Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania Propostas, Práticas e Ações Dialógicas

As cantigas de roda como manifestações do patrimônio cultural: o papel da escola na perpetuação dessa cultura

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Resumo

Este relatório técnico-científico tem como objetivo mostrar as reflexões e ações culturais sobre como a escola pode contribuir para a perpetuação de um patrimônio histórico-cultural, como é o caso das cantigas de roda que, historicamente fazem parte das tradicionais brincadeiras infantis, tornando-se, também uma manifestação cultural ao ter contato direto com o meio em que a criança vive. Diante de tal questão surgiu o interesse em compreender melhor essa temática e como a cantiga de roda faz parte do patrimônio cultural brasileiro e, também, está presente em algumas instituições escolares, utilizada como recurso pedagógico. A metodologia utilizada neste trabalho foi, inicialmente, a revisão bibliográfica baseada especialmente em obras de autores como Murguia e Yassuda (2013) Leal (2011), Borges (2001), dentre outros, e, depois, foram expostos os resultados de um projeto de intervenção feito em uma instituição pública de educação infantil, onde se analisou o uso e os reflexos da cantiga de roda dentro da educação das crianças, fazendo-se interferências em torno das discussões teóricas realizadas. Ficou claro que a cantiga de roda é inserida em sala de aula para promover o lúdico para a criança, mas não há a preocupação dos professores em evidenciar como essas cantigas são elementos presentes em sua cultura, exaltando-as como um patrimônio cultural. Nem todas as crianças sabem cantar muitas músicas que são tidas como tradicionais. Isso porque o envolvimento das mesmas com tecnologias pode estar afastando-lhes de tradições ricas e importantes como são as cantigas de roda.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Cantigas de Roda. Educação. Crianças. Brincadeira.

1. Introdução

O tema escolhido para o projeto de ação foi Cantigas de Roda como um Patrimônio Cultural, enfocando o papel das escolas ao utilizá-las como uma ferramenta pedagógica e, ao mesmo tempo, auxiliar no processo de perpetuação dessa manifestação cultural que faz parte, de forma secular, de várias culturas pelo Brasil e que está presente na memória de muitos adultos que com elas conviveram quando crianças. A escolha do tema surgiu por meio de leituras em torno da questão do patrimônio histórico e cultural e da observação do cotidiano das instituições infantis que utilizam as cantigas de roda como um elemento lúdico para o trabalho com as crianças e, nesse momento, além de contribuírem para sua formação e desenvolvimento, também auxiliam na perpetuação desse patrimônio, que é uma parte importante da história e da cultura de diversas localidades em todo o país.

Foi interessante promover um projeto de intervenção com essa temática, no sentido de que as cantigas de roda fazem parte da história de vida de praticamente todas as crianças e, muitas delas, continuam no imaginário e nas lembranças dos adultos, que as repassam para seus filhos. Elas também estão presentes em instituições de educação infantil, que veem nesses recursos não apenas uma forma de levar a música e a brincadeira para o cotidiano da criança, mas também de promover a perpetuação da cultura entre elas.

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Como objetivo para o projeto de intervenção realizado, cita-se a necessidade de reflexão sobre como as cantigas estão presentes na história e na cultura brasileira, como elas são utilizadas em sala de aula e de que forma são recebidas pelas crianças. O trabalho lança ainda um olhar sobre o professor e sobre sua postura no uso desses recursos, pois mais do que levar o lúdico para as crianças, deve haver a preocupação de demonstrar a elas como essas cantigas fazem parte também da cultura e da história do lugar em que vivem, fazendo assim com que a escola também contribua nesse processo de preservação de uma cultura de uma geração para a outra.

Espera-se, assim, refletir sobre como as cantigas de roda estão presentes na história e na cultura dos brasileiros e de que forma elas têm sido inseridas no espaço escolar. Reflexão esta que é feita de forma teórica, por meio de bibliografias já escritas sobre o tema, como também de forma prática, por meio da realização do projeto de intervenção realizado.

2. Desenvolvimento

2.1 O que é o patrimônio histórico e cultural

A compreensão do que é o patrimônio perpassa pela necessidade de evidenciar o fato de que esse conceito é muito diversificado e depende da abordagem e do autor que se adote. De acordo com Murguia e Yassuda (2007), o termo “patrimônio” tem origem na palavra “pater” e significa “pai” ou “paterno”. A partir do momento em que começou a ser utilizada, essa palavra passou a representar os bens e heranças transmitidos de pai para o filho, ou seja, de uma geração para outra. Ainda de acordo com o autor, com o passar do tempo o termo patrimônio ganhou outros significados e foi se ampliando para também referir-se aos bens pertencentes a determinados grupos sociais que, ao serem repassados de uma geração para outra, perpetuavam sua cultura e conhecimentos.

Murguia e Yassuda (2007) citam, por exemplo, que na Idade Média vários objetos eram utilizados para representar a fé cristã, e mesmo após esse período passaram a carregar consigo essa representação. A essa cultura também pertenciam os cultos, vestimentas, cerimônias, entre outros elementos, que passaram a ser alvo da preocupação da igreja, pois também representavam sua história e patrimônio.

Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN/2004), o conjunto dos saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos ganha o nome de patrimônio cultural. São elementos diretamente ligados à história, memória e identidade de determinado povo e os tornam diferentes dos demais. No caso do patrimônio imaterial ele é conceituado por Murguia e Yassuda (2007) como aquele que reúne elementos não materiais, como é o caso de festas populares, expressões artísticas, conhecimentos tradicionais, mitos, lendas - enfim, elementos que mesmo sem ser materiais têm uma grande importância e representatividade na cultura e na história de determinado lugar e sociedade – e, também, as cantigas de roda.

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Ainda de acordo com o IPHAN (2004), o patrimônio histórico pode ser tanto material como imaterial, unindo em si tanto bens materiais e naturais e que tem importância histórica para determinado lugar, desde construções, ruínas, estátuas, esculturas, igrejas, praças, parte de uma cidade, um centro histórico, entre outros. A definição desse tipo de patrimônio é apresentada no Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, que também foi responsável pela criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e o considera como “conjunto de bens móveis e imóveis de interesse público que possuam excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (JOHN, 2012, p.324).

De acordo com Milet (1998) apud Fonseca (1997), após a Revolução Francesa, os bens culturais começaram a ser mais valorizados, pois retratavam elementos importantes na identidade nacional e, por isso, também precisavam de uma legislação específica que pudesse protegê-los e permitir que eles fossem transmitidos a outras gerações. De acordo com o autor, foi nesse momento que o patrimônio ganhou função social e assim,

[...] a efetivação da preservação dos bens culturais só se encontra socialmente definida, ou seja, só parece como fato social, quando o Estado assume a sua proteção e, através da ordenação jurídica, os institui e delimita oficialmente enquanto bem cultural, regulamentando o seu uso, a finalidade e o caráter desses bens dentro de leis específicas de propriedade, zoneamento, uso e ocupação do solo (MILET, 1998 apud FONSECA, 1997, p.54).

Com isto, a própria sociedade passou a demonstrar conscientização que determinados bens deveriam ser protegidos, pois eram uma representação da cultura e da história dessa sociedade. Desta forma, várias legislações foram criadas por todo o mundo. Em 1931, por exemplo, em Atenas, na Grécia, a reunião entre diversos profissionais e instituições discutiu como era possível desenvolver o processo de preservação dos patrimônios histórico-culturais, originando a “Carta de Atenas”, um documento oficial que desencadeou um movimento em torno desse processo de preservação (MURGUIA e YASSUDA, 2013).

Ainda segundo Murguia e Yassuda (2013), outro marco importante nesse processo foi a realização do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, em 1964, em Veneza, que originou a “Carta de Veneza”. Nesse documento, há várias postulações referentes à criação de políticas públicas direcionadas à preservação do patrimônio histórico e cultural em todo o mundo. Já no ano de 1972 foi realizada a Convenção de Paris, que ganhou o nome de “Convenção do Patrimônio Mundial”, pois foi tratado como um momento ímpar nas discussões em torno da questão do patrimônio histórico e cultural. E assim, o termo hoje é bastante abrangente, reunindo, por exemplo, práticas culturais como as cantigas de roda.

Em 1997, o IPHAN promoveu o Seminário “Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de Proteção”, cujo objetivo era reunir pessoas e representantes de diversas instituições públicas e privadas, para que elaborassem diretrizes e criassem instrumentos legais e administrativos para “identificar, proteger, promover e fomentar os processos e bens portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (IPHAN, 1997, p.01). Esses bens e processos envolvem as diversidades humanas, sejam de expressão, de criação, artísticas, científicas, tecnológicas, etc. e, por isso, passou-se a dar maior atenção à cultura popular.

No quadro abaixo, o IPHAN (1997) cita algumas considerações feitas no seminário acima citado, referindo-se às constatações feitas em torno do patrimônio histórico e cultural e às propostas e recomendações feitas na Carta de Fortaleza (1997), que se originou desse encontro.

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Fonte:IPHAN, 1997, p.01-02.
Considerações do Plenário A crescente demanda pelo reconhecimento e preservação do amplo e diversificado patrimônio cultural brasileiro, encaminhada pelos poderes públicos e pelos sociais organizados;
Que, em nível nacional, cabe ao IPHAN identificar, documentar, proteger, fiscalizar, preservar e promover o patrimônio cultural brasileiro;
Que o patrimônio cultural brasileiro é constituído por bens de natureza material e imaterial, conforme determina a Constituição Federal;
Que os bens de natureza imaterial devem ser objeto de proteção específica;
Que os institutos de proteção legal em vigor no âmbito federal não se têm mostrado adequados à proteção do patrimônio cultural de natureza imaterial.
Propostas e recomendações Que o IPHAN promova o aprofundamento da reflexão sobre o conceito de bem cultural, de natureza imaterial, com a colaboração de consultores do meio universitário e instituições de pesquisa;
Que o IPHAN, através de seu Departamento de Identificação e Documentação, promova, juntamente com outras unidades vinculadas ao Ministério da Cultura, a realização do inventário desses bens culturais em âmbito nacional, em parceria com instituições estaduais e municipais de cultura, órgãos de pesquisa, meios de comunicação e outros;
Que o Ministério da Cultura valorize a integração do referido inventário ao Sistema Nacional de Informações Culturais;
Que seja criado um grupo de trabalho no Ministério da Cultura [...] com o objetivo de desenvolver estudos necessários para propor a edição de instrumento legal, dispondo sobre a criação do instituto jurídico denominado registro, voltado, especificamente, para a preservação dos bens culturais de natureza imaterial.
O plenário recomenda que a preservação do patrimônio cultural seja abordada de maneira global, buscando valorizar as formas de produção simbólica e cognitiva;

Fica evidente a preocupação do IPHAN de que haja o reconhecimento e a valorização dos bens imateriais pela população, como é o caso, por exemplo, das cantigas de roda. De forma que, assim, esses elementos que fazem parte da cultura e das diversidades sociais possam ser preservados.

Em 2003 foi realizada a Conferência Geral para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que aconteceu em Paris, esta que “considera a importância do patrimônio imaterial como fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável” (UNESCO, 2006, p.03). Nesse encontro, propôs-se a necessidade de que as novas gerações sejam conscientizadas da importância do patrimônio cultural imaterial, o que também é papel das instituições de ensino.

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2.2 As cantigas de roda/brincadeiras na cultura brasileira e sua importância para a infância

2.2.1 Cantigas de Roda como Patrimônio Imaterial

As brincadeiras infantis são elementos tradicionais dentro da cultura de cada lugar e tratadas como uma forma de manifestação popular, fazendo delas também um patrimônio cultural, especificamente, um patrimônio imaterial. De acordo com a Constituição Federal de 1988, no art. 216 o patrimônio cultural brasileiro é composto por:

Os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I –as formas de expressão; II –os modos de criar, fazer e viver; III –as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV –as obras, objetos, documentos, edificações, e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V-os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.(art. 216, BRASIL/CONSTITUIÇÃO, 1988).

Propõe-se, assim, que um patrimônio cultural envolva todos os bens que ganham conotação cultural, que possuem significado social e que são capazes de traduzir a identidade de determinado povo (SILVA, 2010). A UNESCO, apud Silva (2011), definiu o que é um patrimônio imaterial da seguinte forma:

[...] práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e, também, os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (IPHAN, 2006, p.15).

Assim, é um tipo de patrimônio que pode modificar-se com o passar dos séculos, sofrendo mudanças influenciadas pelas próprias mudanças sociais e pelas pessoas ligadas a esse patrimônio e, também, é uma forma desse patrimônio continuar sendo transmitido de uma geração para outra. É diante de tal conceito que se entende as brincadeiras infantis, das quais fazem parte as cantigas de roda, como formas de manifestação cultural do povo brasileiro que são passadas de pais para filhos.

O termo cultura também precisa ser compreendido, uma vez que ele é um conceito muito amplo e variado, e que é inerente a todas as sociedades, representando os diferentes modos de vida. Para Thompson (1998), a cultura é dinâmica e plural, assim como é a questão do patrimônio, que também ampliou suas percepções e não mais se limita à monumentos, à cultura erudita e ligada à elite, ou, ainda, àquelas obras que são oficialmente reconhecidas. Atualmente, as massas anônimas e suas diferentes experiências e formas de representação também são tratadas como um objeto do patrimônio histórico e cultural, valorizando suas diversidades.

Nesse contexto, é preciso citar as cantigas de roda, que, de acordo com Del Priori (2004), são uma influência dos imigrantes que chegaram ao Brasil por volta do século XIX, advindos de diferentes partes do mundo, trazendo consigo também seus hábitos culturais, que passaram a também fazer parte da cultura das crianças brasileiras. Foi uma maneira do universo da criança ser ampliado a partir de novos brinquedos e brincadeiras.

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De acordo com Godinho (1996), as cantigas de roda reúnem em si várias canções, em geral anônimas e que fazem parte da cultura popular, surgindo da experiência do homem e de sua vida em coletividade. Sua sequência é natural e harmônica e acompanhou o desenvolvimento do homem. Para o autor, “quem é esta que me estimula a sair deste mesmo colo e a buscar o mundo lá fora arriscando mais um rompimento, oferecendo-me a oportunidade de partilhar com os outros iguais a mim” (GODINHO, 1996, p.14).

Acompanhando as cantigas de roda, surgiram o que Cascudo (1988) chama de brincadeiras de roda. Estas, que envolvem dança, canto, tanto com melodias como com coreografias simples e que, por isso, são bem assimiladas pelas crianças em seu cotidiano, seja no espaço da escola ou fora dele. O autor as considera como uma importante manifestação folclórica brasileira e com traços da cultura popular do país.

2.2.2 Cantigas de Roda e sua Importância na Infância

As cantigas de roda e outras brincadeiras são uma forma da criança vivenciar experiências, interagir com o meio e com as pessoas e são, ainda, uma marca dos grupos sociais. Sobre isto, Silva (1989, p.75) assevera que:

As brincadeiras são, então, um meio para se chegar ao coletivo geral da humanidade; nelas a criança trabalha questões importantes da essência do ser humano: medo, fantasias, faz-de-conta, além de experimentar relações sociais presentes em determinado coletivo (grupo social a que pertence), como cooperação, competição, ganhar, perder, comandar, subordinar-se etc.(SILVA, 1989, p.75).

As brincadeiras levam as crianças a se socializarem, a estabelecer relações entre si e com a cultura a qual pertencem. Em todo tipo de cultura a brincadeira existe e sua importância varia de um lugar para o outro, mas é natural da criança. Sobre sua ligação com a cultura, Borges (2001) considera que elas são representações culturais, pois envolvem diferentes momentos e realidades históricas, especificidades de um lugar e fazem com que as pessoas que veem aquela brincadeira se remetam a um local e momento histórico específico.

Para Martins (2004), as brincadeiras são um meio que a criança tem de estreitar relações sociais de forma descontraída. Essas brincadeiras demonstram modos de vida diferenciados, assim como costumes, hábitos, tradições e experiências construídas historicamente, ou seja, a cultura de determinado povo e, muitas vezes, de toda uma nação. Quando se fala em patrimônio ligado à questão cultural, o objetivo é fazer com que os sujeitos históricos sejam valorizados em todas as culturas e de acordo com suas diversidades.

De acordo com Borges (2001, p.49), “as brincadeiras são representações culturais que refletem a realidade histórica de um momento, de um lugar, em que as significações do mostrado nos desvendarão o mapa de uma época com seus sinais opacos”, ou seja, as brincadeiras também são um reflexo do momento histórico em que foram criadas, das tradições existentes, das manifestações que o homem deixou sobre o tempo e o espaço, sendo, por isso, muito importantes na formação da identidade cultural e social das crianças.

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2.3 O projeto de ação-intervenção

2.3.1 Objetivo Geral

Analisar de que forma as instituições de educação infantil têm trabalhado com as cantigas de roda no cotidiano das crianças, enfocando não apenas seu aspecto lúdico, mas sua ligação com o patrimônio histórico-cultural.

2.3.2 Objetivos Específicos

2.3.3 Metodologia

Inicialmente, este relatório apresenta uma pequena contextualização teórica sobre o tema proposto para o projeto de intervenção. Essa pesquisa bibliográfica é baseada em livros e artigos eletrônicos, conceituada por Lima e Mioto (2007, p.38) como aquela que “implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório”.

Também se buscou produzir uma pesquisa exploratória, no que diz Gil (2007), a grande maioria dessas pesquisas envolve: (a) levantamento bibliográfico; (b) entrevistas com pessoas que tiveram experiências práticas com o problema pesquisado, etc; (c) análise de exemplos que estimulem a compreensão. Assim, faz-se algumas ponderações sobre a pesquisa de campo na Escola Municipal de Educação Infantil, no município de São Miguel do Passa Quatro-GO, onde foi aplicado o projeto de ação-intervenção que tinha como tema o uso das cantigas de roda em sala de aula.

2.3.4 Procedimentos

O desenvolvimento do projeto de ação-intervenção ocorreu, inicialmente, com a observação do cotidiano da instituição de educação infantil, de forma a observar de que maneira os professores dessa instituição utilizavam esse recurso no cotidiano das crianças. Após esse momento, optou-se pela realização de uma palestra com o tema “Cantigas de Roda como ferramenta Pedagógica e Patrimônio Histórico-Cultural”.

Após essa palestra, foi feita a proposta junto aos professores para que eles desenvolvessem aulas que trabalhassem com as cantigas de roda, não apenas como um recurso lúdico, mas fazendo um intercâmbio com sua característica de patrimônio histórico e cultural, de forma a já inserir essa questão no cotidiano das crianças. Em um terceiro momento, foram avaliados os resultados dessas aulas de forma coletiva junto aos professores, através de uma roda de conversa.

2.3.5 Resultados

As primeiras observações feitas no cotidiano da escola demonstraram que há entre os professores da Educação Infantil uma grande preocupação de colocar a criança em contato com o lúdico, uma vez que de acordo com Leal (2011, p.08):

É possível dizer que o lúdico é uma ferramenta pedagógica que os professores podem utilizar em sala de aula como técnicas metodológicas na aprendizagem, visto que através da ludicidade os alunos poderão aprender de forma mais prazerosa, concreta e, consequentemente, mais significativa, culminando em uma educação de qualidade.

Assim, o lúdico é visto dentro da instituição de ensino através de diferentes recursos, como é o caso da contação de história, o uso de músicas, jogos, brincadeiras, dentre outros, trabalhados tanto de forma coletiva como individual, acreditando que assim a criança terá melhor desenvolvimento físico e cognitivo.

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No caso específico das cantigas de roda, foi observado que vários professores fazem uso desse recurso em sala de aula, especialmente porque a música é muito valorizada como elemento presente no cotidiano das crianças e que pode auxiliar em seu desenvolvimento, dentro e fora do espaço escolar. De acordo com Neves (2009, p.45), “a criança e mesmo o jovem opõem uma resistência à escola e ao ensino, porque acima de tudo ela não é lúdica, não costuma ser prazerosa” e a música faz com que a presença na escola seja mais prazerosa, além de trazer a possibilidade de trabalhar diferentes conteúdos.

Diante de tal questão, observou-se que era preciso discutir com os professores como as cantigas de roda representam mais que um aspecto lúdico, mas são um patrimônio histórico e cultural que precisa ser preservado, mas, para que isto aconteça, é preciso que já desde pequena a criança conheça essas cantigas e compreenda o que elas representam em sua cultura. Para Cascudo (1988, p.676):

[...] quando se compara as cantigas de roda a outras canções populares, estas se destacam pela sua constância "[...] apesar de serem cantadas uma dentro das outras e com as mais curiosas deformações das letras, pela própria inconsciência com que são proferidas pelas bocas infantis”. Ou seja, cada criança canta da sua forma, mas elas estão presentes no cotidiano de praticamente todas elas.

Assim, foi realizada uma palestra junto aos professores, onde foi apresentado o recurso pedagógico das cantigas de roda ligado ao patrimônio histórico e cultural das cidades brasileiras. Para isso, foram utilizados slides contendo vídeos e imagens de brincadeiras que reúnem em si cantigas de roda como nota-se nas imagens abaixo:

O intuito desse momento foi fazer uma navegação junto ao “youtube” com os professores, demonstrando aos mesmos a grande quantidade de cantigas de roda presentes nesse site e que poderiam ser utilizadas em sala de aula junto aos alunos. Nesse momento, porém, também foi enaltecida a importância de exaltar o lugar onde a criança vive e buscar músicas que são presentes em sua cultura. Assim, Lamas (1992) denomina as cantigas de roda de músicas folclóricas, definindo-as como:

[...] aquela que se transmite e se preserva oralmente, expandindo-se por isso com toda a naturalidade, e possuindo uma aceitação coletiva. Ela diferencia-se da música chamada erudita por nela não ser procurado o rebuscamento ou o aperfeiçoamento de forma intencional e, da música chamada popular, por não ser produzida em série ou ter destinação comercial. Em sua simplicidade, a música folclórica torna-se mais autêntica e espontânea, e assume um poder de comunicação e uma ressonância imediata no espírito do povo que a pratica. (LAMAS, 1992, p.15-16)

Assim, nas discussões realizadas junto aos professores, houve a preocupação de demonstrar aos mesmos que uma cantiga de roda não é apenas uma música para divertir ou ensinar a criança, mas é um elemento de sua cultura que precisa ter essa característica exaltada, para que a criança também a valorize e, quando adulto, seja alguém que auxilia na perpetuação e continuidade desse patrimônio.

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A palestra foi realizada no dia 7 de junho de 2018 e participaram todos os professores da citada instituição. Este foi um momento de grandes contribuições, pois os professores demonstraram as dificuldades que encontram no cotidiano em sala de aula, sua percepção sobre o uso das cantigas de roda, como os alunos reagem diante desses momentos; houve uma troca de experiências muito importante e que poderá influenciar esses profissionais em sala de aula. A professora A, por exemplo, afirmou que “sempre uso músicas e cantigas nas minhas aulas, mas sinceramente, nunca as percebi como um patrimônio, as vejo muito mais como algo que trabalha o movimento e a interação entre os alunos”. Já a professora B afirmou que “muitas das músicas que hoje eu uso em sala de aula, eu também tive contato na minha infância e, por isso, se formos pensar, realmente é um elemento presente na nossa cultura” e falas como essas tornaram as discussões muito importantes e esse um momento de valiosa aprendizagem.

A professora “C” afirmou que as cantigas de roda estão presentes de forma constante na educação infantil e ensino fundamental, uma vez que fazem parte do próprio cotidiano das crianças em sala de aula “é uma maneira delas se divertirem, de interagirem com os colegas, sendo momentos muito ricos para esses alunos”. Ela reafirma que o uso desse recurso torna as aulas mais prazerosas e faz com que as crianças participem muito mais.

O terceiro momento do projeto de ação foi a proposta de realização de uma aula com o uso das cantigas de roda. Essas aulas foram observadas e, posteriormente, cada professor poderia expressar suas percepções e, assim, coletivamente, todos avaliarem o uso das cantigas de roda em sala de aula e como elas puderam ser trabalhadas junto com os alunos fazendo um enfoque para a questão do patrimônio histórico-cultural.

As aulas como um todo seguiram a mesma rotina, os alunos eram recebidos em sala de aula, as atividades desenvolvidas e as cantigas de roda eram utilizadas junto aos alunos, porém, não da maneira como sempre eram feitas, apenas promovendo brincadeiras, danças ou o canto. Houve a preocupação dos professores de demonstrar às crianças como essas músicas são parte da cultura do lugar em que vivem, existindo já há muito tempo. Para que haja esse processo de construção da valorização do patrimônio pela criança e, posteriormente, pelo adulto é preciso que o patrimônio seja valorizado enquanto elemento importante para a sociedade e que faça parte da formação da identidade do cidadão, por isso, Menezes apud Garcia et al (1989, p.14):

A identidade quer pessoal, quer social, é sempre socialmente atribuída, mantida e transformada (...).O processo de identificação é um processo de construção de imagem e o suporte fundamental é a memória, através da qual se obtém informações, conhecimentos, experiência e, por isso mesmo, a possibilidade de dar lógica, sentido e inteligibilidade aos vários aspetos da realidade.

Fazer um elo entre a brincadeira e a cultura da criança é importante para que haja essa construção da identidade, para que ela valorize o meio em que vive e também seja uma perpetuadora de sua cultura, contribuindo assim para que o patrimônio histórico e cultural seja não apenas valorizado, mas repassado de uma cultura para a outra.

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As crianças são sempre muito atenciosas e adoram as atividades que envolvem a música, muitas delas demonstrando já conhecê-las, especialmente aquelas que fazem parte do meio em que vivem e que, muitas vezes, foi cantada pelos próprios pais ou por pessoas com as quais convive em seu dia a dia. Para Menezes apud Garcia et al (1989, p.14), quando a criança canta e dança, ela também tem acesso a elementos do passado da humanidade para o seu presente, "a partir da vivência deste passado relacionado aos conteúdos do seu presente, encontra-se em condições de projetar o seu futuro”. Mas é de extrema importância que o professor faça o gancho da música com esse elemento cultural e histórico, pois a criança, por si só, não terá essa noção. Portanto, a construção e a valorização do patrimônio histórico-cultural devem ser inseridas no trabalho com as cantigas de roda e com outros elementos culturais presentes no cotidiano das crianças.

Após a realização das aulas pelas professoras, a roda de discussão deixou evidente que todas elas valorizaram esse momento de trabalho com a música dentro de sala de aula, mas também evidenciaram que antes não havia nelas a preocupação de demonstrar às crianças como essas músicas estavam presentes na cultura da qual fazem parte, de forma a haver nelas uma conscientização sobre a questão patrimonial.

Algumas falas precisam ser citadas, como, por exemplo, a professora B afirmou que “quando usamos as cantigas de roda, as crianças propõem-se prontamente a participar das aulas e foi interessante notar que quando falamos para elas sobre como aquelas músicas também faziam parte da cultura de onde viviam, que esse assunto também lhes chamou a atenção”.

A professora C argumentou que “todos os alunos participaram das atividades que propunham o uso das cantigas de roda, isto porque eles gostam tanto da música, como da interação com os colegas” e lembra que “o que fizemos de novo foi chamar a atenção da criança para o elemento cultural que envolve essas cantigas, já que essa não era uma preocupação quando se fala no uso dessas músicas”. No caso dessa professora, ela utilizou as cantigas de roda “Alecrim” e “Se essa rua fosse minha” e após cantar com as crianças, também fez uma roda de conversa com elas para ver o que elas haviam entendido sobre a letra daquelas músicas, fazendo um gancho sobre questões históricas e culturais nelas presentes.

A professora “D” citou ter usado as cantigas “Escravo de Jó” e “Marcha Soldado” e que ao utilizar essas músicas citou para as crianças que elas também traziam em si elementos da história do país, como a escravidão e símbolos nacionais como o exército e a bandeira, fazendo com que elas refletissem para além do momento de dançar e cantar.

No caso da professora “E” a escolha das cantigas de roda foi pela “Ciranda Cirandinha” e “Atirei o pau no gato”. Ela afirmou ter utilizado as músicas após uma aula normal e propôs às crianças a assistir um vídeo para que elas aprendessem as letras e depois pudessem também cantá-las. Posteriormente, ela falou para as crianças sobre os personagens dessas músicas que era a própria ciranda (uma cultura muito importante especialmente entre os nordestinos) e o gato, que apesar de não ser uma letra de música que retrata algo ligado a cultura das crianças, é uma das cantigas de roda mais conhecidas e antigas.

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Enfim, foram diferentes opções das professoras por cantigas de roda bastante conhecidas e que, por isto, se tornaram também um patrimônio cultural das crianças, trabalhando-as como uma ferramenta pedagógica, mas, a partir desse projeto de ação, também exaltando o aspecto cultural e patrimonial que envolve essas músicas.

3. Considerações finais

As cantigas de roda são um dos vários patrimônios históricos e culturais construídos pelo homem. No Brasil foram trazidas pelos imigrantes e passaram a fazer parte do cotidiano das crianças brasileiras, sendo repassadas de geração a geração até chegarem aos dias atuais, onde são inseridas no espaço escolar não apenas como um elemento lúdico, mas como uma forma de valorizar e perpetuar a cultura da sociedade dentro do espaço escolar.

Quando se analisa as instituições de ensino como um todo, nota-se que as cantigas de roda e a música são inseridas como um recurso pedagógico para promover o lúdico, porém, em muitos casos, não há a preocupação do professor em fazer um vínculo deste recurso com a cultura e a história do lugar onde o aluno vive e, com isso, muitas vezes, não contribui para a formação de sua identidade e nem para que esses alunos cresçam conscientes da importância do patrimônio histórico e cultural para a sociedade da qual fazem parte.

A aplicação do projeto de ação-intervenção foi de grande importância para conhecer a percepção dos professores sobre essa questão e, especialmente, para que houvesse com e entre eles uma troca de experiências sobre o uso das cantigas de roda em sala de aula e como elas poderiam ser trabalhadas, também, na perspectiva da valorização do patrimônio histórico e cultural. Por isso, foi uma experiência de grande importância para que entre esses profissionais fosse desenvolvido um olhar diferenciado sobre os recursos utilizados em sala de aula e como a escola e, consequentemente, a educação, têm o papel de contribuir para a preservação do patrimônio histórico e cultural, levando os alunos a ter contato com o mesmo e mostrando como diversos elementos do seu cotidiano demonstram as diferentes formas do homem se representar e como essa representação é importante na caracterização do seu povo.

Referências

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CASCUDO, Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1988.

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GARCIA, Souza e Silva; FERRARI, Maria A.L., Maria A.S., Sônia C.M. Memórias e brincadeiras na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do séc. XX. São Paulo: Cortez Editora, 1989.

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