Resumo
O presente relatório, apresenta os resultados de um projeto interventivo realizado no Centro de Ensino Fundamental 12 de Taguatinga-DF, ocorrido nos dias 14 e 16/05/2018, que teve por objetivo geral refletir sobre os direitos culturais na escola pública. Tanto a professora que aplicou a intervenção quanto os alunos compartilham o mesmo contexto sociocultural, habitantes da periferia que veem seus direitos culturais negados ou silenciados. A intervenção deu-se por meio de um workshop com dois encontros; no primeiro, com uso de uma apostila, houve a teorização dos conceitos de direito humano, direito cultural e direitos autorais. Já no segundo encontro, houve uma reflexão dialogada sobre a relação entre direitos culturais e cidadania, bem como produções de painéis com poesias, imagens, poemas e desenhos produzidos pelos próprios alunos. Como conclusão, a intervenção demonstrou que é possível que a escola, juntamente com todos os meios de educação existentes, transforme realidades; pode sim abandonar a posição passiva de reprodução das ideologias e manutenção das classes e auxiliar na produção da cidadania, por meio de cidadãos críticos e éticos.
Palavras-chave: Escola. Educação. Cultura. Direitos Culturais.
1. Introdução
A cidadania é um processo de conquista de direitos básicos em um determinado espaço-histórico, sendo assim, ela está intimamente ligada ao ordenamento jurídico de um Estado-nação. Já os direitos humanos fazem parte de um conjunto de pressupostos que anunciam direitos naturais e universais, ou seja, ultrapassam as fronteiras estatais, são prerrogativas de que todos os seres humanos deveriam ter garantia.
Os direitos culturais são direitos imprescindíveis à formação da cidadania e estão anunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH):
Artigo 27° 1.Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. 2.Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria. (ONU, 1948, p. 6).
Também são pressupostos constitucionais os artigos que versam sobre o direito autoral – artigo 5º, XXVII e XXVIII – sobre o direito à liberdade de expressão da atividade intelectual artística, científica e de comunicação – artigos 5º, IX, e 215, §3º, II – sobre o direito à preservação do patrimônio histórico e cultural – artigos 5º, LXXIII, e 215, §3º, inciso I –sobre o direito à diversidade e identidade cultural – artigos 215, caput, § 1º, 2º, 3º, V, 242, § 1º – e sobre o direito de acesso à cultura – artigo 215, §3º, II e IV.
A educação patrimonial visa garantir à população o conhecimento e o sentimento de pertencimento do patrimônio, uma vez que a cidade pertence ao povo, assim como os bens e ações culturais nela produzidos. Mesmo tendo direitos e garantias de acesso aos bens culturais, muitos habitantes de cidades periféricas têm esse acesso negado, os direitos de manifestação são silenciados e a identidade cultural local, bem como a cidadania, ficam comprometidos.
Sendo a construção da cidadania um processo histórico-social, ligado às leis e às políticas públicas culturais, o acesso aos bens culturais está intimamente ligado à cidadania e a educação patrimonial é um caminho para refletir como se dá esse acesso em escolas públicas do Distrito Federal. Esse relatório é resultado de um Projeto que objetivou a realização de um workshop com alunos de 8º e 9º ano do Ensino Fundamental a fim de refletir sobre o acesso aos direitos culturais desse determinado grupo e qual a relevância dessa reflexão para a formação da cidadania.
Página 3191.1 Público alvo
Oriundos da cidade de Taguatinga, DF, professora e alunos vivem o mesmo contexto social e percebem, em conjunto, a escassez de ações que fomentem a criação, a divulgação e a fruição dos bens culturais locais. A ausência ou a falta de alcance aos direitos culturais são problemas diários e impactam a educação como um todo, uma vez que a Secretaria de Educação do Distrito Federal, no documento intitulado Currículo em Movimento, anuncia como eixo transversal a cidadania e a educação em e para os direitos humanos.
A proposta desta intervenção teve como objetivo oferecer espaço e oportunidades para que os atores culturais da escola elencassem suas demandas nesse campo.
1.2 Justificativa
A formação da cidadania deve ser sempre um objetivo para a educação formal. Um cidadão usufrui de seus direitos, cumpre seus deveres e luta para que todos alcancem esse mesmo estado. Sendo um sujeito de direitos, o cidadão possui identidade cultural com o seu país, sua cidade, seu bairro, sua escola.
A consciência da identidade cultural de um povo ressignifica o seu passado, através da memória, e projeta um futuro, através de produções culturais, transmitidas, recriadas ou inéditas. Através do sentimento de identidade cultural, é possível difundir, refletir e ressignificar o processo de aquisição dos direitos.
Esse relatório visa refletir sobre a cidadania e o acesso aos direitos culturais que, embora sejam direitos humanos, direitos constitucionais e eixo transversal na educação pública do DF, ainda são negados e silenciados a muitos cidadãos.
2. Materiais e métodos
Essa intervenção teve por objetivo geral realizar um workshop com alunos de 8º e 9º ano do Ensino Fundamental a fim de refletir sobre o acesso aos direitos culturais desse determinado grupo e qual a relevância dessa reflexão para a formação da cidadania. E, por objetivos específicos: Refletir, juntamente com os alunos, os conceitos de cultura, cidadania e direitos culturais; Produzir novos conceitos, a partir dos conceitos aprendidos, por meio de produções de poemas, desenhos, pinturas, esculturas e um manifesto sobre os direitos culturais; Realizar uma roda de conversa com os alunos sobre a experiência vivida.
2.1 Metodologia
A prática proposta para a realização desta intervenção foi um workshop de educação patrimonial, no qual foram realizados dois encontros com estudantes de 8º e 9º ano do ensino fundamental e, a partir de diálogos sobre o acesso aos bens culturais, foram propostas reflexões sobre a relação entre direitos culturais, direitos humanos e cidadania.
O campo da intervenção foi uma escola, espaço mais que propício para o diálogo e para a reflexão. A proposta foi de uma aula diferenciada, mas, ainda sim, um projeto interventivo pedagógico, pois foi possível organizar um espaço-tempo de reflexão, o que nem sempre é possível na rotina escolar.
Os encontros do workshop foram realizados em uma sala de aula cedida pela escola no horário da aula, de 10 às 12h, período equivalente aos três últimos horários de aula. Os participantes foram estudantes do 8º e 9º anos, com idade entre 12 e 17 anos, que voluntariamente manifestaram interesse em participar do projeto. Os objetivos da intervenção foram apresentados aos alunos e eles levaram os termos para a autorização dos responsáveis.
Página 320Foi conversado com a direção sobre a liberação dos alunos participantes dos workshops e, no horário da coordenação coletiva, os professores que estavam com esses estudantes liberaram os que tinham a autorização dos responsáveis em mãos. Foram realizados dois encontros, com duração de 2 horas cada um, divididos pelos seguintes temas:
Primeiro encontro | Segundo encontro |
---|---|
Teorização, que consiste na explanação do que é direito cultural e o que é direito humano, bem como a apresentação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Federal de 1988, os quais anunciam os direitos culturais; |
Materialização, que consiste na construção de um painel com imagens e poemas sobre direitos culturais e cidadania; |
Reflexão dialogada sobre a relação de direitos culturais e cidadania; | Produção: que consiste na produção textual de um manifesto composto pelos alunos sobre a importância dos direitos culturais para a formação da cidadania. |
A teoria metodológica escolhida para este trabalho trata-se da pesquisa-ação que, de acordo com THIOLLENT (2007, p. 16.), é a resolução de um problema coletivo no qual pesquisador e participantes estão envolvidos. A proposta do workshop vai além da observação de uma realidade, ela é, antes disso, uma ação dialógica de reflexão sobre o acesso aos bens culturais e quais as implicações desse acesso na formação da cidadania. Professora e alunos compartilham, além do mesmo espaço escolar diário, o mesmo contexto sociocultural: habitantes periféricos de Brasília, os quais veem seus direitos silenciados, ou de todo negados.
Ainda assim, a investigação científica é a base empírica para a metodologia escolhida, uma vez que o objetivo do estudo é identificar e refletir o acesso aos direitos culturais desse determinado grupo e qual a relevância dessa reflexão para a formação da cidadania, usando para isso observação e produção dos resultados obtidos.
3. Desenvolvimento: A aplicação de um projeto interventivo em sala de aula
A cultura é organizada e executada pelos atores culturais, desde os produtores materiais até os consumidores de tal cultura. A produção cultural local faz parte do patrimônio cultural da cidade e é muito importante para a identidade o fortalecimento da fruição dos saberes e tradições. O fomento à promoção da cultura local, tanto por parte de setores públicos quanto por parte de setores privados é importante para a difusão e proteção do patrimônio cultural:
Levando em consideração que a cultura é um fator de progresso social, principalmente nas últimas décadas, ela passou a ser reconhecida como um elemento acelerador ou até retardador do desenvolvimento econômico de determinado bairro, cidade ou país, pois toda produção cultural abrange os meios de expressão cultural e a fruição ou consumo dos bens que dela decorrem.
A partir desse cenário, observa-se, ainda, a necessidade de melhorar o desempenho das instituições públicas e/ou privadas relacionadas com a vida cultural, bem como, a necessidade de contar com produtores, agentes, administradores ou gestores culturais qualificados. (NDH, 2014, p. 60)
A promoção cultural, então, é um fator de desenvolvimento social da cultura imaterial e proporciona outros benefícios, um deles é o desenvolvimento econômico local através da fruição de tais bens, daí a importância do fomento. Após as leituras dos textos e das reflexões sobre o contexto escolar, eu, como participante do projeto interventivo e professora, pensei que a melhor maneira de debater os direitos culturais com os alunos seria por meio de um projeto interventivo, num molde de educação horizontalizada, por meio da mediação do conhecimento e da troca de experiências.
Página 321O material foi imaginado para apresentar os conceitos básicos de direitos humanos, cidadania, direitos culturais e patrimônio e, a partir daí, ressignificar e compor novos conceitos advindos da troca de ideias entre professora e alunos. Dessa forma, organizei o material, compus uma apostila, selecionei músicas e fiz o convite aos alunos. Foi confeccionado um convite explicando os objetivos do projeto e pedindo a assinatura de autorização para participação na intervenção, bem como a autorização para uso da imagem.
A preparação para o projeto interventivo já foi algo que, em si, encheu-me de expectativas. Realizar uma atividade interativa, em que todos possam participar com suas ideias, emoções, expectativas e questionamentos faz parte dos ideais docente, mas, pela necessidade de cumprir o currículo e pelas limitações pessoais, por vezes fica em segundo plano e por vezes ocorre em partes. O workshop veio como uma possibilidade de reflexão e prática de conceitos próprios do currículo, uma vez que são temas transversais e integrantes do contexto social e que a cultura permeia o cotidiano dos indivíduos:
O aluno interage com o assunto em estudo – ouvindo, falando, perguntando, discutindo, fazendo e ensinando – sendo estimulado a construir o conhecimento ao invés de recebê-lo de forma passiva do professor. Em um ambiente de aprendizagem ativa, o professor atua como orientador, supervisor, facilitador do processo de aprendizagem, e não apenas como fonte única de informação e conhecimento (BARBOSA; MOURA, 2013, p.55).
O vislumbre de uma atividade de aprendizagem mútua, sob a supervisão da professora, já motivou a prática e a seleção do material. A apostila foi pensada para que os alunos pudessem responder questionamentos, conhecer autores e construir conceitos.
3.1 O workshop
A educação é um direito público subjetivo e tem como finalidade, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1996, p. 1). Há diversos tipos de educação, nas esferas formais, não formais ou informais. A educação formal, em específico, trata-se daquela oferecida em instituições ou sistemas de ensino estabelecidos e regimentados.
O foco do workshop foi o de propor um projeto interventivo pedagógico de educação formal, na área de educação patrimonial. O intuito era identificar a importância do acesso aos direitos culturais de um grupo de estudantes da escola pública e qual a relevância dessa reflexão para a formação da cidadania, usando para isso observação e produção dos resultados obtidos.
O projeto interventivo consistiu em uma ação cultural de educação patrimonial, usando como metodologia a pesquisa-ação para a coleta e construção dos dados, uma vez que buscou a reflexão conjunta sobre os temas propostos. A ação cultural, segundo COELHO NETO (2001), consiste na criação de condições para que os sujeitos culturais criem, recriem e fruam suas manifestações culturais. Assim, os bens culturais são protegidos e a posse do patrimônio é reconhecida.
O projeto interventivo visou à transformação ativa de uma determinada situação, sendo assim, por ser um projeto, há uma intencionalidade de modificar realidades em um futuro, próximo ou distante, a fim de apresentar novas perspectivas ou reflexões:
Página 322Intervenções podem ser ações efêmeras, eventos participativos em espaços abertos, trabalhos que convidam à interação com o público; inserções na paisagem; ocupações de edifícios ou áreas livres, envolvendo oficinas e debates; performances; instalações; vídeos; trabalhos que se valem de estratégias do campo das artes cênicas para criar uma determinada cena, situação ou relação entre as pessoas, ou da comunicação e da publicidade, como panfletos, cartazes, adesivos (stickers), lambe-lambes; interferências em placas de sinalização de trânsito ou materiais publicitários, diretamente, ou apropriação desses códigos para criação de uma outra linguagem; manifestações de arte de rua, como o graffiti. (INSTITUTO ITAU CULTURAL - Enciclopédia)
Sendo assim, o projeto interventivo é, de certa forma, uma ação cultural, ou pelo menos uma proposta de ação cultural. No caso deste projeto, trata-se de um projeto interventivo pedagógico, uma vez que pretende realizar uma intervenção pedagógica, ou seja, uma ação cultural de educação patrimonial.
Para atingir a finalidade da educação brasileira, anunciada na LDB / 96, a educação patrimonial é imprescindível, pois a identidade cultural é muito importante para o desenvolvimento, pessoal e social, do educando. A educação patrimonial também é de extrema relevância para o exercício da cidadania.
Os sujeitos do projeto compartilham o mesmo contexto histórico-social, por isso usou-se como base a pesquisa-ação como base metodológica, numa dimensão dialogada. A opção por um workshop se deu por conta do contexto escolar e as atividades cotidianas. Mas, a falta de recursos, impediu que o projeto tivesse longa duração. Desta forma, a realização de uma oficina de patrimônio cultural para a reflexão e prática dos direitos culturais surgiu como a melhor alternativa.
Ainda foi uma aula de português, mas, diferente das aulas anteriores de interpretação e análise de frases prontas, a reflexão foi sobre temas que fazem parte do cotidiano escolar: cidadania e direitos culturais. Essa foi uma aula de interpretação textual, interpretação de textos contextualizados e que estão presentes na história, nas famílias, nas casas, nas ruas, enfim, são parte da realidade escolar.
A intervenção foi dividida em dois momentos: No primeiro dia, 14/05/2018, houve a teorização, que consistiu na explanação do que é direito cultural e o que é direito humano, bem como a apresentação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Federal de 1988, as quais anunciam os direitos culturais. Em seguida ocorreu a reflexão dialogada sobre a relação de direitos culturais e cidadania. No segundo dia, 16/05/2018, houve a materialização dos conceitos aprendidos, que consistiu na construção de um painel com imagens e poemas sobre direitos culturais e cidadania. Em seguida, ocorreu a produção textual de um manifesto composto pelos alunos sobre a importância dos direitos culturais para a formação da cidadania.
Apresentei a proposta de projeto interventivo a duas turmas, uma de 8º ano e uma de 9º ano, 50 alunos dispuseram-se a participar e levaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) para suas casas. Trinta e nove trouxeram os termos assinados pelos responsáveis, um aluno que tem 18 anos assinou o próprio termo. Seis alunos desistiram de participar do workshop e uma aluna faltou ao primeiro encontro. Sendo assim, o workshop contou com 33 alunos no primeiro e 34 no segundo. Os encontros tiveram duração de 2 horas cada e ocorreram em uma sala cedida pela direção. Os alunos que participaram do workshop foram liberados da aula no período da atividade.
Página 3233.1.1 Primeiro encontro
Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte”
(ANTUNES, 1987)
Às 10 horas do dia 14/05/2018 35 alunos entraram na sala 21 do Centro de Ensino Fundamental 12 de Taguatinga; antes disso, posaram para uma foto que habitará a minha memória afetiva por muito tempo, entraram em fila, curiosos porque a sala estava diferente:
Havia apostilas, cadernetas sobre as mesas, o quadro tinha uma frase dos Titãs: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte.” (ANTUNES, 1987). Havia uma mesa com salgados e doces com uma frase acima: “Você tem fome de quê?” (ANTUNES, 1987), outra mesa com garrafas de água personalizadas com o trecho: “Você tem sede de quê?” (ANTUNES, 1987), suco e refrigerantes com uma frase acima: “Você tem sede de quê?” (ANTUNES, 1987):
No rádio tocava a música Comida (ANTUNES, 1987), o momento foi de socialização, os alunos lancharam, conversaram, e cantaram a música, ainda muito curiosos, especulavam o que iria ocorrer nas próximas horas. Esse momento durou 20 minutos.
Os alunos foram convidados a sentar e abrir a apostila que estava em cima da mesa, a professora perguntou o que era cultura e muitos alunos deram respostas: Música, comida, dança, arte, vida, alegria, festa e, o mais marcante e o consenso por parte deles: “tudo”.
A professora apresentou o conceito de cultura de (LARAIA, 2006, p. 67) “Ruth Beneditc escreveu em seu livro O crisântemo e a espada que a cultura é através da qual o homem vê o mundo. Homem de culturas diferentes usam lentes diferentes e, portanto, têm visões desencontradas das coisas.”
Novas reflexões surgiram desse conceito, a professora perguntou se funk era cultura e os alunos disseram que sim e falaram de experiências nas quais foram vítimas de preconceito por conta de manifestações culturais representadas por eles. Disseram que as lentes dos preconceituosos eram embaçadas e que tudo que vem de pretos sofre preconceito. A professora abordou as tensões vividas para reconhecimento do patrimônio cultural, bem como dos direitos culturais:
A professora apresentou o conceito de cidadania, um aluno disse que seu pai havia afirmado que cidadão é quem vota, outros contribuíram dizendo que o voto é apenas um dos atributos da cidadania, “uma parte da cidadania”, segundo eles. Seguiu-se o conteúdo da apostila e a professora pediu que um voluntário lesse o trecho que versava sobre os direitos culturais. Apresentou-se o artigo 27 da DUDH, um resumo sobre o Pacto Internacional dos direitos culturais, os artigos 215 e 216 da CF/88 e os direitos humanos como eixo transversal, do Currículo em Movimento do Distrito Federal.
O debate que se iniciou após a leitura da apostila foi riquíssimo, um aluno disse que não sabia que a DUDH era uma carta, a professora mostrou-lhes a carta e explicou o contexto histórico de criação da carta. Uma aluna disse que pensou que a carta só protegia bandidos, mas percebeu que protegia ela também, mas que ainda achava que isso era só um papel, pois todo dia morre gente, todo dia tem gente que sofre preconceito.
Página 324Um aluno afirmou que só era um papel porque ninguém conhece, a professora retomou o conceito de cidadania afirmando que é um processo de conquista de direitos e que esse processo exige conhecimento e luta. Uma estudante afirmou que a luta pelos direitos culturais poderia ser feita por meio de exigência na direção da escola, nas regionais de ensino, no “governo”. Muitas contribuições vieram dessa fala, relatos de que eles não assistem a produções culturais e nem tem espaço para criar, que no Plano (Plano Piloto – DF) as escolas são diferentes e isso faz parte da tensão dos direitos culturais.
Essa reflexão durou 20 minutos e serviu como base para a segunda atividade, os alunos foram convidados a sentar em grupos, da forma como se sentissem à vontade, e construir conceitos a partir de três perguntas contidas na apostila: O que é cultura? O que são direitos culturais? Os estudantes das escolas públicas do Distrito Federal têm acesso aos direitos culturais?
Após as reflexões serem escritas no papel, os participantes dos grupos entregaram as respostas e apresentaram aos demais seus conceitos. As respostas foram enriquecedoras: O que é cultura? “Um pouco de cada coisa”, “Tudo”, “Diversidade”, “Vida”, “As lentes do mundo”, “Cultura é igual matemática, só é bom quando aprende”. O que são direitos culturais? “Direitos que não podem ser violados”, “processo de conquista de direitos”, “direito de ser quem somos”. Os estudantes das escolas públicas do Distrito Federal têm acesso aos direitos culturais? “Não, porque o governo é um lixo”, “depende”, “Não, mas isso vai mudar”:
Os debates seguiram-se e esse momento durou uma hora, a mudança foi a síntese do encontro, mudança da professora, mudança de conceitos, mudança para melhor, para dar vazão ao processo de conquista de direitos. Os dez minutos restantes foram destinados à arrumação coletiva da sala, a professora lançou um desafio aos alunos, que trouxessem imagens que sintetizassem o conceito de cultura aprendido no encontro.
3.1.2 Segundo encontro
“É necessário sempre acreditar que o sonho é possível,
Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível.
Que o tempo ruim vai passar é só uma fase,
E o sofrimento alimenta mais a sua coragem.
Que a sua família precisa de você
Lado a lado se ganhar pra te apoiar se perder.
Falo do amor entre homem, filho e mulher,
A única verdade universal que mantém a fé.
Olhe as crianças que é o futuro e a esperança,"
(BROWN, 2006)
Às 10 horas do dia 16/05/2018 36 alunos entraram novamente na sala 21 do Centro de Ensino Fundamental 12 de Taguatinga. Ainda curiosos, pois as cadeiras da sala estavam divididas em três círculos. Em um dos círculos havia cavalete, pincéis e tinta, no segundo círculo havia papéis A4 e lápis de cor, no terceiro círculo havia papéis A4, lápis de escrever, apontadores e borrachas:
No quadro havia 6 cartolinas pretas e na parede lateral direita havia 6 cartolinas brancas, na mesa de lanche havia açaí e sorvete, na mesa das bebidas, garrafas de água. Os alunos tiveram outro momento de socialização e ouviram uma música dos Racionais MCs “ A vida é um Desafio” (BROWN, 2006). Logo em seguida foi tocada a música Bachianas Brasileiras nº 4 (VILLA-LOBOS, 1922), esse momento durou 15 minutos.
Página 325A professora perguntou se havia diferença entre as músicas tocadas, um aluno disse que era diferença de estilos, uma era mais suave, outro estudante disse que eram apenas lentes diferentes e que cada um gostaria mais de uma e de outra a partir das suas lentes, uma aluna disse que gostava das duas e que nunca tinha ouvido falar em Villa-Lobos. A professora falou brevemente a história de Heitor Villa-Lobos e apresentou aos alunos uma breve história do IPHAN e de Mário de Andrade, aproveitou a oportunidade e sugeriu alguns livros do autor, inclusive a história do anti-herói, Macunaíma:
Os alunos foram convidados a colar as imagens que trouxeram de casa para compor o primeiro painel, intitulado por eles como “painel cultural”. Logo em seguida a professora apresentou os objetivos do segundo encontro: materializar o que foi aprendido no primeiro encontro, para isso, dividiram-se em três grupos. Cada grupo teria dez minutos em cada espaço, em seguida seguiriam para o outro espaço. Em cada espaço havia um desafio, pintura em tela, desenho e poesia. Assim, os grupos fariam no mínimo três produções:
Logo após as elaborações das atividades propostas os alunos foram convidados a falar sobre suas produções e colá-las no painel intitulado “cultura no CEF 12”. Na sequência, a docente e os alunos conversaram sobre as produções trazidas e as que foram criadas por eles. Uma frase de um estudante que marcou e sintetizou o que foi refletido no encontro: “Somos todos artistas, ainda temos muito o que fazer”.
Ainda temos muito o que fazer... Logo em seguida a professora apresentou “O manifesto dos que têm fome e sede de cultura”, os alunos acharam muito interessante e assinaram o manifesto.
Docente e estudantes se despediram do encontro, mas as reflexões permanecem, os questionamentos surgirão e, quem sabe, um dia os anseios serão atendidos e esse processo de conquista de direitos seja realidade:
Queremos protagonismo, queremos, antes de tudo, ser os atores de nossa realidade cultural, queremos levar o nome de nossa cidade aonde quer que cheguemos, queremos lançar novas obras de arte, novas escolas de pensamento. Temos fome e sede, fome e sede de conhecer e preservar nossos bens culturais, temos fome e sede de construir novos bens culturais, materiais e imateriais, temos fome e sede de divulgar a cultura brasiliense ao mundo e às novas gerações. (Trecho do manifesto).
4. Conclusão
Buscou-se contribuir, por meio de um projeto interventivo, para o fomento de reflexões sobre os direitos culturais na formação da cidadania dos alunos envolvidos na intervenção. A partir da construção de pensamentos e conceitos realizados no workshop, alunos e docentes puderam pensar sobre como se dá o processo de conquista dos direitos culturais e da cidadania. Construindo esses conceitos foi possível pensar sobre a identidade dos habitantes das regiões administrativas do Distrito Federal como indivíduos detentores de direitos culturais, do direito de aprender, criar, compartilhar e fruir seus bens culturais, bem como conhecer novas experiências de outras culturas.
Ao final, pedi aos alunos que avaliassem a aula, eles falaram que os encontros foram ótimos e que todas as aulas poderiam ser assim, que eles achavam mais divertidas e que eles aprenderiam mais. A experiência do workshop foi de uma educação horizontalizada, de construção do conhecimento, de debate e reformulação de conceitos. Aprendi muito com os alunos e percebi que a pesquisa-ação amplia os horizontes de um projeto interventivo e proporciona um ambiente de aprendizado mútuo.
Página 326Percebi ainda, por meio das falas dos alunos, que ainda há muito o que se fazer em prol da fruição dos direitos culturais; que deve haver um enfrentamento para a valorização e fomento das culturas locais, que há uma tensão enorme sobre o reconhecimento do patrimônio cultural e sobre a valorização de práticas culturais. Porém, tanto eu quanto os alunos vimos que os discursos podem ser desconstruídos, reconstruídos e outros podem ser construídos a partir do compartilhamento de ideias e a reflexão mútua.
A cidadania é um processo, os conceitos e discursos devem sempre ser retomados e novamente refletidos. É uma ação contínua, é a educação efetiva, educação essa que permite aos alunos o protagonismo de seu conhecimento e a luta pela igualdade. A intervenção demonstrou que é possível que a escola, juntamente com todos os meios de educação existentes, pode transformar realidades, pode sim abandonar a posição passiva de reprodução das ideologias e manutenção das classes e auxiliar a produção da cidadania, por meio de cidadãos críticos e éticos.
Finalizada a intervenção vi transformada a minha prática docente, dar voz aos alunos é a única forma de educação ativa, refletir conjuntamente com os alunos não só é possível, como também é algo revolucionário e atende à finalidade da educação: “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (BRASIL, 1996, p. 1).
A realização do workshop demonstrou que as aulas tradicionais são desconexas e desestimulantes, que a descontextualização do currículo é um entrave para um aprendizado significativo. O projeto interventivo foi um desafio, pois havia poucos recursos, por vezes pensei que não aconteceria, porém, quatro horas de ação cultural transformaram um pouco nossa realidade cultural.
No meio do processo veio o desânimo, desânimo esse que parece permear as atividades docentes. A falta de estímulo e de incentivo faz com que muitas coisas sonhadas tenham de ser repensadas, mas ainda temos muitos sonhos, todos os sonhos do mundo, por sinal.
Do planejamento à ação muita coisa foi revista e reformulada, pensei que teríamos maior visibilidade, não conseguimos, por motivos outros, perdi a motivação para publicar o manifesto. Mas, ao decorrer do tempo, meus alunos sempre trazem poemas, desenhos, textos e panfletos de eventos que eles participam. Alguns manifestaram a vontade de fazer cursos superiores ligados às artes, à produção cultural, etc.
A exposição do painel realizado pelos estudantes não foi possível, por conta de outros eventos ocorridos na escola, porém, deu ideias para outras atividades em sala.
Referências
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BARBOSA, Eduardo Fernandes; MOURA; Dácio Guimarães. Metodologias ativas de aprendizagem na educação profissional e tecnológica. Boletim Tec. Senac, Rio de Janeiro, v.39, n.2, p.48-67, 2013.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
________. Ministério de Educação e Cultura. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996.
BROWN, Mano; ROCK, Edi. Racionais MCs. In: Racionais. 1000 trutas 1000 tretas. São Paulo. Cosa Nostra. 2006.
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