Apresentação
Neste artigo, buscaremos investigar as performances dos vloggers no ciberespaço a partir do olhar dos adolescentes que assistem esses vídeos. Trata-se de um estudo de recepção que almeja entender como jovens percebem essas performances no Youtube. Partiremos em um primeiro momento de Richard Schechner (2002) e dos estudos de performance tecendo pontes de aproximação ou distanciamento com Erving Goffman (2018) e outros autores.
O objetivo principal deste artigo é tentar analisar as respostas dos jovens entrevistados a partir dos conceitos disponíveis na bibliografia existente e perceber se é possível discutir a performance nos vlogs à luz da “representação” do eu no cotidiano retomando Goffman (2018) e Schechner (2002). Iremos nos ater neste artigo à modalidade vlog como expoente de produção audiovisual contemporânea. O termo vlog surge da abreviação videoblog (vídeo + blog) e é um tipo de conteúdo do meio web, no qual o assunto que seria tratado em um blog é registrado em audiovisual.
Esses blogs ou weblogs surgiram com o propósito de manter um registro das atividades de seus usuários como uma espécie de diário online. Com o passar do tempo, os tópicos abordados nesses blogs se tornaram mais diversos e neles os usuários puderam tratar de qualquer tema além de suas atividades diárias. Assim, nos vlogs o mesmo acontece. O vlogger ou vlogueiro, aquele quem produz vlogs, pode em seus vídeos fazer uma atualização de seus projetos pessoais tal como em um diário ou não. Assim, a questão que buscaremos responder ao longo do artigo é: como os jovens adolescentes percebem as performances dos vloggers?
Há muito tempo se discute sobre as diferenças entre o teatro e a atividade social efetiva. Sobre isso Schechner (2002, p. 8, tradução nossa)No original: “Early philosophers both in the West and in India pondered the relationship between daily life, theatre and the ‘really real’”. aponta que “Filósofos da antiguidade no ocidente e na Índia avaliaram as relações entre a vida cotidiana, o teatro e o que é ‘realmente verdadeiro’”, e também que na Europa renascentista uma ideia amplamente aceita era a de que o mundo era um grande teatro.
72Essas discussões atravessaram a história e implicam hoje debates cada vez mais complexos sobre identidade em diversas áreas. Com a popularização do cinema e dos programas televisivos na segunda metade do século XX, as questões sobre a distinção do “real” e do “fingido” se tornaram ainda mais borradas nas ciências humanas como indica o autor:
As pessoas se perguntaram então, e a questão ainda se mantêm instigante, a presença de uma câmera muda o comportamento ou converte o estado de “vida real” de alguém em “teatro”? É uma aplicação sociológica do princípio da incerteza de Heisenberg em que a observação afeta o resultado. (SCHECHNER, 2002, p. 113, tradução nossa)No original: “People asked then, and the question remains salient, does the presence of the camera change behavior or convert someone’s home from a ‘real-life’ venue into a ‘theatre’? It is a sociological application of Heisenberg’s indeterminacy principle where the observation affects the outcome”
Com o surgimento e popularização da internet, e posteriormente, das redes sociais a questão parece ainda mais complexa e distante de se obter uma resposta: Como distinguir o “real” da “atuação” nos planos da vida real e da simulada no ciberespaço? Assim, as questões desenvolvidas neste artigo buscarão, a partir da ótica dos adolescentes entrevistados, tratar do esmaecimento dos limites que separam o “real” do que não é.
Goffman (2018), seguindo a contramão desse processo histórico que busca diferenciar o teatro da vida cotidiana, se apropria da teoria dramatúrgica para explicar a representação do eu que ocorre nas interações do dia a dia. Para ele, nos contatos do cotidiano também fazemos uso de fachadas, palcos e bastidores tais como atores fariam em seus papéis.
Sobre performar e representar
Schechner aponta que “A ideia subjacente é que qualquer ação que é enquadrada, apresentada, realçada ou exposta é uma performance” (2002, p. 2, tradução nossa), e que “Performance não ‘está’ em algo, mas entre” e ainda que “Tratar qualquer objeto, trabalho ou produto ‘como’ performance significa investigar o que o objeto faz, como interage com outros objetos ou seres e como se relaciona com outros objetos ou seres” (2002, p. 24, tradução nossa). Para ele as performances somente existem quando são tratadas como ações, interações e relacionamentos.
Assumir os vlogs como performances contemporâneas significa compreendê-los a partir das várias ações e interações estabelecidas dentro dos vídeos e também entendê-los a partir das interações que são produzidas a partir deles, como as interações entre os vlogs e aqueles que os assistem.
O autor aponta que é possível classificar as performances de diversas maneiras. Desde as performances do cotidiano às performances do teatro. Indica que essas várias possibilidades de distinção não impedem que uma forma se sobreponha a outra. Aponta, por exemplo, que grande parte das nossas performances, quaisquer sejam elas, podem ser entendidas também a partir das lentes das performances do cotidiano. Cozinhar, socializar ou “apenas viver” (SCHECHNER, 2002, p. 25, tradução nossa)No original: “Cooking, socializing, ‘just living’”..
73Para Schechner, em amplo sentido, make-believe correspondem às performances em que há uma clara distinção entre o real e o “fingido” como quando se encena uma história de ninar para um filho. Quando, ao contrário, há dificuldade em determinar o que é “real” e o que não é nas performances, nomeia de make-belief. Nos termos do autor, essa distinção clara entre o real e o “fingido” “que os primeiros vanguardistas e, depois, a mídia e a internet sabotaram com sucesso” (SCHECHNER, 2002, p. 35, tradução nossa)No original: “This distinction that first the avant-garde and later the media and the internet have successfully sabotaged”..
Pensar nos vlogs como performances requer alguns cuidados. A primeiro momento - talvez pela memória ainda recente do antigo slogan do “Youtube: Broadcast yourself” ou pela premissa básica dos vlogs como registros em vídeos das atividades diárias - pode se pensar que eles muito se aproximam das performances do cotidiano. Como se os vloggers ligassem suas câmeras e agissem como agiriam se elas estivessem desligadas.
É necessário, porém, salientar que os vlogs têm se tornado cada vez mais produtos de entretenimento e também devem ser estudados como tais. A performance dos vloggers em seus vídeos se relaciona diretamente com os ganhos de seguidores, com o número de curtidas, com o ganho de notoriedade nas redes sociais e também com o desempenho na plataforma do Youtube sob a forma de monetização dos vídeos. Se há interesse consciente em obter influência no ciberespaço, pode-se inferir, então, que vloggers despendem em seus vídeos algum tipo de esforço que não é compatível com a espontaneidade anunciada.
Ainda que Erving Goffman (2018) trate das interações sociais face a face, nos utilizaremos de sua teoria para pensar as interações humanas mediadas pela internet. Isto é, aquelas em que o emissor e receptor se encontram separados espacialmente e mantêm contato por meio de um dispositivo eletrônico. Mais precisamente, nos utilizaremos de seus conceitos para discutir a relação vlogger-espectador.
As interações humanas estudadas à luz da representação evidenciam os esforços dos sujeitos em se mostrarem por lentes favoráveis. Para ele “Independentemente do objetivo particular que o indivíduo tenha em mente e da razão desse objetivo, será do interesse dele regular a conduta dos outros, principalmente a maneira como o tratam” (GOFFMAN, 2018, p. 15).
A teoria de Goffman indica que o objetivo último nas interações sociais é ser notado pelos observadores como se pretendia. Sobre essa intenção,
74[...] quando um indivíduo projeta uma definição da situação e com isso pretende, implícita ou explicitamente, ser uma pessoa de determinado tipo, automaticamente exerce uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-lo e tratá-lo como de acordo com o que as pessoas de seu tipo têm o direito de esperar. (GOFFMAN, 2018, p. 25)
Giddens, em seu livro Modernidade e Identidade (2002), ao tratar das discussões do “corpo” e do “eu” nas interações, no que ele chama de Modernidade alta ou Modernidade tardia, indica que:
As obras de Goffman e Garfinkel representam de muitas maneiras uma exploração empírica dos temas que Wittgenstein levantou num nível filosófico. Mostram quão cerrado, completo e interminável é o controle que se espera que o indivíduo mantenha sobre o corpo em todas as situações de interação social. Ser um agente competente, além disso, significa não só manter tal controle contínuo, mas ser percebido pelos outros quando o faz. (GIDDENS, 2002, p. 57-58, grifos nossos)
Ainda que as interações vlogger-espectador não sejam face a face, é possível flexionar a teoria de Goffman e entender na figura do vlogger alguém que também espera ser percebido de uma maneira favorável por aqueles que o observam no ciberespaço. Nesse sentido umas das coisas que difere a interação vlogger-espectador de uma interação cotidiana é a ruptura espacial e temporal na relação emissor-observador.
Nas relações face a face, devido a assimetria fundamental no processo de comunicação o indivíduo emissor frequentemente só tem consciência de um fluxo de sua comunicação, já os observadores - como o autor aponta - apresentam consciência desse fluxo e outro. Desse modo, ainda que o indivíduo diga com convicção algo que o desagrada, seus gestos, expressões faciais e postura revelarão suas verdadeiras crenças.
Na relação vlogger-espectador o momento de emissão na gravação não é simultâneo ao momento de interpretação no observador. Existe um hiato correspondente ao momento de pós-produção até que o produtor faça o upload do vídeo e os espectadores tenham acesso a esse conteúdo. Nessa lacuna, na pós-produção, é possível fazer uma seleção de cenas para o vídeo em sua versão publicável no canal e descartar as que não interessa ao vlogger. Isso significa que esse produtor ocupa o espaço de emissor no ato da gravação, e também ocupa o espaço de observador no momento de seleção de cenas. Isso nos indica que, por meio do filtro, ele detém controle sobre o que os espectadores terão acesso em seus dispositivos e qual será a provável impressão que terão dele.
Nesse sentido é difícil determinar se o vlogger se exibe, nos termos do autor, de outra maneira que não “é” realmente ou se simplesmente “é” o que diz “ser”. Há, nos cortes de seus vídeos, camadas de interações a que o público jamais terá acesso. Isso contribui para a dificuldade aparente em determinar qual o caráter das performances nos vlogs que será abordada adiante a partir do olhar dos entrevistados.
Metodologia
Inicialmente, a pesquisa anunciava que a coleta de dados seria feita a partir de um grupo focal presencial com jovens adolescentes de 14 a 18 anos de idade. O grupo focal permite que os colaboradores façam apontamentos diversos para além das perguntas feitas por quem entrevista. Em virtude a pandemia da Covid-19 e do isolamento social proposto pela Organização Mundial da Saúde e por outras autoridades da área, se alterou o formato de coleta de dados de grupo focal para entrevista em profundidade individualmente e por modalidade remota.
75Assim, as metodologias utilizadas no artigo são pesquisa bibliográfica (STUMPF, 2005) e entrevista em profundidade (DUARTE, 2005). Estes dois recursos metodológicos são necessários para tecer as relações entre o que os autores em suas diversas áreas apontam e o que a impressão dos entrevistados indica.
Stumpf (2005, p. 52) em defesa à pesquisa bibliográfica aponta que “para estabelecer as bases em que vão avançar, é preciso conhecer o que já existe, revisando a literatura existente sobre o assunto” e ainda que “a revisão da literatura é uma atividade contínua e constante em todo o trabalho acadêmico e de pesquisa, iniciando com a formulação do problema e/ou objetivos do estudo e indo até a análise dos resultados”.
Durante a pesquisa bibliográfica foram necessários alguns ajustes na abordagem teórica do objeto de estudo. A perspectiva inicial da pesquisa dialogava com a teoria do espetáculo do filósofo francês Guy Debord. Logo depois se percebeu que a teoria da performance de Richard Schechner (2002) e a teoria da representação de Erving Goffman (2018) contribuíram de modo mais preciso para interpretar as respostas dos entrevistados.
Aliado à pesquisa bibliográfica, essa investigação trabalhou com a entrevista em profundidade. Fontana e Frey (1994 apud DUARTE, 2005) apontam que a “entrevista é uma das mais comuns e poderosas maneiras que utilizamos para tentar compreender a nossa condição humana”. As entrevistas foram guiadas por encontros remotos com quatro adolescentes na plataforma do Skype. As fontes foram selecionadas por proximidade e disponibilidade.
Ao longo dos meses de junho e julho de 2020 foram realizadas quatro entrevistas com quatro adolescentes de 14 a 17 anos. As entrevistas guiadas remotamente por videochamadas foram realizadas na plataforma do Skype com jovens da região metropolitana de Goiânia. Afim de preservar suas identidades, iremos nos referir a esses jovens por: Colaboradora 1, Colaborador 2, Colaboradora 3 e Colaborador 4.
A seleção desses jovens - 2 garotos e 2 garotas - se deu por conveniência e também por disponibilidade de horário. As entrevistas foram executadas individualmente em três desses casos. A entrevista feita com o Colaborador 4 foi supervisionada pela irmã do entrevistado que emprestou o computador para que ele pudesse participar.
A partir da leitura do livro Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação, com a organização de Jorge Duarte e Antônio Barros (2005), estabeleceu-se utilizar de um método de entrevista semi-aberta, aquela em que o entrevistador traz consigo um roteiro flexível, se permitindo fazer outras perguntas que não estavam planejadas a depender do andamento da entrevista.
Antes que as entrevistas iniciassem, foi indicado aos colaboradores que eles assistissem dois vídeos disponíveis na plataforma do Youtube. O primeiro deles é um vlog intitulado “LEVANDO AMIGOS PRA CONHECER A CASA NOVA - Ep. 1408” (sic) presente no canal de Youtube “Cadê a chave?”Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cSJ-E3WIWq0&t=276s>. Acesso em: 07/08/2020. e o segundo vídeo é um fragmento de uma peça de teatro intitulado “Cena do espetáculo ‘Romeu & Julieta’ (‘É você’ / ‘Vilarejo’)Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=d708-_zOSz8>. Acesso em: 07/08/2020.”. A escolha por esses dois vídeos se justifica na intenção das entrevistas em perceber se os jovens entendem as performances dos vlogs como diferentes das performances em ambientes de atuação.
76O Youtube e os entrevistados
Ao início das entrevistas se questionou o consumo de audiovisual desses jovens no Youtube. Foi questionado o que eles costumam ver nessa plataforma e com que frequência veem. O consumo dos entrevistados se mostrou diverso. Alguns dos colaboradores assistem vídeos de humor, outros assistem as vídeoaulas presentes no Youtube como forma de complementar a educação formal que recebem nas suas instituições de ensino, outros assistem gameplays de jogos diversos e alguns assistem clipes de música.
A frequência em que assistem esses conteúdos também se mostrou díspar. Os colaboradores 2 e 4 afirmaram assistir mais de 100 vídeos por semana. O consumo das colaboradoras 1 e 3 se mostrou inferior aos dos garotos. A Colaboradora 3 disse assistir por volta de 15 vídeos por semana e a Colaboradora 1 disse assistir somente um único vídeo por dia.
Questionou-se, então, se os colaboradores já assistiram ou assistem algum vlog. Sobre isso a Colaboradora 1 disse que não. Que não tinha costume de assistir esse gênero. O Colaborador 2 disse que costuma assistir os vlogs dos canais do Christian FigueiredoDisponível em: <https://www.youtube.com/user/euficoloko2> Acesso em: 07/08/2020. Lucas LiraDisponível em: <https://www.youtube.com/user/inventonahoratv> Acesso em: 07/08/2020. e do EduKofDisponível em: <https://www.youtube.com/user/AM3NlC> Acesso em: 07/08/2020.. A Colaboradora 3 disse que costuma assistir os vlogs do Christian Figueiredo e do Lucas RangelDisponível em: <https://www.youtube.com/user/rangeldovine> Acesso em: 07/08/2020.. O Colaborador 4 disse que costumava assistir os vlogs do canal “Cadê a Chave?”Disponível em: <https://www.youtube.com/user/cadeachave> Acesso em: 07/08/2020. que foi apresentado junto a peça de teatro.
“Eles só ligam as câmeras”
Após uma investigação inicial para determinar o perfil dos entrevistados foram feitas perguntas sobre a forma como eles perceberam os dois vídeos que lhes foram apresentados. Em primeiro momento foi questionado se os colaboradores perceberam algo que difere a atuação dos vloggers dos atores na peça.
Colaboradora 3: O vlog é uma coisa mais descontraída, né? A peça de teatro é mais ensaiada.
Moderador: Você pode me explicar um pouco mais sobre isso? [Sobre] essa diferença para você.
Colaboradora 3: A peça de teatro é mais ensaiada como eu disse. Tem toda uma preparação por trás. No vlog eles só ligam a câmera, mostram seu dia a dia e depois editam.
Colaborador 2: As pessoas que fazem vlogs se referem sempre à câmera. Elas definem que a pessoa que está assistindo. É como se fosse num diálogo entre elas... mostrando como foi o dia delas. [...] Na maioria do vlogs só mostra o dia deles...fácil pras pessoas compreenderem. Tentam falar do jeito mais simples possível como se fosse uma conversa, um diálogo com seus viewers… conversando com eles. No teatro é somente entre eles que estão atuando.
As falas acima remetem a percepção de que toda preparação do teatro envolvendo os ensaios, caracterização de personagem e etc. requer atividades distintas das realizadas pelos vloggers, como se estes apenas ligassem a câmera e começassem a falar dos seus cotidianos. Contudo, mesmo aqueles que enfocam seu cotidiano como conteúdo, não preparam de algum modo como vão apresentá-lo? Para a Colaboradora 3, não.
77Outro aspecto que distinguiria o teatro encenado da performance dos vloggers “se faz presente no esforço dos youtubers em sustentar uma relação de proximidade com os usuários” (CARRIJO; SATLER, 2019, p.320). Trata-se de uma performance da proximidade que pode ser compreendida por “um conjunto de ações feitas para exibir facetas dos sujeitos que remetam a uma cotidianidade familiar ao seu interlocutor” (CARRIJO; SATLER, 2019, p.320). Para o Colaborador 2, no teatro os atores não estão próximos do público já que conversam apenas entre si. Já nos vlogs, há uma conversa próxima, um diálogo direto com o público.
Em seguida, quando questionados sobre a possibilidade dos vloggers também estarem atuando, os entrevistados exprimem que:
Colaboradora 1: Acho que não.
Moderador: Por que não?
Colaboradora 1: Acho que eles mostram mais o dia-a-dia deles, né? Acho que é uma coisa mais aleatória assim. É o meu ponto de vista.
Colaborador 4: Não. Não. No vlog é mais natural, é mais…. é como se fosse um estilo de vida. O vlog.
A resposta unânime dos entrevistados aponta inicialmente para uma distinção por “naturalidade” entre essas duas performances. As performances nos vlogs lhes parecem mais naturais, espontâneas e próximas se comparadas com as do teatro convencional e também com outras performances presentes na própria plataforma do Youtube como sugere um dos colaboradores:
]Colaborador 2: [...] No Youtube tem muitas pessoas que atuam.
Moderador: Sobre isso que ia te perguntar. Você acha que no vlog acontece a mesma coisa?
Colaborador 2: Sim, tem momentos que são muita atuação, mas depende. Cada caso é um caso. O Youtube é muito grande, cara. Tem muitas pessoas que fazem só teatrinho e tem outras que só mostram o seu dia a dia. Por exemplo, o vídeo que você me mandou. A Nilce e o Leon… eles estavam se mudando e estavam mostrando como era a mudança deles. A gente pode comparar isso com o Luccas Neto. Ele faz vídeo e aquilo lá é teatro porque o conteúdo dele é pra atingir outro tipo de pessoa. É pra atingir criança, então tem que ter aquele teatrinho. Tem uma certa atuação.
Na medida em que empregam “estilo de vida”, “dia a dia” e “diálogo” para definir a performance dos vloggers, os entrevistados revelam a impressão que têm. Para eles, ainda que exista a possibilidade de atuação, como o Colaborador 2 aponta, as performances vividas pelos vloggers muito se parecem com as performances do cotidiano, ainda que os entrevistados não utilizem esse conceito.
A aparente descontração, como oposta ao que é ensaiado apontada pela Colaboradora 3, pode se relacionar com a forma como Giddens encara as interações do cotidiano. “Como todos os aspectos da interação na vida cotidiana, as aparências normais devem ser manejadas com imenso cuidado, muito embora a aparente falta de tal cuidado seja precisamente um traço-chave delas.” (GIDDENS, 2002, p.59). Assim como as interações na vida cotidiana, as interações vlogger-espectador se sustentam num aparente despreparo ainda que exista grande esforço em manter as aparências normais.
78Agem como agiriam?
Em segundo momento, quando questionada a possibilidade de os vloggers fazerem ajustes na forma como se exibem em seus vídeos, os entrevistados apontaram que eles pensam que essa pode ser uma possibilidade.
Moderador: Você acha que em frente a câmera eles adotam uma postura diferente da do dia a dia deles?
Colaboradora 3: Com toda a certeza.
A ideia de que ajustes são necessários ao vloggeiro para que ele migre do plano real para o ciberespaço se concilia com a teoria da representação do Goffman. Para o sociólogo canadense são necessários ajustes nas interações cotidianas quando o sujeito migra de um contexto ou grupo para outro. Questionou-se então o que culminaria nesses ajustes da performance do vlogger. Sobre isso os entrevistados disseram que:
79Moderador: [...] Você acha que tem alguma razão pra pessoa agir diferente?
Colaboradora 1: Sim. Eu acho que é por conta da fama, de ter mais inscritos, ter um nome bom nas redes sociais.
Moderador: Então você acha que necessariamente quão maior o número de seguidores, mais a pessoa é diferente do que ela é na vida real?
Colaboradora 1: Sim.
Moderador: Você acha que necessariamente eles estão agindo de uma maneira completamente diferente da forma como eles agem na vida real? Os vloggers.
Colaborador 2: Sim
Moderador: Por que você acha isso?
Colaborador 2: Porque eles têm que demonstrar, chamar atenção. O objetivo deles é chamar atenção e ter mais visualizações. Com isso eles têm mais dinheiro. Eu acho que o objetivo maior deles não é mandar conteúdo do que gosta, o objetivo maior deles é lucrar com aquilo… então eles têm que chamar atenção. Esse é o objetivo deles.
Moderador: Você acha que em frente a câmera eles adotam uma postura diferente da do dia a dia deles?
Colaboradora 3: Com toda a certeza.
Moderador: Por quê?
Colaboradora 3: Porque eles estão sendo filmados, né? Ninguém faz o que faz sendo filmado. É diferente. Você vai aparecer pra milhões de pessoas.
Moderador: Você acha que essa questão de estar sendo visto por milhões de pessoas muda [a performance]?
Colaboradora 3: Acho que sim porque são milhões de pessoas, né? Eles vão ser julgados pra caramba se fizerem alguma coisa que não agrade.
Moderador: Então você acha que o jeito que eles “atuam” está a serviço de agradar milhões de pessoas?
Colaboradora 3: Creio que sim, mas tipo... eles não são obrigados a agradar, mas eles meio que seguem os padrões [que agradam].
Moderador: Você acha que eles estão agindo de uma maneira diferente em frente a câmera?
Colaborador 4: Eu acho que na maneira diferente que eles são, eu acho que sim.
Moderador: Por que você acha isso?
Colaborador 4: Não sei ao certo porque eu não conheço essas pessoas e não sei a maneira de como elas agem, mas se fosse comigo eu agiria de uma forma que agradasse boa parte do público. Não dá pra agradar todo mundo. Mas eu agiria de uma forma [diferente] para agradar a maior parte do público. Sim, eu agiria diferente, mas continuaria sendo eu. Sem nenhuma atuação. Não sei.
Para os entrevistados, os vloggers, em suas performances, fazem ajustes na forma como se representam e buscam com isso afetar a forma como os espectadores os percebem. A impressão que os entrevistados têm sugere que há um forte interesse de mercado atrelado às performances dos vloggers na razão de agradar o público para se obter lucro. Nesse sentido é possível pensar nessas performances como também atravessadas por performances do entretenimento e performances dos negócios.
Como definir as performances dos vloggers?
Schechner (2012) propõe, em sua teoria, algumas possíveis distinções entre uma performance e outra. No entanto o autor aponta, ao tratar das distinções que faz entre make-believe e make-belief, que essas diferenciações são difíceis de serem determinadas pelo seu caráter fluido e pela facilidade com que as performances assumem novas formas. A essa facilidade soma-se também a possibilidade de mais de uma performance acontecer concomitantemente como já indicada.
A partir das reflexões do autor e das entrevistas pode-se apontar, então, que as performances dos vloggers se apresentam de forma ambígua aos jovens espectadores. Em primeiro momento, os vlogs se mostram semelhantes às interações cotidianas em sua naturalidade, espontaneidade e descuido. Em segundo momento, quando notam os possíveis ajustes que são feitos e apontam a razão pela qual acham que esses ajustes são feitos, os colaboradores notam um segundo aspecto da performances dos vloggers: o mercadológico. Os vlogs são simultaneamente performances do entretenimento, performances dos negócios e próximos as performances cotidianas.
Então para make-believe… é claro que sabemos o que make-believe é… está relacionado com o “como se” de Stanislavski. Se relaciona com as histórias de ninar para as crianças. Você sabe… Vamos fazer make-believe [fazer de conta]. É fingimento. É ser quem você não é. [...] Make-belief é quando essas ações criam um substrato de crença, reforçam esse substrato de crença mesmo que sejam criados. (SCHECHNER, 2012, tradução nossa)No original: “So to make-believe... of course we know what make-believe is... it's related to the Stanislavski "as if". It's related to children's bedtime stories. You know... Let's make-believe. It's pretending. It's being who you are not. [...] Make-belief is when these kinds of actions create a sub stratum of belief, reinforces a substratum of belief even as they are created.”.
No que se refere a distinção feita pelo autor entre make-believe e make-belief, pode-se entender os vlogs como performances que transitam entre um tipo e outro. Sobre essa transição entre make-believe e make-belief aponta que:
Um político especialmente nos países considerados democráticos […] quando um político se apresenta em uma campanha […] esse político está sempre fazendo make-believe [faz de conta]. Eles [os políticos] sabem que o que estão dizendo nas campanhas eleitorais não é real. Eles [os políticos] sabem e nós sabemos que eles foram fantasiados, que foram roteirizados, que foram preparados, que foram ensaiados. É mais rigidamente roteirizado que um filme de Hollywood. Ao mesmo tempo, eles estão apresentando isso na arena do make-belief. Eles querem que você, eleitor, acredite que o que estão dizendo é verdade para o que farão, que essa é a vida real deles etc. e assim por diante. (SCHECHNER, 2012, tradução nossa)No original: “A politician especially in the so-called democratic countries.... when a politician campaigns they... this politician always is making believe. They know that what they're saying on the campaign trail is not true. They know and we know that they have been costumed, they have been scripted, they have been prepared, they have been rehearsed. It's more tightly scripted than a Hollywood movie. At the same time they are presenting this within the arena of make-belief. They want you, the voter, to believe what they are saying as the truth that they are going to enact these things, that this is their true life etc and so forth.”80
A semelhança dos políticos, ainda que o vlogger tenha certeza de que sua performance no Youtube não condiga com a sua realidade vivida, suas práticas em seus vídeos e a forma como se representa reforçam o anseio que tem em ser percebido como o desejado, o que implica alterações de si a partir da transição entre o make-believe e o make-belief.
Considerações finais
Neste artigo buscou-se observar as percepções de adolescentes sobre as performances dos vloggers à luz das teorias da performance de Richard Schechner (2012) e da representação de Erving Goffman (2018). E notar se as características que os entrevistados apontam sobre o que percebem nos vídeos são suficientes para compreender sobre as performances de vlogs.
Flexionando a teoria de Goffman (2018) para as interações vlogger-espectadores - que não são face a face - pode-se entender na figura do vlogger um sujeito que espera ser visto sob lentes favoráveis independentemente de qual seja seu objetivo particular: ganhar inscritos, influência nas redes sociais, fazer parcerias com marcas ou simplesmente exibir-se no ciberespaço.
Pensar os vlogs como performances do ciberespaço demanda entendê-los a partir de um emaranhado de performances simultâneas. Ao mesmo tempo que eles se aproximam das performances do cotidiano, também são performances do entretenimento e dos negócios, afinal “à luz da convergência entre a cultura popular comercial e a participação comunitária que o YouTube representa” (BURGESS; GREEN, 2009, p. 32), o mundo da cultura digital dos vlogs não está dissociado da monetização dos mercados de produção de mídia. Essa característica múltipla que surge ao encarar os vlogs parece justificar a dificuldade de responder perguntas como: Os vloggers são quem são na vida real ou se trata de uma espécie de atuação?
Conclui-se, assim, registrando a intenção de aprofundar algumas discussões aqui tecidas em produções acadêmicas futuras e também salientando que outras áreas do conhecimento muito têm a oferecer a essas discussões, em especial com aportes teóricos dos estudos culturais, das performances em diálogo com a filosofia, sociologia e comunicação.
Referências bibliográficas
BURGESS, J.; GREEN, J. YouTube e a revolução digital: como o maior fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. São Paulo: Aleph, 2009.
CARRIJO, A. J. F.; SATLER, L. L. Performance na comunicação e mediações culturais. In: SATLER, L. L. et al. (Orgs.). Performances, mídia e cinema. Goiânia: Imprensa Universitária, 2019.
DUARTE, Jorge. Entrevista em profundidade. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (Org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. 408 p.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2018. 273 p., 5ª. Reimpressão. Tradução de: Maria Célia Santos Raposo.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. Nova Iorque: Routledge, 2002.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction - Make Believe/Make Belief.Youtube, 17 dez. 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YG6fMnH17GU>. Acesso em: 10 ago. 2020.
STUMPF, Ida Regina C. Pesquisa bibliográfica. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (Org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. 408 p.