A década de 1990 se caracteriza como um período profícuo para o desenvolvimento dos estudos sobre línguas indígenas no Brasil. Datam desse período muitas dissertações, teses e artigos científicos produzidos em diversas instituições de pesquisa, como o Museu Emílio Goeldi (Pará), o Museu Nacional (Rio de Janeiro), e ensino superior, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), dentre outras.
Foi nessa década que conheci a Professora Maria Suelí de Aguiar, mais precisamente, em 1994, quando ainda estava na graduação em Letras do antigo Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), da Universidade Federal de Goiás (UFG). Maria Suelí estava retornando ao Estado de Goiás, de onde havia saído anos antes, a fim de estudar no Estado de São Paulo. Recém-doutora pela UNICAMP, a Professora Maria Suelí ingressa na UFG como professora efetiva, levando para o nosso curso e, especialmente para a área de Linguística, indubitável contribuição para a já reconhecida tradição da instituição goiana em desenvolver pesquisas sobre línguas indígenas brasileiras, tais como as realizadas, até aquele momento, por estudiosas como Sílvia Lúcia Bingojal Braggio, Marita Pôrto Cavalcante, Raquel Figueiredo Alessandra Teixeira e Lydia Polech.
Durante o curso de Bacharelado em Línguística e Língua Portuguesa, umas das opções oferecidas pelo curso de Letras naquela época, eu já havia tido contato com a descrição e a análise de línguas sem tradição escrita ou que não haviam ainda sido documentadas ou descritas cientificamente. Foram muitas e importantes discussões em torno das noções de fonemas, morfemas, sintagmas, entre outros, termos e temas de investigação e análise linguística. Eram terminologias até então novas e que passaram a fazer mais sentido dentro de uma intelecção científica e de prática da linguagem, especialmente proporcionada a mim após a chegada da Professora Maria Suelí à UFG, principalmente, a partir do momento em que ela oficialmente se tornou minha orientadora (e eu, sua primeira orientanda em nível de graduação) em um projeto de iniciação científica, desenvolvido nas salas do Museu Antropológico da UFG.
Página 2Da Professora Maria Suelí, vieram preciosas orientações sobre como fazer trabalho de campo nas aldeias indígenas, considerando sempre o respeito às culturas e aos hábitos desses povos; também dela, recebi indicações importantíssima de leitura sobre os pressupostos teóricos que nortearam o meu Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) da graduação, em que desenvolvi um estudo preliminar sobre a fonética e a fonologia da língua do caríssimo povo Shanenawa Pano, habitante de uma terra indígena localizada no município de Feijó, Estado do Acre. A Professora Maria Suelí também me orientou sobre os caminhos para a entrada no mestrado na UNICAMP, ao me indicar o Professor Angel Humberto Corbera Mori, respeitável pesquisador de línguas indígenas sul-americanas, em especial, da família Pano, faladas no Peru.
Para muito além da orientação acadêmica, a Professora Maria Suelí colaborou fortemente para que eu pudesse me reconhecer como um sujeito ativo (sempre em construção), muito mais consciente de meu papel na sociedade, ainda que tal consciência precisasse em muito ser amadurecida na época. Afinal, eu vivia uma fase em que a meta era aprimorar o desenvolvimento (iniciado nos primeiros anos da graduação) do pensamento científico mais empírico. Era também momento de formar representações mais adequadas do mundo em que vivíamos e ainda vivemos, haja vista a possibilidade da real aproximação com uma língua diferente da que eu falava e que era totalmente desconhecida para mim.
Em tal processo de amadurecimento no universo da pesquisa científica, Professora Maria Sueli possui lugar de destaque. Afinal, não é possível esquecer a forma séria e, ao mesmo tempo entusiasmada, com que a mestra me apresentou ao mundo das línguas indígenas, em especial, as pertencentes à família linguística Pano. Aliás, mais do que isso, ela apresentou-me à grande variedade étnica e cultural brasileira e, em especial, ao povo indígena Shanenawa, tão ativo, elaborador e transmissor de conhecimentos, de sentimentos, da mesma maneira que qualquer outro grupo de seres humanos.
Enfim, a interação social entre mim e os povos indígenas, promovida inicialmente por Maria Sueli Aguiar, indubitavelmente, possui um valor inestimável para sempre, pois é neste mesmo contexto de reconhecimento e gratidão à Professora Maria Suelí de Aguiar, que orgulhosamente sou evocada a escrever, em forma de prefácio, essas palavras iniciais. Para mim, este texto tem também um sentido de generoso chamado para voltar ao passado e relembrar o lugar que a eterna orientadora ocupa em minha vida.
Página 3Em coerência com a tarefa iniciada há mais de três décadas, a Professora Maria Suelí de Aguiar vem reafirmar sua dedicação aos estudos sobre as línguas indígenas Pano. Desta feita, trata-se de um Dicionário Bilíngue Noke koĩ-Português/Português-Noke koĩ, o qual vem sendo elaborado desde 1984, quando a autora realizaou seus primeiros trabalhos de campo junto aos falantes nativos do Noke koĩ, língua pertencente à família linguística Pano.
O povo Noke Koĩ é um grupo que vive em duas Terras Indígenas, no município de Tarauacá, estado do Acre, região norte do Brasil. Na literatura sobre línguas e povos indígenas brasileiras, até alguns anos, essa etnia era conhecida como Katukina, entretanto nos últimos anos, após a reinvidicação do direito de não mais ser assim autodenominado, esse povo passou a ser reconhecido pelo etnônimo Noke koĩ. Embora não tenha visitado suas aldeias, tive o prazer de conhecer alguns de seus representantes em 2010. Na ocosião, a convite da Secretaria de Educação do Acre, ministrei um módulo de Linguística no curso de Magistério Indígena, etapa realizada no Município de Assis Brasil. Além dos Noke Koĩ, estavam reunidos no curso representantes de outras 11 etnias indígenas habitantes do Estado do Acre, mostrando-nos toda a diversidade plurilíngue e multicultural daquela região.
No convívio com alunos/professores indígenas Noke Koĩ, fizemos, por meio de oficinas pedagógicas, interessantes reflexões sobre o ensino e a aprendizagem das línguas indígenas nas escolas das comunidades Katukina. Em uma das atividades, por exemplo, foi feito um levantamento sociolinguístico para conhecer um pouco mais sobre os usos sociais da língua materna desse povo, e do Português pela comunidade e, assim, pudemos aprender muito mais sobre o povo, sua cultura e os usos de sua língua.
As lembranças de experiências compartilhadas com representantes do povo Noke Koĩ reforçam a ideia de que é duplamente significativo o dicionário que a Profa. Maria Suelí de Aguiar aqui nos apresenta. Recordo-me, por exemplo, de que os professoes indígenas em formação relatavam com muita seriedade seus compromissos para garantir educação escolar conforme os interesses da comunidade indígena, isto é, uma educação que valorize a cultura indígena com a produção de material elaborado pelos próprios professores indígenas. Daí a importância deste dicionário, visto que sua elaboração conta com a participação de falantes nativos.
Notoriamente, os linguistas conhecem a responsabilidade que seus trabalhos de investigação científica com as línguas indígenas trazem para si como o compromisso social que assumem com esses povos, o qual certamente vai muito além do âmbito acadêmico. Uma forma de colocar tal responsabilidade é justamente por meio de trabalhos como este notoriamente uma contribuição para o conhecimento científico da língua indígena Katukina Pano e, claro, que também se constitui como uma devolutiva para o povo que, desde a década de 1980, acolheu a Profa. Maria Suelí em seu meio e que a tem até os dias de hoje com muita amizade e respeito.
Página 4Ademais, em uma concepção subjetiva, sabemos que a língua é caracterizadora dos sentimentos do sujeito falante muito além de um mero conteúdo comunicativo, que nos interessa em uma análise de aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos, entre outros. Nesse cenário, tomar contato com uma língua diferente em pleno uso e com o modo de vida peculiar de um povo leva-nos a ver nessa língua mais do que um elemento para análise. É possível ver nela o sentimento do sujeito Noko Koĩ, seu modo de pensar sobre si mesmo individualmente e dentro de sua esfera social, seja ela no âmbito de sua etnia, seja no âmbito da nação brasileira. Isso, naturalmente, faz-nos refletir sobre nós mesmos, nossos costumes e as diferenças culturais em relação a outros povos que, nessas reflexões, se tornam mais evidentes e fortes, mas, ao mesmo tempo, prazerosamente aceitáveis.
Atualmente, é possível perceber um aumento considerável de reflexões sobre o material didático para uma comunidade que tem na língua elemento de alteridade. Esta alteridade se relaciona com a preservação de suas culturas, que, por sua vez, se dá por meio da salvaguarda de suas línguas nativas. Dessa forma, minha preocupação com a causa indígena insere-se no fundamento do estudo da causa linguística. A elaboração de material didático indígena requer bastante cuidado com essa questão da identidade indígena e isso, indubitavelmente, vemos neste trabalho elaborado pela Profa. Maria Suelí de Aguiar.
Primeiramente, o dicionário traz uma introdução em que a autora apresenta o dicionário bilíngue Noke koĩ-Português/Português-Noke koĩ contextualizando as condições de produção do trabalho desde o seu início na década de 1980, quando ela teve seus primeiros contatos com o povo Noke koĩ. Maria Suelí de Aguiar lembra que o dicionário tem origem em uma lista lexicográfica para suas próprias consultas pessoais, a qual foi se ampliando ao longo dos anos e, especialmente, após a execução de projetos de pesquisa e extensão exectutados, respectivamente, em 1994 e 1997: “Estudos das Línguas Páno” e “O Índio e a Sociedade não Índia”.
Ambos os projetos tiveram como inspiração a língua Noke koĩ (Katukina), a qual, como já dito, é uma língua que apresenta características léxicas e morfossintáticas presentes nas línguas da família Pano. Essas línguas estão distribuídas em diversas localidades, em três países da América do Sul: Peru, Bolívia e Brasil. Os falantes de línguas Pano encontram-se na região do Oriente Peruano, nos Departamentos de Ucayali, Madre de Dios e Loreto. Na Bolívia, há apenas três línguas dessa família, cujos povos falantes localizam-se na região Oriental Boliviana, mais ao Norte, nos Departamentos de Pando e Beni. Já as línguas Pano brasileiras se distribuem em uma região que compreende, conforme Rodrigues (1986), o sul e o oeste do Estado do Acre, estendendo-se para leste até a parte ocidental de Rondônia e, ainda, o norte no Estado do Amazonas entre os rios Juruá e Javari.
Página 5A professora Maria Suelí faz questão de lembrar, com palavras de carinho e gratidão, das pessoas que contribuíram e colaboraram para que este dicionário se tornasse realidade. Trata-se de pessoas da comunidade, de professores e alunos das escolas indígenas, todos protagonistas desta bela história, pois são autores dos muitos desenhos produzidos nas salas de aulas da aldeia, a fim de ilustrar este dicionário. Além das personalidades indígenas, a autora menciona nomes de linguistas e pesquisadores da Universidade de Leiden, na Holanda, onde Maria Suelí fez um estágio para pós-doutoramento, de 2004 a 2005. Outros nomes também são lembrados, dentre os quais os de ex-orientandos, em nível de graduação e pós-graduação; técniocos de informtática e outros. Agradecimentos e menções são feitas também a instituições que disponibilizaram material bibliográfico usados na elaboração do dicionário.
Ainda nas palavras iniciais, a autora introduz e explica a estrutura dada ao dicionário: divisão em duas partes. A primeira é dedicada a informações sobre o povo e a língua Noke koĩ. Assim, ao leitor são dadas informações gerais sobre localização e quantidade das aldeias da etnia, o senso populacional e outras.
Na sequência, visando a auxiliar os leitores e usuários do dicionário na melhor compreensão das entradas (que aqui serão de dois tipos: itens lexicais e itens afixais), a autora traz noções elementares sobre a gramática da língua Noke Koĩ. Para tanto, inicialmente, será fornecida uma lista de abreviaturas e convenções empregadas nessa seção e também nas demais seções constituinetes deste trabalho.
Com a brevidade que o gênero textual exige, porém com a devida objetividade, serão apresentadas informações concernentes à estrutura básica do Noke Koĩ, com apresentação dos quadros fonético e fonológico da língua de exemplificação dos sons, de suas respectivas propostas de grafias (feitas, aliás, por falantes nativos) e das estruturas silábicas possíveis no Noke Koĩâ, a partir do tipo básico (C)V(C).
Temas importantes sobre as línguas da família Pano são a acentuação e a nasalidade. Por isso, a autora também apresenta informações sobre o acento na língua Noke Koĩâ e propõe um tratamento especial para aa nasalidade na língua, visto que, como nas demais línguas Pano, o traço nasal exerce um papel muito importante na gramática da língua.
Página 6Outras informações gramaticais importantes para o leitor dizem respeitos às unidades que foram definidas como as entradas que irão constituir o dicionário: o item lexical (palavra) o item afixal (morfema preso ou afixo). A Professora Maria Suelí descreve e analise dados relativos à estrutura interna e ao funcionamento desses dois itens na língua Noke Koĩ, com destaque especial para as categorias de número e pessoa. No âmbito dos itens lexical a afixal, ainda serão feitas considerações sobre os empréstimos do Português na língua Noke Koĩ.
Fechando essa primeira parte, a autora descreverá a estrutura das sentenças da língua Noke Koĩ, destacando, principalmente, a ordem dos constituintes: SOV (Sujeito – Objeto – Verbo), a qual, conforme diversos estudos realizados sobre línguas indígenas brasileiras, é uma característica da família Pano.
Todas essas informações que antecedem a apresentação das entradas lexicais e afixais, ou seja, o dicionário propriamente dito, deverão contribuir para que os usuários falantes nativos, para aqueles que queiram aprendê-la e, também, para pesquisadores de línguas indígenas, em particular, para os que possuem interesse na família linguística Pano, possam ter mais facilidade nas traduções feitas no dicionário.
A segunda parte do dicionário trará uma relevante nota explicativa que antecede às entradas do dicionário, contendo informações, tais como notações sobre o emprego de grafemas e, quando a situação assim o exigir, o uso de símbolos fonéticos; notações sobre o uso de negrito para indicar a importância dada pelos usuários da língua a determinadas entradas do dicionário; a ordem de apresentação de cada entrada no dicionário, entre outras.
Na sequência, virão as entradas Noke Koĩ-português Português-Noke Koĩ, mapas do Brasil, do estado do Acre e das terras dos Noke Koĩ, a fim de situar geograficamente os leitores deste trabalho da localização dos falantes da língua indígena aqui em foco. Para concluir, a autora referencia os autores dos belíssimos desenhos que ilustram diversas entradas do dicionário, também, todas as fontes consultadas a fim de realizar e concluir este dicionário.
Página 7Como ressalta a Professora Maria Suelí de Aguiar, certamente, após sua publicação, por seu teor, este trabalho necessitará dia a dia ser atualizado, pois a língua não é estática e, por seu dinamismo, exigirá ampliações constantes seja pelos usuários da língua Noke Koĩ, seja por outros pesquisadores. Indiscutível a importância de sua entrega aos falantes da língua indígena Noke koĩ e aos demais interessados nesse importante patrimônico cultural brasileiro.