Introdução
Assumindo a conectividade como elemento operatório de todo processo comunicacional na contemporaneidade, entende-se o corpo em ação como mediação dos indivíduos para constituição dos espaços – sejam físico e/ou digital – e o contexto de reflexão deste texto, que se formaliza inicialmente no trabalho artístico “vestis” (2005-2012) para pontuar em seguida a série “entretempos” (2016-2018). A fundamentação teórica apresentada implica reconhecer que a realidade técnica está implicada na condição humana, da mesma maneira que as tecnologias derivam dos sujeitos e seus modos específicos de uso, apontando assim a compreensão não dicotômica da relação sujeito-objeto (SIMONDON, 1980), a qual se desloca da capacidade de configuração da forma como representação visual, para a possibilidade de performatividade imagética em suas dimensões múltiplas de objeto técnico e imagem técnica.
13O fato de atuar no mundo implica na construção da realidade, um contexto que se reconhece a partir da dinâmica dos movimentos e gestos corpóreos – comportamentos, que redefinem constantemente as relações espaciais. A percepção dá-se dinâmicamente, pois está relacionada com a ação, isto é, com o que pode ser feito, definindo estratégias – dinâmicas de uso e controle. Toda esta relação territorial termina por imprimir tensões musculares, que, explicitamente, modelam o corpo na sua constituição, criando couraças que significam arranjos de ataque ou de defesa, de distanciamento ou de aproximação, de indiferença ou reconhecimento, conforme a leitura que as pessoas realizam da situação em que se encontram (GAIARSA, 1995). A relação espaço-temporal entre corpos, entre sujeito e objeto, determina uma situação dinâmica – uma composição instável, e o trabalho “vestis” (2005-2012) aborda estes diferentes corpos que se tornam mais distendidos ou retraídos, e inevitavelmente conformados cultural e socialmente.
Ao falar sobre orientações espaciais recupera-se a teoria Proxemics (HALL, 1982), para designar as inter-relações sobre o uso local do espaço pelo homem, enquanto uma elaboração especializada da cultura. Para o autor criam-se zonas proxêmicas - diferentes contornos e limites, elaboradas através de comportamentos sutis e específicos para atuarem em situações distintas de interação, como
espaço informal: íntimo (distância entre 15cm e 46cm que habilita abraços e sussurros), pessoal (distância entre 0,5m e 1,2m que permite o diálogo entre bons amigos), social (distância entre 1,2m e 3,6m que permite o diálogo entre colegas não muito próximos) e pública (distância entre 3,6m e maior usada para discursos públicos) (HALL, 1982, p. 116-124).
As pessoas usualmente ao estabelecerem esses limites configuram um espaço interpessoal - uma bolha invisível, determinada por distâncias confortáveis, enquanto formas de acessar e serem acessados por outros. Este espaço é fundamentalmente relacional e dependente, isto implica em reconhecer que cada indivíduo está constantemente (re) definindo suas distâncias pessoais de engajamento conforme o contexto e as pessoas envolvidas. Cada indivíduo, cultural e socialmente falando, formaliza então suas diferenças construindo espacialidades corpóreas distintas, filtros e formas de mediação dinâmicas com o mundo – pessoas e situações. Conforme Boss (1994), “o envelope corpóreo humano é a interface que apresenta a maneira como nós estamos vivendo, ao mesmo tempo em que constitui a nossa existência em qualquer dado momento”. É possível assumir então que estes espaços relacionais - contornos territoriais, diretamente influenciam os indivíduos e seus comportamentos, e a forma como percebem a si próprios e o mundo.
14“Vestis” (2005-2012)O dispositivo tem uma estrutura composta por quatro tubos de nylon que podem expandir e contrair independentemente, atualizando diferentes formas e contornos a cada momento do diálogo entre participantes e usuário. Esta forma dinâmica é viabilizada por uma montagem telescópica dos tubos, que permite variações de perímetro. Esta variação acontece através de um sistema de fusos flexíveis e roscas internas, acionados por micromotores. Um micro controlador define e controla todos estes movimentos com um software proprietário, que tem como inputs as medidas de distância realizadas pelos sensores, que por sua vez monitoram a presença dos participantes em torno do performer/usuário. O computador vestível aborda poeticamente formas visuais e táteis para ocupar os espaços, evocando um engajamento dos participantes como uma efetiva e afetiva negociação do uso das conexões corporais (PARAGUAI, 2005). mobiliza o espaço interpessoal e modeliza as possíveis transformações quando da incorporação de uma interface tecnológica na composição do envelope corpóreo do usuário (Figura 1). Da mesma maneira em que as informações internas corpóreas ganham forma e expressão, os dados oriundos do espaço físico local são materializados conforme o movimentos dos outros participantes em torno. Monitoradas estas distâncias físicas, formaliza-se visualmente as dinâmicas das relações humanas, estabelecidas na/pela percepção do espaço e do próprio corpo pelo outro. Têm-se assim os limites territoriais do corpo escritos plástica e dinamicamente pelos aros do computador vestível no entorno do usuário, que expandem e reduzem.

Ao pensar o corpo estruturado enquanto forma, delineada por dinâmicas iterativa e dialógica contínuas, retoma-se Gaiarsa (1995, p. 190) quando escreve: “os animais têm formas de ação e formas de inação, formas de relação ativa e de relação passiva com o meio, formas de relação com o mundo e formas de relação consigo mesmos; formas de extroversão e formas de introversão”. Sem a presença física das pessoas entorno, a estrutura de “vestis” mantém-se estática – sem movimento, ainda que potente de transformação. Assim, assumindo a dinâmica de ocupação de corpos e objetos dependente das relações estabelecidas em espaços de negociação, formalizamos o fato de que “nós ‘temos’ um corpo e ‘somos’ um corpo” (TURNER, 1984, apud LOW, 2003, p. 11). A forma constitui-se modelizada por estes “espaços incorporados”, que conforme o autor dá-se pela “orientação espacial, movimento e linguagem” do corpo (LOW, 2003, p. 9). Reconhece-se nesta dinâmica as relações e práticas corpóreas na determinação do espaço, que deixa de ser um container fixo e estabelecido para constituir-se dinamicamente na/pela ação.
Objetos técnicos e práticas do cotidiano
Pensar que toda ação é carregada de intenções de uso dos objetos, tende-se a uma relação instituída por interferências mútuas e constantes: “Homens e técnicas, necessidades e objetos estruturam-se reciprocamente para o melhor e para o pior” (BAUDRILLARD, 2002, p. 133). Compreende-se que as estruturas socio-históricas e as correspondentes modalidades técnicas e funcionais são interdependentes, e para pensar o contexto contemporâneo dos objetos computacionais faz-se necessário validar as ações dialógicas a partir da programação e de seus modelos lógicos, que podem até atualizar dinamicamente as linhas de código conforme os eventos acontecem. Assim, o sistema de práticas torna-se mais complexo, uma vez que a funcionalidade do objeto técnico dá-se em um campo do possível para processar e compartilhar informação.
15Neste sentido, “vestis” (2005-2012) apresenta-se então como um artefato que atualiza formas dinâmicas em resposta às ações dos participantes, ainda que pré-determinadas as variáveis de tais formulações em um intervalo pelo software proprietário. Como diz Claval (apud SANTOS, 1999, p. 172), compreendemos o objeto como “‘informação’ e não apenas movidos pela informação”, que atua em diferentes contextos, físico e digital, para formalizar um evento dialogicamente vivido pelas escolhas do usuário e pelas condições pré-definidas da arquitetura de informação. Para Baudrillard (2002, p. 126), “os objetos tradicionais foram antes testemunhas de nossa presença, símbolos estáticos dos órgãos de nosso corpo. Já os objetos técnicos exercem fascinação diferente ao remeterem a uma energia virtual e desta forma não são mais receptáculos de nossa presença, mas portadores de nossa própria imagem dinâmica”. Nesta condição também se insere este trabalho artístico, que como sintoma da cultura da imagem revela modos e atitudes, enquanto exibe alterações até indesejáveis do corpo, que transfigura limites físicos para acessar e ser acessado.
Neste contexto importa pensar o cotidiano contemporâneo configurado por diferentes existências técnicas, em distintas materialidades e características funcionalidades, que se aproximam nas/pelas compatibilidades para distender relações humanas. O objeto técnico é funcional e também mediador entre estas realidades heterogêneas, que derivam de uma condição sócio-histórica e cultural – e em um movimento de uso e transformação termina por modelizar a produção e nossa percepção espacio-temporal. E deste caráter potente de transfiguração e adaptação, assume-se a tecnologia como dimensão constitutiva da humanidade conforme Simondon (1980) observou
o objeto técnico individual corresponde mais diretamente à dimensão humana. Não há relação de dominação por ele como está na mineração ou em qualquer outra rede. Ele também não o domina, tornando-o uma extensão de suas mãos ou dispositivo protético, como acontece na tecnologia de componentes. Ele não domina nem é dominado, mas entra em uma espécie de dialética (SIMONDON, 1980, p. 9, nossa tradução) “the individualised technical object corresponds most directly to the human dimension. The human individual is not dominated by it as he is in the mining or any other network. Nor does he dominate it, making it an extension of his hands or prosthetic device, as happens in component technology. He neither dominates nor is dominated but enters into a kind of dialectic” (SIMONDON, 1980, p. 9)..
A integração de objetos técnicos no cotidiano implica incorporar práticas e procedimentos, que evocam aprender outros gestos, adquirir diferentes repertórios, romper com padrões comportamentais. Esta idéia materializa-se por exemplo nos/pelos dispositivos móveis, na medida em que projetam o corpo em ato entre distintas referências espaciais e temporais, o que potencializa as situações de ausência e presença do usuário, e não diferentemente de um outro sistema de objetos, também são dispositivos de controle e manipulação contínuos. Situa-se assim, um “objeto técnico” (SIMONDON, 1980) – um artefato funcional quando atua como um vetor de transformação e possível mediador de atos singulares. Um marcador de relações e demarcador de situações, pois para o autor não há dicotomia entre sujeitos e objetos, mas uma implícita organização constituída, operacionalizada e compatibilizada pela tecnicidade. O projeto artístico “vestis” (2005-2012) aborda poeticamente a mediação tecnológica a partir da percepção do espaço informal, e instala no corpo a ação artística enquanto formalização objetiva e subjetiva do fazer.
16Outro argumento deste texto é reafirmar o espaço como “um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações” (SANTOS, 2005, p. 166), conformado pelas convenções ao mesmo tempo que potencializa a invenção de comportamentos. Todo período histórico afirma-se então por uma série de novas técnicas e conseqüentemente por uma configuração de objetos correspondentes – isto implica em padrões e atitudes. A natureza destas realidades tecnológicas problematiza uma integração sistêmica, pois segundo Santos (2006, p. 39), “de um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma”. Novas condições relacionais podem propor outros arranjos espaciais não apenas decorrentes de novas técnicas, mas pela possibilidade de adaptações e mudanças funcionais acionadas pelo uso – o que implica em diferentes atribuições e significados pelos usuários mesmo sem haver transformações físicas.
Na tentativa de compreender o espaço enquanto fenômeno perceptivo, que se constitui pela experiência do usuário, retoma-se Merleau-Ponty (1999, p. 328) quando afirma o espaço enquanto “potência universal de suas possíveis conexões”, nas quais as relações são estabelecidas pelos participantes e suas interferências. E quando se observa a contemporaneidade das ações movidas pela pandemia, constata-se um crescente alargamento dos contextos imagéticos diante da expansão do número e da complexidade das trocas online. Admite-se então a realidade espacial, como um repertório organizado de objetos significantes, social e culturalmente compartilhados, sendo o que determina as diferenças entre um espaço e outro é o que pode ser experienciado pelas pessoas (HALL, 1981). Para Tuan (2011)
A habilidade espacial é essencial para a subsistência, mas o conhecimento espacial no nível da articulação simbólica em palavras e imagens não é. (...) A habilidade espacial precede o conhecimento espacial. Os mundos mentais são refinados a partir de experiências sensoriais e cinestésicas. O conhecimento espacial aumenta a capacidade espacial (TUAN, 2011, p. 74, nossa tradução“Spatial ability is essential to livelihood, but spatial knowledge at the level of symbolic articulation in words and images is not. (...) Spatial ability precedes spatial know- ledge. Mental worlds are refined out of sensory and kinaesthetic experiences. Spatial knowledge enhances spatial ability” (TUAN, 2011, p. 74).).
O autor reconheceu a experiência espacial como um processo de negociação da vida e produção de conhecimento. Diferente dos saberes elaborados de forma icônica ou metafórica, o paradigma cognitivo da enação centra-se na dinâmica sensório-motora - atividades corporais - e apresenta as mediações físicas entre os indivíduos e seus contextos como fundamentais e decisivas para a produção de sentido. Segundo Stewart (2007, p. 90, nossa tradução“without action there is no world nor perception” (STEWART, 2007, p. 90).) “sem ação não há mundo nem percepção”. Para o autor, a ação é um pré-requisito para a percepção; a compreensão do ambiente pode fazer sentido à medida que as ações acontecem. Assim, o conhecimento pode ser entendido como padrões de experiências corporificadas, que necessariamente são cultural e socialmente compartilhados, dependentes diretamente das ações possíveis e suas relações de escala, lugar.
17Assim, o processo de significação implica o reconhecimento de padrões em processos dinâmicos de decodificação e codificação, definidos na/pela cultura, que situam a tecnologia enquanto manifestação estruturada entre objetos e usos, processos e modos de fazer, dispositivos de poder e constituição de saberes, que modelizam escolhas, idéias e atitudes para constituição da realidade (MITCHAM apud CUPANI, 2014). Quando Borgmann (apud CUPANI, 2004, p. 499) reforça a tecnologia como “o modo tipicamente moderno do homem lidar com o mundo, um paradigma ou padrão caraterístico e limitador da existência, intrínseco à vida quotidiana”, admite certa existência ambígua dos dispositivos, pois dependem dos contextos de uso e termina por fortalecer as “práticas focais”“Uma prática focal gera uma atitude inteligente e seletiva para com a tecnologia. Ela conduz a uma simplificação e perfeição da tecnologia contra o pano de fundo do interesse focal da pessoa, e a um uso reflexivo dos produtos tecnológicos no centro da prática da pessoa” (BORGMANN apud CUPANI, 2004, p. 506).. Interessa-nos esta indeterminação dos objetos técnicos, em oposição ao automatismo, pois implica em estruturas não cristalizadas, abertas às transformações, às modificações pelo fazer cotidiano. Evidencia-se então a reciprocidade como operação constituinte da realidade técnico-social, já que o homem adapta-se ao desenvolvimento tecnológico da mesma maneira que a tecnologia formula e encadeia distintos níveis de conhecimento para organizar-se às demandas e forças oriundas da ação humana. Neste diálogo ambivalente entre as configurações técnicas e os possíveis modos de ação, assumimos, conforme Feenberg (2002, p. 79, nossa tradução“The social character of technology lies not in the logic of its inner workings, but in the relation of that logic to a social context” (FEENBERG, 2002, p. 79).), que “o caráter social da tecnologia reside não na lógica do seu funcionamento interno, mas na relação dessa lógica com um contexto social”. E desta condição entendemos a potencialidade das diferenças como ordenadora da realidade tecnológica, que operacionaliza a obra “vestis” e seus modos de conformar, de dar forma à ação do corpo somente possível na/pela sua dimensão social.
Objetos digitais e espaços de habitar
Para compreender os arranjos sociais contemporâneos, considerando inclusive os constrangimentos físicos invocados pelo isolamento social, parte-se da realidade tecnológica apresentada anteriormente, que assume como premissa os concomitantes agenciamentos entre corpo, objetos técnicos e espacialidades - sejam nas dimensões local ou remota, física ou digital. Neste contexto, assumindo o papel hegemônico da imagem técnica na configuração das práticas do cotidiano, sejam pessoais ou profissionais, retoma-se a afirmação de Flusser (2008, p. 82): “o atual isolamento do indivíduo e a atual massificação, esses sintomas evidentes da sociedade emergente, não passam, a meu ver, de consequências dessa circulação íntima entre imagem e homem, graças à qual a imagem programa o homem para que este reprograme a imagem”. O autor coloca urgência em reconhecermos a visibilidade como pregnância destes modelos e padrões técnicos - regras comportamentais dos softwares, que constituem nossa experiência e suscitam as narrativas vigentes.
18Neste texto importa o contexto em redes distribuídas das imagens técnicas, assumindo uma estrutura espacial que dinamicamente atende às demandas e feedbacks comunicacionais dos usuários, pois formalizam um espaço estruturado em fluxos pulsantes. Como afirmam Gordon e De Souza e Silva (2001, p. 97, nossa tradução“information is not just something to consume. One’s awareness of nearby information (and people) can also be a context for performance” (GORDON e De SOUZA e SILVA, 2001, p. 97).) “informação não é apenas algo para se consumir. A consciência das informações próximas (e das pessoas) também pode ser um contexto de performance”. Assim, as práticas sociais tem se constituído pela justaposição de informações visuais e temporalidades diversas, definindo uma condição de múltiplas e simultâneas atividades, que se configuram em sobreposições, em camadas.

[b] Entretempos III na Exposição “Tendências” em 2018 no CIS-Guanabara em Campinas.
A série “entretempos” (2016-2018) parte destas estruturas visíveis para formular, constituir significados, pois como Tuan (2011, p. 164-165, nossa tradução“the art project seeks visibility, as an attempt to give sensible form to the moods, feelings, and rhythms of functional life” (TUAN, 2011, p. 164-165).) escreveu, “o projeto de arte busca visibilidade, como uma tentativa de dar forma sensível aos estados de espírito, sentimentos e ritmos da vida funcional”. Inicialmente, cada imagem capturada é decodificada e dividida em faixas verticais de acordo com os valores de percurso local: distância percorrida e tempo gasto (figura 2) no software proprietário Mobmesh O algoritmo Mobmesh articula ritmos e fluxos do trânsito, criando a partir de cada fotografia uma paisagem, que incorpora características do congestionamento (velocidade do congestionamento, densidade e fluxo de veículos na saída do congestionamento) e são extraídas de webcams urbanas online instaladas em algumas cidades brasileiras como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Recife e Rio de Janeiro. A velocidade dos carros é considerada parâmetro no algoritmo blobscanner, e esses valores determinam o número, largura e repetição dos cortes, que como fragmentos visuais recompõem as imagens em uma vista panorâmica deformada. O uso de padrões evoca um processo de codificação para tornar o conhecimento disponível no sentido de regras possíveis que podem ser aplicadas onde for necessário e, assim, adquire alguma universalidade. Por exemplo, os sinais de trânsito apresentam alguns elementos repetidos e podem fornecer informações sobre a lei e para alertar os motoristas sobre condições inesperadas das rotas (PARAGUAI, ).. E neste processo, a parametrização pela modularidade torna possível a construção de formas complexas e imprevisíveis, conformadas pela justaposição - reposicionamento dos elementos, e pela repetição indefinidamente. Prevalecem assim, superposições e interseções entre imagens e linguagens – fotográfica e computacional, que deixam de demarcar campos antagônicos para compor e evocar outras determinações hierárquicas. Embora ainda aconteça uma leitura horizontal, o sentido não se instala obrigatoriamente em uma ordem – da esquerda para direita ou da direita para esquerda; percebe-se antes, que a horizontalidade ampliada da imagem confronta e agencia a leitura da mesma. As construções visuais mobilizam estruturas e formas gráficas, mas nos interessa pensar a modulação do tempo que se instala enquanto dimensão perceptiva que reorienta os percursos pelo espaço.
19Manovich (2011) reconhece a linguagem computacional e seus elementos nos processos contemporâneos de produção de conteúdo. Não se trata de significados simbólicos ou metáforas traduzidas para o domínio digital, pois para o autor são modos de comportamento e pensamento interligados e modelados pela camada numérica. Assim, como Hayles (2002, p. 24, nossa tradução“an inscription technology because it is possible to produce material changes, read as marks” (HAYLES, 2002, p. 24).) aponta uma abordagem teórica semelhante ao escrever sobre máquinas computacionais e suas texturas, na medida em que o código computacional pode ser contado como “uma tecnologia de inscrição porque é possível produzir mudanças materiais, lidas como marcas”. Esses modelos de criação e produção formal evocam outras atitudes, práticas e metodologias para os processos criativos, importando salientar que não há uma maneira sistemática de prever o comportamento de um aplicativo de software inspecionando-o; na verdade, a única maneira de avaliá-lo é executá-lo. Esta característica não determinística pode produzir resultados não controlados, e assim, a poética valida a incerteza como um processo experimental.
O exercício poético articula a relevância das imagens técnicas nos modos de constituir e como afetam a sociedade em rede em suas construções subjetivas. Nestes processos do fazer, a visualidade, conforme Salles (2003, p. 92) escreve, são considerados “documentos de processo, parecem ter a vocação para o registro daquilo que ainda está em estado provisório”, na medida em que a experimentação da dimensão e escala das imagens em seus modos de apresentação recortam o vivido para estendê-lo e transformá-lo em uma outra experiência.
Estas imagens técnicas constituem-se a partir de arquivos, que tomados como “brechas no tecido dos dias” (FARGE, 2017, p. 14) acionam o cotidiano enquanto potência operatória de construção dos bancos de dados, constantemente atualizados. Operar e escalonar bancos de dados relacionais, e compor com redes distribuídas coloca-se como um paradigma computacional na medida em que trabalha sobre a ideia de fluxo, conectividade e circulação na constituição performática das imagens.
Considerações finais
O pensar a visualidade mediada pelos objetos ou imagens técnicas, explicitadas nos relatos poéticos sobre “vestis” (2005-2012) e “entretempos” (2016-2018), explicitam a contemporaneidade enquanto um pensamento ziguezagueante que não promove diferenças entre fotografia e vídeo, não define contextos entre a condição pessoal ou pública, mas na medida em que “a gente não mais sairá do privado rumo ao público a fim de informar-se, mas será empurrada pelas imagens técnicas até o mais privado dos privados a fim de ser informada” (FLUSSER, 2008, p. 72). Ao compreender a relação entre códigos e visualidades, textualidades e materialidades, assume-se a imprevisibilidade dos modelos de comportamento, em sua dimensão técnica, na configuração dos elementos materiais e conceituais, e simbólicos que constituem a cultura visual. As narrativas se instalam enquanto condição da imagem, que ora se distende entre objetos e espaços, e de maneira ambígua promove diálogos, e define discursos.
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