enquanto espaço de identidade, construção social e reflexão. Além disso, essa intervenção mostrou as mudanças advindas das transformações tecnológicas através da coleção dos objetos que foram lançados aos estragos da modernização, bem como sensibilizou os alunos envolvidos a enxergarem possibilidades através do lixo e a compreenderem a importância da reciclagem para o desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave: Museu da Limpeza Urbana; Memória Coletiva; Cidadania Socioambiental.
Introdução
Atualmente, em todo o mundo, tem-se discutido medidas de preservação e novas formas de conscientizar a população para uma cidadania socioambiental, uma vez que a violação dos bens ambientais impossibilita a efetivação dos direitos humanos, pois os danos causados à natureza prejudicam o bem-estar, a saúde e a qualidade de vida das pessoas. Nas grandes cidades, um dos problemas que tem chamado atenção é o aumento da quantidade de lixo e o descarte incorreto dos resíduos sólidos, consequência do processo de industrialização, do crescimento da população e do consumo desenfreado da sociedade capitalista.
Assim, tendo em vista a necessidade de se pensar em novas maneiras de buscar um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tomo como objeto desse projeto interventivo o Museu da Limpeza Urbana, uma instituição cultural que fortalece a memória coletiva da Ceilândia-DF e que também envolve a questão ambiental nas suas ações. Sendo assim, essa intervenção torna-se relevante, pois o museu investigado lida com o lixo numa via de mão dupla, dado que, ao mesmo tempo, conscientiza a população em relação à sustentabilidade e conta através de seu acervo a história de seu povo.
O Museu da Limpeza Urbana faz parte da Usina Central de Tratamento de Lixo (UCTL) localizada no Setor P Sul – Ceilândia – DF. Este, mesmo pequeno e pouco conhecido, chama a atenção pela perspectiva pela qual foi instituído, um ponto de memória criado por materiais riquíssimos que foram salvos da destruição e talvez, do completo esquecimento, por catadores da usina. Um espaço de preservação da memória coletiva que guarda a história do que um dia quiseram esquecer, daquilo que quiseram jogar no lixo.
Assim, surge o interesse em estudar o Museu da Limpeza Urbana e o Centro de Ensino Médio 02 de Ceilândia (CEM 02), interligando a educação formal e não formal de modo a estimular a valorização e o reconhecimento do museu enquanto espaço de identidade, construção social e reflexão.
Logo, o intuito principal dessa intervenção foi analisar a contribuição do Museu da Limpeza Urbana para a construção da memória coletiva e para o desenvolvimento da cidadania socioambiental da Ceilândia, partindo do pressuposto de que, além da preservação, os museus possuem um potencial educativo capaz de trazer muitos debates, inclusive em torno do desenvolvimento sustentável, tornando-se ponto de partida na formação de cidadãos voltados para o bem comum.
Página 540Desenvolvimento
A ação intervencionista baseou-se nos pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa qualitativa e teve como participantes alunos do 2º e 3º ano do CEM 02 de Ceilândia. Após o recolhimento das autorizações da Escola e do Museu, divulgou-se o projeto nas aulas de Sociologia, disciplina a qual eu ministrava na escola. Como o único horário disponível para a execução do projeto era no contra turno ao de aula, a adesão dos alunos era uma preocupação, porque muitos trabalhavam e a maioria morava distante da escola.
Inicialmente, 12 alunos despertaram interesse em participar do projeto, porém dois deles desistiram, pois haviam conseguido um estágio. Sendo assim, com 10 alunos voluntários, foi marcada a primeira reunião para explicar melhor sobre o Museu da Limpeza Urbana e as atividades a serem executadas ao longo do projeto.
Primeiras informações sobre o Museu
No dia 15/03/2018 aconteceu o primeiro encontro com os alunos voluntários, quando foi projetado um slide com a imagem do museu e passadas algumas informações prévias sobre o local. Ao questionar se alguém já tinha ido ao Museu ou ouvido falar sobre ele, a resposta foi unânime; até então, este museu era um espaço cultural desconhecido entre os alunos.
Explicou-se, neste dia, que a ideia da criação do Museu da Limpeza Urbana surgiu em 1996, por Cícero Carlos Gomes, na época, chefe de operação da Usina Central de Tratamento de Lixo (UCTL), o qual contou com o apoio da funcionária Maria Rodrigues, que trabalha no Museu desde seu surgimento. Consequentemente, todos os funcionários da Usina acolheram o projeto de implantação do museu, sendo que a junção das peças não seria possível sem a participação dos catadores que trabalhavam diretamente com o lixo.
Ressaltou-se que além desse trabalho de reunir o acervo feito pelos catadores, a comunidade com o tempo também passou a fazer doações e que o telex, o piano e algumas televisões eram exemplos de objetos doados. Dessa forma, explicou-se que o Museu da Limpeza Urbana ao oportunizar a participação da comunidade transforma-se em um espaço de engajamento social, debate e reflexão coletiva, de tal forma a tornar os visitantes atores sociais.
Após essas informações, alguns comentários chamaram atenção, como o da aluna Lorenna, que relatou ser diferente a ideia de um museu feito por catadores na Ceilândia, por só conhecer os museus de Brasília, e o da aluna Sandy, que disse ser engraçado uma pessoa ir visitar o museu e encontrar um objeto que ela mesma jogou no lixo e o catador transformou em algo importante. A partir desses apontamentos foi possível perceber que os alunos estavam entendendo a perspectiva diferenciada desse museu e mostrando-se receptivos às ideias do projeto.
Por fim, acrescentou-se que, atualmente, o museu é mantido pelo Serviço de Limpeza Urbana do Distrito Federal, sendo necessária a marcação antecipada para visitação, através de um formulário que se encontra no sítio da instituição. Pelo que foi levantado, o foco principal de visitação são alunos das escolas da cidade e estagiários de cursos ligados à questão ambiental, mas também recebe pessoas diversas, que ao descobrirem a existência do museu pelas mídias locais se deslocam para conhecê-lo.
Página 541Identificando os conhecimentos prévios
No encontro realizado no dia 22/03/2018 discutimos alguns conceitos relacionados ao projeto. Questionados sobre o conceito de cultura, responderam ser: “um jeito comum”, “o costume de cada região”, “o jeito de expressar no local em que está inserido”, além de ressaltarem que a música, o teatro, a comida, a dança e a religião fazem parte da cultura.
Quanto ao conceito de identidade responderam: “refere-se de onde você veio”, “conjunto de características de uma pessoa ou de um grupo”, “algo que define a pessoa”. Em relação à palavra museu, os alunos disseram ser a “forma de relembrar coisas antigas”, “história”, “relíquias”, “escultura e fotografias”, “linha do tempo” e “recordação”.
Ao termo patrimônio, associaram a ideia de patrimônio público e privado e, sobre a memória coletiva, colocaram-na como sendo “as lembranças de um grupo”. Já a palavra cidadania foi relacionada aos direitos e deveres do povo e cidadania socioambiental associada à preservação da natureza e ao dever do cidadão de cuidar do meio ambiente.
Seguindo a mesma dinâmica de debate, perguntou-se sobre o surgimento da Ceilândia. As respostas foram que “os burgueses não queriam que ficássemos no centro”, “os imigrantes tiveram que sair de Brasília, pois só queriam a mão de obra do pobre”. Observou-se nesta dinâmica que os alunos possuíam um conhecimento prévio sobre os conceitos relacionados ao projeto, bem como sobre o surgimento da Ceilândia, mesmo que de forma sucinta e sem aprofundamento.
Conhecendo o Museu da Limpeza Urbana
No encontro do dia 29/03/2018 visitou-se o Museu da Limpeza Urbana e a todos foi entregue uma ficha de observação (anexo) para o registro de suas reflexões sobre o espaço. Notou-se nesse dia a empolgação dos estudantes ao sair do ambiente da escola para ir ao museu. No percurso, dialogamos sobre os pontos culturais que eles já conheciam, inclusive, passamos por alguns ao longo do caminho.
Os alunos disseram conhecer os pontos mais divulgados pelas mídias e os que se situam no centro da cidade, como a Feira Central, a Caixa d’água, a Praça da Bíblia, a Biblioteca Pública, a Praça dos Eucaliptos, o Centro Cultural e a Casa do Cantador. Mesmo assim, muitos só conheciam esses pontos pela fachada. Essa informação mostrou o quanto a relação educação formal e não formal ainda é pequena ou muitas vezes inexistente.
Ao chegar ao museu, tivemos um rápido contato com uma de suas idealizadoras, a Dona Maria. Questionaram-na sobre a importância do Museu para a Ceilândia e para as gerações futuras e ela ressaltou: “- Eu acho muito importante esse museu, pra Ceilândia e para gerações futuras, por que tem muita coisa antiga que as crianças que vão nascendo hoje vão ter a oportunidade de vim aqui conhecer”.
Da fala de Dona Maria se extrai a necessidade de se preservar o antigo para que as crianças e jovens ao conhecerem o museu possam reconhecer as mudanças advindas principalmente das transformações tecnológicas, isso porque a percepção do tempo é uma percepção de diferenças, o que torna o museu uma oportunidade de apreciar e vivenciar a história de si mesmo e do seu povo.
Página 542Após a rápida conversa com Dona Maria, outra funcionária guiou os alunos e continuou a explicação sobre o Museu. Os alunos demonstraram curiosidade e ficaram fascinados por vários objetos como, a máquina de datilografia, as máquinas fotográficas, as câmeras filmadoras, o computador e os celulares antigos. E perguntavam o tempo todo como as pessoas jogavam tantas coisas legais no lixo. A figura 2 mostra o avanço da tecnologia, onde, através do seu smartfone, a aluna tira foto de uma câmera fotográfica antiga e desconhecida para ela.
Outra coisa que chamou atenção foram as perguntas quanto a funcionalidade dos objetos com os quais nunca tiveram contato, como o telex e o ferro à brasa. Além disso, a observação das peças antigas fez com que os alunos acessassem memórias. Ao olhar para uma máquina de costura, uma aluna recordou-se da avó e da família com uma lembrança de afeto. “Esse objeto fez parte da minha vida”.
Durante a visitação diversos assuntos importantes foram tratados, como a necessidade do aterro, da coleta seletiva e de repensar o consumo, pois, nas palavras da guia Natália “o meio ambiente somos nós, não podemos tratá-lo de forma separada”.
Relatando o aprendizado
No encontro posterior, realizado no dia 05/04/2018, fizemos uma roda de debate sobre o que foi aprendido durante a visita no museu, discutindo as informações coletadas individualmente em campo. Essa ação foi de suma importância para o projeto, pois segundo Katia Abud “a volta para a escola não precisa por fim à experiência da visita ao museu. Pelo contrário, esse é um momento em que os alunos explicitam questões, dúvidas, curiosidades.” (Abud, 2010, p. 143 apud Pacheco, 2012, p. 77).
Notou-se que todos acharam o local bonito, organizado e limpo, diferente da ideia que tinham antes. Como pode ser observado na fala de uma aluna: “quando se fala de museu do lixo, pensamos em algo bagunçado” (Yasmin). Na percepção da aluna Thamiris “a Dona Maria é muito gentil e receptiva” e “os objetos do museu nos trazem nostalgia e reflexão, tentamos imaginar o porquê daquilo ter ido para o lixo e como era a pessoa que usava o objeto”. Ainda na visão dessa aluna “as câmeras fotográficas são o que mais chamaram atenção, são vários tipos e são todas antigas. É incrível imaginar toda a história que estes objetos tiveram antes de irem para o lixo.”
Corroborando o pensamento da aluna, Huyssen (1997) entende que “os museus foram criados para serem instituições pragmáticas que colecionam, salvam e preservam aquilo que foi lançado aos estragos da modernização”. E, assim, tem sido o trabalho do Museu da Limpeza Urbana nos últimos anos, colecionar objetos considerados ultrapassados para comércio, mas que possuem um valor inestimável para salvaguardar a história social.
Durante a visitação, os alunos se surpreendiam com objetos desconhecidos e acessavam memórias de pessoas e locais que tinham objetos iguais aos expostos, como se observa nos comentários realizados:
Página 543"A exposição me traz lembranças de filmes antigos” (Joice)
“Tem muitos objetos antigos que os meus pais usavam, isso me trouxe ótimas lembranças da minha infância” (Bianca)
“O que me chamou atenção foram as máquinas de escrever super antigas, tinha uma na minha casa, me lembra minha infância”. (Davi)
Refletiram também sobre o consumo:
“O museu nos atenta a pensar no nosso consumo e nas nossas necessidades”. (Joice)
“Observamos o avanço tecnológico e vemos o quanto nós somos consumistas, faz a gente pensar no tanto que jogamos coisas úteis no lixo ao invés de reciclarmos.” (Bianca)
Dessa forma, o que torna ainda mais interessante esse Museu é que além da questão cultural destaca-se também a perspectiva ambiental. Isso porque o lixo que seria descartado por não possuir valor econômico encontra no museu sua importância, ao contar a transformação histórica, social e tecnológica não só da Ceilândia, mas do Distrito Federal e do Brasil. Assim, ao aproveitar o lixo que seria descartado tornando-o peça do seu acervo, o Museu desenvolve um trabalho coletivo de desenvolvimento sustentável, resguardando e efetivando um direito assegurado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a qual determina em seu artigo 225 que:
Art. 225 Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Portanto, assim como proposto no artigo supracitado, o Museu tem feito sua parte no que diz respeito à preservação ambiental e tem convidado a sociedade a também contribuir com essa ação benéfica a todos. Nesse contexto, a relação da escola com o Museu da Limpeza Urbana é bastante significativa no que pese a reflexão dos alunos sobre sua responsabilidade para o mundo sustentável, seus deveres e comprometimento com as realidades de vida local-global e no estímulo para a formação da cidadania socioambiental.
A educação voltada à cidadania socioambiental deve pautar-se na possibilidade de que a escola seja um ambiente propício ao aprendizado e exercício da cidadania. Para tanto, é necessário uma prática escolar relacionada ao desenvolvimento em valores e atitudes responsáveis para com os ambientes de vivência dos educandos, pela prevenção e solução dos problemas socioambientais presentes. (CASANOVA, 2012, p. 17)
Sendo assim, como o museu expõe a complexidade da realidade social e ambiental da Ceilândia de forma atrativa e ao mesmo tempo crítica, torna-se um espaço de ensino não-formal privilegiado para se debater com os alunos modos de se preservar a natureza para que o futuro das próximas gerações não seja comprometido.
De outro modo, abordou-se também o preconceito que sofrem as pessoas que trabalham com a separação dos resíduos para a reciclagem. Quanto a esse tema a aluna Thamiris enfatizou sobre a desvalorização dos catadores, apontando que “há um preconceito com as pessoas que trabalham com esses resíduos recicláveis e apenas pela aparência já são discriminados”. Sobre o assunto, a aluna Taylane complementa: “Tipo, a gente vê a cidade de Ceilândia tão limpa, mas nem imagina para onde vai todo o lixo”. Aqui se percebe que os alunos entenderam a importância desses profissionais para a sociedade e o quanto são injustos os estereótipos a eles associados.
Página 544O museu torna-se um ponto de memória criado por um grupo pouco valorizado socialmente, que segundo a aluna Ana Carolina “liga a história da Ceilândia de uma forma única, pois conta a sua história dentro de outra perspectiva, dentro da visão dos catadores”. Neste sentido, segundo o pensamento de Walter Benjamin, citado por Mattos (1992), o proletariado retira a sua poesia do passado e não do futuro, numa relação com a tradição. Na sua concepção, “assim como a classe dominante constrói sua tradição, os dominados também devem construir: toda tradição é uma invenção”.
Mattos (1992) entende que os vencidos devem reabrir o passado, reingressar nos seus fragmentos e reconstituí-los segundo sua própria interpretação à luz do presente. Na visão de Benjamin, apresentada pela autora, o desenraizamento com a tradição seria uma tragédia da modernidade, uma perda da história, uma perda da memória. Para que isso não aconteça, os catadores utilizam o museu para criar uma tradição, recontar sua história e do seu lugar de pertença, evitando que materiais riquíssimos e fatos tão significativos para um povo caiam no esquecimento.
No que se refere à importância do museu para a Ceilândia, a aluna Joice enfatiza que “o museu é um local que conta a nossa história da cidade e tem a ver com a representatividade”. Seguindo esse pensamento, a aluna Aila comenta que “o lixo do museu mostra um pouco da história das pessoas que moravam por aqui, as coisas que elas usavam”. Já o aluno Davi descreve “o Museu é basicamente a história da Ceilândia, dos moradores da cidade. Cada objeto jogado fora tinha uma história. As câmeras, por exemplo, o que podem ter fotografado ou filmado? O piano, quem tocou? Que músicas foram tocadas?”.
Assim, o objeto exposto no Museu da Limpeza Urbana está longe de ser apenas um artefato material, ele é também uma narrativa compromissada com o conhecimento, a memória e reflexão de um povo. As histórias que são contadas sobre as pessoas que trabalham com o lixo, sobre a comunidade que o descarta, sobre a Ceilândia como um todo, desempenham um papel cultural essencial para a manutenção de memórias e identidades, pois liga o indivíduo à comunidade através de traços culturais.
A memória coletiva está na base da construção da identidade, uma vez que essa identidade reflete o investimento que um grupo ou comunidade faz na memória coletiva; ou seja, a memória reforça sentidos de pertença identitária, auxiliando na coesão do grupo ou comunidade, contribuindo para a sua continuidade no tempo. (Halbwachs,1992 apud Marques, 2013, p. 239). Assim, no caso do museu estudado, os esforços memoriais são também identitários, pois aproximam o passado e o presente da Ceilândia, e onde, através das relíquias, dos vestígios ou arquivos, o grupo narra a si próprio.
Página 545Corroborando com esse entendimento, Cardini apud Sandoval & Mahfoud (1993) afirma que a grande protagonista da história é a memória coletiva, que constantemente reafirma e mantém misticamente um passado que correria o risco de morrer definitivamente ou de permanecer irremediavelmente desconhecido. Seguindo a mesma linha de pensamento, Sandoval & Mahfoud, (1993) afirma que a memória é um trabalho de reconhecimento e reconstrução que atualiza os “quadros sociais” nos quais as lembranças podem permanecer e, então, articular-se entre si. Para esses autores é impossível que uma memória seja exclusivamente ou estritamente individual, uma vez que as lembranças dos indivíduos são, sempre, construídas a partir de sua relação de pertença a um grupo. Nessa concepção, Pollak (1992) entende que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou grupo em sua reconstrução de si.
Logo, relacionando os museus com a criação e fortalecimento da memória coletiva, percebe-se que a instituição cultural em intervenção, além de possibilitar o conhecimento sobre o passado participa da construção social dos cidadãos, pois ao permitir o conhecimento do que lhes é próprio da cultura, propicia que esta seja ressignificada e que os costumes sejam passados adiante. Após os comentários sobre as percepções e conhecimentos adquiridos no museu, foi solicitado que cada aluno fizesse um desenho do que mais lhe chamou atenção.
No momento de apresentação, a fala e o desenho da aluna Joice chamaram a atenção para a figura de Dona Maria, idealizadora do museu:
“Eu fiz uma senhora para representar Dona Maria, e algumas coisas do museu que eu lembro e que me chamaram atenção, e essas coisas estão ligadas a ela porque faz parte da memória dela também, pois foi ela que começou o museu”. (Joice)
Seguindo essa mesma ideia sobre memória, a aluna Thamiris descreveu:
“Desenhei uma câmera fotográfica para representar a memória, a gente pode imaginar as pessoas que possuíam antes de ir para o lixo, e para representar também as câmeras que eu gostei de lá, porque tinha câmeras de todas as gerações, aí eu achei interessante”. (Thamiris)
Da análise às atividades desenvolvidas observou-se, através da segurança na fala e da maturidade na apresentação, como os assuntos foram debatidos em uma grande absorção pelos alunos dos conhecimentos referentes ao museu. Ao longo dos encontros muitas reflexões foram feitas, principalmente sobre a necessidade de maior divulgação do Museu da Limpeza Urbana para torná-lo mais frequentado.
Confecção do Boneco Araxá
No encontro do dia 12/04/2018 a proposta inicial seria a criação de objetos reciclados que representassem a memória da Ceilândia. Porém, após a ida ao Museu, os alunos tiveram a ideia de confeccionar um boneco, uma vez que no local havia vários bonecos expostos.
Figura 11 Bonecos expostos no museu. Fonte – Registro dos alunos
O boneco foi construído com um metro e vinte de altura e deram-no o nome de Araxá. O nome foi escolhido de forma coletiva. Os alunos pesquisaram na internet palavras de origem indígena que tinham a ver com meio ambiente, mundo e preservação. A aluna Thamiris encontrou a palavra Araxá que em tupi-guarani “ara” significa mundo e “eça” significa ver - vista do mundo. Como o boneco tem a representação do planeta Terra em suas mãos, todo o grupo concordou com o nome.
Página 546Como o tempo foi pouco para a confecção do boneco, usamos o encontro do dia 19/04/2018 para terminarmos o trabalho. Além disso, a aluna Bianca Neves apresentou neste dia uma poesia que escreveu sobre o Museu:
O Lixo que conta história
O lixo que é descartado,
Conta história.
Uma delas é sobre um povo desvalorizado,
Os candangos e nordestinos que levantaram Brasília.
Jogados de escanteio em terras mais esquecidas.
Esses povos trouxeram consigo algo rico que jamais será esquecido, a diversidade.
O Estado não é capaz de pagar o sangue que foi derramado ao construir o Distrito.Relembrar a história da Ceilândia,
Foi uma iniciativa do Serviço de Limpeza Urbana.
Mas, esse trabalho de manter viva uma trajetória cultural,
Foi graças aos catadores que viram a importância de ter um memorial.O museu conta história.
Mantém viva as memórias.
De épocas muitas vezes escassas de glória.
Mas, sempre houve a felicidade,
E o último sentimento da caixa de Pandora.
Os trabalhadores do SLU.
Contaram suas próprias histórias.
Os preconceitos sofridos, e direitos negados,
Censura a importância desse trabalho na sociedade.
A reciclagem, o museu, o lixo que conta história,
Nunca será destruído.
É cultura.
É memória.
É resistência.(Bianca Neves – 2N 2018)
A exposição
No dia 09/06/2018 as fotos tiradas durante a visitação ao museu (apêndice) e o boneco Araxá feito pelos alunos foram expostos no pátio da escola, durante a Feira de Ciências. Em relação às fotografias, temos na compreensão de Le Goff (1990) que elas revolucionam o campo de estudo sobre a memória, pois “multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica”.
Como a exposição foi colocada em um local estratégico próximo do portão de entrada e saída dos alunos, muitas pessoas passaram para observar do que se tratava, incluindo, além dos alunos, os professores, a direção e demais funcionários. Esse momento permitiu avaliar os conhecimentos adquiridos pelos alunos durante o projeto. A aluna Joice, por exemplo, explicou para uma professora da escola que “com o surgimento do museu foi possível que o próprio catador recontasse sua história e percebessem a importância do seu trabalho”.
Página 547É importante destacar que as colocações dos alunos durante a visitação ao museu foram as mesmas percebidas nas falas de muitos alunos, professores e demais funcionários que comentaram as fotos. Estes acessaram memórias antigas, relembrando lugares e pessoas que possuíam aqueles objetos. Por fim, os materiais confeccionados pelos alunos foram levados ao museu, para ressaltar a importância da colaboração deste em todo o processo de reflexão e aprendizado.
Conclusão
Essa intervenção cultural mostrou que os objetos expostos no Museu da Limpeza Urbana são também uma narrativa, isto é, uma história contada sobre as pessoas que trabalham com o lixo, sobre a comunidade que o descarta, sobre a Ceilândia como um todo. Percebeu-se que o Museu, ao possibilitar o conhecimento sobre o passado de Ceilândia, também participa da construção social dos cidadãos, pois sensibiliza os visitantes a enxergarem possibilidades através do lixo e a compreenderem a importância da reciclagem para o desenvolvimento sustentável.
Em relação à junção do ensino formal e não formal é possível identificar que esse projeto conseguiu desenvolver o aprendizado e trazer reflexões para que o aluno se assuma enquanto ser social e histórico, como ser pensante e capaz de intervir no meio que vive. Seguindo as ideias de Freire (2012) a educação deve ser forma de intervenção no mundo, onde o aprender não se resuma em apenas adaptação, mas, sobretudo, torna-se um instrumento de transformação da realidade.
Por fim, essa ação de intervenção cumpriu com o objetivo de mostrar a contribuição do Museu da Limpeza Urbana para a construção da memória coletiva e para o desenvolvimento da cidadania socioambiental da Ceilândia. Foi percebido no debate, nos desenhos, na construção do boneco Araxá com resíduos recicláveis, e nas falas durante a exposição, que muito conhecimento foi assimilado e construído.
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