Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania Propostas, Práticas e Ações Dialógicas

Iluminando Memórias Coletivas de Idosos de Cachoeira Alta – GO: Lamparinas e Fotografias Antigas de seus “Anos Dourados” Como Patrimônio Cultural

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Resumo

Este artigo tematiza memórias coletivas de idosos como patrimônio cultural e trabalha com o problema “como valorizar as histórias vividas, e narradas, pelos idosos de Cachoeira Alta–GO?” Assim, objetivou-se oportunizar momentos de interação entre as então diferentes gerações, minimizando prováveis conflitos ao fortalecer os laços parentais. Isto se deu com uma intervenção cultural, cujo desfecho ocorreu em uma feira noturna de vendas de alimentos. Os idosos, então, participaram de rodas de conversa; momentos que compartilharam suas histórias transformadas em memória coletiva, sendo parte da mesma identidade cultural, e interagiram com o público local através de exposição de fotografias e objetos antigos e de uma oficina de lamparinas. O resultado foi satisfatório, indo além do esperado, as pessoas que participaram ficaram muito contentes, sentimento explícito através das entrevistas realizadas durante e ao final das ações. O trabalho foi reconhecido pela assistência social local, a qual se manifestou, inclusive, interessada na continuidade do mesmo.

Palavras-chave: Memória Coletiva; Identidade; Patrimônio Cultural.

Introdução

“Ninguém melhor que o velho

para exercer a função social de lembrar.”

(Maurice Halbwachs).

O ano era 2008, na cidade de São Simão, Goiás. Naquele tempo, eu já era servidora púbica e tinha o cargo de “instrutora de cursos”, no Centro Cultural Iara de Almeida (CCIA). Desenvolvia um trabalho em artes e artesanato, bem como iniciação ao teatro, com crianças e adolescentes. Certo dia, minha líder convocou-me para conversar com a assistente social, a qual pediu que eu fosse trabalhar por dois dias da semana com as senhoras da terceira idade, em outra instituição. Com elas desenvolveria oficinas de pintura em tecido. No primeiro momento, fiquei um pouco preocupada, pois nunca havia trabalhado com essa faixa etária; até então não tinha muito contato com pessoas mais velhas que não fossem da minha família. Decidimos, por fim, que eu trabalharia no então Projeto Vida Ativa, nas terças e quintas. Dessa forma iniciava minha experiência de vida com aquelas senhoras, que foram muito mais minhas professoras que alunas.

Em outro momento da minha vida, em situação semelhante, desta vez em Cachoeira Alta, Goiás – minha cidade natal, e onde minha mãe reside até hoje –, estava eu trabalhando como arte-educadora no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e novamente fui convocada pela assistente social para trabalhar com o grupo da terceira idade; o ano era 2015. Nesta ocasião, havia a parceria com uma psicóloga, que desejava realizar algumas ações e convidou-me para mediarmos algumas dinâmicas. Novamente, aprendi bastante com as pessoas desta faixa etária.

Da convivência com idosos, em ambas as situações, notei a grande necessidade de acolhida, por perceber que pessoas tão especiais vivem uma realidade repleta de carências, em tantos sentidos de suas vidas. Assim, ao ter conhecimento de que teria que realizar uma “intervenção cultural” em uma instituição, por ocasião desta Especialização, não tive dúvidas sobre onde seria. Surgiu em mim o forte desejo de intervir em suas vidas, através de um projeto, com ações planejadas junto ao departamento de Assistência Social de Cachoeira Alta. Com o objetivo de amenizar alguns problemas que percebi existirem.

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Meu primeiro contato com o grupo da terceira idade de Cachoeira Alta, com o objetivo de realizar uma intervenção cultural, foi no Clube Municipal Comunitário e Salão Social Dona Aparecida Girotto; onde o grupo se reúne para atividades físicas, com a orientação de um profissional da área. Ao contatar a assistente social para a realização da intervenção recebi uma lista com os nomes de mais ou menos 120 pessoas cadastradas. Na primeira visita ao Clube para falar com o grupo, após combinar com o professor Nilton, responsável pelas atividades físicas do grupo de idosos, apresentei-me a eles e disse o que pretendia. Deixei bem claro que todos estavam convidados. Expliquei que era muito importante para mim que todos se sentissem à vontade para participar.

Fiz uma breve explicação acerca do que é cultura, procurei usar uma forma clara e objetiva para expressar, por perceber que é um grupo extremamente heterogêneo, tratando-se de pessoas das mais variadas camadas sociais. E, também, que há pessoas bastante jovens participando em um grupo direcionado para a terceira idade. Para exemplificar o que pode ser cultura, relatei que cada pessoa tem um jeito diferente de fazer bolinhos de arroz. E que pode ser ao mesmo tempo um bem patrimonial imaterial e material.

Enquanto o professor seguiu com as atividades planejadas eu permaneci no local. Com a ajuda da enfermeira dali, consegui uma lista com informações dos participantes daquele dia. Constatei, então, que estão frequentes cerca de 60 participantes de 50 a 80 anos, aproximadamente; sendo que a maioria é de mulheres.

Conversei com várias pessoas conhecidas e me certifiquei de que realmente realizaria minha intervenção com aquelas pessoas tão queridas. Percebi uma alegria naqueles olhares. E segui na busca de planejar o que fazer, onde e como fazer. Finalmente decidimos oportunizar momentos de convivência entre os idosos e os seus, fazendo-os conscientizarem-se do valor cultural dos artefatos e das memórias pessoais, entre outros fatores, das então gerações, e em que aspectos isso resulta efeitos psicossociais positivos para os participantes. Buscou-se, também, conscientizar tanto os familiares e amigos dos idosos quanto eles mesmos sobre o valor e a importância de seu patrimônio cultural; documentar as narrativas e artefatos culturais dos idosos, de modo a constituir um “acervo patrimonial público”; e, por fim, socializar o trabalho então desenvolvido, intentando conscientizar o público em geral para o reconhecimento do referido patrimônio, bem como informar e acessibilizar o acervo criado.

1. Iluminando as Ideias

1.1 'Memória Coletiva'

Raramente um indivíduo consegue recordar completamente, sozinho, de momentos vividos, pois as memórias ocorrem na coletividade. É sabido que nada que aconteceu em dado momento fica completamente registrado na memória. Com o passar do tempo, e com a sucessão de acontecimentos, os fatos vão se apagando e, então, as lembranças vão se fragmentando.

No entanto, sabe-se que ao recordar um fato de um evento em que várias pessoas são agentes sociais, que interagem de uma ou de outra maneira, posteriormente se consegue relatar com mais precisão se coletivamente. As lacunas existentes na mente de um narrador são preenchidas pelos fatos que outro narrador recorda e comenta e, assim, conseguem reviver momentos do passado e as memórias coletivas nascem. Pois,

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(...) temos que introduzir um gérmen em um meio saturado para que ele se cristalize, portanto neste conjunto de testemunhas exteriores a nós é necessário trazer uma semente de rememoração para que ela se torne uma massa consistente de recordações. De modo contrário, se essa cena parece não deixar, como dissemos, nenhum traço em nossa memória, isto é, na ausência destas testemunhas, nós nos sentimos inteiramente incapazes de reconstruir uma parte qualquer dela, os que um dia a descreveram poderão até nos dar um quadro bastante vivo da cena, mas este jamais será uma recordação (HALBWACHS, 1997, p. 55 apud CORDEIRO, 2015, p. 79).

Desta forma, é bastante comum que, ao narrar um fato na presença de alguém que compartilhou dos eventos, um narrador conte suas memórias e pergunte: “Não é mesmo, Fulano?”; tão necessária à presença de outrem, que um se torna testemunha e complemento do outro em suas recordações e narrativas dos então acontecimentos. As melhores lembranças se fazem na partilha das emoções e das vivências compartilhadas, podendo-se até mesmo afirmar que, como atores sociais, às vezes uma mesma pessoa é espetáculo e ao mesmo tempo espectador de realidades vividas e posteriormente narradas por pessoas que coexistem num mesmo cenário, por longo período de suas existências. Assim: “Nossas recordações permanecem coletivas e nos são lembradas pelos outros, ainda que sejam eventos nos quais somente nós estivemos misturados, e com objetos que somente nós vimos” (HALBWACHS, 1997, p.52 apud CORDEIRO, 2015, p. 80).

1.2 'Identidade'

Ao se pensar em identidade, tantas questões podem surgir e contextualizar-se, posto a identificação existir em todos os aspectos da vida de um indivíduo, de modo que todo o tempo da vida de um ser ele vive em grupos (sendo esses grupos de familiares, amigos, colegas de escola/trabalho, vizinhos, clubes, igrejas, comércio etc.). Em todos esses grupos o indivíduo se identifica em um ou outro momento; sendo um agente cultural, ninguém necessita viver e interagir apenas com um ou outro grupo.

Independentemente de onde nasce uma pessoa, se em meio a uma floresta, em uma cultura indígena ou em um grande centro, todos os seres nascem dentro de uma cultura social, inseridos em diferentes modos de vida. Neste contexto, pode se observar várias modalidades de identidade: cultural, sexual ou de gênero, religiosa, indígena, quilombola, profissional etc.

Nas sociedades contemporâneas – multiculturais e multiétnicas – surgem muitos conflitos e várias identidades diferenciadas. A variedade de identidades, na maioria das vezes, é vista por alguns como algo negativo, mas, a depender da forma como isso é representado, pode surgir como forma de aprendizado e crescimento.

1.3 'Patrimônio Cultural'

Conforme Laraia (2001), não se pode definir cultura como algo que se herda biologicamente. A cultura é algo que se adquire no contexto onde o indivíduo nasce. Ao nascer, seja em uma grande ou pequena cidade, o indivíduo já traz consigo os traços de seus familiares, em suas vestimentas, modelo do cabelo, cores das roupas, forma de entretenimentos, entre outros. Sendo assim o referido autor entende que “O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura” (LARAIA, 2001: 68).

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No capítulo II, da Educação e Cultura e do Desporto, na Seção II, a Constituição Federal brasileira se refere à Cultura no artigo 216, como patrimônio cultural, com as seguintes palavras:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 2016: 126).

O texto constitucional acima demonstra bem a relevância do patrimônio cultural brasileiro e, ainda no artigo 216, o §3º assegura que “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais” (BRASIL, 1988). Horta (1999) diz que, para que o indivíduo possa absorver reconhecer e valorizar os bens culturais se faz necessário ter uma experiência direta com esses bens, e simultaneamente reconhecê-los como parte integrante do indivíduo e de seu grupo social. Deve se considerar que, a metodologia da educação patrimonial é de suma importância para que esse processo de conhecimento aconteça. A Educação Patrimonial é uma metodologia de experimentações, percepções e descobertas.

A Educação Patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer uma leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e trajetória histórico-temporal em que está inserido (HORTA, et al, 1999:6).

Segundo Vieira & Freitas (2017:19), “para que um patrimônio exista, ele tem que ser reconhecido e eleito como tal”. Sendo assim, se faz necessário que várias pessoas absorvam os mesmos conhecimentos quanto ao bem patrimonial, tendo guardado esse bem em sua memória individual e, posteriormente, em suas memórias coletivas, por ter os valores compartilhados em um mesmo grupo social. Em Halbwachs (1990), também é possível encontrar a teoria da memória coletiva. Para o autor, somente ao passar pelo contexto social é possível analisar as lembranças coletivas, pois estas não podem existir no individual porque sofrem as mudanças do meio social podendo existir na coletividade. Do mesmo modo, Brayner (2007:7) afirma que “as pessoas de cada grupo social compartilham histórias e memórias coletivas, visões de mundo e modos de organização sociais próprios”.

De acordo com vários estudos é possível perceber que o mundo é um espaço em construção e, também, é um espaço coletivo, onde coexistem diversas referências culturais, guardadas na memória das pessoas que compartilham esse espaço. Explorar o patrimônio cultural exige dedicação para adentrar o campo das memórias. Ao falar e refletir sobre memórias com as pessoas idosas é possível oportunizar momentos para que todos possam conhecer e percorrer juntos os caminhos de suas mais profundas raízes, bem como usar toda forma de patrimônio material ou imaterial, incluindo o natural. É bastante prazeroso lembrarem-se de suas origens, de modo que:

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“devem se nutrir dos numerosos materiais que, na maioria, estão presentes no patrimônio: o solo e a paisagem, a memória e os modos de vida dos habitantes, as construções, a produção de bens e de serviços adaptados às demandas e necessidades das pessoas” (VARINE, 2012, p. 18 apud JUNQUEIRA, p. 7).

1.4 Interrelação Teórico-conceitual

Existem várias definições para a palavra cultura; a mesma é sinônima de muitas situações distintas. Aqui se faz necessário ressaltar a importância de compreender o que é cultura no sentido de costumes, crenças, habilidades artísticas, domésticas, etc. Vale lembrar que um sujeito que cria cultura é, ao mesmo tempo, também transformado por ela, sendo ator constante em suas transformações e evoluções.

É muito comum um determinado grupo cultural criticar de maneira severa a postura e comportamento de outros grupos; algumas pessoas falam até mesmo que determinadas pessoas ou grupos “não tem cultura”. Mas é relevante ressaltar que toda pessoa que realiza algum fazer, sendo este útil e/ou necessário para os demais, é um agente cultural, não importando se, para tal feito, este indivíduo passou ou não por uma formação acadêmica; em muitos casos, o saber vem sendo passado é de geração para geração.

Afinal estamos imersos em cultura: a dança, a música, a comida, os artefatos, as atitudes e gestos mais simples de um povo, como sua maneira de andar, de sorrir, falar. Tudo isso é cultura, ou seja, nossas atividades, nossos costumes, modos de agir, nossos valores morais e éticos são nossa cultura, que vem sendo passada de geração em geração e sofrendo mudanças de acordo com cada grupo social e com o cotidiano vivido (TORRES, 2013:25).

Sabe-se que ‘identidade’ e ‘cultura’ se mesclam para, então, dar significado às ações de um povo; não dá para falar de identidade sem falar de cultura. Sendo assim, no estudo em questão, vale ressaltar que um povo sem memórias não pode afirmar sua identidade. Nas memórias individuais, bem como nas memórias coletivas, é possível identificar traços existentes em uma cultura, desde suas mais antigas gerações, como se fossem elos de uma mesma corrente; uma geração se baseia na outra para formar-se e ganhar dimensão, vão seguindo e trazendo para a atualidade, assim, costumes e fazeres de um mesmo valor cultural.

Até mesmo as lembranças das atividades domésticas do cotidiano que nos momentos vividos pareciam ser tão pesadas, dependendo de seus agentes culturais, com o passar do tempo, podem se tornar as melhores memórias de muitas pessoas, se tornando patrimônio cultural imaterial. Enquanto pessoa idosa, nos momentos de solidão as memórias são relembradas com saudades, mesmo que algumas com certa dose de tristeza. Neste mundo globalizado e com crescentes mudanças tecnológicas, muitas práticas do passado parecem ridículas para uns enquanto para outros permanecem como os “anos dourados” da existência humana. Conforme as palavras de Bosi,

Uma forte impressão que esse conjunto de lembranças nos deixa é a divisão do tempo que nelas se opera. A infância é larga, quase sem margens, como um chão que cede a nossos pés e nos dá a sensação de que nossos passos afundam. Difícil transpor a infância e chegar à juventude. Aquela riquíssima gama de nuanças afetivas de pessoas, de vozes, de lugares... (...) Pode às vezes a pessoa fixar-se no ponto de vista de um certo ano de sua vida. (BOSI, 1999, p. 415).

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É de grande relevância que as pessoas mais jovens aprendam o valor da prática da alteridade, compreendam que todos são iguais, e que os idosos são pessoas com imensuráveis competências e que também já foram jovens. Se enquanto filhos e netos não respeitarem os direitos humanos de seus idosos, que também têm direitos humanos e, como todos, tem direito a prática da cidadania; se não se colocarem nos seus devidos lugares, para saber conviver de forma cidadã, estes mesmos, enquanto adultos idosos, poderão no futuro entender da pior maneira possível. Pois, muito perderão em qualidade de vida social por não saberem usufruir dos prazeres de uma existência familiar no tempo presente, por não praticarem a cidadania, de fato.

Faz-se necessário que a memória coletiva, que é uma síntese das memórias individuais, seja propagada, seja constantemente estimulada e disseminada entre esta população jovem, a fim de que eles entendam e, de fato, se sintam parte desta coletividade, assimilando assim os hábitos e costumes dos mais velhos.

2. Iluminando as Memórias

2.1 Metodologia

Inicialmente o projeto foi apresentado às pessoas idosas após uma de suas reuniões para exercícios físicos no clube comunitário da cidade, com a participação da assistente social responsável pelo grupo. Pouco depois fui adicionada a um grupo de whats app em que trocam algumas mensagens e informações pertinentes às ações coletivas que participam. Com esse recurso foi possível postar fotos e trocar informações quanto às ações interventivas.

Em um primeiro encontro, no local da feira noturna, foi possível escutar e mediar narrativas das memórias individuais e coletivas dos participantes. Desta forma, todos participantes externaram uma ou mais histórias de suas vivências do tempo de suas mocidades, histórias que foram surgindo com as visualizações de suas fotografias favoritas. Momentos estes compartilhados com alguns filhos e netos que estavam presentes. Todos ouviram com atenção e interesse que suas histórias são de grande importância para as atuais gerações e que seus relatos fazem parte de uma cultura tão importante quanto a dos dias atuais. Também aprenderam que suas fotografias, tão cuidadosamente guardadas, são um patrimônio, e que estas, obedecidos alguns critérios, podem ser oficialmente reconhecidas como patrimônio cultural material. Neste mesmo momento, paralelo às narrativas, foram realizados registros fotográficos e gravações dos momentos e cópias de suas fotografias. O primeiro encontro foi encerrado com um lanche em meio a conversas informais. Todos juntos cantamos parabéns para o ‘seu’ Antônio, que neste dia completava noventa e dois anos de vida.

O segundo encontro foi realizado no mesmo local, novamente o horário foi escolhido por todos. Quando chegaram à feira já havia uma boa quantidade de pessoas e muitos estavam apreciando a exposição de fotografias oriundas das cópias das fotos dos participantes e dos objetos antigos. Ao realizar algumas perguntas para os participantes, foi possível perceber que nossos objetivos foram alcançados. Tais respostas foram gravadas por meio de aparelho celular e, simultaneamente, as ações foram registradas por meio de câmera fotográfica.

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Após uns quarenta minutos do início do segundo encontro da intervenção, conforme combinado entre os participantes desde o encontro anterior, realizamos uma oficina de lamparinas. Ao término, acendemos as mesmas e várias pessoas presentes fizeram perguntas sobre tais objetos. As ações foram encerradas um pouco depois do horário normal da feira, pois os participantes não demonstravam nenhum interesse de se retirarem do local. Até mesmo porque muitos foram entrevistados - de modo geral sobre a exposição e oficina de lamparinas - e fotografados no local da intervenção cultural; os familiares e amigos dos idosos, especificamente, e o público visitante.

2.2 O Planejamento e Executado

Foi imensa a dificuldade para conseguirmos um lugar adequado para nos reunirmos, devido à grande distância, falta de transportes e falta de acomodações adequadas para todos. Depois de muita pesquisa pela cidade, procurando um local adequado para a realização das ações interventivas, com a ajuda das profissionais Lucélia Rodrigues (psicóloga) e Rosilene (assistente social), resolvemos que nos juntaríamos no local onde se realizam as feiras livres de terça à noite.

O local escolhido fica bem centralizado e é bastante apropriado ao tema da intervenção cultural. Não sendo totalmente aberto, em uma das paredes existe uma exposição de fotografias antigas, formando um grande mural em preto e branco. São fotografias de pessoas e de locais da cidade, com as palavras: “VAMOS FAZER Uma Viagem no Tempo”. Tal mural foi idealizado por um dos fotógrafos da cidade. E concluímos, então, que seria bastante apropriado para a realização da intervenção cultural em andamento.

Solucionamos o problema das cadeiras com a ajuda de uma instituição próxima dali, a qual nos emprestou 20 cadeiras. Tudo resolvido para a primeira ação e, no entanto, esta não ocorreu na data prevista, dado o momento político de ano eleitoral em que nos encontrávamos. Assim, no dia 9 de setembro, após convidar os participantes, por meio de um grupo do Whats app, no qual fui adicionada para facilitar as conversas, não obtive nenhuma resposta. Pensando na realidade, de que nem todos estão no grupo virtual, decidi voltar ao Clube, onde o grupo se reúne para atividades físicas. Na manhã do dia 10, convidei pessoalmente todo o grupo para um encontro na tarde daquele mesmo dia, na feira.

Esperei terminarem os alongamentos e convidei todos para nos reunirmos na tarde de segunda, a partir das 16h, no espaço da feira coberta. Pedi que quem desejasse ir levantasse a mão para que eu pudesse conferir quantas pessoas pretendiam comparecer e, assim, programar quanto ao lanche e às cadeiras. Expliquei que seria muito importante a presença delas para a realização de um projeto cultural; 10 pessoas confirmaram presença. Algumas já tinham visto o convite no grupo virtual, mas, como já previa, nem todos possuem aparelhos mais modernos. Expliquei quanto às nossas intenções e pedi para todos levarem suas fotografias preferidas, principalmente as mais antigas, e pedi também que convidassem pessoas da família, como netos e filhos. Deixei bem claro que o nosso encontro seria para conversarmos e visualizarmos as fotografias de nossos tempos passados.

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Naquele mesmo dia conseguimos realizar nosso primeiro encontro. Cheguei ao local combinado às 15h30. Já haviam chegado algumas pessoas. Entre elas, o Sr. Antônio Camilo Brás, que estava completando 92 anos de idade nesta data. Ele chegou até o local caminhando acompanhado por sua atual companheira, Marilene; seu Antônio ficou viúvo duas vezes durante sua vida.

Recebi os convidados desejando-lhes boas-vindas, e logo já parabenizei o ‘seu’ Antônio pelos seus 92 anos. Ele levou apenas uma fotografia. Ao tirá-la do bolso me disse que é uma fotografia muito importante para si, porque nela ele está com seu melhor amigo, João, que já faleceu, com quem conviveu durante 30 de seus 92 anos. Expliquei que não ficaria com nenhuma foto; enquanto conversávamos as fotos seriam copiadas.

O local da feira está situado muito próximo ao terminal rodoviário, onde tem uma loja em que digitalizamos as fotografias escolhidas pelos participantes. Nosso encontro durou 2 horas, mais ou menos. Tomei nota dos nomes e sobrenomes de todos os presentes, enquanto eles iam visualizando as fotos uns dos outros. Surgiram os mais variados assuntos, pois as imagens iam direcionando os temas – e as memórias.

Um dos relatos que mais chamou a atenção foi o fato de o ‘seu’ Antônio ter sido o fotógrafo do casamento dos meus pais. Senhor Antônio nos narrou que sua amizade com o Senhor João iniciou na mocidade e que os dois rezaram terços juntos, durante 30 anos de suas vidas. Naquele tempo, quem possuía uma câmera fotográfica entre os amigos e familiares era responsável pelos registros dos eventos. Algo comum, identificado nas fotos, foi o fato de haver sempre um tecido fixo na parede de fundo, criando um cenário.

Então, mostrei isso para o grupo e expliquei que esse fato é uma característica da cultura local, e que não acabou, tendo apenas mudado o modo de ser, sendo muito comuns hoje os cenários para fotos nos eventos, de modo geral. Comentei que sempre observei nas fotos do casamento de meus pais que sobrava parede sem forro.

Uma das participantes, ao conversar comigo no Clube naquele dia pela manhã, havia dito que emprestou umas fotografias antigas para uma pessoa fazer um trabalho de faculdade e que a mesma não as devolveu; agora ela não lembra o nome da pessoa. Baseado neste fato, tivemos a ideia de digitalizar as fotos e devolvê-las no mesmo dia. De tempos em tempos, trocávamos as fotos na loja digital, pois bastava atravessar uma rua. Desta maneira, conseguimos várias imagens para a exposição que fizemos no segundo encontro, de surpresa para os participantes.

Ao final desse primeiro encontro cantamos parabéns para o aniversariante e, em seguida, servimos um lanche. Devido ao calor, optamos por refrigerantes e quitandas. Como alguns estavam se queixando muito do calor, solicitei que o grupo decidisse o melhor horário para o encontro do dia seguinte. Ficou acordado que nos encontraríamos às 17h30. Expliquei que pretendia fazer uma exposição com objetos de seus guardados e que se todos pudessem comparecer na tarde do dia seguinte poderíamos continuar nossas conversas.

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Ao visualizarmos as fotos foram surgindo os assuntos, conforme havia pensado. Entre as narrativas, um dos assuntos comuns entre todos foram as lembranças dos mutirões que realizavam para ajudar uns aos outros na realização das tarefas domésticas. Quando sugeri que levassem para o primeiro encontro suas fotos favoritas foi com o objetivo de usá-las como fio condutor para as nossas narrativas.

Expliquei que todas as pessoas são igualmente importantes, e que não existe uma cultura melhor que outra. Mas, sim, que existem culturas diferentes, pois todas são igualmente importantes, dentro de seus contextos. Da mesma maneira, deixei bem claro que, independente de nossas idades, somos pessoas importantes e que todos nós temos os mesmos direitos culturais e sociais na vida em sociedade. Disse também que cada pessoa que lá estava presente é o bem patrimonial mais importante que pode existir.

Conforme os convidados foram chegando, com suas fotografias – tesouros incalculáveis –, foram se aproximando uns dos outros para compartilharem suas histórias. Alguns estão presentes na mesma fotografia. Todas as fotos registraram momentos festivos, como casamentos, aniversários e festividades religiosas. Pois, segundo os relatos, somente nestas ocasiões as pessoas eram fotografadas. A maioria das fotografias é em preto e branco. Mas, seus relatos são bastante coloridos e carregados de entusiasmo.

Uma das características comuns entre as mulheres é que elas se casavam muito cedo. E logo já começavam a ter seus filhos: quase ninguém tinha menos que três filhos. Importante ressaltar, também, o fato de todas as pessoas terem algum tipo de vínculo; foi possível perceber que havia situações em que duas irmãs se casavam no mesmo dia. E que, em alguns casos, os noivos também eram parentes próximos. Isto se dava porque a cidade era muito pequena e todos os habitantes pertenciam a poucas famílias.

Uma das participantes, talvez a mais jovem entre as mulheres, levou apenas uma fotografia de quando vivia na Bahia, sua terra natal. A fotografia retrata um tempo em que trabalhava desfiando uma fibra. Ela disse que sofreu muito, quando viveu em um lugar chamado Povoado de Alazão–BA. Denilta disse que estava muito satisfeita por viver em Cachoeira Alta, que se ainda estivesse em sua terra de origem puxaria fibras. Denilta Nicasso levou sua neta como convidada. Mesmo tendo pouco tempo de residência em Cachoeira Alta, sentiram-se bem acolhidas e participaram bem interessadas nas histórias que iam sendo narradas.

Ao final do primeiro encontro, realmente, todos conversavam como se fossem, literalmente, amigos de infância. Parecia que não estavam com a menor vontade de voltar para suas casas. Convidei todos para apreciarmos o painel de fotos que faz parte da decoração do local. Uma das participantes disse que ajudou na seleção das fotos, e foi mostrando e relatando aos demais quem são as pessoas no grande painel de fotos em preto e branco com a seguinte legenda: “VAMOS FAZER Uma Viagem no Tempo

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Para mim, foi muito emocionante a presença de um senhor que foi um dos melhores amigos do meu pai, o Senhor Miguel. Ao narrar suas memórias nos emocionamos ao recordarmos do meu pai, que faleceu há 19 anos. Encerramos o primeiro encontro. Devolvi as fotografias e reforcei a importância da participação de todos na tarde do dia seguinte. Então, cada pessoa foi falando o que poderia levar no dia seguinte; tomei nota e pedi que não levassem objetos repetidos e pesados, para não ficar cansativo.

Como tenho em meu acervo uma candeia que iluminava a casa de meus avós, disse que levaria minha candeia. Perguntei se todos sabiam como fazer uma lamparina. E então combinamos que durante a exposição faríamos uma oficina de lamparinas. Deixei claro que levaria o material para a confecção das mesmas. Pedimos que gostaríamos de expor as cobertas confeccionadas artesanalmente; duas participantes combinaram que poderiam levá-las, pois durante suas narrativas o assunto quanto à confecção das cobertas de tear foi uma das mais compartilhadas. Desta forma, antes mesmo de sair do local já havia planejado como seria nosso próximo encontro.

No último encontro, antes mesmo de terminar de fixar todas as cópias das fotografias na parede, já havia pessoas as apreciando. A feira inicia-se às 16h, mas, conforme combinado, nossos convidados chegaram próximo das 17h30. Permanecemos no local até as 22h30. Como acordado com o secretário de Desenvolvimento Social, o fotógrafo chegou logo que eu havia posicionado os móveis. Montamos um cenário com um banco de madeira, coberto com uma coberta de uma das participantes, objetivando fotografar todos que assim o desejassem. Informei ao jovem fotógrafo da pretensão de usar algumas imagens em que aparecêssemos organizando o local, e ele prontamente nos fotografou. Sem que fosse necessário pedir, algumas de minhas convidadas já foram nos auxiliando. No momento em que estive no gabinete da assistente social para imprimir as fotos, ficou combinado que ela iria ajudar-me. E assim se deu.

Minha mãe se prontificou a ajudar-nos voluntariamente, e foi muito prazerosa tal participação junto às demais pessoas idosas que lá estavam. Foi perceptível a grande alegria que todos sentiram. Minha mãe também levou algumas fotos de seu acervo e uma coberta que foi minha avó que fiou; levou também a primeira máquina de costura da minha avó, que esteve sempre guardada com a família, e ficou por um tempo com minha tia caçula. Tal objeto está comigo desde a exposição e pretendo passar para meus filhos.

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Foi claramente perceptível a grande alegria que todos sentiram. Ao contarem de seus momentos juntos, relataram suas memórias coletivas, compartilhando as alegrias de um tempo onde a felicidade era alcançada de forma muito simples, originada dos momentos do cotidiano. As lembranças narradas por uns eram naturalmente complementadas por outros, sem que tivessem planejado que assim seria.

No momento da exposição, compareceram algumas participantes que não estavam no primeiro encontro, mas participaram ativamente, pois são todos conhecidos e amigos uns dos outros. Ao mesmo tempo que apreciavam as fotografias no grande mural de fotos que organizamos no muro no local da feira, os participantes respondiam para os visitantes quem era quem, onde e quando se deu o momento fotografado, pois a exposição foi realizada com as cópias das fotografias “dos guardados” dos participantes das ações interventivas.

Conforme planejado, tivemos a presença de alguns filhos e netos participando das ações.

Aproximadamente uns quarenta minutos desde o início da exposição, conforme havíamos planejado, iniciamos a “oficina de lamparinas”. Colocamos fogo no pavio da minha candeia e explicamos como poderíamos confeccionar algumas lamparinas. Com a ajuda de uma das participantes, fizemos um pavio com o barbante de algodão cru, e logo as demais pessoas também se colocaram a fazer suas lamparinas. Como havíamos combinado, levei todo material necessário; alguns vidros de perfume vazios, cordão, tampinhas de garrafa, um pequeno martelo, tesouras, alicates, pregos, banha de porco para usar como combustível e um pedaço de tecido velho de algodão, para limparmos a gordura em excesso. Durante a confecção das lamparinas, uma das idosas disse que fazer o pavio e cuidar de manter as lamparinas em boas condições de uso era tarefa das meninas da casa.

No momento da oficina, o fotógrafo havia saído para atender alguém que solicitou sua presença em algum evento do município. Como ele combinou que voltaria e não voltou, pedi para a assistente social que continuasse nos fotografando com a câmera do meu celular. Em meio a muitas conversas, memórias e muitos risos, fizemos nossas lamparinas, acendemos e tiramos muitas fotos. Pessoas de várias classes sociais, de várias idades nos visitaram e nos perguntaram quanto às fotografias, lamparinas e nossa candeia.

2.3 O Planejamento e Não-executado

Do projeto consta que haveria um “café conversado”, mas, em função do forte calor daquela tarde, optamos por refrigerante, por ser um costume nas ações de que as pessoas da terceira idade participam. Na verdade, perguntei o que elas preferiam; pensei em ofertar frutas, mas todas escolheram refrigerante.

Uma coisa que passou em branco, a qual seria muito relevante, foi o feitio de uma faixa ou cartaz com o nome do projeto. Havia planejado três ações interventivas, portanto, foi possível realizar dois encontros, devido às dificuldades quanto ao lugar para receber as pessoas convidadas.

2.4 O Não Planejamento e Executado

Ao visualizarmos as fotografias dos participantes em nosso primeiro encontro foi possível perceber que na maioria das situações havia uma coberta, usada como cenário para cobrir as paredes que, em grande parte, eram de pau-a-pique. Para o encontro final havíamos planejado realizar uma exposição de fotografias antigas, então resolvemos forrar todo o muro da feira para fixarmos as fotografias e, também, para fazermos uma fotografia com todos os participantes das ações sem que sobrasse parede sem forro. Situação muito comum no passado, quando os mesmos forravam as paredes de suas casas para a realização de suas fotografias em seus mais variados eventos.

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Em uma das fotografias dá para ver nitidamente: de um lado, a coberta presa com um prego, ou algo parecido; do outro, uma mulher segurando; e o retratista – era assim que diziam – nem percebeu que deveria deixar a mulher fora da cena.

Uma das visitantes da exposição estava tomando uma cerveja quando se aproximou para ver as lamparinas, então perguntei se poderia nos dar a latinha vazia quando terminasse. Ao explicar porque queria a latinha, ela perguntou se poderia participar da oficina e, então, assim aconteceu. Ela nos contou que na última vez que foi pescar o querosene do lampião acabou e toda a turma de pescadores ficou no escuro, por uma noite. Disse que tinha um saco de latas vazias e que agora nunca mais ficará no escuro, em nenhum lugar. Expliquei-lhe que, no lugar do pavio feito com barbante, pode-se usar um pavio feito com tiras de algodão, ou tira de alguma roupa, ou tecido já descartado, desde que seja de algodão; para dar uma chama adequada.

2.5 Fatos Interessantes

Em nosso primeiro encontro, uma das participantes, Maria Amélia, conhecida por todos como Mariquinha, disse não ter nenhuma foto antiga. Ela nos contou que, certa vez, entregou todas as fotos que tinha para uma pessoa reproduzir em tamanho maior para ela, mas que nunca mais viu tal pessoa. Tempos depois, ela soube que a pessoa havia sofrido um acidente e perdido todas suas fotos. “Sumiu com tudo, nem trouxe as fotos, nem trouxe os quadros. Disseram que o carro pegou fogo e queimou tudo”, disse ela. Foi então que tive a ideia de fotografá-la e imprimir uma foto sua, para lhe presentear. Sempre que a encontro ela está com uma sombrinha, assim, pedi que ela segurasse sua sombrinha e fizesse uma pose para a foto. Foi possível perceber a alegria que ela sentiu ao ver a própria imagem bem colorida na tela do meu celular.

3. Iluminando-se

3.1 De ‘Lamparinas’ e ‘Fotografias Antigas’

Usada desde tempos pré-históricos, sem registro de como surgiu, passou por muitas alterações e adaptações, conforme a necessidade e criatividade de seus usuários, a lamparina – ou “candeia”, como pode ser chamada –, possui vários modelos, alguns tão complexos e outros tão simples como a vida de tantas pessoas que dela necessitavam para poder fazer qualquer coisa depois do pôr do sol. Lamparina:

[que é] a lâmpada a óleo é de antiga tradição. De forma muito variada, seguindo a moda e o gôsto das épocas, era formada por um simples pavio para queimar, embebido em óleo. No século XVI os franceses fizeram um novo pavio, com fios de algodão trançados. Em 1782 o suíço Argaud inventou o pavio tubular, que deixava passar ar para a chama. (GROLIER, 1968, p. 50. Verbete).

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Pode possuir diversas formas, como, por exemplo, caldeira, bacia, balde ou funil invertido. Para garantir sua chama usam-se diferentes óleos, ou combustíveis, como querosene ou álcool. Um dos tipos de lamparina é a “poronga”, bastante utilizada por extratores de borracha na iluminação do caminho entre as seringueiras. Em muitos casos, ao longo da história, era responsabilidade das crianças a manutenção dessas fontes de luz.

A vela – simplesmente um pavio envolto em cera ou sebo – surgiu há uns 2000 anos. Sua produção de luz se dá pela queima do sebo, quando o pavio é aceso. A vela, assim, não passa de um candeeiro a óleo mais prático.

Com o passar do tempo, e sua evolução (da tecnologia da luz), passou-se a usar o lampião a gás, os quais, inicialmente, eram adquiridos por fazendeiros mais abastados. Eles começaram a ser utilizados por volta do século XIX, sendo os responsáveis pela iluminação das primeiras vilas brasileiras. Antes do lampião de metal usou-se o lampião feito de argila. O óleo foi substituído por gás por volta de 1800; antes era utilizado carvão. Em 1807 já iluminavam a cidade de Londres. Em 1878, a iluminação dava um grande salto: Thomas Edison, usando um filamento de platina, criou a primeira lâmpada elétrica. Surgiu então a lâmpada incandescente. Assim, com a invenção da lâmpada elétrica surgiu a criação das redes de fornecimento de eletricidade. (BENDER, 1994; BURNIE, 1994).

Por fim, se por um lado existem as lamparinas para iluminar os lares artificialmente, após o pôr do sol; por outro temos o registro das imagens por meio da luz natural – a fotografia. Para iluminar as memórias de tempos passados, que, de outra forma, jamais seriam relembrados com tamanha precisão, ‘fotografar’ é uma das mais preciosas formas de iluminar. Com o surgimento da fotografia foi possível registrar mais fielmente a realidade e, logo, legá-la ao futuro – ou melhor, ao presente, quando este passado for.

3.2 Análises de Dados

Durante a realização do trabalho de intervenção, ao realizar-se a oficina de lamparinas, foi possível perceber um efeito muito interessante: as participantes rapidamente conseguiam recordar como eram feitos cada passo do processo, porque, na verdade, elas já sabiam muito bem o que estavam fazendo, pois nem mesmo o tempo destruiu tão valioso patrimônio cultural imaterial. Uma das participantes narrou que o cheiro da queima do pavio, junto ao combustível, fez com que ela se recordasse dos dias de sua infância; outra respondeu que acordava com o nariz preto da fumaça das lamparinas, mas que estava gostando muito daquele momento, pois remetia aos bons tempos de sua mocidade. Chamas como patrimônio imaterial e ao mesmo tempo, lamparinas, patrimônio material, como identidade de bons e inesquecíveis momentos.

Durante e após o desenvolvimento da intervenção, algumas pessoas, participantes diretas ou indiretas, foram solicitadas a dar um depoimento sobre a atividade, como um feedback, um retorno avaliativo (externo) do trabalho. O ‘seu’ Luciano Rezende respondeu: “Você fez um ótimo trabalho, resgatando aqui as coisas do nosso passado que muita gente não conhecia e muitos que não vieram... participar, não conhecerão.

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Parabéns! Ótimo trabalho... foi um prazer ter participado disso!” Desta forma respondeu a Senhora Áurea Vieira, que estava visitando a exposição, quando expliquei para ela que meu objetivo era que elas ficassem alegres com as ações: “Eu achei muito importante... porque resgata, né? Essa antiguidade que tem hoje muitos jovens que num conhece, né?... a colcha, né? do tear... pra nós que fomos criados conhecendo é um pouco natural, mas pro jovem de hoje... ele não tá a par disso aí... as fotos... todo a antiguidade dos utensílios.. o torrador de café... eu fui criada nessa época, né? a gente volta as nossas vidas há tempos atrás... e é muito importante, é gratificante. É... dá aquela tristeza talvez de lembrar do passado... mas, é uma alegria também! Porque faz com que a gente volta aquele tempo, né? que a gente viveu... porque com certeza ... É... nós já somos assim... umas seis décadas... a gente participou de tudo isso aí e é muito importante... muito importante! com o tempo... com o correr do tempo a gente fica assim... não tem nem tempo pra tá relembrando... E vendo assim é muito bom! A gente fica triste e alegre ao mesmo tempo. Lembra dos nossos antepassados, nossos pais... e é muito importante”.

Ao perguntar para a Senhora Maria Inês, participante das ações interventivas, o que ela achou de todas as ações, ela respondeu: “Ah!... eu achei maravilhoso demais da conta! É... assim... eu acho que tá precisando demais, né?... de... apresentar aqui as coisas... é... antigas. As coisas... raízes, né? É uma pena que não é todo mundo que dá valor a isso, né? Mas eu acho muito importante... eu acho assim... que muita gente passou por aqui, olhou, todo mundo parou e olhou... explicou pr’os filhos... mostrou com o dedinho lá mostrando e falou com o filho, né? Então eu achei muito importante”.

Já a Senhora Maria Nunes respondeu: “Vixi! Eu achei bão demais, muito legal... gostei mesmo desse projeto seu. Pode continuar com esse projeto seu... que foi muito bão, viu?”

Rosilene (assistente social da cidade) assim respondeu:

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“Aldelena, bom dia! Desculpe pelo atraso, viu?! Mas, vou passar aqui meu fechamento com relação ao seu TCC. Primeiramente, gostaria de agradecer pela oportunidade de participar de seu trabalho, junto ao nosso grupo de idosos, que compõe o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, do município de Cachoeira Alta. A proteção social básica, em cumprimento às políticas de atendimento aos direitos da pessoa idosa... tiveram a possibilidade de fazer um levantamento histórico, através de roda de conversa, exposição de fotografias, objetos de época, durante a venda de alimentos em uma feira livre da cidade de Cachoeira Alta. Este trabalho reforçou que, ao vivermos em sociedade, devemos aprender a respeitar e conviver com diferentes papéis e protagonismos do cenário social. No caso dos idosos, precisamos ainda mais escutar, dar mais liberdade, e, acima de tudo, respeito. Hoje, os nossos idosos estão deixando de ser respeitados dentro da família, dentro da sociedade… E também nós da assistência social, nós temos que tá fortalecendo esse vínculo com a família, e a gente evita fazer o abrigamento do idoso, porque o idoso, quando ele vai pro abrigo, ele fica muito doentinho, ele se sente isolado, sente abandonado. Então, hoje, aqui em Cachoeira Alta, o idoso, ele só vai pro abrigo, se ele não tiver família. Se ele tiver família a gente tenta fazer uma busca ativa e entrega ele pra família. Então, esse trabalho seu reforçou os laços familiares, através do conto de história. Então, eles tiveram a possibilidade de expor suas fotografias, e contaram... tiveram a participação satisfatória... É, eles estavam muito felizes lá no dia... e contando da lamparina e das fotografias, dos casamentos... a gente viu o tanto que eles eram lindos quando eram novos. Então, este trabalho resgatou a história deles. E foi muito satisfatório, eu gostei muito. Parabéns pelo seu trabalho. Eu estou à disposição pra o que você precisar. Um abraço!”

Não importa onde esteja vivendo um ou outro grupo cultural, sempre existem situações e objetos que os colocam na mesma identidade, seja ela familiar ou no âmbito das amizades. Algo que foi imensamente representativo foi a quantidade de fotografias realizadas tendo por cenário ‘as cobertas’ de tear. Isso, sem dúvida, foi o que muito chamou a atenção. O ato de plantar o algodão, produzir os fios e confeccionar as cobertas, praticando todas as etapas do processo, era costume de todas as famílias. Muitas vezes em forma de mutirão (as famílias se juntavam para realizarem as tarefas domésticas e agrícolas umas das outras) transformando as tarefas do cotidiano em momentos festivos.

Naquele ‘tempo’ a intenção era tornar as paredes mais atrativas, portanto, dependendo da situação, as paredes nuas eram muito lindas. Vale ressaltar que esse foi um tema comentado até mesmo por visitantes. Comuns na maioria das fotografias, as mesmas cobertas que serviam como abrigos facilmente se transformavam em cenários nos mais variados eventos.

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Memórias das amizades, memórias dos namoros, memórias compartilhadas, trazendo à tona a euforia da mocidade ao narrarem suas tantas dificuldades muitas vezes transformadas em grandes lições de vida contadas com orgulho, que facilmente eram transformadas em momentos festivos em meio ao contentamento com o simples, mas repleto de farturas de mantimentos e de verdadeiros sentimentos, em amizades que atravessaram décadas e, com certeza, irão sobreviver até que a morte os separe, literalmente. Aos visitantes daqueles tão distintos momentos ficaram grandes lições de verdadeiras amizades, onde a partilha da alegria só aumenta a solidez presente em cada gesto.

Até nas dificuldades as pessoas conseguiam encontrar alegria, batalhavam e tinham orgulho de serem simples e verdadeiras. Foi possível perceber, por meio das fotografias, que as amizades eram reais. Muitos se identificavam nas fotos uns dos outros e seus olhos brilhavam de contentamento quando um dizia “nós sempre fomos amigos, toda a vida nossas famílias foram amigas. No nosso tempo existia amizade de verdade...”

4. Conclusão

“Contentamento desmedido” é o que posso dizer ao recordar, e avaliar, o resultado alcançado com as ações para a realização da exposição com os objetos e as fotografias. Ao pedir que cada participante trouxesse para nosso primeiro encontro suas fotografias favoritas não tiramos apenas as fotos das gavetas. Junto com as imagens, saíram das gavetas as memórias afetivas que estavam guardadas e amareladas. Se eu pudesse escolher uma nova cor para definir tudo isso seria um azul intenso, mas é muito relativa, cada pessoa percebe de forma diferente, porém igualmente importante esta experiência.

Ao realizarmos a oficina de lamparinas, conseguimos trazer à luz tão maravilhosas narrativas, dos momentos festivos vividos coletivamente. Foram muitas gargalhadas e, realmente, ficamos todos emocionados com o resultado final. Momentos em que todos juntos recordaram e narraram suas histórias, vividas em um tempo de juventude. Destacaram como melhores momentos, os mutirões, onde as famílias se juntavam para preparar o algodão para confeccionar seus tecidos, alguns para costurar suas roupas e outros fios para tecer as suas cobertas.

É possível afirmar que tudo e todos podem ser visualizados como um bem cultural importante para as atuais gerações. Em um dos depoimentos uma jovem garota narrou que ficou admirada ao perceber que entre as pessoas daquele grupo realmente existe amizade. A garota disse que não percebe entre os jovens de hoje a fidelidade que ela percebeu naquela gente [...] Que independente de classe social, raça, etnia, demonstram respeito e uma amistosa união, livre de interesses e segundas intenções.

Ao reencontrar casualmente com algumas pessoas que participaram das ações, em minha cidade, elas relembram os momentos compartilhados e perguntaram quando nós nos encontraremos novamente. Algumas com sugestões do que poderá ser realizado, de forma semelhante à intervenção, em uma próxima vez. O esposo de uma das participantes sugeriu que da próxima vez será interessante confeccionar as lamparinas em um lugar onde poderá desligar o fornecimento de energia elétrica. para que todos possam ver como era a iluminação no passado. Vale ressaltar que a maioria, de fato, recorda dos anos de sua juventude como os “anos dourados” de sua existência.

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Foi possível perceber que as ações realizadas na feira noturna em Cachoeira Alta, Goiás, nos dias 10 e 11 de setembro de 2018, tiveram um excelente desempenho. Os resultados das atividades realizadas com as pessoas de diferentes idades deixaram bem claro que tais ações deveriam acontecer mais vezes. Idosos, pessoas em suas fases adultas, adolescentes e crianças apreciaram os objetos e fotografias com interesse e admiração.

Retomando as palavras... ‘Se o velho pudesse, e o jovem soubesse, não haveria nada que não fizesse!”. É possível afirmar que se todas as gerações se juntassem com respeito mútuo e percebessem que todos são importantes, que todos pertencem a identidades importantes e que todos têm os mesmos direitos e deveres quanto à prática da cidadania, os grupos sociais, tão iguais em suas diferenças, poderiam estar em constante construção e desenvolvimento, rumo a uma cultura de paz.

Jamais seria necessário criar leis como a Lei 10.741, de 1° de outubro de 2003, mais conhecida como o Estatuto do Idoso, para amparar e proteger uma pessoa idosa. Até mesmo porque todas as pessoas se tornarão idosas um dia. Existem no Brasil mais de 25 milhões de idosos. Sendo assim, o Estatuto do Idoso se constitui como um avanço sociojurídico de grande relevância na defesa dos direitos da população idosa, mas que, repito, não seria necessário se a prática dos valores e da cidadania, aqui apresentados, fossem de fato aplicados.

“ILUMINANDO MEMÓRIAS COLETIVAS DE IDOSOS DE CACHOEIRA ALTA-GO: lamparinas e fotografias antigas de seus ‘anos dourados’ como patrimônio cultural”; seguirá de uma ou de outra maneira ‘iluminando’ as pessoas idosas de Cachoeira Alta. Agora com mais momentos positivos guardados em suas lembranças, pois esta ação interventiva, além de cumprir uma exigência acadêmica, conseguiu fazer com que os participantes e demais pessoas compreendam o precioso e necessário bem patrimonial que as pessoas idosas e suas memórias coletivas representam para todas as gerações do passado, do presente e também para as que estão por vir.

A ação interventiva despertou nas pessoas a percepção quanto à importância de dar voz e acolhida às pessoas idosas, valorizar e reconhecer suas tantas experiências de uma vida menos dependente de tecnologias e não menos importante que as experiências dos jovens da atualidade. É importante afirmar que todos um dia estaremos apenas nas memórias de quem nos conheceu e em fotografias guardadas e amareladas pelo tempo “Rei”.

“O ciclo dia e noite é vivido por todos os grupos humanos, mas tem, para cada um, sentido diferente”

BOSI.

Referências

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