Resumo
O presente trabalho tem como objetivo trabalhar o conceito de memória individual e coletiva através da exposição fotográfica e de relatos orais de moradores do canal de São Simão a fim de que não se percam as lembranças de um patrimônio imaterial que ainda vive na memória de diversos moradores da cidade, que foi criada logo após a inundação. Ainda partindo dessa ideia, a intervenção cultural demonstrou a relevância e a importância do canal de São Simão às pessoas que não viveram e não tiveram tal conhecimento. Ainda como um encontro de gerações e um processo de transformação na mentalidade do público-alvo, o ponto alto foi o despertar da consciência de preservação e legitimação de uma história imersa sob águas profundas, mas que está viva no coração de muitas pessoas que gostariam de perpetuar, por meio de suas memórias, lembranças para gerações futuras. Através da oralidade, pudemos transpor barreiras do tempo e trazer à tona a importância de São Simão Velho antes da construção de São Simão e, principalmente, observar que o desenvolvimento da nova cidade se deu através dos sacrifícios de pessoas que entenderam a importância da construção da Usina Hidrelétrica, mas que carregam em suas mentes e seus corações lembranças intransponíveis do lugar onde viveram em uma realidade simples, porém feliz.
Palavras-chave: Patrimônio. Memória. Canal de São Simão.
1. Introdução
A ação cultural intitulada “São Simão Velho: história, memória e oralidade” foi realizada na feira coberta, que é um ponto de referência cultural do município. A ação envolveu uma diversidade de pessoas, dentre elas, crianças, jovens e adultos, vindas não só da cidade, mas também da zona rural,
O fator primordial seria recontar a história da cidade de São Simão Velho a partir da ótica de quem presenciou todos os momentos históricos até a construção da barragem pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), nos referindo ao processo de remanejamento das pessoas, contando não só com os relatos orais, mas com o poder da imagem, das fotos raras e obtidas naqueles momentos, além de diversas conversas informais com moradores de São Simão Velho.
A história da cidade foi recontada pelos moradores com os quais foram feitas as entrevistas, em um primeiro momento. Posteriormente, foi feita a exposição fotográfica e, também, a exposição das entrevistas na feira coberta. As imagens foram todas retiradas do site da prefeitura municipal de São Simão, e, a partir do momento em que a ação estava sendo desenvolvida, houve uma interação direta com o público, o qual acrescentou novos detalhes da história da cidade de maneira informal. Ou seja, a história foi recontada pelos entrevistados, pelas imagens, e pelo público da feira coberta.
Vários motivos instigaram a pesquisa sobre o tema, uma vez que minha família fez parte dessa história. Eles foram moradores de São Simão Velho que passaram pelo processo de transição de São Simão Velho para a nova cidade. Para Halbwachs (1978), “o uso da memória individual está extremamente ligada às memórias coletivas e devem ser utilizadas como método de estudo, não apenas pelas riquezas dos detalhes obtidos, mas pela forma que uma conduz a outra”.
Página 393Dar voz aos moradores de São Simão Velho e visibilizar essa história, a riqueza de detalhes obtida nesse processo de elaboração da intervenção cultural, melhorou meu entendimento sobre cultura, patrimônio e, também, sobre cidadania. Quando falamos em cultura, esta pode ser entendida, em sua totalidade, como tudo que o homem produz. Na concepção antropológica, pode-se dizer que:
[...] a cultura se produz através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada indivíduo ergue à sua volta, e em função de determinações de tipo diverso, pequenos mundos de sentido que lhe permitem uma relativa estabilidade. (BOTELHO, 2001, p. 3).
Já para Edward Taylor, “a cultura em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (apud LARAIA, 2006, p.25). É necessário ressaltar que há diversas outras definições de cultura que foram desenvolvidas ao longo dos anos.
Em relação ao patrimônio, ele pode ser definido tanto como material como imaterial. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2003), “o patrimônio cultural é de fundamental importância para a memória, a identidade e a criatividade dos povos e a riqueza das culturas.” Para Londres (2001, p. 69-78), “patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos preservar: são os monumentos e obras de arte e, também, as festas, músicas e danças, os folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e falares. Tudo enfim que produzimos com as mãos, as ideias e a fantasia”. Segundo Dallari (2004, p. 24), “a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo”.
Após a compreensão dos conceitos acima mencionados, foi o momento de levar um pouco dos conhecimentos que eu obtive durante o processo de formação do curso “Patrimônio, cidadania, e direitos culturais” a outras pessoas e fazer com que elas entendessem sobre o assunto, o que foi muito relevante para meu crescimento pessoal e, posteriormente, para o profissional. Utilizando os referenciais teóricos sobre memória coletiva, comunicação, direitos culturais, memória para a construção da ação, consegui que essas pessoas compreendessem um pouco mais sobre a memória, a oralidade, a relação das entrevistas com o tema e a proposta.
O tema é de fundamental importância, pois está interligado ao processo de contar a história a partir de relatos orais, das memórias e das imagens. Deve-se salientar o poder da história oral para a realização da ação cultural, uma vez que sua potência está inserida no contexto social, onde busca, através dos relatos de memórias, que os indivíduos que foram excluídos ou deixados de lado sejam ouvidos, e que suas histórias sejam contadas. Segundo Holanda Meihy:
Página 394História oral é um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e que continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem entrevistadas. O projeto prevê: planejamento da condução das gravações com definição de locais, tempo de duração e demais fatores ambientais; transcrição e estabelecimento de textos; conferência do produto escrito; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos resultados que devem, em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas. (MEIHY, HOLANDA, 2010, p. 17)
A história oral oferece um conceito multidisciplinar ao qual as abordagens são ilimitadas, abrangendo diversas áreas, valorizando as memórias dos indivíduos, geradas no seu cotidiano, nos seus detalhes, nas suas crenças, danças, nos seus conhecimentos.
[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992: 17).
Para Thompson (1992, p.150),
...enquanto os historiadores estudam os atores da história a distância, a caracterização que fazem de suas vidas, opiniões e ações sempre estará sujeita a ser descrições defeituosas, projeções da experiência e da imaginação do próprio historiador: uma forma erudita de ficção. A evidência oral, transformando os "objetos" de estudo em "sujeitos", contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira.
Intimamente relacionada às questões relativas à memória, a micro história possui um papel de destaque, buscando valorizar e dar ênfase aos pequenos acontecimentos da sociedade.
A ação cultural, desenvolvida em forma de mostra fotográfica e fragmentos de entrevistas, teve como objetivo resguardar e reescrever a história de São Simão Velho através de imagens e relatos orais formais e informais a fim de valorizar a história local, mostrando, assim, a importância na criação da identidade enquanto cidadão. Foi possível, através da ação, resgatar as lembranças e memórias das gerações passadas, valorizando sua história e os acontecimentos da vida cotidiana, determinando a importância da cidade que se perdeu em decorrência da construção da usina hidrelétrica.
O ponto alto da ação cultural foi a interação do público com a exposição fotográfica, embora ela tenha enfrentado vários obstáculos. Ao longo desse caminho todas as expectativas foram superadas, ao vermos as pessoas interessadas pelo trabalho simples, mas extremamente importante para a população da cidade. Presenciar as pessoas se aproximando da exposição e muitas delas relatando suas vivências, apontando para as imagens e reconhecendo os locais, foi algo gratificante para mim, principalmente quando elogiada pela ideia e pela motivação.
Ao longo do caminho, embora eu tenha recebido críticas a respeito da construção do projeto, por dizer que era uma ideia saturada e que havia muitas coisas já escritas sobre o objeto de estudo, decidi seguir firme no meu propósito de fazer algo que transpusesse barreiras. Felizmente consegui, sendo motivada muitas vezes pelas palavras negativas obtidas de colegas que não enxergavam a grandeza e o poder das lembranças.
Se existia tanto material escrito a respeito do tema, por que havia tanta gente sem saber a importância, a relevância e a existência dessa cidade? Era isso o que eu indagava. Ao começar um processo de seleção do material, busquei uma parceria sem sucesso com o Poder Legislativo, o qual não se esforçou em nada para que a população fosse presenteada com essa pequena mostra fotográfica. Embora tenha um rico acervo, o Poder Legislativo não fez questão da divulgação e muito menos da exposição. Creio que isso se deve à falta de interesse sobre o assunto.
Página 395Segui desmotivada, às vezes. Recorri, então, a um livro que se encontra na biblioteca municipal, que se chama “Cessou o canto das águas”, de autoria de João Alberto Soares Floriano, em 1999, e consegui entender um pouco mais da história e descobrir novos fatos. As imagens obtidas para a mostra fotográfica encontram-se todas no site da prefeitura municipal de São Simão, em domínio público. As entrevistas foram feitas com uma família que habitava a cidade desde os seus primórdios e que contou com riqueza de detalhes, sendo estas anexadas na ação cultural e servindo de base para que a história fosse recontada.
2. Memória, memória individual, memória coletiva e identidade
O presente trabalho buscou a construção de uma ação cultural voltada para a comunidade da cidade de São Simão. O fator principal era recontar a história da cidade de forma legítima através de memórias coletivas e individuais, recordações, lembranças, tornando assim possível promover uma espécie de reconstrução de nossas lembranças passadas. Segundo Halbwachs (1978, p.25), “podemos reconstruir um conjunto de memórias de modo a reconhecê-las”.
A memória individual, segundo Halbwachs, é apenas uma parte da memória coletiva ao ponto em que elas se fundem, pois as lembranças sempre são compartilhadas entre a sociedade. Sendo assim, pode-se concluir que a memória individual não existe por si mesma.
A memória individual está contida no conjunto maior da memória coletiva, sendo apenas um fragmento ou uma visão parcial dos fatos vivenciados pelo grupo. Ela é mais densa, porém, menos abrangente do que a memória social. De modo geral, o indivíduo apenas materializa a ação de forças sociais que o ultrapassam. Para Halbwachs, o sentimento de liberdade e singularidade do indivíduo não passa de uma ilusão: a diversidade de comportamentos individuais pode ser entendida como o resultado das diferentes combinações de forças sociais sobre cada sujeito. (RIOS,2013, p.5).
Como as memórias coletivas são de suma importância para a construção do trabalho, podemos ressaltar que a união das pessoas e o processo de construção da ação cultural se deu a partir da colaboração de membros da comunidade que reuniram suas lembranças como um quebra-cabeça, e cada detalhe individual ia se transformando em uma história completa, com os resquícios de lembranças de diversas pessoas. Cada memória considerada individual é uma forma do ser observar um conjunto de memórias que na verdade seria coletiva, uma vez que nunca estivemos sós no mundo.
Ao relacionar essas memórias com as imagens numa construção idealizada de emprestar a estas sua substância, é que nossa memória não é uma tabula rasa e que nos sentimos capazes por nossas próprias forças, de perceber, como num espelho turvo, alguns traços e alguns contornos que nos devolveriam a imagem do passado (HALBWACHS, 1978, p.28).
A forma de se pensar a memória se distingue da história, uma vez que as memórias possam ser diversas, enquanto a história é só uma. Ademais, nesse processo de relembrar o passado através da história e da memória, pode-se observar que, embora distintas, completaram-se entre si. (HALBWACHS, 1978, p.28). Para Halbwachs, a importância da memória coletiva se dá justamente ao ponto de que nossas ideias e lembranças vão ao encontro do pensamento do outro.
Página 396Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que essa reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. (HALBWACHS, 1978, p. 39).
Segundo Costa (2007, p.115), a memória coletiva é muito importante para o indivíduo tanto no seu crescimento pessoal como em grupo. Para que seja possível valorizar e respeitar a sua história, as suas crenças e as suas lembranças, é necessário, em primeiro lugar, valorizar as suas memórias. O princípio da memória coletiva está intimamente ligado ao desenvolvimento humano do presente com os valores históricos consagrados pelo passado, que não podem, por sua vez, ser esquecidos sob a forma de acervos culturais. Por este motivo, há previsão de sanção para aqueles que fujam da sua responsabilidade de guarda e respeito à memória (art. 216, caput e §§ 1º e 4º da CF/88).
Quando consideramos nossas lembranças e memórias como um patrimônio cultural imaterial, valorizamos um bem precioso que precisa ser preservado e mantido para as gerações futuras. Sejam elas representadas através de exposições, contos, expressões físicas como a dança. Precisamos primeiro estar imersos em um processo de aceitação, reconhecimento e valorização para, então, entender que tudo que o homem produz é cultura.
O direito ao patrimônio cultural é um dos prolongamentos dos direitos culturais. Sua garantia representa um legado das gerações presentes para as gerações futuras. Sua proteção, além de estabelecer esse elo, cria laços de solidariedade em torno de uma memória coletiva comum, sobre a qual se devem satisfazer as necessidades culturais para o completo desenvolvimento humano, individual e coletivo, em condições de equidade e equilíbrio partilhadas entre as sociedades do passado, presente e futuro. A partilha dessa memória representativa estabelece e fortalece a identidade cultural de uma pluralidade de grupos e referencia seus valores na convivência em alteridade e no respeito à diversidade cultural humana. (COSTA, 2017:124).
A comunidade é um fator primordial na preservação e na proteção do patrimônio cultural, o que esta intervenção buscou representar além da reconstrução de uma memória que está se perdendo, a qual pode ser reconhecida como um patrimônio, algo importante que está escondido em meio às lembranças de pessoas que viveram e que lembram detalhes ínfimos do lugar maravilhoso, com uma beleza extraordinária, que deu lugar ao desenvolvimento socioeconômico da região.
Página 397A memória coletiva está presente nos diversos dispositivos que buscam o resguardo do patrimônio cultural como elo temporal entre as gerações e fator de identidade. A diversidade de instrumentos que tutelam os bens culturais brasileiros, de acordo com o § 1º, artigo 216 da CF/88, demonstra a importância que a Constituição reserva para sua preservação, proteção e salvaguarda. Por esse caminho, a tarefa estatal de proteção não pode, nem deve, ser realizada sem a participação da comunidade. Seus danos e ameaças são punidos na forma da lei (artigo 216, § 4º, da CF/88). Os bens que representam essa memória coletiva são também meios de garantir a continuidade e a existência até dos sujeitos e vínculos comunitários. (COSTA, p. 2007).
A memória e a identidade elas se complementam, sendo assim, a identidade é um fator primordial na realização do trabalho, uma vez que se os indivíduos não se identificassem com suas memórias, a ação não poderia obter sucesso. Segundo Brandão, 1990, p.37:
Os acontecimentos da vida de cada pessoa geram sobre ela a formação de uma lenta imagem de si mesma, uma viva imagem que aos poucos se constrói ao longo de experiências de trocas com outros: a mãe, os pais, a família, a parentela, os amigos de infância e as sucessivas ampliações de outros círculos de outros: outros sujeitos investidos de seus sentimentos, outras pessoas investidas de seus nomes, posições e regras sociais de atuação (BRANDÃO, 1990, p. 37).
Pude notar no desenvolvimento da ação cultural que, com o impacto do progresso, que se dá a partir da construção da usina hidrelétrica, com a relocação da comunidade para a nova cidade e com a chegada de outras pessoas, essa identidade foi se perdendo e se transformando. Há resquícios, obviamente, dos indivíduos que viveram em São Simão Velho e carregam essa bagagem identitária, essas memórias, que tentam perpetuar através da oralidade. Para Hall, “a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento.”
Ao definir memória alagada podemos dizer que se limita a tudo que se perdeu no processo de inundação de São Simão Velho; o canal, que até hoje é lembrado por sua beleza, o cotidiano mencionado nos relatos orais, as brincadeiras. Com o impacto do progresso, o modo de ver a vida foi transformando as lembranças, a memória alagada ainda predomina muito sutilmente.
O impacto causado pelo progresso fez com que novas memórias surgissem na comunidade. Onde as culturas foram se misturando, e se transformando, esse progresso fez com que essa identidade fosse transformada na mentalidade das pessoas que habitam a cidade.
A realização da intervenção cultural foi viabilizada com a contribuição da sociedade, sem essas pessoas seria impossível o desenvolvimento e a conclusão do trabalho. Assim como as memórias individuais se tornam coletivas, o nosso trabalho (digo nosso em função da colaboração de diversas pessoas empenhadas e entusiasmadas com a ideia de serem entrevistadas) e a ação cultural na feira foram compostos em três partes. rimeiramente, foi necessário conhecer a história através dos relatos dos entrevistados. Já em um segundo momento, foi realizada a intervenção na feira coberta com a exposição de relatos e fotos. Embora as imagens tenham tido um papel importante e impactante na construção da ação cultural, em contrapartida, as entrevistas se encaixaram e complementaram as imagens. Foi uma exposição de fotos e relatos. Por último, na terceira parte, houve a interação do público com a exposição com o intuito de que se conhecesse um pouco mais a história da cidade que se perdeu.
Partindo desse ponto, podemos logo encaixar o trabalho na metodologia da pesquisa-ação, onde Michel Thiollent nos faz refletir sobre como a ação cultural proposta deve não só contribuir com conhecimento para o pesquisador, como levar à reflexão e desenvolver a consciência das pessoas envolvidas.
Página 398A pesquisa-acão é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou uma resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. (THIOLLENT, 2007:16).
Após a execução e transformação da mentalidade das pessoas e a colaboração da comunidade nesse processo, podemos acreditar que as transformações sociais podem ocorrer através de parcerias entre aqueles que têm um objetivo em comum, e até despertar o interesse da comunidade em continuar levando cultura e conhecimento a cada vez mais pessoas. Seguindo esse pensamento, Thiollent (2007, p. 24) afirma que “a pesquisa-ação não deixa de ser uma forma de experimentação em situação real, na qual os pesquisadores intervêm conscientemente”.
Consideramos que a pesquisa-ação não é constituída apenas pela ação ou pela participação. Com ela é necessário produzir conhecimentos, adquirir experiência, contribuir para a discussão ou fazer avançar o debate acerca das questões abordadas (THIOLLENT 2007, p.24).
Pesquisando a literatura sobre São Simão, foi utilizado o livro “Cessou o canto das águas”, de fácil compreensão e com muita riqueza de detalhes, contando com relatos importantes e completos de diversos moradores da cidade. Alguns destes já se foram, mas suas lembranças registradas nesse livro são de fundamental importância para qualquer trabalho desenvolvido acerca do tema São Simão Velho, já que possuem relatos surpreendentes. Por esse motivo, foi feito um estudo minucioso desse material a fim de conhecer e compreender os locais mencionados nas entrevistas realizadas com a família Martins e nos relatos informais de pessoas que visitaram a mostra fotográfica, as quais puderam acrescentar mais detalhes àquelas histórias.
2.1 Memória e história
A história e a memória se distinguem na percepção de Halbwachs, mas elas se completam entre si; enquanto a história se encarrega de fatos grandiosos acontecidos no passado longínquo, a memória se encarrega dos acontecimentos cotidianos da comunidade. Para Halbwachs (1978, p.60), “a história, com efeito, assemelha-se a um cemitério onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada instante, achar lugar para novas sepulturas”. Acredita-se é de fundamental importância para o homem os fatos relacionados ao que vivenciamos, “não é na história aprendida, é na história vivida que se apoia nossa memória." (HALBWACHS, 1978,p. 65).
A história de uma nação pode ser entendida como a síntese dos fatos mais relevantes a um conjunto de cidadãos, mas encontra-se muito distante das percepções do indivíduo, daí a diferenciação estabelecida por Halbwachs entre Memória e História (HALBWACHS, 1978, p.84).
Podemos observar a divergência entre a história e a memória partindo do ponto em que a memória não se apega a datas, se baseia em momentos importantes e vividos por um grupo social. “Os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, que eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo” (HALBWACHS, 2004: p.71)
Página 3992.2 Memória coletiva e oralidade no desenvolvimento da ação cultural
A intervenção cultural ocorreu na feira coberta da cidade de São Simão, onde foram expostos imagens e fragmentos dos relatos orais de pessoas entrevistadas, assim como com a contribuição de pessoas que foram visitá-la e, informalmente, contaram suas histórias. Nesse processo de construção, utilizei autores como Halbwachs (1978), Thiollent (2007), entre outros. Nesse processo de leitura, estive na Biblioteca Municipal, que me surpreendeu por conter apenas duas obras sobre a cidade.
Embora o poder público não tenha tido o mínimo interesse de ajudar uma proposta cultural que, embora singela, poderia ter sido mais grandiosa, alcancei os propósitos com clareza e coerência necessárias. Vale ressaltar que a Câmara Municipal não fez questão de emprestar o conteúdo do acervo, que está sendo destruído pelas traças, o que atrasou o processo do trabalho. Descobri que a Câmara Municipal possui um anexo em que estão todas essas fotos organizadas e instaladas em um mural, porém a comunidade não tem a mínima ideia da existência desse memorial.
Embora o meu trabalho tenha uma dimensão pequena, pela limitação de recursos, acredito que teve um impacto social muito maior que o esperado. As pessoas se interessaram, ficaram surpresas, sugeriram novas exposições todos os domingos, parabenizaram-me pela iniciativa e disseram que adoraram se lembrar “daqueles tempos”. Além disso, diversas destas pessoas contribuíram para esse acontecimento, como por exemplo, o senhor José Quintino, ex-morador de São Simão Velho que, além de me emprestar um lugar na feira coberta, também foi prestigiar a mostra.
O responsável pela feira, Danilo Gonçalves de Melo, prontificou-se imediatamente e autorizou a realização da intervenção no local. As pessoas entrevistadas que me cederam tempo e um lugar em suas casas, ficaram entusiasmadas com o trabalho. Já outras pessoas se prontificaram a tirar fotos junto à exposição. As entrevistas foram anexadas na exposição juntamente com as imagens.
A ação cultural promoveu a volta ao passado com a exposição das imagens e das entrevistas, trazendo contribuições em busca de solução para um problema cultural e social; algo que procurasse levar informação e, até mesmo, buscar uma transformação social. Creio que o objetivo tenha sido alcançado. O projeto foi destinado a diversas faixas etárias: homens, mulheres, crianças, de diversas classes sociais.
As imagens têm um poder de chamar a atenção das pessoas, são chamativas e dinâmicas, e o público gosta. Não houve necessidade de chamar o público, ele veio. Assim que eu fixei a exposição no local as pessoas foram se aproximando. Entusiasmadas, curiosas, queriam saber o porquê do tema “História, memória e oralidade”. Ao explicar-lhes o tema, ficaram entusiasmadas com a importância do diálogo e das lembranças na construção da história, percebendo-se elas mesmas como atores nesse processo.
A pesquisa-ação precisa ser mais utilizada, tanto nas escolas como em projetos, pois possui uma metodologia rica em detalhes que não pode ser desperdiçada. Ela trabalha de forma empírica, contando sempre com um respaldo teórico. Já o poder de transformação social está inserido na conscientização da comunidade, com as pessoas que realmente fazem a diferença e que precisam dessa diferença na vida delas. Ao relatar suas vivências, os entrevistados foram enfáticos nos detalhes e momentos vividos, ressaltando comportamentos e o modo como eram a vida e a subsistência no pequeno povoado, assim como as dificuldades e as conquistas alcançadas, destacando o processo de transição da cidade.
Página 400As entrevistas foram expostas, juntamente com as imagens, no dia 26 de agosto de 2018, na feira coberta da cidade de São Simão, durante o período matutino. Alguns breves relatos dos entrevistados sobre a São Simão Velho:
“Depois que a ponte provisória caiu, atravessamos no caixote, passava mudança, passava boi, tudo no caixote, depois fizeram uma ponte muito à toa, valia nada, povo só trabalhava em garimpo e pesca. Quando a gente viu, a empresa chegou para construir a ponte. A usina só tinha armazéns, não tinha asfalto, era tudo cascalho, mas a paisagem era linda. Tinham várias pensões. Quando a usina chegou eles compraram nossa casa, e nos deram um terreno na nova cidade, ainda podíamos desmanchar a casa antiga para construir a nova. (informação verbal).
Seguindo com os relatos das pessoas entrevistadas – para no segundo momento da ação cultural expô-los juntamente com as imagens coletadas – podemos concluir que, embora a cidade fosse pequena e pouco desenvolvida, os moradores tinham um afeto pelo lugar, talvez pela dificuldade em adquirir seus bens, e até pela beleza das águas. Mas, muitos acreditaram que foi de fundamental importância a construção da usina e que ela realmente mudou a vida dos moradores com o desenvolvimento econômico do município.
Tinha pescadores, garimpeiros, mas o garimpo não dava muito dinheiro não. O povo vinha de fora e comprava muito barato. Meus netos não fazem ideia da existência desse lugar, de São Simão Velho. Tomava banho na lata, tinha cisterna, mas o povo era bom. Naquele tempo todo mundo se ajudava, quando fui morar lá até construir minha casa, uma vizinha me deu uma casa para morar até eu ter a minha. A maioria das pessoas que moravam lá já morreu, ficaram só os mais novos que tinha 20 anos na época. Peguei uma canoa emprestada, porque lá era assim todo mundo se ajudava, fui pescar e peguei um peixe de 60 quilos, juntou um monte de gente pra ver. Com a venda do peixe consegui terminar minha casa. (informação verbal)
Para Halbwachs (1978, p.34), “a memória coletiva é aquela que envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas, permanece apoiada em uma história vivida por indivíduos no grupo ou nos grupos sociais a que pertence”. A oralidade é um meio o qual podemos usar para refletirmos sobre a memória coletiva, uma vez que quando o indivíduo é entrevistado ele tende a compartilhar informações do grupo social ao qual pertence.
Página 401Só tinha mato, cascalho (risos). Brincávamos na cascalheira. Quando fizeram a ponte, ela era terrível, balançava tudo. Tinha o posto do China onde minha mãe trabalhava, tinha a pensão da dona Adélia, tinha uma loja, só a casa Iracema, a pensão do João Pereira. Na cascalheira era um morro de cascalho onde a gente descia com um saco de arroz e essa nossa diversão, tinha uns bailes, mas era só isso mesmo. A polícia era rígida, a cadeia era tipo de dois andares, mas não tinha teto. Quando chovia, os presos molhavam todos. Tinha um lugar bonito que parecia uma prainha com a areia branca, mas lá pra cima a correnteza era forte, esse rio já levou muita gente. A gente morava perto do pau queimado, era uma bagunça, minha fia, era uma zona, morava em um barraco. Lá eram poucas casas boas, lá não tinha serviço, era só garimpo e pesca. Por isso, as pessoas se ajudavam, as brincadeiras eram correr no mato. Eu tinha 12 anos. (informação verbal).
Segundo Souza (2007, p.3), “quando se tem acesso a fontes orais fica claro que o narrador busca representar-se como um ser coerente no tempo e no espaço. A narrativa é a representação da vida e do mundo no qual o sujeito está inserido. Racionalidade e irracionalidade, consciente e inconsciente, presente e passado, subjetivo e coletivo interagem na configuração que o indivíduo dá a si, aos fatos que viveu e que vai narrar, tendo como mediadora permanente a memória”. Podemos observar a ligação entre a memória e a oralidade onde elas se complementam, uma vez que a oralidade, enquanto metodologia questiona os métodos considerados tradicionais, além de agregar uma riqueza de detalhes ímpares. A seguir, podemos observar algumas imagens da ação cultural na feira coberta.
3. Conclusão
Por todos os dados e aspectos mencionados neste relatório, conclui-se que a intervenção cultural na feira consiste na materialização da escrita para resguardar a história nas lembranças que foram rememoradas e repassadas para aqueles que não tinham conhecimento dos fatos. Muitos que participaram reviveram momentos e se emocionaram. Alguns se prontificaram a ajudar em um processo longo e burocrático, que muitas vezes me fez querer desistir, mas quanto mais eu me adentrava no tema, mais interessante tudo se tornava.
Esse processo de construção foi árduo, mas gratificante; o intuito de levar conhecimento ao próximo certamente me cativou. Apesar das dificuldades, acredito na beleza do trabalho realizado. Em princípio, o trabalho tinha outras dimensões, mas notei que a presença de pessoas era indispensável para o processo de construção do mesmo. Com a contribuição, principalmente da orientadora Rosana, que me deu um norte, foi possível desenvolver a pesquisa-ação que implicou o envolvimento da sociedade. Fizeram parte desse processo os frequentadores da feira coberta, em especial, José Quintino, Isaac gomes, Divina Martins, Irani Martins e Iraci Martins, que cederam o tempo para a realização das entrevistas para compor a mostra fotográfica.
Quem não conhecia a cidade antiga e quem não viveu lá, pôde perceber como era a vida, os seus meios de subsistência, e como foi importante economicamente o processo de construção da usina para a economia da região. Depois de um árduo levantamento, tanto nas entrevistas como nas conversas informais, podemos concluir que a maioria das pessoas concordou com a criação da usina.
Sendo assim, o objetivo da ação foi concluído, sendo ele recontar a história da cidade através da exposição de fotos e dos relatos de pessoas para o conhecimento do que era a cidade antes do processo de remanejamento das pessoas e da construção da usina. As pessoas relembraram, gostaram, ficaram felizes, gostaram da importância dada ao seu passado. Muitas vezes, reprimida e sem voz, a geração passada ficou entusiasmada. Também houve uma conscientização da valorização das memórias e do patrimônio submerso.
O que se esperava da ação cultural promovida era a valorização da história local, reconstituída através de imagens, diálogos interpessoais e entrevistas com pessoas que moraram na cidade de São Simão Velho. Esperava-se que, primeiramente, mostrássemos ao público que existiu uma cidade anterior a essa, que teve que ser sacrificada em favor da construção de uma usina hidrelétrica que geraria recursos para a região, sendo que pouca gente conhece a história ou sabe a importância dessa cidade que está inundada e esquecida por causa do seu desenvolvimento.
Página 402A valorização da história local implica na valorização da sociedade e dos atores sociais que havia naquele lugar. Com os relatos orais, o que buscamos com esta intervenção foi idealizado e realizado a fim de dar voz a uma geração que aos poucos está deixando de existir, pois o tempo é implacável. Ademais, se não há registros documentados, toda uma vida, uma memória e uma geração podem se perder porque as lembranças se vão junto com as pessoas. É inegável o poder da memória na construção de um trabalho dessa magnitude.
Os resultados obtidos foram positivos. Além do mais, pensei em diversas formas de ampliar o projeto posteriormente, levando-o a eventos populares na cidade, tais como o “Festival gastronômico, esportivo e cultural”, também as praças e até mesmo as escolas. Claramente, a intervenção cultural promoveu tanto cultura quanto cidadania. Superando as barreiras da temporalidade, levou informação e cultura para o cidadão comum, que pode e tem o poder de fazer parte de uma transformação social através de memórias.
4. Referências
BOTELHO, I. As dimensões da cultura e o lugar das políticas públicas. Em Perspectiva - Revista da Fundação SEADE, São Paulo, 2001.
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