Corpos exóticos dissonantes: retóricas visuais e a produção de visualidades.

Autores

Ana Bandeira
Daniel Christino

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Imaginário do corpo dissonante

Seja como eixo de relação com o mundo, como nos afirma Breton (2012) ou como elemento potencializador e também gerador de significados, o corpo transita no lugar e no tempo e desta maneira pode produzir singularidades para diversos atores.

Mesmo em uma dimensão da técnica, como discutido por Breton, como modalidades de ação, sequência de gestos e sincronias musculares, em se tratando de paratletas e atletas, os corpos se apresentam carregados de elementos culturais e, desta maneira, dotados de significados. Breton nos coloca ainda que,

mesmo o corpo sendo uma ferramenta, ele continua sendo o “fato do homem” e depende então da dimensão simbólica. O corpo não é nunca um simples objeto técnico. Além disso, a utilização de certos segmentos corporais como ferramenta não torna o homem um instrumento. Os gestos que executa, até os mais elaborados tecnicamente, incluem significação e valor. (BRETON, 2017, p. 44)

Neste sentido, falar da corporeidade do homem na atualidade nos leva a refletir sobre a sua condição de existência não apenas na dimensão biológica, mas também afetiva, cultural, estética e lúdica. Gonçalves (1994, p. 64), faz uma discussão sobre o Sentido do corpo em Merleau-Ponty e apresenta uma abordagem do sentido do corpo na educação física por meio de uma visão em que corpo e movimento estão integrados na totalidade humana. Ainda no pensamento do filósofo francês, do homem enquanto ser-no-mundo em que “tenho consciência do meu corpo através do mundo..” e “tenho consciência do mundo devido ao meu corpo”.(GONÇALVES, 1994, p.66)

Breton nos inquieta quando afirma que o corpo além de lugar de valor é também lugar de imaginários e de diversas contestações sociais. As relações estabelecidas entre os corpos que se encontram como diferentes sucedem diversas indagações e nos questionam quanto ao próprio corpo. Um corpo idealizado e projetado pela mídia como referencial hegemônico de saúde, força e beleza pressupõe relações estigmatizadas com o que está fora deste padrão.

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Padrões determinados por uma visualidade imposta sobre os corpos mecanizados reforçados por uma cultura da ginástica, do esporte e da racionalização do trabalho, do final do século XIX (MICHAUD, 2006 p.547).

O corpo canônico é um corpo que tem suas origens no corpo medicalizado, higienizado e elevado à categoria de agente de sua própria saúde, corpo este que vem sendo construído paulatinamente, desde o início do século XX. Um corpo construído e encenado em nome da beleza, do prolongamento da juventude e da espetacularização das formas de elementos identitários. (Oyama, 2000, p. 90-94 apud FONTES, 2009).

Para Malu Fontes (2009) estes corpos estariam em uma posição de dissonância, visto que se encontram nos borramentos de uma condição corporal muitas vezes representada pelos veículos comunicacionais, o que, por sua vez, se colocam como elementos que acentuam a angústia do referencial corporal ora tido como expectativa.

O corpo com deficiência, nesta perspectiva, é dissonante, “cria uma desordem na segurança ontológica, que garante a ordem simbólica” (BRETON, 2012, p. 75). É motivo de olhares, suscita atenção e promove deslocamentos mesmo em uma perspectiva social, em que a compreensão é de que a deficiência está no ambiente em que este corpo está inserido. Para Breton, é no local do visível que a deficiência aparente nos lembra da fragilidade humana.
Figura 1: Artista Lorenza Böttner. Artista chilena transgênero, que teve os braços amputados na infância. Na execução de suas pinturas utilizava os pés e a boca como apoio para os pincéis.
Fonte: https://www.documenta14.de/en/south/25298_lives_and_works_of_lorenza_boettner

No entanto, este corpo dissonante está no mundo, é um ser-no-mundo assim como o corpo compreendido enquanto canônico. Ele se locomove, é vivo e ativo nas diversas dimensões corporais. A deficiência física, assim como a obesidade, as questões de gênero e de raça são elementos presentes na diversidade corpórea e podem ser percebidos como uma entre tantas características destes corpos.

Retóricas Visuais

Garland-Thomson (2008), em seu trabalho “The Politics of Staring: Visual Rhetorics of Disability in Popular Photography”, traça um panorama da percepção da pessoa com deficiência na chamada “fotografia popular”, que seria, para a autora, o repertório fotográfico que compõe parte da cultura visual sobre a pessoa com deficiência. No texto, ela propõe categorizar quatro tipos de retóricas visuais dessa fotografia, que seriam os modos como se dão o tratamento a estes, a saber: maravilhoso, sentimental, realista e exótico.

A primeira retórica, a do maravilhoso, se caracteriza como o modo mais antigo de representação da pessoa com deficiência. Define-se a mesma pela “importância dadas às diferenças físicas de modo a provocar encantamento e admiração” (GARLAND-THOMSON, 2008, p. 191). Essa seria, portanto, exemplificada pelos retratos em condições tidas como “normais”, mas que exaltam sua superação (figura 2).

Figura 2: Cena do filme “Ray”, 2004. Conta a história do cantor Ray Charles que, após adquirir a cegueira em um acidente na zona rural, conquista grande fama como exímio artista musical.
Fonte: https://www.legiaodosherois.com.br
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A segunda retórica visual apresentada pela autora seria a da “sentimental”. Ela se apresenta pela produção de uma “vítima simpática ou sofredora necessitado por proteção ou socorro e que invoca a piedade, inspiração e contribuições frequentes” (2008, p.194). Essa retórica é a que orienta para a produção de imagens que apresentam a pessoa com deficiência em contextos de inferioridade em relação aos seus correlatos “normais” (figura 3). Muito recorrente em campanhas beneficentes, tipo de imagem comumente utilizada para angariar fundos para apoio a pessoas com deficiência. Em relação a isso, esse tipo de imagem desperta a prática da caridade, como um modo de saciar uma necessidade de “corrigir” a deficiência.

Figura 3: O homem-elefante, 1980. Com suas roupas “dignas” a personagem é penalizada pela deformidade, pois há um evidente contraste com o cenário sofisticado da cena.
Fonte: https://cinematographecinemafilmes.wordpress.com/tag/o-homem-elefante/

A terceira retórica apresentada pela autora seria a “realística”. Esta, por sua vez, busca uma “relação de contiguidade entre o observador e observado” (2008, p. 198). De natureza mais ideológica, a retórica realística é aplicada para gerar um discurso de igualdade, muitas vezes apresentadas em campanhas sociais e políticas.

Figura 4: Cena do Filme, Os intocáveis, 2011. Tanto a personagem cadeirante, quanto seu amigo enfermeiro aproveitam os prazeres da vida, cada um com suas próprias “limitações”.
Fonte:Gaumont distribuidora

A quarta retórica visual discutida pela autora é a do “exótico”, sendo definida pela mesma, como a apresentação da deficiência como algo “alienado, distante, mais sensacionalista, erotizado ou divertido em sua diferença” (2008, p.197). Seriam as representações da pessoa com deficiência como estranho, para o qual sua deficiência não é algo estranho a si, mas parte de sua própria imagem (figura 5). Sua representação almeja o estranhamento do observador. Enquanto o maravilhoso busca o reconhecimento pela superação, o sentimental o despertar da piedade, o exótico leva à reflexão sobre o que é a deficiência. As imagens publicitárias, particularmente no ramo da moda, têm representado pessoas com deficiência em situações de erotização e de exposição corporal, provocando um discurso não de superação ou derrota, mas de conformidade.

Figura 5: O modelo Alex Minsky, indicado a participar do elenco do filme “Jogos Vorazes 3”. Seu corpo modelado e tatuado evidencia a deficiência como parte de sua singularidade.
Fonte:https://www.lilianpacce.com.br/moda/alex-minsky-modelo-jogos-vorazes//figcaption>

The Body Issue e a visualidade do exótico

Os corpos têm sido protagonistas na produção de visualidades para uma diversidade de segmentos, como por exemplo na publicidade e no cinema e desta maneira caminha na geração da construção de imaginários sobre os mesmos propondo visualidades canonizadas e também dissonantes.

Nesta perspectiva, como elemento de pesquisa identificou-se a Revista de esportes ESPN. que lançou em 2009 uma edição denominada The Body Issue, que vem sendo editada anualmente até os dias de hoje. Em recente documentário comemorativo de 10 anos, “BODY 10: a história e a construção da ESPN Body Issue”, os editores apresentaram a trajetória da publicação e o conceito da linha editorial adotada pela revista. Diferentemente do que imagina o senso comum ao entender que a revista é a apresentação de ensaios fotográficos de atletas nus e seminus, o documentário afirma de forma eloquente que a publicação “É uma celebração única do corpo atlético” e não uma revista de nudez. A proposta visual é de apresentação da forma atlética em movimento e de suas diversas possibilidades de enquadramentos clicáveis. Os editores ainda destacam a importância de terem como fundamento a diversidade que perpassa entre os corpos, os esportes, as habilidades físicas, os desafios físicos e as questões de gênero.

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Amanda Bingson, atleta especializada em lançamento de martelo, em entrevista ao documentário afirma que quando convidada, ficou surpresa e acreditou que estaria nas páginas finais da revista por não apresentar um padrão corporal. (BODY 10, 2017). Pensamento este que ainda reflete a construção do imaginário de um corpo esbelto e retilíneo construído ainda no processo de industrialização do séc. XVIII, que Soares e Fraga (2003), apresentam no artigo: Pedagogia dos corpos retos, como definição “a busca da composição corporal equilibrada estava intimamente ligada ao princípio de retidão do corpo e da rigidez do porte” (p.78). No entanto, posterior à sessão de fotos e toda a repercussão que causou afirma que “cada esporte constrói um tipo de corpo diferente” e que a visibilidade que foi dada ao seu corpo atlético quebra estereótipos.

Figura 6 e 7: Capa: Body 2015, atleta Amanda Bingson, Atletismo: lançamento de martelo, recorde americano. Capa Body 2016, jogador de futebol americano Vince Wilfork.
Fonte:http://www.espn.com.br/infografico/body-issue-archive//figcaption>

Frase esta repetida por outros atletas da revista e percebida na visualidade dos ensaios fotográficos. Uma das editoras afirma que a publicação,

Não é apenas sobre ótimas fotos, não é apenas sobre fotos nuas, e não é apenas sobre o mundo dos esportes, a Body Issue têm sido muito impactante na cultura que rodeia a conversa sobre positividade corporal e o que significa ser confortável na sua própria pele.(BODY 10, 2017)

Nesse sentido a revista não se contradiz, no sumário não há separação editorial de ensaios entre atletas e paratletas, ambos se colocam na mesma situação de representação corporal.

Figura 8 e 9: Fotos do catálogo Body Issue. Imagens das paratletas: Tatyana McFadden, medalhista em atletismo e de Kirstie Ennis, medalhista em snowboard.
Fonte:http://www.espn.com.br/infografico/body-issue-archive/#!sports_paralympics/figcaption>

Corpos valorizados por uma estética relacionada a força, virilidade, potência, desejo e eficiência. Estes corpos que se colocam de maneira dissonante a uma realidade ditada por uma condição de normatividade e normalidade, instigam, impressionam, inquietam e produzem uma visualidade do corpo que apresenta a deficiência como algo que, mesmo fora dos padrões canônicos, despertam o interesse visual. Isso se dá nas representações do corpo do paratleta como dissonante, para o qual sua condição não é algo estranho a si, mas parte de sua própria imagem. Sua representação almeja o estranhamento do observador, denominado por Garland-Thomson como a "retórica do exótico".

As paratletas que participam dos ensaios fotográficos, como Amy Purdy e Sarah Reinertsen afirmam ter orgulho de seu corpo e veem na publicação uma forma de representação não de um corpo deficiente, mas sim de um corpo atlético que tem diversas possibilidades de atuação.

Figura 10 e 11: Atleta Amy Purdy, Snowboarder, medalhista de bronze paraolímpico em 2014. Sarah Reinertsen, Triatleta do Ironman World Championship.
Fonte:http://www.espn.com.br/infografico/body-issue-archive/#!sports_paralympics/figcaption>

A representação do corpo protetizado também faz parte da composição imagética do catálogo. As próteses utilizadas pelas paratletas estão presentes nos ensaios e se colocam como o membro fenomenologicamente percebido.

Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo dos objetos táteis recua e não mais começa na epiderme da mão, mas na extremidade da bengala. [...] A bengala é o apêndice do corpo, uma extensão da síntese corporal. (MERLAU-PONTY, 2018, p. 210-211)
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Estes artefatos que se em dado momento histórico, tiveram como configuração geral apenas a simulação o mais próxima real do membro perdido, se colocam nestes ensaios como soluções que buscam evidenciar os sistemas mecânicos integrados ao organismo permitindo uma caracterização do sujeito com a imagem consagrada do ciborgue.

Esse novo papel desempenhado e articulado por meio de uma visualidade ciborgue, permite incorporar à pessoa com deficiência uma nova identidade social, transitando de uma condição de sujeito estigmatizado para a de um sujeito em que sua expressão evidencia uma "supraeficiência" e, por que não, o de uma humanidade aumentada. Tal mudança de comportamento social viabilizada pela representação do viés tecnológico do ciborgue pode ser entendida como um novo ato performático da pessoa com deficiência que, a partir da audiência do público, gera a construção de um novo imaginário a respeito de sua identidade, o que, para Goffman, é uma construção criada colaborativamente, produzida e reproduzida para apresentação. (GOFFMAN, 1988).

Considerações finais

Enquanto um trabalho orientado à discussão sobre as retóricas visuais no contexto de narrativas publicitárias/artísticas, o trabalho de Garland-Thomson deixa de atentar para duas questões importantes no contexto inicialmente apresentado neste trabalho.

Por um lado, sua leitura se restringe à percepção das retóricas centradas nas condições dos corpos com algum tipo de deficiência física. Neste sentido, como discutido anteriormente, as deficiências se apresentam como uma possibilidade de dissonância, mas não esgotam todas as suas possibilidades. O catálogo “The Body Issue” explicita essa visada, na medida em que mostra corpos, no contexto do atletismo que, embora tidos como “canônicos”, se caracterizam mais como “dissonantes” porquanto não encerram os modelos tão saturadamente representados nas estátuas de mármore gregas dos atletas olímpicos. Assim, outras proporções são possíveis, ainda que caracterizados como “de fora” (exóticos) dos padrões imaginados pela cultura esportiva.

Outro aspecto que o catálogo possibilita à reflexão é a condição de performance intrínseca aos movimentos fotografados. A retórica ciborgue (BANDEIRA, 2015) tem nessa condição um valor, no sentido em que a condição de “supereficiente” é dependente diretamente da realização de uma tarefa não possível sem as próteses. Os movimentos fotografados, reproduzindo práticas esportivas em enquadramentos belíssimos, revelam um ato performático singular, somente possibilitado pelas próteses e determinantes de uma outra construção do imaginário sobre a pessoa com deficiência.

Esses corpos reinventados pela (arte) tecnologia, como afirma Novaes (2009), têm não apenas o elemento do deslumbramento de sua novidade, mas também o fator condicionante de um processo de ressignificação dos mesmos. As próteses, enquanto artefatos corporais, possuem elementos potencializadores de uma nova visualidade para os corpos dissonantes. É na ação performática desta junção cibernética/organismo que emergem os elementos constitutivos que permeiam a reconstrução do corpo.

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De fato, mais do que uma coleção de corpos nus, o catálogo “The Body Issue” apresenta um terreno fértil para uma discussão sobre o imaginário do corpo em suas condições de dissonância e os modos de recepção de uma performance retratada em fotografias.

Referências

BANDEIRA, A. P. N. S. De Monstros a Ciborgues: A Representação da Pessoa com Deficiência na Cultura Visual. In: Anais do International Workshop on Assistive Technology, 2015, Vitória. International Workshop on Assistive Technology, 2015. p. 259-262.

BODY 10: a história e a construção da ESPN Body Issue. Produção: ESPN Magazine. 2017. Bristol: ESPN Inc, 2017. Disponível em: http://www.espn.com.br/watch/player?bucketId=13073&id=f6658f42-c90e-421c-94c2-7911adf96ec8

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GARLAND-THOMSON, R. The Politics of Staring: Visual Rhetorics of Disability in Popular Photography. In.: HIMLEY, M. Critical Encounters with Texts. London: Pearson, 2008.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1988.

GONÇALVES, M. Agusta. Sentir, Pensar, Agir: corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994.

LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2012.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.

MICHAUD, Yves. O corpo e as artes visuais. In: CORBIN, A.; COURTINE, J.J.; VIGARELLO, G. (Org.). História do Corpo: as mutações do olhar: o século XX. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2011. P. 541-565.

NOVAES, Varlei de S. A performance do híbrido: corpo, deficiência e potencialização. In: COUTO, Edvaldo S; GOELLLNER, Silvana V. (Org.). Corpos mutantes: ensaios sobre novas (d) eficiências corporais . 2. ed. Porto Alegre: UFGRS, 2009. p. 165-179. v. 1.

SOARES, Carmen L. e FRAGA, Alex B. Pedagogias dos corpos retos: das morfologias disformes às carnes humanas alinhadas. Pro-Posições. Faculdade de Educação/Universidade Estadual de Campinas, v.14, n.2 (41) – maio/ago. 2003.