Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania Propostas, Práticas e Ações Dialógicas

Um resgate da identidade cultural de Valparaíso - GO
Cora Coralina: uma história bordada em poesia

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Resumo

Constam neste relatório as impressões a respeito do projeto de ação interventiva fundamentado a partir de um diálogo entre memória, identidade cultural, patrimônio e gênero, na Escola Municipal Antônio Bueno de Azevedo, em Valparaíso de Goiás, por meio da parceria de dois de seus docentes. Um trabalho construído através de uma oficina de bordado livre com alunas adolescentes do Ensino Fundamental, onde foram elucidadas questões a respeito da identidade cultural das adolescentes, em uma cidade goiana em uma região de divisa com o Distrito Federal, o que, via de regra, confunde os referencias simbólicos dos cidadãos dessa importante região do Estado de Goiás.

Palavras-chave: Bordado; Identidade; Cultura; Patrimônio; Cora Coralina.

Introdução

A escolha da temática trabalhada nasceu de uma demanda social e cultural observada cotidianamente no cenário onde desenvolvemos atividades pedagógicas na função de docentes. Tal demanda não é única e exclusiva de nós, os idealizadores do projeto, mas de vários indivíduos que coabitam o município de Valparaíso de Goiás - parte constituinte da Região integrada de desenvolvimento econômico (RIDE).

A intenção do presente trabalho é aproximar o estudante de Valparaíso de Goiás (que, além de ser nosso público alvo, é um dos nossos objetos de estudo) ao patrimônio histórico cultural do estado de Goiás, buscando um resgate da identidade cultural e considerando, para tal análise, o posicionamento geográfico desse município, o qual se aproxima mais da capital federal do que da capital goiana. Uma aproximação que, em muitos casos, resulta em uma identificação maior com as manifestações culturais do DF por parte dos valparaisenses.

1. Justificativa

Os primeiros questionamentos que nortearam as ações aqui relatadas nasceram em sala de aula, na elaboração dos primeiros trabalhos e atividades da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania que, já de início, clamavam por uma identificação com espaços, objetos e conceitos culturais relacionados à nossa comunidade. A necessidade de identificação e pertencimento às vivências culturais vividas e apresentadas até aquele momento fizeram surgir a partícula propulsora que daria corpo ao estudo que agora se constitui.

A busca por essa identidade cultural levou os artesãos deste trabalho a buscarem em suas próprias experiências, acadêmicas e pessoais, o centeio que daria a materialidade necessária a esse intento. As duas irmãs das ciências humanas (Geografia e História), unidas à Literatura e Arte, estiveram presentes como principais referências teóricas que foram requeridas neste estudo.

O interesse pelo trabalho da poetisa goiana Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Cora Coralina) e pelo ofício do bordado (em especial por uma das autoras do projeto) delinearam a matriz central do trabalho que aqui se apresenta.

A disposição geográfica do município de Valparaíso, distante quase duzentos quilômetros da capital goiana e tão próxima da capital do país, Brasília, contribui de maneira expressiva para a dubiedade de identidade cultural do morador de Valparaíso, uma vez que o modus de vida (trabalho, educação, lazer, participação política) desse município goiano e sua economia estão expressivamente vinculados ao Distrito Federal.

O município de Valparaíso faz parte de uma microrregião do Entorno do Distrito Federal; ou seja, compõe, juntamente com outras mais 20 cidades goianas, uma porção espacial que não pertence legalmente ao território do Distrito Federal, porém sofre influência (e influencia) suas dinâmicas econômicas, sociais, históricas, culturais.

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Assim, vivenciando cotidianamente essa controversa identidade cultural, buscamos levantar indagações acerca da questão de pertencimento, de identidade e de memória, do morador de Valparaíso ao estado de Goiás ou ao Distrito Federal, questionando também qual a dimensão do contato com a obra literária de Cora Coralina, reconhecendo (ou não) a escritora como um dos alicerces da literatura de Goiás e do Brasil. Além de abordar a temática do trabalho manual - na forma do bordado - enquanto patrimônio cultural, bem como a valorização do saber-fazer e a transmissão de novos e antigos saberes.

A escolha da escritora Cora Coralina deu-se, além de sua relevância literária (regional e nacional), à importância de sua cidade natal, a Cidade de Goiás, Patrimônio Histórico e Cultural Mundial desde o ano de 2001. A Cidade de Goiás é um dos municípios mais importantes do estado de Goiás, tanto por sua herança histórica, quanto por sua herança cultural - município central no processo de interiorização do Brasil, quando das investidas daqueles que buscavam a “grande riqueza” (metais preciosos), no Novo Mundo.

A transformação do bem imaterial (literatura) em bem material (peça de bordado) por meio do ensino, prática e discussão do patrimônio histórico imaterial do estado de Goiás, voltando o foco para os trabalhos da escritora Cora Coralina, é uma outra importante preocupação levantada por nós.

A concepção de uma proposta de projeto interventivo que busque aproximar os estudantes da rede municipal de Valparaíso de Goiás a possibilidades de uma séria reflexão sobre o que define culturalmente esse grupo (estudantes), consolida memórias a partir do conhecimento e estudo de obras literárias goianas.

2. Desenvolvimento

Historicamente, nossa construção social considerou - e ainda considera – o saber-fazer manual como um trabalho exclusivamente feminino e subjugado como uma atividade menos importante, tanto no contexto socioeconômico quanto no contexto cultural. Estando reclusos aos espaços de convivência feminina e cumprindo seu papel social de “prendar as futuras esposas”.

Em gerações anteriores – a exemplo de uma das autores deste trabalho e, posteriormente, das alunas adolescentes que participaram deste projeto – onde o papel da mulher na sociedade ainda era reduzido ao lar e às atividades relacionadas ao mesmo, cabia à jovem mulher a função de preparar seu próprio enxoval de casamento e cabia às mulheres de maior idade repassar os conhecimentos manuais às mais jovens. Era notável que a transmissão patrimonial, tanto cultural quanto familiar, realizada de maneira oral, possibilitou a transformação do saber imaterial em bem palpável; a transformação de bem cultural imaterial em um bem cultural material.

Ao iniciarmos os encontros para bordar com as adolescentes participantes deste projeto de intervenção, se fez necessário e urgente lembrá-las que o intuito de nossos encontros seria romper com o que nos foi esperado historicamente enquanto jovens mulheres. Tais encontros seriam para nos aproximarmos de nós mesmas, de nossas histórias, das histórias de mulheres importantes em nossa sociedade, da importância de Cora Coralina na literatura do Brasil. Assim, já nos primeiros encontros apresentamos às adolescentes um coletivo feminino de bordadeiras de São Paulo que atualmente são referência em arte, feminismo, coletividade e empreendedorismo feminino através da arte, do saber-fazer manual. Apresentamos a elas o “Clube do Bordado”:

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O Clube do Bordado tem a missão de valorizar e promover a cultura do feito à mão desde 2013. O coletivo é formado por seis mulheres: Amanda Zacarkim, Camila Gomes Lopes, Laís Souza, Marina Dini, Renata Dania e Vanessa Israel. Nosso empreendimento criativo se expandiu a partir do bordado para abranger a criação e produtos exclusivos, oficinas, cursos e eventos pelo Brasil e pela Europa; a produção de conteúdo original multiplataforma e o desenvolvimento de projetos que visam resgatar os saberes e fazeres dos trabalhos manuais. Nossa intenção é usar as redes sociais para compartilhar conhecimento e experiências, abrindo caminhos para a educação e o empoderamento por meio do fazer com as mãos. (CLUBE DO BORDADO, 2018).

Apresentamos para as alunas um bordado moderno, produzido por mulheres jovens, independentes, com níveis de escolarização superior, que produzem arte através do bordado e possuem um bordado com viés libertador, que busca valorizar o papel feminino na sociedade. Valorizamos as vivências e informações delas, aprendemos e ensinamos sobre vários assuntos de nossas vidas e, desta maneira, repassando a elas nossa bagagem de conhecimento histórico, cultural e artístico, chegamos ao nosso foco nesta oficina de intervenção que se baseia na transmissão do saber-fazer manual, valorizando nossa herança patrimonial.

A escolha do bordado livre e do Clube do Bordado como referência para o desenvolvimento da oficina de bordado, e como tema deste projeto, não foi à toa. Como uma das idealizadoras e realizadoras deste projeto, eu, Bruna, sempre digo que enquanto a Universidade de Brasília me fez geógrafa o universo me pregou uma peça e me fez bordadeira. Aprendi a bordar com o Clube do Bordado, quando este coletivo de mulheres esteve em sua primeira passagem por Brasília em 2016. No período em que ocorreu tal curso eu estava afastada das salas de aulas, após entrar para as péssimas estatísticas de professores que sofrem violência nas escolas. Assim, desde o surgimento do bordado nas linhas da minha trajetória - pessoal e profissional – o bordado teve um caráter afetivo, de escuta, reflexão e se aproximar de si mesmo e com as demais.

No mundo do bordado, as mais antigas bordadeiras já nos diziam que o valor do bordado se dá através de seu avesso, pois, quanto mais perfeito e limpo - sem nós ou linhas entrelaçadas – o avesso, mais valoroso será tal bordado. Contudo, nossa experiência envolvendo bordado e alunas adolescentes em uma comunidade vulnerável, localizada em um município de Goiás, nos obrigou a ressignificar o avesso; assim, neste nosso microcosmos tratamos o avesso como nossas vidas, cheias de histórias e trajetórias, onde pessoas, tais quais como as linhas, se encontram umas com as de outras. E encaramos os nós como possibilidades de encerrar e recomeçar nossas atividades, nossas expectativas e nossos bordados. Desta forma, perante o nosso contexto geográfico e educacional, chegamos então ao que denominamos como um “avesso com histórias”. Então, visualizaremos nas peças de bordado produzidas pelas alunas um avesso cheio de fios de linhas, nós, pontos recém aprendidos, afeto, história, aproximação, conhecimento, encontros e partilha.

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A escolha da temática, onde as obras de Cora Coralina se constituem como foco de discussão e produção de bordados, vem não só da necessidade de uma identificação com a cultura do estado de Goiás, mas também pela importância da figura feminina na construção literária do estado, da presença de saber-fazer manual nas obras de Cora, na transformação do bem imaterial em bem material, tanto no que se diz respeito aos versos que tomam forma nos poemas e livros, tanto nas receitas que tomam forma nos doces.

É possível observar no poema “Moinho do Tempo” presente no livro “Vintém de Cobre” uma abordagem que Cora faz sobre o bordado:

(...) Eram as costuras trabalhadas, os desfiados, os crivos pacientes.

A reforma do velho, o aproveitamento dos retalhos.

Os bordados caprichados, os remendos instituídos, os cerzidos pacientes

Tudo economizado, tudo aproveitado (...). (CORALINA, 1983).

A força de Cora Coralina se constitui como uma das grandes referências simbólicas para o trabalho que aqui se apresenta. Mulher que começou a escrever ainda na adolescência. Fugiu de casa com o futuro marido, rumo a São Paulo, e já em 1922 é convidada para participar de um dos momentos mais singulares da produção artístico-cultural do país – a Semana de Arte de 1922. Contudo, Cora não participou do evento, a poetisa fora impedida pelo marido.

Em um universo comandado por homens, Cora só consegue a sua “liberdade” após a morte do marido, momento que passa a ter que fazer doces para sustentar os quatro filhos. Foram muitos doces, muitas histórias e estórias.

A oficina de bordado uniu as aprendizagens pedagógicas e manuais em uma só linha. Abordamos o estudo da história de Goiás por meio dos textos, poemas, material audiovisual e doces lembranças de Cora. Fora discutida também a importância da Cidade de Goiás nos contextos regional e nacional, seja para a literatura do Brasil, seja para o patrimônio cultural dessas terras que completam neste ano de 2018 cento e noventa e seis (196) anos de independência política.

Nesse bojo do patrimônio e da história como ciência humana, apresentamos às alunas o Museu Casa de Cora Coralina, criado após a morte da poetisa por amigos e parentes da ilustre goiana. O acervo, doado pela família, nos ajudou a contar, por meio de objetos pessoais, manuscritos, hemeroteca, fotos, correspondências, utensílios domésticos, livros e móveis, um pouco mais sobre a história de Cora e do interior do Brasil.

São histórias como as de Cora que nos ajudam a entender um pouco mais sobre o papel da mulher na sociedade (ontem e hoje). Histórias que perpassam as vidas de garotas iguais às que nos deram a honra do presente trabalho.

2.1 As Participantes

Lorrany, Isabela*, Amanda, Taynara*, Mylena, Brenda* e Marcela: esses são os nomes das bordadeiras da Escola Municipal Antônio Bueno de Azevedo. Esses são os nomes das alunas - dos 7º e 9º anos, respectivamente, que até então nunca tiveram contato com o bordado - que aceitaram o convite, feito pessoalmente nas salas de aula por meio de cartazes colados nas paredes da escola convidando à oficina de bordado.

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O mais próximo que Amanda e Taynara estiveram das manualidades fora, até então, por meio do feitio do crochê, com os vários novelos de linhas que as duas amigas (tímidas) chegaram juntas ao nosso primeiro encontro.

Lorrany e Isabela, ambas da mesma turma do 7º ano, nunca foram próximas em sala aula, mas em nosso primeiro encontro de bordado sentaram-se lado a lado. E já no primeiro dia compartilharam linhas, agulhas e risadas sobre a dificuldade coletiva de manejar os instrumentos de bordado.

Apesar de nunca ter bordado nada ao longo de seus jovens 14 anos de vida, Mylena já se apresentou como a mais hábil no desenrolar das linhas coloridas sobre a mesa. Nossos encontros semanais realizados nas manhãs de quinta-feira foram pouco para ela, que desatou a bordar no período das aulas, no intervalo e em casa, desde o primeiro dia. E assim, com apenas os dois pontos aprendidos na primeira aula, vimos Mylena bordar as próprias roupas.

Já Brenda, viu os bordados da amiga Mylena, se encantou e rapidamente chegou acompanhada da companheira de turma para se juntar a nós (e aos nós), nesta nossa jornada de bordado. Marcela, que foi a derradeira aluna a se juntar ao grupo, nos disse que sempre teve vontade de fazer algum tipo de artesanato, e encontrou na oficina essa possiblidade de aprendizagem. Marcela nos surpreendeu com sua destreza com linhas e agulhas desde o primeiro dia.

Essas alunas, em consonância com os olhares de muitos outros alunos do Entorno do Distrito Federal, constroem uma imagem simbólica do DF de “maior valor” daquelas imagens construídas de sua cidade. Uma imagem que extrapola os muros da escola e que acaba encontrando refúgio na visão preconceituosa que se construiu ao longo da história dessa região, onde se destacaram os símbolos da capital federal em detrimento daqueles dos munícipios goianos adjacentes.

2.2 A Oficina de Bordado

Ao nos depararmos com a necessidade de uma ação interventiva como projeto de conclusão de curso, nos surgiu imediatamente a dúvida acerca do que faríamos, como faríamos tal ação interventiva e principalmente onde faríamos tal proposta acontecer. Diante do cenário que nos era exposto e em meio a muitas conversas resolvemos unir nossos conhecimentos de artistas, geógrafa, historiador, dupla de professores da Escola Municipal Antônio Bueno (Bruna Antunes e Thiago Magalhães) e discentes desta pós-graduação, para então dar forma ao que seria nossa ação interventiva. E da união entre o bordado e as histórias de Cora Coralina nasceu a oficina intitulada: Bordando Histórias.

Após conversamos com a diretora da escola e executarmos os trâmites burocráticos, iniciamos a divulgação de nosso projeto de intervenção cultural, a oficina Bordando Histórias. Espalhamos cartazes pelos corredores da unidade de ensino, convidando as (e os) interessados a se juntarem a nós para fazer parte deste projeto. Além da divulgação visual, convidamos também os alunos passando nas salas de aula.

No dia e horário que constavam no cartaz nenhum interessado apareceu. E a situação, que até então parecia o fim do início do nosso projeto, nos obrigou a realizar uma campanha de divulgação mais ativa, convidando e fazendo propaganda da oficina de sala em sala, explicando em detalhes o que era o projeto e o que faríamos nas próximas manhãs de quintas-feiras.

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O convite para participar da oficina de bordado foi aberto a todos os estudantes da unidade escolar, não estabelecemos pré-requisitos artísticos e tampouco condicionamos a participação ao gênero feminino. Contudo, tivemos apenas inscrições de participantes mulheres. Assim, apenas algumas meninas da Escola Municipal Antônio Bueno se propuseram a participar da oficina que iria transmitir conhecimentos que a séculos são determinados, em nossa sociedade, como um saber fazer feminino. Na quinta-feira seguinte nos reunimos pela primeira vez. Éramos, nesse primeiro encontro, 5 adolescentes alunas, uma professora de geografia-bordadeira e um professor de história que nunca tinha manuseado uma agulha de bordado; estávamos ali dispostos a nos aventurarmos no mundo do bordado.

A oficina de bordado foi desenvolvida ao longo dos meses de maio, junho, agosto e setembro de 2018 (com uma pausa apenas para o recesso letivo em julho), com encontros realizados no espaço físico da Escola Municipal Antônio Bueno de Azevedo – nosso local de trabalho e escola onde as participantes estudam – nas quintas-feiras no período da manhã, quase sempre entre 8:30 e 10:00h.

2.3 As Peças Produzidas

Antes de começar a bordar, se fazia necessário apresentar às participantes os instrumentos necessários para o feitio do bordado; assim, as meninas tiveram ali o primeiro contato com meadas, bastidores, agulhas e tecido de algodão cru. Tais elementos, vistos de forma separada, não fazem muito sentido. Contudo, ao se unirem em laçadas, nós e pontos, são os responsáveis pelo surgir do bordado. A linha que transpassa o tecido, preso nos aros do bastidor, se unindo em cores e formas, foram pontos importantes para nos aproximar e compreender a importância da preservação do saber/fazer manual.

Em nosso segundo encontro iniciamos o feitio dos primeiros pontos de bordados e ensinamos às participantes 5 pontos básicos do bordado livre: ponto atrás, nó francês, ponto haste, ponto margarida e ponto cheio. Com esse rol de pontos de bordado livre, as adolescentes puderam construir sua bandeira de pontos, testar os pontos com mais ou menos fios de linhas, bordar linhas retas e curvas, começar a bordar desenhos feitos em traço livre.

Com as adolescentes iniciadas nos pontos básicos e nos riscos de bordados feitos a mão livre, foi a hora de aprenderem a bordar riscos já prontos de alguns ilustradores famosos no mundo cibernético do bordado. O Clube do Bordado tem uma assinatura de riscos de bordados e todos os meses envia aos assinantes ilustrações para que possam bordar. Foi a partir desses riscos do Clube do Bordado que as bordadeiras do Antônio Bueno iniciaram o feitio de suas peças.

Combinamos com as participantes que tínhamos duas missões: produzir um bordado com versos de Cora Coralina, que seria parte integrante deste projeto de intervenção cultural, e produzir um bordado individual a gosto e critério de cada uma. Porém, o mais importante mesmo era receber e se apropriar do patrimônio imaterial que ali estava sendo pesquisado. Ao final de nossa oficina as participantes bordaram inúmeras peças, desenhos propostos por nós e por elas, peças de roupas, flâmulas e mini bordados que se transformaram em chaveiros e colares.

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As peças produzidas pelas adolescentes ao decorrer da oficina de bordado são de propriedade das artistas. Utilizamos ilustrações cedidas por outras bordadeiras, disponíveis na internet e, também, desenhos propostos e feitos pelas próprias alunas. Todo material utilizado ao longo da oficina foi doado às novas bordadeiras para que elas pudessem continuar a bordar.

2.4 Cora Coralina: uma Viagem na História de Goiás

A poetisa Cora Coralina já havia sido apresentada aos alunos do Antônio Bueno no ano de 2017, quando da realização de uma Feira Cultural, ondes foram lidos diversos poemas da autora goiana. Nesse momento, uma identificação se estabeleceu entre alunos e escritora... um elo que retornaria mais tarde (um ano depois), adornado por muita poesia e história.

No primeiro encontro com as alunas da Escola Municipal Antônio Bueno de Azevedo, foi apresentado um trabalho expositivo sobre a vida da poetisa Cora Coralina, em consonância com a história da Cidade Goiás (GO).

Não é possível falar de Cora sem falar de História; sem a história de Goiás. Uma cidade “encravada” no coração do país que serviu de passagem para muitos “desbravadores” que aqui chegaram, em busca de metais preciosos, ainda nos tempos coloniais.

Falar de Cora é entender a importância que a Cidade de Goiás tem na história de Goiás e, consequentemente, na história de um dos grandes nomes da poesia nacional. É inegável o interesse pelas mudanças que acompanharam (e acompanham) o homem e a mulher goianos ao longo de nossa história. Goiás, um estado tão importante para a construção da nossa identidade cultural e que, muitas vezes, acaba por ser preterido em relação à história de Brasília (DF).

A perspectiva supracitada se apresenta na medida em que há uma certa dificuldade de identificação cultural por parte daqueles que vivem nas margens de Brasília, mas em território goiano. Esta é a realidade das alunas que participaram do presente projeto e de muitas outras pessoas que, não raro, se questionam sobre os principais elementos que constituem suas identidades culturais.

Um resgate histórico da formação do Brasil foi fundamental para que essas alunas pudessem entender um pouco mais sobre a dimensão de seu estado na configuração de um Brasil que, durante muitos anos, teve ocupado apenas o seu imenso litoral, mas que, com a crise da produção açucareira, começou a voltar-se para o seu interior, sendo possível a observação da formação de novas comunidades, novas rotas, novos fluxos migratórios, em uma terra que serviu (e serve) de ligação entre o norte e o sul desse imenso país.

A história de Cora está intimamente ligada com a sua terra, com a sua cidade, com o seu estado. Mesmo após ter se mudado para São Paulo, fugindo com o seu marido, a poetisa goiana nunca esqueceu a sua casa, que hoje se torna um museu de resgate e preservação de sua vida e obra.

Ao andar pelas ruas de pedra da Cidade de Goiás, é possível perceber a carga histórica de uma cidade tão cheia de “contos” e “causos”. Uma cidade que ajuda a formar a riqueza cultural de um estado ainda desconhecido por muitos jovens goianos tão encantados com as “belezuras” em linhas curvas de Niemeyer, da capital federal.

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Como um dos autores deste trabalho, eu, Thiago, além de historiador, considero que o meu ofício de professor também me referenda a discutir em sala, e fora dela, com essas mesmas alunas, as suas múltiplas vivências históricas na busca constante, assim como fez Cora, pelo protagonismo de suas próprias histórias, de suas próprias vidas.

2.5 O Encontro de Fios

Ao iniciar o curso da pós-graduação em “Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania”, não pensamos que essa viagem chegaria tão longe... e tão perto. Tão longe pois fomos buscar referências díspares na construção e elaboração deste projeto, no intuito de acalmar algumas das muitas inquietações que povoaram as nossas noites, nos últimos quinze meses. Tão perto, pois acabamos encontrando aqui, “dentro de casa” (a nossa cidade Valparaíso) algumas respostas para muitas perguntas postuladas no início desse percurso. Tão perto, pois foi a partir das inquietações, que não são só nossas, que acabamos encontrando angústias outras sobre esse estado de pertencimento que, muitas vezes, não se encontra em lugar nenhum.

E foi justamente nesses encontros e desencontros, de fios e fios, que acabamos nos encontrando com jovens garotas, também “perdidas” em suas identidades... perdidas em suas angústias e em seus fios de pertencer e não pertencer. A partir de poucos, mas sinceros encontros, foi possível construir (e descontruir) algumas estruturas que norteiam e nortearam o pensamento sobre a simbologia cultural do DF e do seu entorno.

Assim como Mylena e Amanda, eu, Thiago Magalhães, também me vi perdido em inúmeros momentos onde hesitava entre o GO (Goiás) e o DF (Distrito Federal), pois, por diversas vezes, em meus quase trinta e cinco outonos, acordei cá e dormi lá... ou o contrário. Esse resgate da identidade cultural que aparece no tema deste trabalho se constitui como um resgate da identidade desse próprio pesquisador, que nesta hora se encontra menos perdido. Ser daqui ou de já não mexe mais tanto com os meus instintos: sou daqui, e sou de lá também.

3. Objetivo Geral

Compreender e vivenciar a transformação do bem imaterial (literatura) em bem material (peça de bordado) por intermédio do ensino, prática e discussão do patrimônio histórico imaterial do estado de Goiás, tendo como foco os trabalhos da escritora Cora Coralina.

4. Objetivos Específicos

5. Metodologia

A fim de aproximar o nosso público alvo dos elementos culturais e históricos do estado de Goiás, utilizando as artes manuais e a literatura como instrumentos de inserção social e cultural, realizamos uma pesquisa bibliográfica e empírica.

No que se refere aos aspectos metodológicos, propusemos uma análise que mescla a pesquisa-ação com a pesquisa participante aplicada a um projeto interventivo. Análise essa centrada na ideia de que estejamos envolvidos na participação e resolução do nosso objetivo de estudo, realizando uma interação entre nós, pesquisadores/interventores, e os membros da oficina proposta.

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Ao adotarmos a opção da pesquisa participante, estamos, com isso, nos aproximando do caráter social do estudo proposto e, consequentemente, da ciência popular; nos afastando, dessa forma, da ideia tradicional do pesquisar/investigar/estudar - aquele ideal repleto de dados e letras ininteligíveis que, em muitos casos, menospreza o conhecimento folclórico dos diferentes grupos culturais.

Os três grandes pilares da pesquisa-ação (caráter participativo, impulso democrático e contribuição à mudança social) nos norteiam, aplicados em uma ação de intervenção cultural, no sentido de não estarmos reunidos em uma sala de aula ou em um laboratório - com dados, somente, como muito se vê na pesquisa científica tradicional - mas junto a pessoas, construindo e desconstruindo saberes, memórias, conceitos, na busca por novos atores, responsáveis por processos e conhecimentos coletivos.

6. Considerações Finais

No universo das bordadeiras a etapa final do feitio do bordado é denominada “arremate”. É nessa etapa do processo que finalizamos o trabalho que nos foi pensado, proposto ou sonhado – por nós ou por outras pessoas – juntando linhas em pequenos nós e aparando os últimos fios soltos.

Ao concluir tanto nossa oficina de bordado na Escola Antônio Bueno de Azevedo quanto o feitio deste projeto de intervenção cultural, saímos com a impressão que deixamos fios soltos, mas não fios que deixarão o bordado ou este projeto incompleto. Deixamos fios soltos que poderão dar formas e cores a novos projetos. Fios que possibilitarão o bordar das novas bordadeiras de Valparaíso de Goiás. Deixamos fios de esperança soltos, deixamos nós de afeto, proximidade e identificação com novas amigas, que até então eram apenas nossas alunas adolescentes.

As linhas do bordado deram a possibilidade de nova perspectiva para essas meninas que, confusas ainda com os seus “lugares de fala”, puderam enxergar outras facetas de uma vida ainda jovem, mas já tomada pelas inquietações da idade.

O bordado, aqui, se apresentou como uma potente ferramenta socializadora, por meio de conversas, debates, trocas de experiências entre as participantes da oficina. Um caráter socializador que uniu garotas e consolidou um dos elementos mais importantes deste projeto, que é o trabalho coletivo.

A partir de tudo o que foi exposto até aqui, chegamos àquele momento onde somos tomados pela satisfação e pelo pesar: satisfação de uma etapa concluída e pesar por ter que seguir outros rumos, cruzar outras linhas, bordar outros tecidos.

A produção e os debates propostos neste projeto constituem uma verdadeira viagem no tempo e no espaço; uma viagem na identidade cultural de jovens garotas goianas. Identidade essa perpassada pelas letras e doces da grande poetisa Cora Coralina.

O que fica, ao final, é o desejo de enxergar esses pontos iniciados nas nossas conversas matinais nas possíveis transformações nas vidas dessas garotas. Transformações que passam pelo entendimento de seus papéis enquanto protagonistas de suas histórias, bordadeiras de suas próprias vidas.

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Referências

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CORALINA, Cora. Vintém de Cobre. Brasil: Global Editora, 2007.

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