O metabolismo digital das humanidades

Autora

Lucia Santaella

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É de tal monta o aglomerado de conjunturas, condições, cruzamentos, contradições, ambivalências e até mesmo paradoxos sociais, políticos, culturais e mesmo científicos com que o universo digital vem, cada vez mais, nos desafiando que, para enfrentar qualquer tema que diga respeito à cultura digital, desenvolvi o hábito de buscar raízes, evidentemente não as raízes remotas que nos afastariam do tema, mas as raízes do tema em si, ou seja, quando ele começou a despontar. Assim sendo, é esse fio que será acionado para dar início a algumas ponderações sobre uma questão que tem colocado em alerta tanto as humanidades quanto as ciências humanas e sociais: as humanidades digitais (HDs).

Quando os sinos tocaram

Em meados da década de 1990, quando a Internet comercial estava apenas começando a se estabelecer no Brasil, já estava convencida de que as redes digitais estavam surgindo com força suficiente não apenas para durar no tempo, mas também para crescer e se multiplicar. Entre 1993 e 1995, teimosamente apresentei à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) três projetos coletivos em sequência que visavam à incorporação do digital nos procedimentos da pesquisa acadêmica. Todos os três projetos foram recusados por essa Fundação. Não desanimei e, mesmo sem incentivo, a não ser aquele que, desde 1987, recebo da modalidade produtividade do CNPq para minhas pesquisas individuais, comecei a direcionar minhas investigações para o campo digital e suas repercussões na sociabilidade e psique humana. Desde 1992, publiquei mais de uma dezena de livros sobre os mais variados aspectos do universo digital, especialmente no campo da arte, cultura e suas consequências também para a ontologia e epistemologia da ciência.

Felizmente, os ventos sopraram com mais força na minha direção do que na direção conservadora daquela Fundação, justamente aquela que deveria ter suas antenas ligadas às determinações do presente na direção do futuro. É por isso que costumo dizer que a história se vinga e quem vence é a poesia, neste caso, justamente a poesia do pressentimento relativo aos sopros do presente para o futuro, o que, de resto, na minha modéstia, tenho tomado como guia.

Mais de uma década depois, em 2008, um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia em Los Angeles, como resultado dos Seminários Mellon que organizaram, publicou o "Manifesto das Humanidades Digitais". Em 2009, inseri este manifesto, traduzido generosamente por Renata Lemos Moraes, como parte dos estudos desenvolvidos em uma disciplina de doutorado em Redes Móveis por mim ministrada na PUC-SP. Portanto, este manifesto se tornou muito familiar para mim. Para entrarmos no assunto, vale a pena passar os olhos sobre suas propostas, tendo em vista o pioneirismo delas.

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O manifesto das Humanidades Digitais (HDs)

O manifesto, escrito em 2008, doze anos atrás, portanto, apresenta vinte parágrafos cuja síntese está apresentada a seguir.

  1. As HDs não são um campo unificado, mas sim uma ampla gama de práticas convergentes que exploram um universo no qual o texto já não é mais o único meio exclusivo e normativo através do qual o conhecimento é produzido e/ou disseminado.
  2. É chegado o momento no qual é preciso vislumbrar um futuro imediato onde as possibilidades específicas do meio digital tornam-se a questão central.
  3. A primeira onda foi quantitativa, mobilizando os vertiginosos poderes de busca e compartilhamento da rede. A segunda onda é qualitativa, interpretativa, experimental e até mesmo emotiva, visando inserir nas ferramentas digitais aquilo que representa a força mais fundamental das humanidades: a complexidade.
  4. A interdisciplinaridade/transdisciplinaridade/multidisciplinaridade são palavras vazias a não ser que elas impliquem mudanças de linguagem, prática, método e resultados.
  5. O digital é o campo do aberto: do código aberto, dos recursos abertos, das portas abertas.
  6. Sim, há algo de utópico no coração das HDs: o aberto, o não-fixo, o contingente, o infinito, o expansivo, o não-lugar.
  7. As leis de copyright e os standards IP devem, similarmente, ser libertos da subserviência ao Capital.
  8. Sim à disseminação múltipla e multifacetada do conhecimento humano: nenhum meio exclui o outro. Esta é uma economia baseada na abundância, e não uma economia baseada na escassez.
  9. Complexidade em larga-escala: a necessidade do trabalho de equipe como um novo modelo de produção e reprodução do conhecimento humano.
  10. A cocriação é uma das características originais da virada digital das ciências humanas, devido à sua maior complexidade.
  11. Entre os mais altos objetivos da academia: o entretenimento como trabalho acadêmico. Falar com e para uma audiência.
  12. O processo é o novo deus; não mais o produto. Qualquer coisa que se coloque como obstáculo no caminho da multimídia e da remixagem livres é um obstáculo à revolução digital.
  13. A desdefinição dos contornos da comunidade científica, confinada no passado aos muros da universidade. O campo do conhecimento e da especialização vai muito além destes muros. Não há como conter o conhecimento dentro destes muros. O desafio: construir modelos de criação/compartilhamento de conhecimento que correspondam a esta realidade distribuída.
  14. A wikinomia é a nova realidade social, cultural e econômica.
  15. As HDs representam a integração: a visualização de perspectivas mais amplas através das tessituras do conhecimento específico.
  16. Nas fronteiras das HDs, o entretenimento se encontra com os mais altos parâmetros de qualidade acadêmica de maneira que forjam uma nova audiência trans universitária para o conhecimento humano.
  17. Cuidado com falsos companheiros de viagem: eles vão acenar a bandeira da mudança ao manter a continuidade de sua própria agenda.
  18. Cuidado com os grandes reducionistas: eles vão reduzir tudo relativo às HDs e rotular nosso trabalho com a palavra “só” (é só uma ferramenta; é só um arquivo; é só pedagogia). Eles nunca desenharam software, escreveram código, criaram uma base de dados, ou fizeram o design de uma interface de usuário. Eles só escrevem artigos e livros.
  19. As HDs promovem relações horizontais entre professores e alunos. Uma desdefinição dos papéis de professor e aluno, expert e não-expert.
  20. As HDs representam a prática da pesquisa integrada: uma triangulação de prática artística, crítica e comentário, inclusão, integração entre pesquisa acadêmica, pedagogia, prática e publicação.
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Após essas vinte proposições, o documento trouxe alguns comentários sobre a finitude das disciplinas. Grande parte das disciplinas das humanidades foi fundada para e através do meio impresso (literatura, história, tradução); e o resto das disciplinas valoriza o texto impresso como meio principal de geração e disseminação do conhecimento do seu campo.

Nos anos 1970 e 1980, os estudos feministas, homossexuais, étnicos e culturais abriram as humanidades para questões de abertura e acolhimento social, político e cultural. As Humanidades já não eram mais o domínio absoluto do que se convencionou chamar de “velho homem branco”. Agora, as HDs estão desconstruindo a própria materialidade, métodos e mídia da sua pesquisa e prática. As Humanidades são formações contingenciais que se estabilizaram e transformaram-se em redundâncias culturais nas universidades. As HDs, por sua vez, representam a convergência: não apenas entre disciplinas humanas e formas de mídia, mas também entre as artes, ciências e tecnologias. A ideia é exercitar o pensamento ao visualizar diferentes constelações (não apenas disciplinares, mas também outras configurações de produção de conhecimento que podem ser baseadas em projetos e trabalhos de equipe, colaborativas, abertas, globais, que apelem a novas audiências e instituições).

Por fim, o documento levantou as razões por que as velhas formas de organização acadêmica continuam resistentes, a saber, conservadorismo cognitivo, inércia institucional, o medo de assumir riscos, o sistema de cadeiras docentes que encoraja a repetição de verdades consagradas dentro de uma disciplina ao invés de encorajar a inovação e o risco.

Para evitar tais condições, lança-se a pergunta. Será que é possível imaginar formações disciplinares mais flexíveis, ágeis, contingentes, nas quais alunos e professores trabalhem em “problemáticas de conhecimento” e não em departamentos e disciplinas rígidas, nas quais o conhecimento é produzido e disseminado de maneira realmente multivalente, interdisciplinar, e amplamente consciente de sua própria contingência?

As ciências frente ao assombroso desenvolvimento tecnológico

Considerando-se que as HDs devem ser pensadas no contexto mais amplo das transformações que vêm afetando a epistemologia e a metodologia das ciências em geral, o que se segue abaixo é uma apresentação relativa a essa questão, antes que possamos retornar às consequências que isso traz para as humanidades, na sua transformação em HDs.

Nenhuma novidade científica, tecnológica ou cultural cai do céu como um para quedas. É sempre bom que isso seja recordado para evitar a preguiça do presentismo, de um lado, e o preconceito mal informado, de outro. De uns anos para cá, entramos decididamente na era do big data. Sua emergência é fruto de uma série de fatores que vieram se desenrolando a partir do advento da cultura do computador, que trouxe, entre muitos outros fatores, a crescente mudança de escala de processamento computacional e o agigantamento da circulação de informações na internet.

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A expressão “big data” foi cunhada, em 2005, por Roger Mougalas do O'Reilly Media, um ano depois da divulgação do termo Web 2.0 por Tim O’Reilly. Poucos anos se passaram e, ainda sem utilizar a expressão “big data”, o diretor, Chris Anderson, da revista Wired, no seu número de 16/07/2009, portanto há onze nos, na mesma época em que foi lançado o Manifesto das humanidades digitais, publicou um artigo de teor sensacional sob o seguinte título: “A era dos petabytes: porque mais não é apenas mais – mais é diferente”. A chamada do artigo diz: “Sensores em todos os lugares. Arquivamento infinito. Nuvens de processadores. Nossa habilidade para capturar, armazenar e compreender quantidades massivas de dados está mudando a ciência, a medicina, os negócios e a tecnologia. Na medida em que nossa coleção de fatos e figuras cresce, assim também cresce a oportunidade para encontrar respostas para questões fundamentais”. Vale a pena continuar mais um pouco com o texto para nos darmos conta de seu teor antecipador relativo às subversões que o tratamento algorítmico de dados prometia trazer para a metodologia das ciências.

"Todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis" (ibid.). Assim, proclamou o estatístico George Box 30 anos atrás, e ele estava certo. Mas que escolha tínhamos então? Apenas modelos, desde as equações cosmológicas até as teorias do comportamento humano pareciam ser capazes de consistentemente, embora imperfeitamente, explicar o mundo ao nosso redor. Hoje, contudo, empresas como o Google, que cresceram em uma era de dados massivamente abundantes, não precisam se contentar com modelos errados. Na verdade, elas não têm de se contentar com quaisquer modelos.

Peter Norvig, diretor de pesquisa do Google, ofereceu uma atualização para a máxima de George Box: "Todos os modelos estão errados, e cada vez mais você pode ter sucesso sem eles” (ibid.). Esse é um mundo no qual grandes quantidades de dados e matemática aplicada podem substituir quaisquer outras ferramentas. Esqueça qualquer teoria do comportamento humano, da linguística à sociologia. Esqueça a taxonomia, a ontologia, e a psicologia. Quem sabe por que as pessoas fazem o que fazem? A questão é que elas fazem, e podemos acompanhar e medir isso com fidelidade sem precedentes. Com dados suficientes, os números falam por si.

Como se pode ver, o alvo do texto dirige-se para as preconizadas mutações relativas aos tradicionais modos de se fazer ciência. Ao ser confrontada com dados massivos, a tradicional abordagem para a ciência – levantamento de hipótese, modelo e teste – estava se tornando obsoleta, pois, em lugar dos modelos, dados podiam ser analisados sem contar com as hipóteses sobre o que eles podem mostrar. Números podiam ser lançados nos maiores clusters de computação que o mundo já viu e deixar os algoritmos estatísticos encontrarem padrões onde a ciência não pode.

Além disso, a nova disponibilidade de enormes quantidades de dados, juntamente com as ferramentas estatísticas para mastigar esses números, oferecia toda uma nova maneira de compreender o mundo. O documento terminava com afirmações peremptórias. Correlação substitui nexo de causalidade e a ciência pode avançar mesmo sem modelos coerentes, sem teorias unificadas, ou qualquer explicação mecanicista. Não há nenhuma razão para nos agarrarmos aos velhos hábitos. É hora de perguntar: O que a ciência pode aprender com o Google?

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Escrito há onze anos, naquele momento, o artigo soava extremamente polêmico, não obstante a ciência já estivesse fazendo farto uso de analytics e visualização de dados. É certo que as considerações só levavam em conta um tipo de ciência, ou seja, as ciências empíricas, deixando de lado a reflexão sobre as ciências básicas e, certamente, também ficavam de fora as humanidades. Contudo, o alvo do artigo era tirar o pesquisador da inércia, apontando para o fato de que vivemos em uma época na qual não há mais lugar para a nostalgia.

Em 2010, apresentei esse texto para discussão com pesquisadores do Cenpes, Centro de pesquisa da Petrobrás, quando coordenava o grupo de pesquisa “Cognitus, Novas ferramentas cognitivas para a Amazonia.” Nenhuma reação . Como já demonstrou Peirce, a força dos hábitos, inclusive na ciência, não são fáceis de derrubar. Sigamos no tempo.

A expansão do big data

Em 2015, a expressão big data já começava a correr de boca em boca, especialmente no mundo empresarial e organizacional. Infelizmente, em nosso contexto acadêmico brasileiro, seu uso era incipiente. Convidada para participar de um volume celebratório dos 25 anos do PEPG em Informação e Comunicação da UFRG, retomei o texto acima mencionado e levei a pesquisa sobre big data avante (SANTAELLA, 2016). Minha preocupação no momento era avaliar os impactos na metodologia de pesquisa provocados por essa emergência.

Era preciso lembrar, então, a entrada das metodologias do big data, no campo das pesquisas e suas aplicações nas mais diversas áreas das atividades humanas, o que parecia estar dando razão às afirmações preconizadas por Anderson (2009). Já estava se tornando difícil cultivar dúvidas acerca do fato de que a era do big data havia chegado. Embora parecesse, naquele momento, ser um campo exclusivo dos cientistas da computação, já que são eles os responsáveis pela criação de algoritmos para o processamento e tratamento dos dados, já eram muitas as áreas de conhecimento e prática -- física, economia, matemática, ciência política, bioinformática, comunicação, marketing, sociologia, e outras -- que reclamavam pelo acesso a uma quantidade gigantesca de informação que é produzida e que é indicativa do que fazem as pessoas, de como andam as coisas, de todas as interações entre elas e dos processos resultantes. O que se entendia, então, por big data?

o pé da letra então e agora, big data continua a significar grandes dados, mas uma definição mais acurada nos foi dada por Boyd e Crawford (2012, p. 663), quando o caracterizavam como um fenômeno cultural, tecnológico e acadêmico que se refere ao entrecruzamento de:

  1. Tecnologia: maximização do poder computacional e da precisão algorítmica para juntar, analisar, combinar e comparar grandes conjuntos de dados;
  2. Análise: desenho de grandes conjuntos de dados para identificar padrões a fim de responder a demandas econômicas, sociais, técnicas e jurídicas;
  3. Mitologia: a crença difundida de que grandes conjuntos de dados oferecem uma forma mais elevada de inteligência e conhecimento que gera insights previamente impossíveis, envolvidos na aura da verdade, objetividade e precisão.
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Assim, o campo do big data estava especialmente associado à inteligência e análise de negócios (Business intelligence and analytics) que envolve a manipulação e análise de dados, bases de dados, aprendizagem de máquina, econometria, visualização de dados e assim por diante. Suas aplicações de alto impacto já abrangiam o e-comércio, a inteligência de mercado, o e-governo, os sistemas de saúde e de segurança, os sistemas de comunicação etc. Isso envolvia o monitoramento e análise das mídias sociais, sistemas de crowd-sourcing, games sociais e virtuais, cuja análise implica, entre outras, a análise de redes sociais, análise de textos e da rede e, até mesmo, análise de sentimentos e afetos.

Considerações críticas

Embora as realizações e promessas do big data e dos sistemas de visualização sejam muitas, não faltam autores que elaboram uma reflexão crítica sobre tudo isso. Para Boyd e Crawford (2012, p. 664), a automação dos dados, de sua análise e dos algoritmos, que podem extrair e ilustrar padrões em larga escala do comportamento humano, exige se perguntar quais sistemas estão dirigindo essas práticas e por quem estão sendo regulamentados. Para o mercado, big data é pura oportunidade: marqueteiros o usam com mira na publicidade; provedores de seguro, para otimizar suas ofertas; e os bancos, para ler o mercado. Isso sem mencionarmos as cruciais questões éticas envolvidas. As autoras avançaram ainda mais nos seus questionamentos: o que todos os dados significam? Quem tem acesso a quais dados? Como a análise dos dados é distribuída e com quais finalidades?

Sem deixar de considerar a relevância de todas essas questões, no momento presente, o que mais interessa a este artigo é a discussão dos efeitos do big data na produção de conhecimento e nos métodos pelos quais o conhecimento é produzido. Portanto, cumpre indagar até que ponto o big data ganhará ou não exclusividade sobre quaisquer outras metodologias que se constituem na espinha dorsal da produção de conhecimento, em quaisquer áreas das ciências.

Há cinco anos, as perguntas que me preocupavam eram se o big data poderia levar ao desaparecimento das metodologias e procedimentos precedentes de se fazer ciência e de se prestar serviços. Será que isso poderia significar um estreitamento das opções de pesquisa, alterando o significado mesmo de pesquisa, conforme Anderson (2009) preconizou antes mesmo da explosão da era do big data? Ou será que se trata de uma nova faceta dos procedimentos de pesquisa incapaz de anular outras formas de realização da investigação científica?

De fato, contrariamente, àqueles que defendem que as teorias e seus métodos de fazer ciência tornaram-se inócuos diante do big data, há os que argumentam que teorias e metodologias mais qualitativas continuarão a ser necessárias e a existir. Quaisquer que sejam os métodos empregados, inclusive o método aparentemente poderoso do processamento e análise de dados gigantescos, restam sempre questões a responder, haverá sempre realidades que não foram mensuradas e codificadas. Longe de estimular uma disputa entre dois campos antagônicos, o big data, de um lado, e as teorias e métodos qualitativos, de outro, a complexidade crescente da realidade demanda por atividades colaborativas e interdisciplinares, especialmente em novas convergências, em projetos que sejam capazes de interseccionar o big data e a computação com análises qualitativas. Essa foi a conclusão a que consegui chegar há cinco anos.

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A explosão da Inteligência Artificial (IA)

De lá para cá, entretanto, vem ocorrendo a explosão da IA na qual o big data passou a desempenhar papel indispensável. Não se pode negar que, acionado pelo desenvolvimento tecnológico, o mundo está se transformando em ritmo alarmante de modo que pensar criticamente sobre as mudanças se tornou crucial se não quisermos nos perder nas brumas da desinformação e na teimosia dos preconceitos. Diante disso, buscar compreender o estágio atual da IA vem se tornando uma tarefa a ser enfrentada em quaisquer áreas de conhecimento. Promessas sobre a IA já despontaram em meados do século passado. Mas o desabrochar das pesquisas teve que esperar pela segunda década deste século, quando a IA explodiu e começou a avançar em passos de gigante. Por que explodiu? Eis a questão.

São três fatores pelo menos que respondem aos avanços atuais obtidos pela IA: o aumento do poder computacional, o big data, quer dizer, a disponibilização de um gigantesco volume de dados, e o progresso dos algoritmos. Disso decorrem o machine learning (aprendizado de máquina) e o Deep Learning(aprendizado profundo), que, para simplificar, podem ser explicados como operando com problemas de natureza prática, relacionados a uma tarefa concreta. Estes são apresentados à máquina a qual, graças a uma rede neural artificial, passa a aprender a partir de milhares de exemplos que lhe são dados e que os parâmetros da rede neural vão ajustando, por ensaio e erro.

O que se tem aí é a automatização e expansão de capacidades cognitivas humanas por meio de tecnologias de aprendizagem de máquina e computação cognitiva, avanços recentes que levam ao entendimento e manipulação de dados e conteúdos, sem que a máquina tenha sido programada especificamente para isso. Sem dúvida, os recursos próprios da IA espraiam-se hoje por uma diversidade de atividades humanas, daí sua crescente onipresença. No que diz respeito ao tópico que pretendi colocar em relevo neste artigo, ou seja, à subversão nos métodos indutivos de pesquisa, pode-se afirmar que o texto, então, sensacionalista de Anderson (2009), hoje soa como premonição, uma adivinhação de futuro.

De fato, foi-se o tempo de pesquisas baseadas em questionários aplicados face to face em uma pequena amostra com variáveis determinadas. Hoje, aplicativos já prontos ou encomendados a especialistas podem dar conta, a partir de milhões de dados, de respostas confiáveis quando as indagações são bem direcionadas. Evidencia-se com isso um diálogo entre inteligência de máquina e inteligência humana, antes inexistente. Diante de tudo isso, nem é preciso colocar ênfase no fato de que, tendo as ciências sociais e psicológicas já embarcado nessa nova nau, não há por que imaginar que as humanidades poderiam estar imunes e impávidas diante de tantas mudanças.

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As Humanidades Digitais no seu estado atual

As novas complexidades da condição humana frente ao célere e perturbador desenvolvimento tecnológico, felizmente, colocaram, de uns quatro ou cinco anos para cá, as agências de fomento em estado de alerta. Foi o que aconteceu com a FAPESP ao abrir um edital de e-science para estimular o desenvolvimento de projetos voltados a novas propostas de pesquisa, entre outras, aquelas que tratam de dados volumosos e seu tratamento por algoritmos de big data. É bom lembrar que o atraso na abertura de projectos desta ordem também se deve à pouca importância que as fundações de investigação costumam atribuir às humanidades. Entretanto, quando os sinos batem com mais força, torna-se claro que muito precisa ser feito, e a comum desatenção às humanidades apenas complica a tarefa.

O número mais recente da Revista Teccogs (Revista Digital de Tecnologias Cognitivas) publicou um número temático dedicado às HDs que conta com a participação de especialistas nacionais e internacionais cujos artigos nos ajudam a compreender o ponto de desenvolvimento em que hoje se encontram as HDs.

Para Londogño (2020, p. 15), seria estreito considerar as HDs apenas como se referindo “ao uso de ferramentas tecnológicas de informação e comunicação, aplicadas às disciplinas humanísticas, seja nos processos de ensino e pesquisa, ou de criação e de planejamento social.” Muito mais do que isso, as HDs representam “uma revolução no pensamento humano, a partir das tecnologias digitais”. Desde que o computador se transformou em mídias das mídias absorvendo todas as outras mídias, inclusive o livro, vivemos hoje mergulhados em mídias, dispositivos, plataformas e aplicativos das mais variadas naturezas. As HDs recuperam essa diversidade para aplicações

em processos de investigação nos âmbitos da criação e das ciências sociais e humanas. A intersecção entre dados, informações e tecnologias possibilita promover a ciência aberta, a análise de dados aplicada à gestão da informação georreferenciada, entre tantas outras possibilidades, o que amplia a escala de ação e compreensão e possibilitam as bibliotecas digitalizadas que facilitam cartografias, arquivos e repositórios culturais, além de campi virtuais para processos de formação ou intercâmbio de conhecimento (ibid.).

Ademais, tornando realidade o que estava prognosticado no Manifesto das Humanidades Digitais (2008), a tecnologia ligada a pesquisas “convida à criação coletiva (cocriação), ao estabelecimento de redes e ao desenvolvimento de processos colaborativos que, embora não sejam novos, se potencializam com o surgimento dos meios digitais.” Graças à análise algorítmica de sistemas processuais que se tornou possível graças ao Big Data e aos complexos sistemas de IA, as humanidades abriram-se para a observação de problemáticas complexas, ligadas a questões que afetam o bem estar social.

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Não se pode esquecer que existe uma bidirecionalidade e uma troca entre o fortalecimento que os avanços das ciências trazem para as HDs e, em sentido inverso, estas também têm “beneficiado, com suas novas perspectivas, os múltiplos campos do conhecimento das ciências nas esferas biomédica, bioinformática, nas ciências exatas e naturais, nas ciências agropecuárias, entre outras.” A natureza transdisciplinar das HDs potencializa as disciplinas humanísticas tradicionais, ao enriquecê-las com métodos típicos das ciências, vinculados às esferas sociais.” Isso fica evidente em “processos relacionados ao código aberto, mapeamento, design de jogos, realidade aumentada, análise algorítmica, conhecimento ubíquo, mineração de dados, computação em nuvem, prosa multimídia, cenários transmídia, robótica e inteligência artificial” os quais desterritorializam a prática humanística tradicional ao promoverem “a criação participativa de conteúdos abertos, as redes colaborativas, as cartografias digitais, a análise dos territórios inteligentes, as economias criativas, conectografias rurais, o design e o planejamento, entre outros” (ibid., p. 21).

Diante dessas novas alternativas tecnológicas, o conceito de universidade também passa necessariamente por uma evolução. Na realidade, trata-se de uma pluriversidade, “uma instituição que se transforma, não apenas pelas novas formas de produção de conhecimento, mas principalmente pela velocidade com que esse conhecimento é intercambiado, apropriado e aplicado. (ibid., p. 16).

No seu “Breve guia para as Humanidades Digitais”, após uma apresentação histórica das propostas rumo à implantação das HDs, Burdick et al. (2020, p. 67) chamam atenção para o fato de que, embora as HDs empreguem uma variedade de mídias que vão além do textual, seus comprometimentos principais buscam se harmonizar “com os duradouros valores da tradição humanística: a busca de acuidade e de clareza analítica, a construção de argumentos efetivos, o uso rigoroso da evidência e a expressividade e eficácia comunicativa”. Mas, ao mesmo tempo, as HDs trabalham com conjuntos de dados grandemente expandidos, através das mídias e por meio de novos casamentos entre o digital e o físico, resultando em definições de compromisso com o conhecimento que abrangem todo o sensorium humano.

Hoje são vastíssimos os corpora textuais acumulados desde que a memória computacional se pôs a crescer a partir dos anos 1990. Acionadas por novos recursos informáticos, têm surgido possibilidades inéditas de estudos teóricos, contemplando, também, a modelagem de megadados para organização e classificação dos conhecimentos. Tendo em vista esses novos recursos, Alfonso-Goldfarf et al (2020, p. 26), apresentam um estudo de caso “que se inscreve num marco maior de cooperação internacional, destinado a tornar mais efetiva a pesquisa e o trabalho documental em história da ciência.” Isso pode ser alcançado por meio da elaboração de ferramentas que permitem a localização e reconhecimento de conceitos comuns a grupos de textos pertencentes a grandes bases de dados em e para a história da ciência, assim como a sua mudança em função do tempo, tendo em vista sua indexação e classificação.

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Bastante desafiadora é a proposta de Schöch (2020), no seu texto “Acesso aberto para as máquinas”, no qual o autor reivindica, daqui para o futuro, não apenas que o acesso a artigos científicos seja economicamente aberto, mas que os formatos de publicação também devem ser considerados como fundamentalmente mais abertos, ou seja, “para além do formato pdf como a reencarnação digital do livro impresso, para que o potencial das tecnologias digitais de produção de conhecimento possa ser utilizado da melhor forma possível.” (ibid., p. 99).

Em suma, as HDs estão longe de se constituir em mero modismo ou dernier-cri tecnológico. Elas chegaram para ficar e se transformar. Isso significa que é necessário ligar as antenas e colocar mentes, braços e sentidos à obra, pois pesquisas mantidas em casulos conservadores autoprotetores só podem desembocar em uma obsolescência sem sinais vitais.

Referências

ANDERSON, Chris. Digital Humanities Manifesto. 2008. Em https://www.humanitiesblast.com/manifesto/Manifesto_V2.pdf. Acesso: 02/12/2020.

ALFONSO-GOLDFARB; Ana Maria; GOLDFARB, José Luiz; FERRAZ, Marcia Helena Mendes; SOUZA, Odélcio. Bases conceituais e tecnológicas para a modelagem de megadados em Humanidades Digitais: um estudo de caso em corpora textuais de história da ciência. Revista Teccogs 21, jan.-jun, 2020, p. 25-43.

BOYD, Dana e CRAWFORD, Kate. Critical questions for big data. Information, Communication & Society, 15:5, 2012, p. 662-679.

BURDICK, Anne.; DRUCKER, Johanna; LUNENFELD, Peter; PRESNER, Todd; SHNAPP, Jeffrey. Um breve guia para as humanidades digitais. Revista Teccogs 21, jan-jun 2020, p. 69-98.

DIGITAL HUMANITIES MANIFESTO. Em http://www.wired.com/science/discoveries/magazine/16-07/pb_intro. 2008. Acesso: 20/10/2019.

LONDOGÑO. Felipe. Entrevista concedida a Isabel Jungk. Revista Teccogs 21, jan-jun 2020, p. 12-23.

SANTAELLA, Lucia A informação/comunicação hoje e as consequentes subversões nas ciências. In Epistemologias, comunicação e informação, Waldir Morigi, Nilda Jacks e Cida Golin (orgs.). Porto Alegre: Sulinas, p. 108-126, 2016.

SCHÖCH, Christof. Acesso aberto para as máquinas. Revista Teccogs 21, jan-jun 2020, p. 99-115.