Resumo
A culinária, em geral, faz parte do conjunto de práticas culturais indispensáveis ao ser humano. Alguns conceitos históricos, juntamente com os fatores climáticos, influenciaram o contexto atual de alimentação. Nesse sentido, o cerrado, no qual está localizada a região centro-oeste, possibilitou a formação da identidade cultural que pode ser estudada a partir da culinária goiana, no nosso caso, sob a perspectiva da cidade de Mineiros-GO. Este projeto de intervenção cultural teve como objetivo mapear na cidade de Mineiros os principais pratos que se aproximam de uma caracterização da identidade e pesquisar o contexto histórico e cultural destes pratos, bem como a relação deles com o cerrado e a região centro-oeste, a partir da aplicação de questionário com moradores e entrevistas com comerciantes locais.
Palavras-chave: Tradição. Cultura. Expressão Cultural.
1. Introdução
O Tema escolhido, culinária goiana como identidade cultural, foi proposto principalmente pelo fato de, ao falarmos da cultura brasileira, mencionarmos quase sempre o quanto ela é rica e diversificada. O patrimônio cultural material, em sua maioria, refere-se a bens mais fáceis de serem lembrados, como as esculturas, pinturas e monumentos, mas, existem também os elementos culturais intangíveis, que denominamos como patrimônio imaterial, tais como festas, celebrações, rituais, expressões culturais, dentre outros. É por meio dos padrões e comportamentos da cultura que percebemos as formas de expressão de cada um desses bens e chegamos à identidade cultural, que pode ser compreendida pelo modo de viver, os costumes que caracterizam o grupo e os indivíduos que a ele pertencem, através de suas expressões, dialetos, crenças, manifestações artísticas, modo de se vestir, comer, beber, e cozinhar.
Foi por essa razão que a culinária chamou tanto a atenção; afinal de contas, na alimentação humana natureza e cultura se encontram, pois, se comer é uma necessidade vital, o que comer, quando e com quem comer são aspectos que fazem parte de um sistema que implica atribuição de significados ao ato alimentar, destaca Maciel (2005, 49). Assim, como existem vários grupos sociais, e cada um possui sua própria identidade cultural, encontramos na culinária essa diversidade cultural.
O estado de Goiás reflete essa grande diversidade, ao abrigar aqui paulistas, nordestinos, gaúchos, indígenas, quilombolas... A culinária goiana apresenta traços culturais de outras regiões brasileiras e, mesmo assim, torna-se única ao ser apresentada a paladares inexperientes, geralmente pessoas que vieram de outros estados do país e, até mesmo, de outros países. Sendo assim, ao explorar a culinária goiana como identidade cultural, temos como intenção expor alguns costumes - como o que se come aos domingos ou no dia a dia, por exemplo - para compreender o que é culinária goiana; nesse caso, sob uma perspectiva da cidade de Mineiros.
2. Desenvolvimento
2.1 Culinária
Como um fenômeno social, a alimentação não se restringe a ser uma resposta ao imperativo de sobrevivência, de se 'comer para viver', pois, se os homens necessitam sobreviver (e, para isso, alimentar-se), eles sobrevivem de maneira particular, culturalmente forjada e culturalmente marcada (Maciel, 2005, p.49). Indo além de sua dimensão biológica, a alimentação humana como um ato social e cultural faz com que sejam produzidos diversos sistemas alimentares. Assim, estando a alimentação humana impregnada pela cultura, é possível pensar que os sistemas alimentares são como símbolos em que códigos sociais estão presentes atuando no estabelecimento de relações dos homens entre si e com a natureza. Conforme expressa DaMatta (1986, p.42), na mesa, através da comida comum, comungamos uns com os outros num ato festivo e certamente sagrado. Neste ato são celebradas as nossas relações mais que nossas individualidades.
Página 283A culinária brasileira é ricamente diversificada, cada região e estado possui sua própria característica, sendo possível saber, por exemplo, que o pequi sendo natural do cerrado é popularmente valorizado como o ouro do cerrado, mesmo sem nunca ter visitado a região; que o acarajé é baiano e nunca ter visitado a Bahia ou que o açaí é característico do norte do país sem nunca ter conhecido os estados do Pará, Amazonas e etc. Pois a culinária é uma forma de expressão da cultura e um mercado extremamente novo e lucrativo vem tomando espaço através dela. Muitos restaurantes, franquias de sorveterias, entre outras empresas, vêm sendo construídas e gerando riqueza e empregos através da culinária.
2.2 A região Centro-Oeste, povoamento, culinária tradicional
A região Centro-Oeste é composta pelos estados de Goiás (GO), Distrito Federal (DF), Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS). A formação histórica e cultural é muito semelhante, uma vez que esses estados foram povoados e colonizados praticamente pelos mesmos movimentos, como as bandeiras, jesuítas, febre do ouro e outros.
Povos indígenas foram os primeiros habitantes da Região Centro-Oeste. Em seguida, chegaram os colonizadores portugueses e negros (escravos), atrás de ouro e de povos indígenas para escravizar. Isso, desde o período do descobrimento do Brasil, por volta do ano de 1590, conforme explica Polonial (2006. Pg. 13). Eles descobriram minas de ouro e fundaram as primeiras vilas. E, aos poucos, foram chegando os fazendeiros de Minas Gerais e de São Paulo, que também povoaram a região. Eles organizaram grandes fazendas de criação de gado. O povoamento aumentou, com a construção de estradas de ferro e, mais tarde, com o aparecimento das rodovias e das hidrovias. A construção de Brasília como sede do governo brasileiro também contribuiu para o povoamento e o desenvolvimento socioeconômico da Região Centro-Oeste (PORTAL, 2018).
Os relatos da história impossibilitaram dissociar a cultura dos estados que compõem o Centro-Oeste devido a duas razões importantes. O primeiro aspecto relevante na história da culinária da região se dá como consequência do povoamento. Praticamente as mesmas culturas de migrantes e colonizadores e os ciclos de imigração trouxeram a culinária africana, portuguesa, italiana e síria. É claro que alguns estados que compõem limites territoriais com outros países, como é o caso de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (que fazem limite com a Bolívia e o Paraguai), possuem algumas características diferentes, mas, as semelhanças são predominantes. Já o segundo aspecto considerado importante é que maior parte do território do Centro-Oeste possui uma vegetação característica do cerrado, portanto, a alimentação predominante envolve a fauna e flora presentes neste bioma.
2.3 O cerrado goiano, aspectos que caracterizam a culinária goiana
O Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul, ocupando uma área de 2.036.448 km2, cerca de 22% do território nacional. A sua área contínua incide sobre os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal, além dos encraves no Amapá, Roraima e Amazonas. Neste espaço territorial encontram-se as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata), o que resulta em um elevado potencial aquífero e favorece a sua biodiversidade, destaca Coelho (1996, p.97).
Página 284A vegetação é, em sua maior parte, semelhante à de savana, com árvores baixas, esparsas, troncos retorcidos, folhas grossas e raízes longas; gramíneas e arbustos, (Coelho, 1996, p.98). Segundo o site todamatéria.com, esta diversidade também se verifica na flora e fauna do bioma: o Cerrado abriga 11.627 espécies de plantas nativas, com 4.400 endêmicas (exclusivas) dessa área. Cerca de 199 espécies de mamíferos e 837 espécies de aves. São 1200 espécies de peixes, 180 espécies de répteis (28% endêmicas) e 150 espécies de anfíbios (17% endêmicas). “Ainda é refúgio de 13% das borboletas, 35% das abelhas e 23% dos cupins dos trópicos” (O ECO, 2014).
A cozinha regional está bastante vinculada aos ingredientes típicos da terra tomada pelo Cerrado. As pesquisas realizadas por Bertran, trouxeram muitos esclarecimentos acerca das tradições na culinária goiana, desde os hábitos indígenas até os costumes trazidos pelos africanos, colonizadores e outros movimentos migratórios. Nesse período de colonização, a culinária era, a princípio, de subsistência, regida por influências climáticas; dividida entre o período da seca, quando havia escassez de alimentos (propício à pesca, a caça de repteis mamíferos ribeirinhos, e a apanhada de ovos), e o período chuvoso (coleta frutos, mel e caça favorável a mamíferos campestres, repteis, insetos comestíveis e moluscos), Bertran (2011, p. 178).
Os alimentos consumidos pelos índios aos poucos foram sendo introduzidos na dieta alimentar dos colonizadores, juntamente com os outros imigrantes e migrantes; as batatas - a doce cultivada pelos ameríndios e a americana trazida pelo europeu – o açúcar, a rapadura, a aguardente, o melaço e o mel; as caçadas de antas, capivaras e tatus que, juntamente com o assado de leitão, eram as carnes mais consumidas, temperadas no sal e, em alguns casos, no azeite; algumas variedades de frutas, como goiaba e laranja, que terminavam de compor o essencial das mesas dos habitantes da região. Até o hábito de comer arroz com feijão só surgiu por volta do século VXIII, pois o arroz era muito caro, tornando-se inacessível. Assim sendo, mandioca, milho, abóbora, feijão, guariroba, copaíba e pequi eram os itens mais consumidos na alimentação básica dos primeiros habitantes.
2.4 Mineiros: história, aspectos culturais e memória
Mineiros foi emancipada em 31 de outubro de 1938, mas sua história começou muito antes, esclarece Martiniano (1989), quando expedições provenientes da região do Triângulo Mineiro de Minas Gerais começaram a desbravar a região conhecida como Sudoeste Goiano. Muitos fazendeiros, juntamente com suas famílias, que vieram atrás de novas oportunidades, instalaram-se na região conhecida atualmente por Vila do Cedro. As famílias Carrijo de Rezende e Guimarães Pereira, vieram de Minas Gerais, em 1873, ocuparam e apossaram-se das terras hoje chamada de Mineiros.
Vieram de carro de boi, conduzindo guiacas, balas de espingarda, engenho de serra, oratórios de Divino, cinturões com bolsos de guardar dinheiro, além de outros apetrechos, mais ou menos típicos e característicos de uma preocupação econômica latifundiária. Por isso já vinham também acompanhados dos seus muitos escravos negros para mão de obra barata, empírica, na terra (SILVA, 1984, p.14).
O povoamento e a formação de Mineiros apresentam momentos distintos, a pré-história de 1873 a 1905, a chegada das famílias mineiras, como os Carrijo de Rezende, já citados, e os Teodoro de Oliveira, entre outras. De 1905 a 1970, os nordestinos chegaram e, em 1970, vieram os migrantes do sul e sudeste. Martiniano (1998) também relata estrangeiros, entre eles padres e freiras, e defende os estudos arqueológicos e antropológicos que revelam a existência de povos primitivos que habitaram a cidade há cerca de 11 mil anos, denominados índios primeiros.
Página 285Segundo pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o município tem uma população que se aproxima a 65.000 mil habitantes (IBGE, 2018), composta por pessoas de diversos lugares, Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, entre outros estados, tornando Mineiros culturalmente diversificada. No entanto, ainda, é considerada uma cidade tranquila, onde os valores familiares e tradições religiosas permanecem fortemente presentes na comunidade.
A cidade possui vários bens culturais, como a estátua Índia América, os monumentos da entrada da cidade (animais representativos do cerrado), a Igreja Matriz, a Igreja São Bento, as praças, os artesanatos, o Parque Nacional das Emas, e a culinária notável e expressiva, como o Biscoito Carrijo que, de acordo com as fábulas que se ouve na cidade - que não se sabe ao certo quem ou quando iniciou - os “ Carrijos comem biscoito e os Teodoros comem rosca”. Hoje, no século 21, os mais antigos explicam que havia alguém da família Carrijo que fazia muito bem a receita de biscoito e o tão tradicional biscoito de polvilho ganhou um nome próprio, “Biscoito Carrijo”. Martiniano revela a admiração e devoção em seu artigo publicado pela revista eletrônica DM/Opinião ao falar do tradicional Biscoito Carrijo:
Mas o biscoito cá da terra tem um quê ou porquê de especial. Antes de tudo é o mais gostoso da região. Faz parte da excelente arte culinária local e já é um valor histórico indelével. É como a cachaça e a moça bonita, a medicina e a reza, que são tradições das mais características da terra. De tão forte, essa tradição já virou uma legenda, uma instituição do lugar. Esse tom conservador que lhe dão, é uma homenagem a Minas Gerais, Estado donde vieram os Carrijo De Rezende. Assim, os “Carrijo” ou “os Rezende”, têm mesmo esse importante costume de merendar às quatorze horas o gostosíssimo “Biscoito Carrijo”, sempre acompanhado de doces, bolachas, leite, coalhada, café, frutas, como a laranja, e até o chá de tamarindo. Apesar de tradição, esse horário não consegue ser rígido, sobretudo nos encontros da família nas fazendas, onde as visitas são invariavelmente recebidas com a oferta desse delicioso biscoito e não sei mais quantas iguarias, pois o Carrijo de Rezende é mesmo farturento, podendo-se dizer que o “Biscoito Carrijo” nesses tempos de forte descaracterização dos costumes, já está virando um “tira-gosto” ou “quebra-torto” de qualquer hora (SILVA, 2017).
O artigo publicado pelo renomado autor Martiniano, que já se declarou apaixonado por Mineiros em outras obras, expressa um típico comportamento da família Carrijo, que é uma das famílias mais tradicionais na cidade. O autor relata os hábitos alimentares que se propagaram na comunidade. Até existem outros biscoitos de polvilho por aí, mas na cidade de Mineiros ele é conhecido por Biscoito Carrijo. Além de muito tradicional na cidade, ficou valorizado nas comunidades rurais e cidades vizinhas.
2.5 Organização, produção e consumo em Mineiros
Como podemos observar pelas discussões apontadas nos subtítulos anteriores, a Culinária Goiana é de origem simples, tem sabor de tradição, sabor de infância, recordação da comida de mãe, de avós, fogão de lenha, é, portanto, expressiva e cultural. Em Mineiros não é diferente, claro que todos os municípios possuem suas próprias características e peculiaridades, no modo de adquirir o alimento, no modo de fazer e de consumir.
Página 286Durante a realização de nossa pesquisa de intervenção com consumidores e comerciantes locais e, segundo os relatos destes, entre os principais itens produzidos, por feirantes, padarias, restaurantes, quitanderias, para serem expostos e vendidos na feira municipal da cidade, estão:
- Laticínios - o queijo cabacinha, queijo tipo frescal, queijo meia cura, doce de leite pastoso, requeijão, e o próprio leite caipira.
- Doces de frutas: cocadas, rapaduras puras e compostas (como mamão, amendoim), paçocas, diversas compotas (abacaxi, figo, mamão, goiaba).
- Derivados de milho: o milho verde in natura, pamonha, curau, farinha de milho, bolo de milho, broas, bolo de fubá, bolachas de fubá e etc.
- Derivados de mandioca: a mandioca in natura, bolo de mandioca, polvilho doce e azedo que são transformados em biscoitos diversos, como o “Biscoito Carrijo”, petas, biscoito frito, bolos, tapiocas.
- Vegetais: abacaxi, banana maçã, banana da terra, barú, seriguela, guariroba, babaçu, pequi tanto in natura como conservas, jurubeba in natura ou conservas, cajamanga, mangas, jiló, quiabo, cenouras, inhames, couve, taioba, hortaliças comuns como alface, rúcula, repolho, agrião, acelga são muito comuns. Inúmeras espécies de pimentas (especialmente bode, malagueta e pimenta de cheiro), frescas e em conserva.
Através desses alimentos, ainda in natura na maioria das vezes, percebe-se o que é de fato a comida tradicional típica do Centro-Oeste Goiano. A comunidade mineirense tem absorvido elementos de outras culturas, pois tem recebido fast foods, food trucks, redes de restaurantes; desde os mais exóticos, como a comida japonesa, até comidas árabes. No entanto, a comida tradicional ainda ganha espaço no coração e na mesa do mineirense, tais como:
- Para começar, o café da manhã é composto por: café preto, leite, pão de queijo, biscoito carrijo e o pão francês. Fazem parte da refeição matutina do mineirense, bolo de fubá, bolo de mandioca, e broas, também, entre as principais escolhas.
- No almoço o cardápio semanal: arroz e o feijão sendo os principais, carne (carne bovina, frango, carne suína), hortaliças e leguminosas como mistura.
- Lanche, café da tarde ou merenda: pão de queijo quentinho, rosca, biscoito, pamonha e para acompanhar café preto, chá (canela, cravo, capim cidreira) sucos (limão, laranja, maracujá, acerola), ou até mesmo o guaraná mineiro, que mesmo não sendo de produção local é extremamente valorizado aqui.
- Jantar: Arroz e feijão e carne e salada são os mais pedidos; porém, há o quibebe e as sopas, entre outros alimentos mais rápidos, que ajudam a complementar a janta.
- Comida de domingos e dias especiais: frango com guariroba, galinhada, qualquer coisa com pequi faz sucesso, desde a galinhada até o simples arroz com pequi é uma iguaria devidamente valorizada pelos mineirense. Além, é claro, do churrasco, que possui toda uma caracterização, não sendo nem de perto parecido com o churrasco gaúcho, desde os acompanhamentos até os temperos.
Há que se destacar o consumo do pequi, tanto durante sua estação (in natura) quanto fora dela; uma vez que pode ser congelado ou feitas conservas. Faz parte também do dia a dia do mineirense temperos, como pimentas diversas, açafrão, gengibre, além da banana de fritar (banana da terra), milho verde refogado, jiló frito ou refogado, ovo frito ou cozido, carnes diversas e seus muitos modos de preparo.
Página 2872.6 Identidade Cultural e patrimônio imaterial
O conceito de cultura foi destacado por Marconi e Presotto (2010, p. 22), citando Tylor (1871, n.p), como um complexo que envolve os conhecimentos, as crenças, as manifestações artísticas, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade; Laraia (1987, p. 25) complementou ao afirmar que esse complexo é constituído no indivíduo por este fazer parte de uma sociedade da qual se sente membro.
A Identidade cultural é o sentimento de identidade de um grupo ou indivíduo, na medida em que este é influenciado pela cultura do grupo. Ela indica o meio cultural que o indivíduo compartilha com outros membros, suas crenças, tradições, preferências, modos de se expressar, culinária (aí podemos entender quando dizem que tal comida é típica de um determinado local), pois ela também expressa sua identidade (DIANA, 2018).
Como falamos sobre identidade cultural é importante destacar a diversidade cultural, pois cada grupo possui sua própria linguagem, religião, danças, músicas, tornando-se culturalmente diverso de outro grupo que vive sob situação diferente, mas com semelhanças em alguns aspectos. Ainda assim, não há de se falar em cultura superior ou inferior a outra e somente em culturas diferentes, pois qualquer grupo humano consegue sobreviver no meio em que vive, conhecendo o ambiente ao seu redor, produzindo seu próprio alimento e os meios de sobrevivência. Julgar a cultura do outro baseado na própria experiência cultural é considerado etnocentrismo. A cultura possui um caráter de aprendizado e interação direta e constante, pois com outros seres humanos somos capazes de aprender, adquirir e produzir cultura, e ela jamais pode ser transferida geneticamente.
O estudo de patrimônio cultural está dividido em dois grupos básicos, “os bens de natureza material podem ser imóveis, como as cidades históricas, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; ou móveis, como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos” (IPHAN, 2014), estes compõem o patrimônio material, que é reconhecido por parte grande da população ao referir-se à cultura.
O Patrimônio Imaterial é o segundo grupo; este, por sua vez, é composto por: conhecimentos enraizados no cotidiano das comunidades; manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; rituais e festas que marcam a vivência coletiva da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; além de mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais (GOVERNO, 2009).
Preservar a identidade cultural já é uma ideia em vigor no Brasil desde a era Vargas, quando começaram a surgir Instituições como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2014), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe ao IPHAN proteger e promover os bens culturais do país, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. A Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, vai tratar das questões relacionadas ao patrimônio:
Página 288Art. 1º - Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
§ 1º - Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei.
§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana (DECRETO, 1937).
Em quatro de agosto do ano de dois mil, o patrimônio cultural imaterial passa a ter também destaque, por meio do decreto nº 3.551, que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro. Ele cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências relacionadas à continuidade histórica e relevância nacional para a memória da identidade brasileira, proporcionando recursos para proteção, através dos registros do patrimônio cultural brasileiro, tais como: o Livro de Registro dos Saberes, o Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e o Livro de Registro dos Lugares. (DECRETO, 2000).
A conscientização é o “carro chefe” para a preservação do patrimônio. Sua proteção proporcionará às futuras gerações acesso aos bens de valor imensurável que ainda podemos desfrutar e que constituem a nossa identidade cultural. Sendo assim, entendemos que para conscientizar é preciso tornar público o desejo de resguardar o que é importante para a memória cultural. Alguns métodos e ações podem mudar o conceito errôneo de que cultura não é importante, como, por exemplo, trazer para a educação básica tais discussões, pois é na escola que começa a construção do saber de um indivíduo; não temos que escolher entre educação, saúde e cultura, pois precisamos igualmente de todas. Algumas campanhas de marketing social, redes sociais, televisão, rádio, também podem contribuir, tanto para promover quanto para preservar a cultura.
3. Objetivos
O projeto desta intervenção teve como objetivos:
- Mapear na cidade de Mineiros os principais pratos que se aproximam de uma caracterização da identidade cultural goiana.
- Pesquisar o contexto histórico e cultural destes pratos e a relação deles com o Cerrado e a região Centro Oeste.
- Conhecer alguns dos principais produtos e produtores de comida tradicional, o meio de produção e consumo a partir de aplicação de questionário com moradores e entrevistas com comerciantes locais.
4. Metodologia
O projeto de intervenção foi desenvolvido na cidade de Mineiros-GO. Alguns procedimentos foram primordiais para o desenvolvimento do projeto, realização da intervenção e consequente produção deste relatório. Inicialmente, foi necessário pesquisar em bibliografias e fontes especificas a história de Goiás, do Centro-Oeste e do Cerrado, através de livros, artigos, sites, teses. Além disso, foi realizada pesquisa qualitativa por meio de um questionário simples, aplicado para 30 pessoas com idades, gênero e classe social diversos em um evento aberto. A finalidade era identificar em Mineiros aquilo que poderia ser considerado, segundo a opinião das pessoas, um prato indispensável no dia-a-dia (café da manhã, almoço, lanche e jantar) ou até mesmo um prato típico da cidade (Biscoito Carrijo). Através de perguntas fechadas, essas pesquisas, também nortearam o caminho até os participantes da ação interventiva, pois eles indicaram estabelecimentos que acreditaram ser portadores de tradição da culinária goiana dentro da comunidade.
A intervenção foi realizada em instituições diferenciadas e diversas: um restaurante, uma padaria, uma barraca de feira e a secretaria de cultura do município de Mineiros (esse espaço, em particular, não foi escolhido através da pesquisa qualitativa, mas sim por que era importante conhecer a visão da secretaria de cultura a respeito do assunto). A fim de cumprir os objetivos propostos, selecionamos quatro participantes distintos em idades, ramo de atuação e origem. Entre eles temos:
Alex Martins Cardoso, secretário de cultura do município de Mineiros, natural de Mineiros, Goiás, 51 anos de idade, o qual conheceu a cidade como ela era, sem a intervenção dos gaúchos, que chegaram nos anos 70 e transformaram a região. Falamos de comida, os costumes antigos de secar a carne no sol ou fritar tudo e armazenar em latas, que ainda permanecem em sua memória, pois hoje o sistema de conservação é outro e com isso o sabor da carne também mudou. O pão de queijo, os bolinhos fritos e o Biscoito Carrijo marcaram tanto a cidade, que mesmo havendo mudanças no cenário econômico de Mineiros ainda há uma parcela significativa da população que, segundo ele, prefere manter os costumes de se fazer uma boa refeição caseira; Ainda não houve em gestões políticas anteriores incentivos para a manutenção da tradição através da culinária, mas já existem projetos voltados para a cultura e a possibilidade de um ambiente somente para isso. O centro cultural Santo Agostinho (em restauração) irá dispor de salas com diversas funcionalidades, entre elas uma para a gastronomia, que irá apoiar o produtor local e a tradição goiana.
James Carrijo Carneiro, 55 anos, natural de Mineiros-Goiás, proprietário da Panificadora Carrijo, trabalha com quitandas tradicionais há mais de 19 anos. Ele aprendeu com a mãe que, consequentemente, aprendeu com a avó, a confecção principalmente do biscoito frito e do pão de queijo, que são os elementos mais vendidos. Compreende o valor da tradição na execução das receitas, pois até hoje sua mãe auxilia na produção dos biscoitos, especialmente o biscoito Carrijo.
Jose Donizete da Rocha, natural de Minas Gerais, 48 anos, proprietário e cozinheiro da Casa Verde, restaurante de comida caseira, reside há 9 anos em Mineiros. Informou que a preferência familiar ainda continua sendo a comida típica caseira. Hoje, ele não consegue dissociar a comida goiana da mineira, uma vez que ambas estão muito ligadas. Acredita também na tradição da comida caseira e na valorização da memória cultural ligada à alimentação.
Página 290Já Samuel Bispo de Canturias possui 58 anos, Goiano, é feirante há mais de 30 anos. Ele não possui ensino médio completo. A barraca dele é a mais completa em produtos considerados indispensáveis para o consumo cotidiano do mineirense. Samuel argumentou que mesmo com os anos mudando as tendências alimentares persistem. Ainda hoje existe uma intensa procura de guariroba, pequi, doces tradicionais e compotas, pois a comida caseira ainda é muito valorizada.
A pesquisa, embora composta pelo mesmo perfil de perguntas, permitiu observar outros aspectos na visão dos entrevistados. Seus relatos demostraram a dificuldade de manter a tradição em meio à falta de mão de obra qualificada; de produtos industrializados que não possuem a mesma qualidade dos produzidos naturalmente, porém, são mais baratos, ocasionando uma concorrência muitas vezes injusta. Esses apontamentos trouxeram outros pontos relevantes, de que ainda há uma falta de reconhecimento das questões afeitas à cultura, diante das dificuldades em manter um negócio, pagar impostos, e sofrer com a falta de incentivo fiscal para quem valoriza aspectos relacionados à cultura e à valorização do patrimônio.
5. Resultados
Cada participante recebeu um questionário semelhante, distintos somente nas particularidades de seu ofício, no qual foram abordadas as questões culturais que envolviam a alimentação e o conceito de tradição. Cada participante se expressou de acordo com as perguntas formuladas e houve consenso ao enfatizar que a melhor forma de continuar a preservar a identidade cultural por meio dos elementos da culinária é intensificando a promoção social, de uma maneira que seja de fácil compreensão a toda a população, desde os produtores rurais, os comerciantes locais, as instituições de ensino e toda a comunidade.
Afinal, também é uma preocupação de todos manter o próprio negócio, no caso dos feirantes e comerciantes, comer com qualidade, gerar renda e empregos para a comunidade e ter uma alimentação saudável e nutritiva. Pensando nisso, foi proposto como produto final da intervenção um guia cultural, no qual todos os que quiserem fazer parte e considerarem importante o conceito de culinária como identidade cultural, poderão participar. Acreditamos que o guia influenciará também no turismo, uma vez que Mineiros possui vários pontos turísticos em potencial. O guia poderá ser distribuído em hotéis, pousadas, clubes, restaurantes, feiras, padarias, contendo os principais pratos da região, além de um calendário cultural da cidade, que descreverá todos os principais eventos anuais em Mineiros e seus pontos turísticos.
6. Conclusão
A culinária é uma forma de expressão de cultura que permite caracterizar a identidade cultural de um grupo de pessoas ou uma comunidade, proporcionando significados na vida do homem. Ela faz parte do patrimônio cultural imaterial, para o qual existem leis que asseguram os registros dos bens imateriais, a fim de protegê-los e preservá-los para as gerações futuras.
As pesquisas bibliográficas apresentadas no presente relatório permitiram compreender a origem e as diversas influências gastronômicas que ajudam a compor a identidade cultural altamente expressiva da comunidade. Houve também pesquisas qualitativas, que proporcionaram informações dos hábitos alimentares, café da manhã, almoço, lanche ou café da tarde (tradição) e o jantar. A pesquisa qualitativa também auxiliou na identificação do grupo com o qual foi realizada a pesquisa interventiva. Durante a intervenção pudemos não somente conhecer os costumes alimentares como também as influências exercidas na cultura alimentar por novos grupos de migrantes, pela globalização e pela industrialização.
Página 291Contudo, mesmo diante das mudanças ocorridas, ainda há uma forte influência da tradição no que se refere à alimentação, através da composição do cardápio, quase inalterado desde a fundação da cidade, nos levando a entender que os valores tradicionais que representam a cultura local permaneceram preservados dentro da comunidade através da culinária.
A temática apresentada, a princípio, causou um certo espanto, pois ao conceituar a identidade cultural as pessoas não se lembravam que a culinária também pode ser considerada uma manifestação da cultura goiana. Diante disso, a promoção da cultura, por sua vez, possui papel de destaque em todo o processo que envolve a preservação do patrimônio cultural, além de exigir a participação e as ações coletivas de órgãos públicos, instituições de ensino, comércio, produtores rurais, enfim, toda a comunidade. Para que, assim, o conceito de identidade cultural possa ter sentido e fazer parte de toda uma geração.
Acreditamos que os objetivos da intervenção foram alcançados. A secretaria de cultura local, que está promovendo a reforma do Centro Cultural Santo Agostinho (um patrimônio cultural tombado pelo IPHAN na cidade), pretende desenvolver um espaço para fomentar a culinária típica da região e valorizar os produtores e a tradição.
Esperamos que o trabalho em questão possa contribuir para o desenvolvimento de outras linhas de pensamento que possam influenciar no padrão de comportamento social a respeito da valorização da cultura, especialmente quanto aos bens imateriais, pois são menos conhecidos pela população .E, ainda, que a culinária seja tratada com mais cuidado e dedicação em um país tão rico como o Brasil onde muitas pessoas ainda passam fome.
Referências
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DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986
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