O cinema dentro de um circuito: A produção cinematográfica em diálogo com aspectos socioculturais

Autoras

Juliana Junqueira
Lara Lima Satler

Juliana Junqueira é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais (PPGPC) da Universidade Federal de Goiás. E-mail: julianajunqueirago@gmail.com


Lara Lima Satler é bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ-2), CNPq. Professora nos Programas de Pós-graduação em Comunicação e Performances Culturais (PPGCom/PPGPC), Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: lara_lima_satler@ufg.br

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Introdução

O cinema, em seus variados gêneros e linguagens, pode revelar muito sobre os hábitos, culturas e valores de determinada sociedade dependendo da abordagem metodológica apropriada para investigá-lo. Neste artigo, propomos a investigação de obras cinematográficas por meio do Circuito de Cultura, metodologia desenvolvida pelo pesquisador Richard Johnson (2014).

Johnson vincula-se aos Estudos Culturais Britânicos, escola que defende o desenvolvimento de pesquisas caracterizadas pela transdisciplinaridade e pela compreensão da sociedade por meio da cultura. O Circuito de Cultura propõe a análise de produtos culturais por meio de quatro categorias: produção, texto, leitura e culturas vividas, aproximando-se dos trabalhos de Bakhtin (1929) e afastando-se dos semiólogos franceses como Saussure (2006), que restringiam à investigação os códigos de linguagem.

Assim, o objetivo de Johnson (2014) é compreender como os variados produtos culturais se conectam com a sociedade onde estão inseridos. Ao optarmos por essa abordagem metodológica para análise cinematográfica, podemos alcançar resultados inovadores e que vão além do que resulta a análise restrita dos aspectos estéticos e técnicos de um filme.

Para demonstrar a aplicação dessa metodologia e a título de exemplificação, analisaremos uma das categorias desenvolvidas por Johnson (2014), a de produção. Para isso, nosso objeto de investigação será o filme "Sai da Frente" (ALMEIDA, 1952) interpretado pelo cineasta brasileiro Amácio MazzaropiO cinema de Amácio Mazzaropi é o objeto de estudo de uma pesquisa em andamento, nível doutorado, realizada e orientada pelas autoras deste artigo, no Programa em Performances Culturais, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás..

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Assim, primeiramente discutiremos sobre o Circuito de Cultura de Johnson (2014) para então realizar a análise da obra fílmica supramencionada. Apropriar-se do Circuito de Cultura para pesquisar produtos audiovisuais tais como o cinema, que é um conjunto de performances mediadas, possibilita que conheçamos aspectos socioculturais destas. Assim, a construção de uma metodologia transdisciplinar pode contribuir para o desenvolvimento de pesquisas focadas nas performances das culturas mediadas pelo cinema.

O cinema segundo os Estudos Culturais: uma proposta de análise

Os Estudos Culturais representam um campo de pesquisa desenvolvido no Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), que foi criado em 1964, na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, diante da alteração dos valores tradicionais da classe operária deste país no pós-guerra. Como principais representantes dessa área acadêmica estão Richard Hoggart, com a obra The uses of literacy (1957), Raymond Williams, com Culture and Society (1958) e Edward P. Thomson, com The making of the english working-class (1963).

Esses três autores considerados os fundadores do campo dos Estudos Culturais, embora não tenham uma intervenção coordenada entre si, revelam um leque comum de preocupações que abrangem as relações entre cultura, história e sociedade (ESCOSTEGUY, 2001, s/p). Richard Johnson (2014), que já foi diretor do CCCS, também compartilha com essa perspectiva. Ele é um dos pesquisadores contemporâneos mais atuantes no campo dos Estudos Culturais e sobre processos culturais e conceitos de cultura argumenta:

A primeira é que os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classe, com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade. A segunda é que cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas necessidades. E a terceira, que se deduz das outras duas, é que a cultura não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e de lutas sociais (JOHNSON, 2014, s/p).ESCOSTEGUY, Ana Carolina. O que é, afinal, estudos culturais. Autêntica Editora. Edição do Kindle.

Para o autor, os processos culturais exigem uma análise que considere seus aspectos sociais, estruturais e individuais. Johnson (2014, s/p) destaca que os Estudos Culturais também dizem respeito ao lado subjetivo das relações sociais:

O conceito de “subjetividade” é, aqui, especialmente importante, desafiando as ausências na consciência. Ele inclui a possibilidade, por exemplo, de que alguns elementos estejam subjetivamente ativos — eles nos “mobilizam” — sem serem conscientemente conhecidos [...] Ele destaca o “quem eu sou” ou, de forma igualmente importante, o “quem nós somos” da cultura, destacando também as identidades individuais e coletivas. Ele faz uma conexão com um dos insights estruturalistas mais importantes: que a subjetividade não é dada, mas produzida, constituindo, portanto, o objeto da análise e não sua premissa ou seu ponto de partida (JOHNSON, 2014, s/p - grifos nossos)

Desse modo, cultura não é uma entidade monolítica ou homogênea, pelo contrário, manifesta-se de maneira diferenciada em qualquer formação cultural ou época histórica. Esses autores argumentam também que cultura não significa simplesmente sabedoria recebida ou experiência passiva, mas um grande número de intervenções ativas, expressas mais notavelmente através do discurso e da representação, que podem tanto mudar a história quanto transmitir o passado (AGGER, 1992, p. 89 apud HOHLFELDT; MARTINO; FRANÇA, 2001).

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Para que se torne possível o desenvolvimento de pesquisas baseadas nessa perspectiva, se fazem necessários estudos inter e transdisciplinares. Escosteguy (2001, s/p) explica que os Estudos Culturais não configuram uma disciplina, mas uma área em que diferentes disciplinas interatuam, visando ao estudo de aspectos culturais da sociedade. Destaca que o campo surge da insatisfação com os limites de algumas disciplinas, propondo, então, a inter/trans ou, ainda para alguns, a antidisciplinaridade.

Dentro deste campo de estudos, Richard Johnson (2014) desenvolveu uma metodologia que propõe a análise de produtos culturais para além dos aspectos técnicos e estéticos, propondo então uma investigação que considere as conexões do objeto investigado com o ambiente em que está inserido, ou seja, é necessário avaliar como ele se relaciona com elementos sociais, culturais e históricos.

Partindo dessa abordagem metodológica, denominada Circuito de Cultura, objetiva-se, por meio de uma análise detalhada e transdisciplinar, evidenciar aspectos culturais que não se revelariam em uma análise estruturalmente fílmica/ literária. Segundo Johnson (2014) é preciso considerar não só a interação do produto cultural com o ambiente externo, mas também as intenções e características subjetivas do criador da obra.

Para compreensão da cultura, em suas variadas manifestações, Johnson (2014) atenta para a necessidade de um modelo de análise mais complexo, com ricas categorias intermediárias, mais estratificadas dos que as teorias gerais existentes como as praticadas pelos Estudos Literários, que segundo Johnson (2014), têm focado apenas na análise literária das formas de narrativa. O mérito desse modelo seria o fato de que ajuda a explicar uma das características-chave dos Estudos Culturais: as fragmentações teóricas e disciplinares já observadas. Ele destaca, no entanto, que o método não pode ser considerado como pronto e acabado:

Ele [o Circuito de Cultura] poderia, na melhor das hipóteses, servir como um guia que apontasse quais seriam as orientações desejáveis de abordagens futuras ou de que forma elas poderiam ser modificadas ou combinadas (JOHNSON, 2014, s/p).

O método consiste em um diagrama que traz categorias de análises que podem ser analisadas de forma isolada ou conjuntamente. O diagrama tem o objetivo de representar o circuito integral de um produto cultural, discutindo aspectos da produção, circulação e consumo de uma obra cinematográfica, por exemplo. Cada um desses itens representa um momento nesse circuito (JOHNSON, 2014, s/p).

Os produtos culturais exigem ser produzidos, mas as condições de sua produção não podem ser inferidas simplesmente examinando-os como textos/filmes e, por isso, não podemos predizer essas leituras/interpretações a partir de nossa própria análise. "Como qualquer pessoa sabe, todas as nossas comunicações estão sujeitas a retornarem para nós em termos irreconhecíveis ou, ao menos, transformadas" (JOHNSON, 2014, s/p).

Por isso, é preciso analisar as condições de produção das obras cinematográficas para além dos aspectos técnicos e imagéticos. Para que ocorra uma análise mais sofisticada de um produto cultural como o cinema, considera-se também como elas foram recebidas pela crítica especializada da época e ainda se avalia o contexto histórico no período em que foram estreadas. O diagrama de Johnson (2014) nos fornece o percurso para que se possa analisar todos esses elementos:

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Figura 1: Circuito de Cultura (Fonte: JOHNSON, 2014)

Assim, o circuito de cultura é composto por quatro categorias de análise: Produção, textos, leituras e culturas vividas, sendo que cada uma delas é articulada a outros elementos. Nos extremos laterais, temos as categorias de produção e leituras, que sofrem interferências de condições públicas e privadas:

Esses dois pólos estão relacionados de forma bastante estreita: as formas privadas são mais concretas e mais particulares em seu escopo de referência; as formas públicas são mais abstratas, mas também têm uma abrangência maior (JOHNSON, 2014, s/p).

Para exemplificar esses pólos, consideramos que as ideias dos roteiros dos filmes de um cineasta em um primeiro momento integram a esfera privada e ficam restritas à ele ou a um grupo restrito de profissionais e artistas. Mas, à medida em que as ideias são colocadas no papel, os filmes começam a adquirir uma forma mais objetiva e mais pública, de modo que “A virada” ocorre “quando se tomou a decisão para ir adiante com “o conceito”, “tornando-o público”’ (JOHNSON, 2014, s/p).

Já a primeira categoria, produção, é influenciada pelos primeiros estudos marxistas, em que a cultura era compreendida como um produto social e não como simplesmente uma questão de criatividade individual. Os estudos de Gramsci também são importantes, pois, segundo Johnson (2014), possibilitam uma análise mais complexa dos processos culturais, já que posicionam os organizadores/produtores culturais não apenas como pequenos grupos de “intelectuais”, mas como estratos sociais inteiros, concentrados em torno de instituições particulares — escolas, faculdades, a lei, a imprensa, as burocracias estatais e os partidos políticos.

Desse modo, Jonhson (2014, s/p) destaca que as condições de produção incluem não apenas os meios materiais de produção e a organização capitalista do trabalho, mas um estoque de elementos culturais já existentes, extraídos do reservatório da cultura vivida ou dos campos já públicos de discurso. Ele aponta o caminho para a pesquisa da cultura por meio dessa categoria:

Devemos examinar, naturalmente, as formas culturais do ponto de vista de sua produção. Isto deve incluir as condições e os meios de produção, especialmente em seus aspectos subjetivos e culturais. Em minha opinião, deve incluir descrições e análises também do momento real da própria produção — o trabalho de produção e seus aspectos subjetivos e objetivos (JOHNSON, 2014, s/p)

Por isso, ao analisar uma obra cinematográfica partindo do Circuito de Cultura, a investigação do contexto de produção deve considerar os seguintes aspectos: data e local de produção, locações, condições dos estúdios onde os filmes eram gravados, número de envolvidos nas películas, elenco, cenários, responsáveis pelo argumento, direção, roteiro e fotografia de cada filme, fonte de recursos para execução, além de outras informações que surgirem e se mostrarem pertinentes à pesquisa.

Assim, a segunda categoria do Circuito são os textos. Segundo Johnson (2014) estudar o texto sob o viés dos estudos culturais significa descentrá-lo como um objeto de estudo. ''O texto não é mais estudado por ele próprio, nem pelos efeitos sociais que se pensa que ele produz, mas, em vez disso, pelas formas subjetivas ou culturais que ele efetiva e torna disponíveis" (JOHNSON, 2014, s/p). Desse modo, aproxima-se das pesquisas de Bakhtin (1929) ao propor a análise da cultura para além dos aspectos textuais:

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A fim de recuperar esses insights, os estudiosos da cultura que estejam interessados na linguagem têm que sair das tradições semiológicas predominantemente francesas, e se voltar à Bakhtin — o filósofo marxista da linguagem... (JOHNSON, 2014, S/p)

Ao tratar da categoria "textos", Johnson (2014) critica as análises fílmicas que eram realizadas pela revista Screen, revista inglesa da década de 1970 dedicada ao cinema:

Screen tornou-se, nos anos 70, crescentemente preocupada menos com a produção como um processo social e histórico e mais com a “produtividade” dos próprios sistemas de significação; em particular, com os meios de representação do veículo cinematográfico (JOHNSON, 2014, s/p).

Por isso, argumenta que na teoria da Screen, há uma tendência a olhar apenas para os meios ou as imagens especificamente cinematográficas, ou seja, para os códigos do cinema. As relações entre esses meios e outros recursos ou condições culturais não eram examinadas. E, o cinema, como outros meios públicos "pega seus materiais brutos do campo preexistente dos discursos políticos, isto é, de todo o campo e não apenas daquele segmento chamado “cinema”” (JOHNSON, 2014, s/p).

Devido à análise meramente focada nos códigos específicos da sétima arte, o texto cinematográfico era abstraído do conjunto global de discursos e relações sociais que o rodeavam e o formavam. Desse modo, a análise ficava limitada aos meios textuais e aos efeitos apenas textuais. Os meios e, portanto, os filmes analisados não eram concebidos, historicamente, como tendo seu próprio momento de produção. O autor propõe, portanto, uma análise similar à defendida por Vanoye e Golliot-Lété (1994) que também afirmam que analisar um filme significa desunir materiais que não se percebem isoladamente. Parte-se, portanto, do texto fílmico para desconstruí-lo e obter um conjunto de elementos distintos do mesmo filme. A partir daí, é preciso estabelecer elos entre esses elementos e descobrir como ou porque eles se associam. O filme é o ponto de partida para a sua decomposição e é, também, o ponto de chegada na etapa de reconstrução do filme.

Ao refletir sobre as terceira e quarta categorias, leituras e culturas vividas, Johnson (2014) faz uma crítica aos estudos literários estruturalistas que eram restritos à análise textual e por meio delas, extraiam valores universais para todos os povos e culturas, sem considerar o contexto social de cada leitor.

O contexto da leitura influencia a significação da obra e, por isso, há de se considerar a situação em que as manifestações culturais são lidas e interpretadas. Johnson (2014, s/p) discute o quanto as narrativas ou as imagens constroem uma posição ou posições a partir das quais elas devem ser lidas e vistas, afinal elas são um "insight fascinante, especialmente quando aplicado às imagens visuais e ao filme" (JOHNSON, 2014, s/p). Ao analisarmos, portanto, as leituras que críticos fazem de determinado filme, devemos considerar lógicas mais particulares: a atividade estruturada da vida, seus lados objetivos e subjetivos desses leitores, tais como seu contexto social, suas histórias, seus interesses subjetivos, seus mundos privados (JOHNSON, 2014, s/p).

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Em relação às culturas vividas, a categoria compreende a direção de uma “análise social” ou de uma busca ativa de elementos culturais que não aparecem na esfera pública ou que aparecem apenas de forma abstrata e transformada (JOHNSON, 2014, s/p). Essa perspectiva possibilita a análise do objeto por outro ângulo, uma vez que a câmera não se limita a apresentar um objeto. A câmera também nos posiciona relativamente a ele, propiciando assim uma conexão entre, de um lado, a análise das formas textuais e, de outro, a exploração das interseções com as subjetividades de quem assiste e interpreta.

Podemos notar que ao propor a análise da cultura, por meio de um circuito que considera simultaneamente todas as categorias, busca-se passar do leitor no texto para o leitor na sociedade, ou seja, "é passar do momento mais abstrato (a análise de formas) para o objeto mais concreto (os leitores reais, tais como eles são constituídos socialmente, historicamente, culturalmente (JOHNSON, 2014, s/p)".

Ao optar pelo Circuito de Cultura como metodologia para análise de obras cinematográficas é necessário promover a ligação entre as quatro categorias discutidas. Desse modo, consideramos a pesquisa dentro de um contexto amplo e não como uma análise individual. Assim, para exemplificar a aplicação desta metodologia, discutiremos a seguir a aplicação do Circuito de Cultura através da análise do filme Sai da Frente (ALMEIDA, 1952) interpretado por Amácio Mazzaropi elegendo como enfoque a categoria "produção".

O Circuito que revela: o desenvolvimento paulista no cinema mazzaropiano

O filme Sai da Frente, lançado em 1952, é o primeiro filme protagonizado por Amácio Mazzaropi no cinema. Com uma hora e dezessete minutos de duração, a película conta a história de Isidoro Colepícola, um atrapalhado caminhoneiro que mora na cidade de São Paulo. Isidoro é contratado por personagens peculiares para transportar desde móveis até materiais de circo, incluindo animais e um inusitado homem-macaco. Durante os transportes de cargas, que ocorrem entre São Paulo e Santos, o protagonista se envolve em uma série de confusões.

O personagem principal é um homem simples, que mora no subúrbio da capital paulista, é casado com Maria, tem uma filhinha chamada Tita e uma cadela batizada de Clarinha. Isidoro reside em um prédio com intensa aglomeração de pessoas e é alvo de críticas de seus vizinhos devido ao barulho que seu velho caminhão, Anástacio, faz todos os dias quando o proprietário o liga para sair para trabalhar. Dividem o papel de protagonista com Isidoro, o caminhão Anastácio e o fiel cachorro Duque, que acompanha o caminhoneiro em todas as suas viagens.

Apresentada a sinopse da obra, passemos a análise da categoria de produção para discutir a apropriação do Circuito de Cultura. Sai da Frente foi produzido pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que se negava a reproduzir as comédias chanchadescas de outras companhias como a Atlântida, primando por imitar o cinema clássico praticado principalmente nos Estados Unidos e marcado pelo star system (filmes protagonizados por grandes estrelas) e pela manutenção de grandes estúdios.

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A companhia, fundada em 1949 por Franco ZampariFranco Zampari (Nápoles, 10 de setembro de 1898 — São Paulo, 14 de setembro de 1966) foi um empresário e produtor teatral italiano radicado no Brasil. Fundador e diretor administrativo do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e da Companhia Cinematográfica Vera Cruz.Em São Paulo foi o responsável pela explosão do teatro e do cinema. e Francisco Matarazzo SobrinhoFrancisco Antônio Paulo Matarazzo Sobrinho, mais conhecido como Ciccillo Matarazzo (São Paulo, 20 de fevereiro de 1898 — São Paulo, 16 de abril de 1977), foi um industrial, mecenas e político ítalo-brasileiro. Filho de Andrea Matarazzo e sobrinho do conde Francesco Matarazzo.Foi diretor de empresas de diversos ramos em São Paulo e foi grande incentivador das artes plásticas. Fundou, em 1948 o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), sendo inaugurado no dia 8 de março de 1949, e em 1951 a Bienal Internacional de Arte de São Paulo, entidade que presidiu até a data de sua morte. Foi também também um dos fundadores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e dos estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz., tinha como slogan "Do planalto abençoado para as telas do mundo", lema este que refletia o objetivo de internacionalizar as características do cinema brasileiro. Como identificado por Bernardet (2009), os empresários de cinema no país tinham três caminhos a seguir: mimetizar a produção estrangeira; espelhar-se nas técnicas internacionais, mas também acrescentar aos filmes aspectos inerentes ao contexto sociocultural brasileiro ou criar estilos e técnicas de produção genuinamente brasileiros. A Vera Cruz optou pela primeira opção, exaltando-a, inclusive em seu bordão. Maciel destaca que "Assim surge a Vera Cruz: negando o cinema até então produzido no país (cujo maior expoente era a chanchada)" (MACIEL, 2008, p.39).

Maciel (2008, p.42) ressalta que a importação de tecnologia, equipamentos e de técnicos do exterior, além da contratação de experientes profissionais brasileiros do setor, era considerada um diferencial no nascente cinema industrial paulista. Assim, para ilustrar o cotidiano de um trabalhador do subúrbio paulista nos moldes da técnica e estética praticadas nos estúdios hollywoodianos, Vera Cruz contrata Abílio Pereira de Almeida e Tom Payne para assinar a direção e o argumento da película. Almeida, que também é responsável pelo roteiro de Sai da Frente, era um reconhecido dramaturgo brasileiro com intensa atividade criativa e administrativa no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)Entre as atividades de destaque no TBC está a montagem do texto ''A mulher do próximo" de sua autoria em 1948.Também escreve O Comício, com estreia em 1955, pela Companhia Nydia Licia-Sergio Cardoso; Moral em Concordata, estreada em 1956 pelo Teatro Maria Della Costa (TMDC) e para a companhia de Dercy Gonçalves escreve duas encomendas: Dona Violante Miranda, em 1958, e Os Marginalizados, em 1971. Seu texto Em Moeda Corrente do País, um dos poucos dramas, é levado à cena com sucesso pelo Teatro Cacilda Becker (TCB), em 1960, centrado sobre a corrupção que atinge um funcionário público.. Na Vera Cruz, ele dirige ngela (1951) e os filmes Sai da Frente (1952), Nadando em Dinheiro (1952) e Candinho (1954), esses três protagonizados por Mazzaropi.

Abílio Pereira de Almeida ficou conhecido na sociedade paulista pelas críticas à burguesia presentes em suas criações, sejam elas teatrais ou cinematográficas. Em suas obras, são enfocados temas como a incapacidade da elite agrária em administrar seus bens; abandono de costumes pela nova sociedade industrial; atos de corrupção de políticos, entre outros. Segundo Yan Michalski (1989), Abílio é um

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autor polêmico, geralmente combatido pela crítica e bem-sucedido na bilheteria. Abílio escrevia quase sempre sobre a burguesia paulistana, da qual era um ilustre representante. Sua familiaridade com a sua própria classe social é um elemento-chave das suas comédias, sob forma de observações críticas pertinentes, pitorescas e comunicativas…(MICHALSKI, 1989, s/p)MICHALSKI, Yan. Abílio Pereira de Almeida. In: PEQUENA Enciclopédia do teatro Brasileiro Contemporâneo. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq. Rio de Janeiro, 1989.

Ao lado de Abílio, também atuou na direção e argumento de Sai da Frente o cineasta, ator e roteirista Argentino Tom Payne, que chegou a ser premiado com o Leão de Bronze, no Festival de Veneza (1953) e com o prêmio especial do senado de Berlim, no Festival de Berlim (1954) pela direção do filme Sinhá Moça (1953). Payne se faz diretor dentro da Vera Cruz, sendo que os filmes que dirige seguem as fórmulas do estilo hollywoodiano: narrativa linear e clara, gêneros demarcados, ação contínua e câmera onipresente.TOM Payne. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 22 de Abr. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Na parte técnica, atuaram na película aqui em análise o montador e editor inglês Oswald Hafenritcher, o técnico de som dinamarquês Erick Rasmussen e o cinegrafista inglês Nigel C. Huke, exaltados pela crítica brasileira da época:

Na certeza de que jamais poderia produzir filmes de nível internacional sem dispor de um moderníssimo equipamento técnico, a companhia adquiriu o mais moderno e mais completo equipamento sonoro até hoje exportado dos Estados Unidos pela RCA Victor (fábrica detentora de vários “Oscars” de Hollywood), e que foi diretamente transportado por via aérea da fábrica em New York para os estúdios da Vera Cruz em São Paulo, sem dúvida a maior carga até hoje transportada pelos ares entre as duas Américas, num total de oito toneladas. No que diz respeito à fotografia, a companhia dispõe também de um aparelhamento capaz de assegurar uma produção perfeita: Um equipamento completo por transparência (backprojection), uma truca (máquina especial para produzir efeitos ópticos fotográficos), três dolies (dos quais um com braço de guindaste), duas câmaras “Mitchell” e uma “Super-Parvo”, todas completas e sonoras, uma câmara “Casmeflex” e uma “Emyo”, ambas simples e completas, além de máquinas fotográficas de todos os tipos. E isso para não falar de uma cabine elétrica de 350 KWA com corrente AC-DC, acrescidos de 300 KWA de corrente alternada, três geradores portáteis com uma força total de 40 KWA, dois dos quais de corrente contínua, além de uma grande quantidade de lâmpadas-arco e incandescentes. Pouca utilidade, contudo teria todo esse equipamento, se não dispuzesse (sic) a companhia da colaboração de técnicos já experimentados nos mais adiantados centros cinematográficos do mundo, tais como Osvald Hafenrichter (editor e montador inglês de renome internacional), Erick Rasmussen (técnico dinamarquês de som e gravação), Howard Randall (técnico americano de som e gravação), Michael Stoll (técnico inglês de microfone), Henry Chick Fowle (iluminador inglês), Nigel C. Huke (cameraman inglês), Jacques Dehenzelins (cameraman francês), Horace C. Fletcher (técnico inglês de maquilagem), Aldo Calvo (cenógrafo italiano), Adolfo Celi, Tomas Payne e John Waterhouse, diretores cinematográficos, o primeiro italiano e os dois últimos ingleses...É por contar com esse material humano e o equipamento técnico acima mencionado (sic), que a Vera Cruz acredita estar em condições de fazer cinema profissional e industrial na mais rigorosa acepção destes dois termos.Folheto “Teatro Brasileiro de Comédia”. 1950, número 19 in MACIEL, Ana Carolina de Moura Delfim. “Yes nós temos bananas”. Cinema industrial paulista: a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, atrizes de cinema e Eliane Lage. Brasil, anos 1950. Campinas, SP : [296p.], 2008.
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A Vera Cruz contava, portanto, com todos os elementos necessários para garantir aos filmes brasileiros o sonhado padrão internacional: Abílio Pereira de Almeida, já celebrado e atuante no circuito intelectual burguês da época, e uma equipe de profissionais que já acumulava uma vasta bagagem profissional no exterior. Para a companhia, essa era a receita ideal para evitar qualquer aproximação com o gênero da chanchada.

A busca pela profissionalização da cadeia produtiva do cinema encontrou respaldo nas políticas públicas desenvolvidas pelo estado brasileiro, tanto a nível estadual quanto federal. Com o objetivo de consolidar o projeto desenvolvimentista no Brasil e aproximar o país daqueles considerados como "primeiro mundo", elite intelectual e políticos defendiam a consolidação e o exercício da lógica urbano-industrial. Diversas manifestações artísticas, como a música e o cinema, foram consideradas pelos intelectuais e governantes como elementos que poderiam aproximar a nova sociedade burguesa brasileira da cultura praticada nos grandes centros urbanos comerciais (BERNARDET, 2009). O cinema, por exemplo, funcionaria como uma ponte entre o subdesenvolvimento e o desenvolvimento. As realizações da Companhia Vera Cruz, que praticavam com afinco os preceitos cinematográficos estadunidenses, eram uma ponte ainda mais eficiente. Talvez essa seja uma das razões que justificam o patrocínio de Sai da Frente pelo Banco do Estado de São Paulo. A cooperação financeira do banco público para a execução da película fica evidenciada nos créditos iniciais do filme.

Figura 2: Abertura do filme Sai da Frente (00:02:01) Fonte: Frame do filme Sai da Frente (ALMEIDA, 1952)

Desse modo, Sai da Frente foi lançado durante o segundo Governo Vargas, que de acordo com Martins (2010) é considerado, por boa parte dos especialistas em História Econômica a exemplo de Fonseca (2012)FONSECA, Pedro. Gênese e Precursores do Desenvolvimentismo no Brasil in BASTOS, Pedro Paulo Z.; FONSECA, Pedro Cezar D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora Unesp, 2012, Bastos (2012)BASTOS, Pedro Paulo Z. Ascensão e Crise do Projeto Nacional-Desenvolvimentista de Getúlio Vargas in BASTOS, Pedro Paulo Z.; FONSECA, Pedro Cezar D. (Org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora Unesp, 2012 e Saviani Filho (2013)SAVIANI FILHO, Hermógenes. A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. Econ. soc., Campinas , v. 22, n. 3, p. 855-860, Dec. 2013 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-06182013000300010&lng=en&nrm=iso>. Acesso 28.04.2020 como o início, no país, da elaboração e implementação de um projeto de industrialização acelerada, que tinha na burguesia industrial brasileira o seu principal suporte social. Saviani Filho (2013, s/p) destaca que:

Vargas é o construtor do moderno Estado brasileiro. Além de ser o líder da transformação de uma economia agrário exportadora voltada para fora em outra industrializada e voltada para dentro, ele criou instituições que contribuíram para o desenvolvimento econômico e social do país (SAVIANI FILHO, 2013, s/p).

O autor também acrescenta que a "Era Vargas" constitui-se num conjunto de políticas públicas para o país e no ambicioso objetivo de alcançar certa autonomia política e econômica através de um desenvolvimento nacional independente baseado num Estado forte, centralizado e planejador. Esse conjunto de ações sintetiza, na visão de Saviani Filho (2013), o processo da complexa transição da República Velha para o moderno Estado brasileiro (SAVIANI FILHO, 2013, s/p).

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Nesse sentido, Kamimura (2016, p.26) ressalta que o período entre 1945 e 1965 se caracteriza, tanto no plano paulistano quanto no brasileiro, pelo impulso desenvolvimentista que dará continuidade ao processo de industrialização iniciado no último quarto do século XIX.

Diversas cenas do filme enquadram monumentos que são ícones do processo de modernização da cidade de São Paulo como o Viaduto do Chá, o Largo do Anhangabaú, o Museu do Ipiranga e a sede do Banespa. Várias das sequências de Sai da Frente são ambientadas na Via Anchieta, uma das vias de maior movimentação de pessoas de todo o Brasil e o maior corredor de exportação da América Latina. A rodovia, no filme Sai da Frente, funciona como uma personagem já que sedia as peripécias do protagonista Isidoro. Os diretores do filme, por meio dela, destacam a facilidade de integração entre a cidade de São Paulo e as cidades do interior como Santos. Através da rodovia, é possível carregar um enorme mobiliário e transportar equipamentos de circo, tudo isso em um único dia.

Na análise feita até aqui, o filme Sai da Frente parece assinar a carta de compromisso com o pacto desenvolvimentista brasileiro já que foi desenvolvido por uma grande companhia cinematográfica brasileira, com uma equipe de profissionais gabaritados e tendo como cenário uma das cidades que mais crescia em todo o país. Todo o roteiro se passa na cidade e não há nenhuma referência ao universo rural.

Mas, importante ressaltar que devemos considerar os outros elementos do circuito de cultura como o texto, a leitura e as culturas vividas para obtermos uma análise fidedigna e detalhada. Assim, não podemos considerar apenas a análise isolada do contexto de produção pois este deve ser integrada às demais categorias do circuito.

Considerações

A seleção do circuito de cultura de Richard Johnson (2014) como modelo para o desenvolvimento do percurso teórico metodológico de pesquisas que investigam linguagens cinematográficas possibilita uma investigação que vai além dos aspectos técnicos e estéticos. Essa metodologia viabiliza a articulação dos aspectos próprios dos filmes como diálogos, cenários, figurinos, caracterização das personagens, profissionais envolvidos na direção e produção com contextos históricos e sociais de determinada sociedade.

Aqui por exemplo, demonstramos que a análise do contexto da produção do Circuito de Cultura revelou como o filme Sai da Frente se relacionou com a realidade histórica e social de seu tempo. A escolha do diretor, da equipe técnica, dos cenários e a forma de financiamento do filme demonstrou o compartilhamento dos envolvidos na produção com o ideal desenvolvimentista defendido pela elite intelectual brasileira na década de 1950. Dado a brevidade deste artigo, não discutimos sobre a articulação entre a produção e o filme, algo que deixaremos para outras reflexões. Contudo uma vez contextualizada pela produção, a leitura e interpretação da obra cinematográfica amplia em densidade e complexidade.

Assim, partir do Circuito de Cultura permitiu à pesquisa ultrapassar uma análise fílmica para refletir sobre aspectos culturais e sociais que muitas vezes estão nas entrelinhas de um roteiro cinematográfico. Como o cinema é o reflexo de uma época, uma leitura detalhada e que considere aspectos externos à película pode auxiliar na compreensão dos hábitos, costumes e culturas de uma sociedade durante um determinado período histórico. Assim, ao discutirmos sobre esse modelo metodológico, pretendemos adensar as formas de se ler e pesquisar cinema.

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Referências

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