Tecnologia

Autor

Cleomar Rocha

Possui Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (2004), pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP/2009), pós-doutorado em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011), pós-doutorado em Poéticas Interdisciplinares pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Goiás, onde coordena o Media Lab/UFG, o Observatório de Economia Criativa de Goiás e do Núcleo de Tecnologias Assistivas da UFG. É pesquisador visitante na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde supervisiona pesquisas de pós-doutorado e na Universidade de Caldas, na Colômbia, com orientação de doutorado. Tem projetos financiados pela FINEP, MDIC, MCTI, CAPES, CNPq, MinC e FAPEG. É coordenador executivo do Arranjo Produtivo Local em Audiovisual e Games de Goiânia.

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A tecnologia e as bordas do humano

Nada tão humano quanto a tecnologia. Como produto da inteligência humana, a tecnologia, seus aparatos e dispositivos são eminentemente humanos, resultado de uma colaboração sincrônica e diacrônica, em um exercício humano que rasga o tempo e costura a cultura contemporânea, em um bordado complexo. Nesse sentido, forjar uma oposição entre o humano e a tecnologia é inconcebível ou, no mínimo, indefensável.

Estamos corporal e mentalmente vinculados à tecnologia, como uma perspectiva do humano, de sua natureza. Nossas vinculações não se definem em um modelo de oposição, mas de aderência, seja em construções de pensamentos e imaginários, seja na perspectiva de órteses e próteses, físicas ou mentais. Ontologicamente, a tecnologia é parte do humano, de tal modo que não há como desgrudar um do outro. Essa pretensa separação resultaria na cisão do humano contemporâneo, em alguma outra coisa que não o que nos reconhecemos. Seria análogo dizer que nosso filho biológico, sem nossos genes, seria melhor ou pior, quando de fato sequer seria nosso filho biológico. De igual modo, a tecnologia não existe fora do humano, no que não há de se falar em lastro humano da tecnologia - ela é toda humanizada e fora dali ela não é.

A dimensão tecnológica da cultura deve ser considerada, inclusive, como antídoto para a tecnofobia, visto que a tecnologia jamais caminhou fora do humano e, como parte dele, dele não se desvincula. A superação do humano pela tecnologia, enfim, seria impensável, como nos apresentam as tramas ficcionais, mas precisa ser questionada a partir da realidade dos fatos, dessa zona de pertencimento que colocamos em relevo. Nessa abordagem, a superação do humano pelo tecnológico presente na cultura contemporânea é uma perspectiva já evidente. Nossos modos de pensar, resolver problemas e atuar no mundo são , na presença da tecnologia e do ponto de vista de vários aspectos, mais eficientes e eficazes que nos moldes anteriores, com o impacto que se faz ver nas várias áreas de conhecimento e atuação humanas.

Essa acepção da tecnologia como elemento do humano, que pode ser traduzido como cultura, é enfatizado em conceitos como o de pós-humano ou transumano, embora a naturalização da cultura já nos permita apontar para a versatilidade do corpo e da mente, de tal modo que não se trata de uma superação do corpo pela tecnologia, mas de uma outra coisa: a tecnologia como cultura, como parte da condição natural - não de oposição - humana.

As bordas do humano não tangenciam os produtos da cultura, mas ao que ao humano escapa e, justamente por escapar, não ousarei tentar nominar. Já a tecnologia, como conhecimento lastreado na cultura e, portanto, pertencente a ela, está, em verdade, amalgamado ao humano, fazendo-se valer como um aspecto dele e não fora dele.

A tecnologia não está nas bordas do humano, mas justamente em seu centro, ao caracterizar a cultura que nos implica como seres biossociológicos. A oposição entre natural e tecnológico encontra seu ornitorrinco essencialmente na cultura, produto social humano de todos os tempos e naturalmente presente no sujeito contemporâneo. E é ali, na cultura, que a tecnologia se inscreve, indelevelmente, no humano.

Tecnologias em serviços públicos

Há muito, venho reiterando ser a tecnologia um conhecimento e não um equipamento. Essa consciência altera, e muito, como se aborda o tema da tecnologia e, principalmente, como podemos utilizá-la para o lastro social. Tecnicamente a tecnologia é um conhecimento validado pela ciência moderna, lastreada em uma comunidade, normalmente científica. Não é, como pensam muitos, um artefato ou dispositivo tecnológico. Essa percepção faz entender como pode haver a transferência de tecnologia, na qualificação de uma equipe para entender e desenvolver determinados produtos, reconhecendo seu processo. Fosse tecnologia um equipamento, e não um conhecimento, a transferência seria o simples ato de aquisição de um bem.

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O conhecimento da cultura contemporânea define, sem sombra de dúvida, um lastro tecnológico, justamente por configurar a pedra fundamental para as práticas sociais. A sociedade contemporânea é um modelo criado pela ciência, hoje sustentado pela tecnologia - conhecimento científico. A população mundial vive e consome a partir do que postula a ciência, nos vários campos, desde a economia, política, logística, medicina, engenharia, educação, sociologia, enfim, de todos os segmentos sobre os quais se debruçam os estudos científicos. Da vacina aos tratamentos médicos, do cartão de crédito à tecnologia de impressão de cédulas, da comunicação pela Internet à logística de produção e distribuição de alimentos, os padrões de melhoria de performances é a tônica que conduzirá o mundo a uma nova revolução que preocupa muitos, mas que serve de motivação a uma maioria.

Se há, e realmente há, a preocupação com a perda de postos de trabalho em vários segmentos, é sabido que outros tantos postos, em outras áreas, surgirão. Extinguem-se vagas de trabalhos braçais, surgem vagas nas áreas criativas da tecnologia da informação, do entretenimento e do turismo. Se o campo melhora sua performance produtiva com a automação, esse mesmo campo aquece a economia em outras áreas, gerando novos empregos e renda.

Se a tecnologia da informação dinamiza as relações sociais, há de apontar para a otimização, em vários níveis, do setor público com essa implementação. De início, possibilitar abrir processos pela Internet reduz o tempo gasto pelo cidadão, que passa a ir direto à solicitação, não demandando deslocamentos e filas para o atendimento. A impressão de formulários e gastos com envio e recebimento de processos igualmente são eliminados, com economia significativa nesse meio. A tramitação é mais veloz, já que é automática, com possibilidade de acompanhamento, pelo cidadão e pelos gestores, de todo o processo, identificando gargalos que precisam ser eliminados. A transparência é outro fator legitimador do uso de tecnologias voltadas para o social. Uma vez registrados, os dados podem ser conferidos e acompanhados, reduzindo significativamente a possibilidade de fraude, favorecimento ou negligência.

De um modo e de outro, a inserção de tecnologias nos serviços públicos é um avanço não apenas necessário, mas também de todo benéfico para o contexto brasileiro e que resulta, necessariamente, na melhoria dos serviços, na agilização dos processos, na devolutiva social e redução de possibilidade de fraudes e corrupção, justamente pela perspectiva de transparência e visibilidade das ações. A tecnologia é uma emergência contemporânea, também nos campos da política e dos serviços sociais.

Tecnologia na/da educação

A área da Educação tem assistido e protagonizado uma mudança brusca em seu modus operandi: de um lado, viu a Educação a Distância mudar o rumo do ensino superior no Brasil, com milhares de alunos enxergando na modalidade uma alternativa viável para sua formação, atrelado a uma exploração de mercado que cresce exponencialmente. Do outro lado, a área resiste bravamente à implementação de tecnologias do processo ensino-aprendizagem, com um discurso que destoa da prática. Em meio a tudo isso, uma indústria ávida por vender dispositivos tecnológicos e ganhar cada vez mais alunos mina a área, com a oferta de soluções para problemas inexistentes que apenas frustra educandos e educadores.

Enquanto o embate entre discurso e prática se consolida na educação, perdemos a possibilidade de avançar e pautar discussões prementes para a raquítica educação brasileira. Em pesquisa realizada pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit (EIU), o Brasil ficou em penúltima colocação entre 40 países. Em terras de brasa, o índice IRDEB é alarmante, embora tenhamos nos acostumados com médias de reprovação, estampadas nas entradas das escolas e nas secretarias de Educação. Discutir o processo ensino-aprendizagem parece estar obsoleto, já que a cultura educacional, baseada em um modelo copista, não encontra melhor método para copiar, e tampouco possui criticidade, bom senso e competência para buscar soluções para seus próprios problemas. Antes de desatar o nó em que nos encontramos, é mais cômodo imputar culpa ou nos agarrar às tais soluções mágicas de distribuir computadores, colocar uma lousa interativa em sala ou colocar uma câmera para identificar os alunos que chegam ou saem da escola.

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As noções mais modernas de educação apontam para algumas questões-chave, que por si mudariam a perspectiva da aprendizagem. Essas discussões passam ao largo, infelizmente, dos temas debatidos pela área, em seus congressos e similares. Vejamos alguns pontos de interesse.

Não se aprende para fazer, na concepção ultrapassada de que a escola prepara para a vida, ainda que profissional. A escola é vida, e aprendemos fazendo, alterando a realidade que nos circunda. Os estágios são uma pequena amostra de como a inserção no universo produtivo, ao longo da formação, resulta em melhoria de qualidade. Enquanto algumas instituições querem trazer o aluno para suas salas, outras querem mostrar o mundo aos alunos, buscando resolver problemas reais, como ocorre em várias instituições estrangeiras que provocam seus alunos em ações humanitárias e sociais.

Sala de aula é um conceito, não é um local. Esse pensamento implica, embora não haja sinonímia, com a escola peripatética de Aristóteles. Se na Grécia o método incluía caminhar, a moderna noção de sala de aula implica em entender que todo lugar é passível de ser espaço de aprendizagem. Mais que trazer o aluno para a escola, a opção de levar o aluno ao mundo tem se mostrado mais eficaz, com melhor envolvimento do aprendiz em seu próprio aprendizado.

A cidade é um grande laboratório. Se nos anos 1990 as escolas correram para ter seus laboratórios, para pouco depois não saberem muito bem o que fazer com eles, hoje sabemos que a cidade é um grande laboratório, capaz de prover a estrutura e recursos pedagógicos para várias atividades.

O professor não está no controle, jamais, de fato, esteve. O presenteísmo em sala de aula é um problema que se desdobra, culminando na evasão escolar. A falta de sentido não apenas do que é ensinado, mas do modo como o é, é preocupante. A distância que os conteúdos programáticos estabelecem com o mundo do aluno parece ser similar à distância que a escola estabelece com a comunidade, com a sociedade. A revisão dessa realidade é premente.

O uso de dispositivos tecnológicos deve se coadunar com práticas de ensino-aprendizagem que privilegiam as habilidades e competências, tendo o mundo como perspectiva de atuação. Antes de discutir que dispositivo tecnológico usar em sala, será preciso discutir, com a criticidade necessária, que tipo de escola queremos. Trata-se, portanto, de discutir tecnologias educacionais.

Tecnologia e emprego

O impacto da tecnologia no mercado é, sempre, motivo de vários debates e tentativas de acertos, desde a academia até o próprio mercado. Se o objeto de discussão for o emprego, mais aquecidas são as discussões e as posições tendem a se mostrarem opostas, em vários aspectos. O temor de perda de emprego pelo avanço da tecnologia é um fato, embora seja igualmente fato o lugar comum do medo, que pode tornar uma discussão um pouco mais assustadora do que deveria efetivamente ser.

Se, culturalmente, já somos levados a temer a tecnologia, que para alguns apocalípticos destruirá a humanidade, não soa tão estranho que haja listas de empregos que tendem a desaparecer em muito breve. A automação certamente eliminará vários postos de trabalho em todos os países. O Fórum Mundial prevê uma redução de 7,1 milhões de empregos, entre 2015 e 2020, em todo o mundo, principalmente em funções relacionadas a áreas administrativas e industriais. No Brasil, a consultoria McKinsey afirma que cerca de 15,7 milhões de trabalhadores serão afetados pela automação até 2030.

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O que várias pesquisas efetivamente não quantificam são quantos novos postos de trabalho e novas profissões devem ser criados com a tecnologia. Em Israel fala-se em 5 novas vagas de emprego para cada vaga preenchida da área de tecnologia. São pessoas que darão suporte a esses profissionais, cuidando de várias etapas e processos. De fato, se observarmos os últimos cem anos, teremos a certeza de que a inserção tecnológica, pela indústria, fez crescer o número de empregos. Façamos um breve exercício: há 100 anos, em 1.918, a conformação do trabalho no Brasil, e consequentemente de empregos, era basicamente rural, com baixa empregabilidade nos setores que, hoje, são os maiores ofertantes de vagas. Naquele tempo, com o início da industrialização, havia poucas vagas na indústria, com maior número de vagas no comércio e serviços. A informalidade ditava as regras em um país que dava os primeiros passos para a industrialização, com poucas cidades grandes e população maciçamente vivendo em áreas rurais.

Se conseguíssemos fazer o exercício contrário, pensando no ano de 2.118, provavelmente teríamos uma população um pouco menor que o que temos atualmente - o IBGE prospecta que o Brasil atingirá o ápice demográfico em 2042, com redução populacional a partir de 2043 - e com grande mudança de de empregos e profissões. Certamente as máquinas precisarão ser projetadas, mantidas e consertadas. Certamente a cultura e sua produção simbólica manterá seu grau de valor, no que a área de economia criativa tenderá a crescer. Certamente as funções relacionadas à inventividade e à criatividade, mais humanas que as atividades que exigem força, serão ainda áreas da empregabilidade humana. Na ponta oposta, funções que processadores desempenham com mais eficiência tendem a ser eliminadas.

Há uma probabilidade muito grande que robôs e cobôs (robôs que dividem as atividades com o trabalhador) ocupem vários espaços profissionais. Os cobôs (cobots ou co-bots, de robôs colaborativos) devem dividir as atividades humanas, como um processador de texto hoje já aponta e corrige textos, ou um computador de bordo auxilia pilotos e motoristas em suas tarefas. A integração, e não substituição, é um caminho mais sensato para o futuro que inventamos.

As faixas etárias também tenderão a definir atividades profissionais. Se o mundo envelhece, os empregos já dão sinal de envelhecimento ou início tardio. Há alguns anos, os casamentos eram feitos, em maior parte, com casais de menos de 20 anos de idade. Atualmente, a faixa etária de noivos está um pouco mais velha, como ocorre, igualmente, com a saída dos filhos das casas dos pais e do início da vida laboral.

O mundo do trabalho se mantém tão dinâmico e inventivo como sempre o foi, com um gosto especial pela mudança e pela inovação, como ocorre em nosso tempo. Preocupar-se com a relação tecnologia e emprego, como se um eliminasse o outro, é esquecer que as demandas tecnológicas cumprem uma função específica de bem estar social. Mais que isso, a tecnologia é uma invenção humana, tal qual o futuro, que inventamos a cada dia.

Com certeza teremos uma mudança drástica nas condições de emprego para os próximos anos, vinculada à tecnologia e à automação. E isso é tão certo quanto a de que nós, humanos, inventamos o futuro e saberemos dosar bem essa relação de emprego e sobrevivência. A economia é uma ótima ferramenta para isso: se não houver empregos, não haverá renda, fato que eliminará mercados e sepultará os avanços tecnológicos, que precisam de mercado para permanecerem.

Mas antes de se acomodar na relação ecossistêmica entre tecnologia e emprego, será preciso entender que nossa sociedade é um modelo criado pela Ciência e mantida pela tecnologia. Com isso, o avanço é um pedágio necessário, na via que nos conduz ao futuro. Negligenciá-lo significa retroceder. Isso significa que novas profissões surgirão, novas habilidades e competências já sinalizam para o que há de vir. Se taxistas e motoristas de aplicativos encontraram seus nichos no mercado, saindo das páginas policiais dos sites, é imperativo que se abra espaço para o novo, para as novas realidades que estamos construindo.

O futuro não eliminará empregos. Eliminará profissões, como é natural desde todos os tempos. E as compensará com novas profissões, surgidas com a tecnologia e com a automação, com a própria evolução histórico-social. E disso não há de se ter medo e sim preparo. Estamos criando, a cada dia, novos cursos e capacitações, em ritmo de educação continuada. Pesquisas apontam para novas profissões, para um novo mercado, para novas práticas sociais. O mundo, seja o do trabalho ou o todo, não para.

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Mobilidade e tecnologia

As cidades mantêm uma estrutura de terminais integradores de transporte coletivos, normalmente pontuando as linhas centrais ou demandando malhas que saem e chegam desses pontos. Essa lógica é a mesma utilizada para transportes aéreos. Os pontos de conexão das linhas criam as integrações, nos terminais, possibilitando que os usuários façam a troca de ônibus e alcancem seus destinos. Como em malha aeroviária, algumas conexões são quase surreais, face aos deslocamentos pouco produtivos que, por vezes, obrigam o passageiro a cruzar a cidade em busca de uma conexão, por conta das rotas escolhidas.

A solução ensinada por alguns países é uma mudança de pensamento: ao invés de bilhetes para um trem ou ônibus, se compra um bilhete de deslocamento, com validade restrita a determinados lugares por determinado tempo, usado para todos os modais: barcos, ônibus, trem ou metrô, com possibilidade de integrações entre zoneamentos das cidades ou entre cidades. Essa mudança provoca um rearranjo do sistema, possibilitando que os pontos de integração sejam definidos pelo usuário e não pelo sistema.

Em uma cidade inteligente, o sistema poderia responder do seguinte modo: o usuário define um ponto de saída e um ponto de chegada. O sistema definiria trechos mais rápidos e eficientes, com possibilidade de uso de várias linhas de ônibus e com integração em qualquer ponto e o valor da tarifa observaria a distância percorrida, e não a quantidade de ônibus e linhas utilizados. Isso, por si, resulta em uma lógica quase banal: percursos curtos são mais baratos que percursos longos. Também impacta no tempo de deslocamento, visto que o usuário poderia definir onde prefere realizar a conexão com outras linhas, sem ter de ir até os terminais, ainda que para isso devesse atravessar uma rua ou caminhar uma quadra. Os deslocamentos e usos dos serviços resultariam em uma otimização da frota, visto que vários passageiros fariam conexão em outros locais que não os terminais - que poderiam, inclusive, não ter serventia nesse contexto.

E todo esse fluxo pode, desde já, ser organizado por sistemas computacionais e acessados por smartphones e totens localizados nos pontos de ônibus. O usuário teria a facilidade de organizar seu deslocamento, comprar seu ticket e validá-lo pelo próprio celular, em tecnologias já disponíveis, em uma experiência personalizada, rápida e acessível.

Ainda que não tenhamos tecnologia para melhorar o serviço de transporte público em nossas cidades, será preciso enfrentar um problema que se agrava e coloca em risco o direito de ir e vir do brasileiro. As empresas alegam prejuízos financeiros e não tem conseguido atender a demanda a contento, sendo alvo de críticas regulares de seus usuários. E a tendência é o enfrentamento de situações cada vez mais difícil, com a redução de usuários e o crescimento das cidades, demandando cada vez mais linhas, para lugares cada vez mais distantes. Se a conta já não fecha, o futuro aponta para o estrangulamento do setor, que sobrevive com subsídio público, a um custo alto bancado pelo contribuinte.

Mobilidade é um dos temas que exigem criatividade e determinação do poder público, que deve propor soluções e não medidas paliativas. A eterna gangorra entre tarifação e serviço merece ser observada com mais inteligência por nossos governantes, já que em anos não conseguiu nada além de alterar lados de uma disputa que sequer deveria existir, entre as empresas prestadoras do serviço e os usuários. Oxalá podemos compreender que os usuários dependem desse serviço e de igual modo o serviço depende de seus usuários, o que forma uma interdependência que poderia resultar em desenvolvimento e bem estar, e não em rotas de colisão.

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O que vemos e o que nos olha

Quando George Orwell, em seu romance de 1984 (publicado pela primeira vez em junho de 1949), usou o termo Big Brother (grande irmão) para definir o controle exercido a partir de câmeras de monitoramento, certamente ele não profetizou a teia complexa que atualmente se constrói sobre tais sistemas. No romance, o “grande irmão” era ferramenta de controle, um panóptico do regime totalitário a perscrutar desvios, inclusive de pensamentos, dos trabalhadores, visando o pleno exercício e manutenção do controle.

Em tempos contemporâneos, os sistemas de monitoramento por câmeras, ainda que possam ser considerados primariamente para o exercício de controle, servem também a outros interesses, indo das Artes à Sociologia, da Ciência da Computação à Engenharia de Tráfego. Mesmo que a função seja o monitoramento, tais imagens se prestam a um cem número de finalidades, visto que elas se abrem não apenas para quem exerce o poder, mas também a desviantes, com interesses na compreensão, na análise ou até mesmo no simples deleite da imagem. Mídia que é, o sistema é meio, cujas finalidades dependem menos dela e mais de quem as usa. A imagem videográfica, legado do século XX, se lastreia pelas cidades, e não só nelas, com grande intimidade. As câmeras são posicionadas de todos os lados e acima, em uma visão privilegiada, quase onipresente.

Às câmeras, mais recentemente, foi adicionado um sistema de reconhecimento de padrões, como um cérebro ligado a um olho. O sistema passa a reconhecer padrões de comportamento, fluxos, direções, cores, objetos e pessoas. Do seu processamento, surgem informações diversas, parametrizadas para a segurança e para outras ações. O sistema reconhece, por exemplo, colisões, quedas de pessoas, objetos deixados em algum lugar, consegue acompanhar automóveis e pessoas pela cidade, integrando imagens de várias câmeras. Pensado como uma ferramenta voltada para a cidadania, os sistemas e as câmeras podem ajudar na agilização de soluções de trânsito, no monitoramento de idosos e crianças e na prevenção de ações terroristas, dentre as diversas possibilidades. De outro modo, podem gerar também multas por condutas indevidas em vias públicas e mesmo para finalidades de controle, a partir de identificação de pessoas.

As câmeras já são usuais em condições de baixa competência visual humana, como ocorre em ações noturnas, muito rápidas ou muito lentas. No esporte, as câmeras são imprescindíveis para decidir primeiras colocações e infrações, sendo usadas não apenas para dirimir dúvidas, mas também para compreender movimentos e transmissões para todo o planeta. Nas observações de animais de hábitos noturnos, na desaceleração de movimentos rápidos e na aceleração de movimentos lentos ou sequências sem movimento. As imagens videográficas nos olham pelas cidades, nem sempre acompanhadas pelas placas informativas de “sorria, você está sendo filmado”.

Na segurança, atualmente, o que se nota é que as imagens são usadas tanto para coibir infrações, como para punir culpados, como nos recentes casos de assassinatos do turista argentino Matias Sebástian Carena, de 23 anos, atingido por um soco no Rio de Janeiro, e do ativista paraguaio Rodrigo Quintana, baleado na cabeça dentro da sede do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), em Assunção. Nestes e em tantos outros casos, é inegável a relevância do sistema para a segurança, ainda que possa ser também para o controle estadista, como romanceou Orwell.

Longe de apaziguar as discussões sobre controle e segurança, os sistemas de monitoramento seguem sua escalada como uma ferramenta de auxílio de ambos os temas, provocando mudanças, inclusive de comportamento nas cidades. Ao se enxergarem sendo vistos, monitorados, os cidadãos tendem a comportamentos mais ordeiros. Em casos de infração, as imagens reduzem a possibilidade de relatos ficcionais.

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As câmeras e os softwares de reconhecimento de padrões talvez não alcancem a antecipação de crimes, como ocorre no filme Minority Report, de 2002, mas talvez possam continuar tendo outras finalidades, como servir de janelas para o mundo, como a câmera usada por Raymond Dufayel, o homem de cristal, do belíssimo O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, filme de 2001.

Uma cidade laboratório

A sociedade contemporânea é uma invenção da Ciência. Ela só se consolidou enquanto modelo e só se mantém graças ao que a Ciência já inventou, e cria uma demanda constante de novas invenções. Energia elétrica, tratamentos de saúde, técnicas de produção, escoamento e consumo de alimentos, métodos de deslocamentos... é um número quase sem fim de procedimentos que sustentam nossa sociedade, todos eles fundamentados e sustentados por modelizações da ciência.

A própria tecnologia, entendida como conhecimento de técnicas cientificamente comprovadas, deve à Ciência sua existência. Os modelos de produção, circulação e consumo de informações e a conversão de quase tudo em informação têm na tecnologia seu sustentáculo. Toda a movimentação financeira e informacional que sustenta o fluxo de decisões, pessoas e processos segue a dinâmica dos sistemas tecnológicos, desenhados pela Ciência, formando vias vicinais da sociedade, servindo de termômetro para decisões e comportamentos, além de apontar os vetores de demandas para novas prospecções científicas. O modelo sustenta o número recorde de pessoas no planeta, transformando a sociedade em períodos cada vez menores, em um contínuo movimento de aceleração.

As empresas de tecnologia avançam e alavancam os setores produtivos, invertendo, inclusive, o movimento de transferência tecnológica: atualmente, as empresas de ponta avançam mais velozmente que as instituições acadêmicas. Em terras brasileiras, os estudos acadêmicos por vezes ficam para trás das novidades de mercado, que já se habitua a contratar doutores e mestres e a terem suas equipes de pesquisa, gerando patentes e desenvolvimento. Em países desenvolvidos, as empresas lideram o ranking de patentes há alguns anos.

Todo esse contexto gera uma realidade cada vez mais evidente: os melhores laboratórios não estão em centros de pesquisas, mas são as cidades, com toda a complexidade e dinamismo que, em laboratórios, precisam ser simulados. A perspectiva real de testes e validação de soluções tecnológicas encontra o terreno mais fértil justamente nas cidades, tidas como laboratórios a céu aberto. As cidades oferecem o contexto ideal para validação de novas soluções, sejam produtos ou serviços, em suas várias vertentes: viabilidade técnica, econômica, impacto social, adesão popular e outras, com a vantagem de agregar o valor do crivo popular e de especialistas em gestão municipal, a partir do acompanhamento que o executivo realiza, ao longo da aplicação dos testes de validação.

Em terras goianas, Aparecida de Goiânia sai na frente, com a aprovação de uma Lei que regulamenta a realização de testes de soluções inovadoras e de interesse social. A Câmara Municipal de Aparecida de Goiânia aprovou, no último dia 6 de março, essa importante ferramenta que cria no município o conceito de cidade laboratório. A Lei compõe os projetos de conversão da cidade em uma cidade inteligente, marca da atual gestão, que divide águas e lança a cidade rumo ao futuro. Ao disponibilizar a cidade para a realização de validação de produtos e processos inovadores, a cidade cria condições de atração de empresas de todo o mundo, empresta seu nome para tais validações e fomenta o fortalecimento de suas empresas, no apoio imprescindível do setor público para as iniciativas privadas. Para além de cobaia, o município ganha ao conhecer e testar as soluções tecnológicas que acompanha, resultando em ampliação de repertório e melhores possibilidades de contratação posterior. Mais ainda, atrai investimentos e empresas, que podem abrir seus departamentos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Aparecida, facilitando os testes finais de validação pública de seus processos e produtos.

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Se as cidades são os novos laboratórios, Aparecida dá um passo importante para firmar-se como um dos primeiros municípios brasileiros a enxergar esse futuro e, mais que isso, a trazer o futuro para perto de si, de seus cidadãos e das empresas que são atraídas pelas possibilidades de validar produtos, com o selo de qualidade de uma cidade que tatua em sua pele o signo da inovação.

Mercado e inovação

No mundo, as empresas são responsáveis pelo maior número de registros de patentes, índice utilizado para quantificar a inovação. No Brasil, os Institutos de Ensino e Pesquisa e o Governo são os maiores responsáveis pelas invenções, seja de produtos, processos ou métodos, com 77% do total de pedidos de registros, em 2016. Poderíamos nos gabar da eficiência de nossa pesquisa institucionalizada, se a verdade dos números não fosse vergonhosa para nós. Somos responsáveis por apenas 0,2% da inovação no mundo, segundo dados oficiais da Organização Mundial de Propriedade Intelectual, a OMPI. Em números absolutos, a Petrobras supera as universidades no Brasil, ainda que o conjunto de inovação brasileira represente um décimo do poder de inovação de uma única empresa mundial do ramo de tecnologia.

Essa posição vexatória é resultante de um conjunto de fatores, como a dificuldade de se registrar patentes - no Brasil a média é de 10,8 anos para obter um registro, enquanto nos EUA a média é de 2,5 anos -, a vocação brasileira das universidades, que não tem foco em pesquisa; e mesmo a posição do mercado, com baixos investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação. A presença de mestres e doutores em empresas é uma novidade no Brasil, assim como a existência de setores dedicados à pesquisa e inovação. Grandes empresas, como a Petrobras, mantêm pesquisadores em seus quadros, embora seja mais exceção que regra. As articulações entre universidade e mercado igualmente carecem de melhoria. A despeito das investidas do Sistema S, que criou faculdades para efetivar essa aproximação, da FINEP e várias outras instituições que fomentam a articulação entre universidade e empresa, ainda vigora uma baixa proximidade entre as áreas.

Se por um lado é ainda comum ouvir professores universitários declararem seu desprezo pelo mercado, não enxergando que ele próprio vive e produz em e para um mercado, do outro lado empresas se queixam do baixo pragmatismo dos doutos professores e da produção despreocupada tida nas universidades, distantes ainda com as necessidades sociais, que ultrapassam conceitos teóricos.

Em pesquisa recente, a CNI - Confederação Nacional da Indústria - identificou que os altos custos de manutenção de áreas de P,D&I nas empresas, aliado ao tempo delongado de produção de inovação, tornam praticamente inviáveis, fazendo com que as empresas não invistam em equipes próprias. Somente grandes empresas de base tecnológica conseguem tal manutenção. A alternativa, de fato, seria o aproveitamento das universidades, com seus centros de pesquisa e laboratórios, além de seu quadro de professores pesquisadores e de pesquisadores em formação, os mestrandos e doutorandos. Nesse arranjo, os ganhos de uma e outra partes são notórios, como se verifica em ecossistemas nos Estados Unidos, Europa e Ásia.

A articulação entre universidades e empresas visando inovação não é mais uma questão de estratégia. É questão de sobrevivência em uma sociedade do conhecimento.

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A tríplice hélice da inovação

Desenvolvida por Henry Etzkowitz e Loet Leydesdorff, a abordagem chamada tríplice hélice parte da premissa de que a inovação é dinâmica e sustentável a partir da articulação entre três atores sociais: a universidade, a iniciativa privada e o poder público. O argumento considera a sociedade contemporânea, que se sustenta com base nos avanços da ciência e da tecnologia. Pensar o mundo contemporâneo é pensar em como a ciência construiu um modelo de sociedade, tendo o conhecimento como elemento propulsor dos ecossistemas sociais existentes.

O cotidiano de todos nós considera um modelo de inter-relações e interdependência, com produção e circulação de bens e serviços, sendo esse fluxo a sustentação da vida moderna. Sem as invenções e descobertas científicas não teríamos a manutenção do modo de vida atual, desde a base da pirâmide de Maslow, com o atendimento das necessidades fisiológicas, até o ápice da pirâmide, com as duas categorias que vieram após sua disseminação: as necessidades cognitivas e as estéticas. Tratamento e distribuição de água e esgoto, produção de alimento e peças do vestuário, vacinas e tratamentos de saúde, dentre outros, compõem as necessidades básicas humanas e são operadas pelas lógicas das ciências, desde o melhoramento genético, combate a pragas, vacinas, logística de distribuição, modelos econômicos, enfim, toda uma rede que possibilite que tenhamos bilhões de pessoas no planeta, com atendimento de suas necessidades - ainda que haja comunidades não atendidas plenamente.

Na outra ponta da pirâmide, a ciência, promotora do avanço tecnológico, organiza sistemas econômicos, atividades de autorrealização, como as atividades voltadas para o lazer, para a arte e para a cultura, além do próprio avanço da ciência e da tecnologia, como pressupostos da realização das necessidades cognitivas. O modo de organização social contemporâneo é regido pelo signo da ciência.

Em sendo assim, o modelo da hélice tripla, ou tríplice hélice, observa os principais atores que conduzem ao desenvolvimento dinâmico da sociedade, ao articular universidades, empresas e governos, em práticas colaborativas. As universidades, como promotoras do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, gerando transferência de tecnologia e spin-off (quando algo deriva de um elemento primeiro, seja produto, empresa ou modelo de negócio); as empresas, ao empreenderem modelos de produtos e serviços derivados dessas transferências tecnológicas, levando produtos e serviços de melhores performances para a sociedade; e os governos, ao regularem, pelas políticas públicas, os avanços e legislação pertinentes para que os novos modelos se consolidem, além de fomentar tais ações.

A abordagem da tríplice hélice reflete a organicidade do ecossistema das modernas sociedades, onde a inovação tem forte relação com a pesquisa e o desenvolvimento. No Brasil, sua implementação ainda depende da superação de modelos baseados em feudos, seja nos governos (feudos políticos), nas universidades (feudos acadêmicos) e mesmo nas empresas (feudos de capital). Algumas cidades, como Curitiba, Recife e Florianópolis, estão um passo adiante nessa direção. A organicidade desses atores funda a dinâmica que mantém o ritmo da inovação, desde que a relação harmônica seja o desejo e o empenho de cada uma dessas hélices. Juntas, essas esferas de atuação criam o círculo virtuoso do desenvolvimento econômico sustentável e socialmente responsável.

Ecossistemas de negócios

Popularizado por James Moore em 1996, a expressão ecossistemas de negócios explora uma característica cada vez mais relevante para o universo corporativo: as interações entre os vários atores de uma cadeia produtiva, que geram não apenas cooperação e interdependência, mas uma rede complexa de vinculações. Esse ecossistema estabelece um ciclo virtuoso de agregação de valor ao negócio, fortalecendo todos que dela participam.

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Em um universo complexo e competitivo, o pertencimento a um ecossistema pode ser definidor entre se manter no mercado e estar fora dele. As alianças estratégicas, antes tidas entre um e outro parceiro, agora refletem toda uma cadeia produtiva, formando um ecossistema. Aqui já não há a preocupação da porta para dentro, característica do modelo da empresa que opera na fabricação de seu produto ou oferta de seu serviço. Em um ecossistema, todos observam para toda a cadeia, nutrindo todos os atores e fortalecendo toda a engrenagem.

Observando as novas empresas, que praticam a inovação aberta, é fácil verificar como elas se aninham em ecossistemas, base de seu processo. AirBnB, Uber e YouTube, para citar alguns exemplos, elaboram intrincados modelos de negócio que incluem fornecedores, usuários, aplicativos, sistemas, marketing e até mesmo produtores, para que seus negócios se mantenham. AirBnb aluga mais quartos que qualquer hotel e não possui um hotel sequer, nem mesmo um quarto. Uber é a maior frota de automóveis do planeta sem ter uma frota própria. YouTube tem a maior quantidade de vídeos em seu acervo, mas não produz qualquer vídeo. Esses negócios se fortalecem pelo ecossistema que conseguem organizar.

Nesses ecossistemas, a estrutura é dinâmica e a noção do negócio é compreendida por todos. O fornecedor, que oferece quarto, carro ou vídeo; a empresa em si, que organiza toda a cadeia, inclusive o sistema tecnológico; o cliente, que pode ser fornecedor e, ao avaliar o uso, auxilia na credibilidade do serviço; as lojas digitais, que distribuem os aplicativos; o marketing e a mídia, de todos os integrantes do ecossistema, desde a balinha e a água fornecidas como brinde ao cliente, até a campanha que faz variar os custos baseados na demanda em tempo real; os órgãos públicos, que regulam as atividades de interesse público; as universidades, que produzem pesquisa e tecnologia para incrementarem o modelo de negócio, serviço e produto; enfim, uma teia complexa em constante movimento, interdependência entre os seus atores, gerando a consciência de que se um ganha, todos ganham, se um perde, todos perdem.

A conectividade é base para esse modelo de parceria corporativa. A cadeia produtiva se consolida como organismo dinâmico, compreendendo seu papel na organização complexa do negócio. Arranjos Produtivos Locais - APLs - e a articulação entre universidades, poder público e iniciativa privada são modelos consolidados de formação de ecossistemas. Os parques tecnológicos e industriais, quando trabalham na perspectiva de ecossistemas, produzem inovação e mudança, agregando valor aos produtos e processos, além de criar oportunidades para novos integrantes.

Mais que modismo no universo corporativo, os ecossistemas de negócios são a consciência da organicidade social, no estabelecimento das interações que rumam para a emergência dos mercados e para a premência da inovação.

Gasto ou investimento: o canto da sereia tecnológica

A aquisição de hardware e software pode representar um bom investimento, mas pode indicar um gasto descabido, dinheiro jogado fora. Tudo dependerá do que motivou a compra e como esse bem será efetivamente usado.

Em um primeiro momento será preciso dizer que a tecnologia é, em si, um problema, portanto requer investimentos continuados. Sua dinâmica requer constantes atualizações, manutenção e mesmo substituição das versões, o que representa dizer que a tecnologia cria uma dependência. Uma vez habituado com ela, não há retorno, somente a perspectiva de uma nova solução, com nova tecnologia.

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Um erro bastante comum é a aquisição de bens tecnológicos baseada na oferta e não exatamente em uma função ou necessidade que será suprida. De computadores para jovens a grandes compras de políticas públicas, quando não se sabe o problema que o aparelho solucionará, a aquisição será o problema que falta, e não a solução.

Como secretário municipal, tenho recebido inúmeras empresas com propostas mirabolantes de soluções em hardware e software para prefeituras. Aos menos avisados, a proposta soa sedutora, com perspectivas de implementação e solução muito positivas. Para pessoas menos inexperientes, algumas “soluções” são quase gracejos, visto que de solução não apresenta nada. Antes instala alguns problemas.

Ferramentas de BI (Business Intelligence), por exemplo, dependem de uma série de dados que devem ser inseridos, manual ou automaticamente. Caso inexista o sistema e o método de alimentação de dados, o BI não terá serventia alguma. Dito de outro modo, sem os dados, não há possibilidade de uma ferramenta de visualização tornar-se eficiente. Adquirir uma ferramenta assim, sem ter todo o sistema integrado, é gasto desnecessário, dinheiro jogado fora. Do mesmo modo, comprar um equipamento de alta performance para escrever artigos e navegar na internet equivale a alugar um andar inteiro de um hotel para usar apenas uma cama.

Estabelecer conexão da população com o serviço público, visando melhoria do atendimento, depende mais da eficiência do serviço que da ferramenta de comunicação. A tecnologia, nesse caso, é ferramenta, e não solução. Isso quer dizer que a tecnologia precisa, necessariamente, estar inserida em um contexto em que a dinâmica da comunicação ajude a prestar o melhor atendimento, mas de modo algum a ferramenta, em si, prestará o serviço todo. Ferramenta não é serviço.

O investimento em tecnologia pode reduzir custos e fazer avançar a sociedade. Os e-mails, por exemplo, proporcionaram uma agilidade de contato e fez avançar uma série de áreas, acelerando o desenvolvimento social, cultural e científico, além de reduzir despesas com papel, impressão e envio de mensagens e documentos. No lado oposto, projetos como o “um computador por aluno”, que distribuiu milhares de computadores baratos a alunos no mundo inteiro, resultou em baixíssima melhoria no ensino. O problema, ali, foi não enxergar que a tecnologia não está no computador, mas em seu uso. A distribuição de computadores não soluciona problemas. Colocar telas interativas nas escolas também não resolve nada. O investimento deve ser centrado em um programa que aculture professores e alunos, adotando mecanismos que usem as telas interativas para melhorar desempenho do processo ensino-aprendizagem. Trata-se de programas continuados de melhoria do processo, a partir da inserção da tecnologia, e não simplesmente disponibilizar equipamentos.

A inserção de um sistema de tramitação de documentos, em um órgão público, para citar outro exemplo, pode dinamizar a tramitação de processos, reduzir o consumo de papel e impressão, eliminar deslocamento de pessoas que levam e trazem os documentos - menos pessoas, menos automóveis, menos combustíveis - além de auxiliar na revisão do percurso burocrático de cada processo, reduzindo tempo e economizando recursos. Isto é investimento em tecnologia.

O bom investimento em tecnologia depende, essencialmente, de saber que problema ela solucionará, qual a demanda atenderá. Caso não se conheça o problema, certamente o problema serão os aparelhos adquiridos. Eis um passo simples para identificar a diferença entre investimento e gasto em tecnologia.

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Jogo dos sete erros

Leia atentamente o texto a seguir.

Os jogos, por sorte ou de azar, fazem parte da cultura, havendo registros inclusive entre os animais. Seria natural, portanto, que houvesse maior interesse neles, nas diversas atividades humanas. Há, contudo, algumas resistências, talvez motivadas pela vinculação do tema à criança e ao lazer, portanto e por consequência em lado oposto a da seriedade e responsabilidade.

Johan Huizinga, uma das maiores autoridades sobre o tema, discute a presença dos jogos na cultura, identificando dois aspectos que nos interessam nessa breve incursão no tema: o jogo é uma prática social e o jogo não se vincula à realidade. Sobre o primeiro aspecto, é notório que jogos sempre foram parte da cultura, assumindo diversos formatos: jogos de guerra, jogos infantis, jogos eróticos, jogos de azar, jogos esportivos, jogos eletrônicos, a lista é vasta. O jogo como prática social faz ruir a vinculação do tema ao universo infantil. De fato, a vinculação não se esgota aí, mas identifica um gosto específico que o ser humano tem e que, na infância, pode ser exercitado de modo mais intenso e despretensioso.

Jogar é uma atividade motivadora, a não ser quando o espírito esportivo cede lugar à competição desenfreada. Assistir a um jogo de futebol e torcer é prazeroso. Perder o respeito pelo outro por ser torcedor de um time rival é tolice. Usar de violência para sobrepujar o adversário é crime e obviamente nada tem a ver com jogo, trata-se de ignorância, em estado puro, irracional. Há, nesse sentido, uma linha tênue que separa o prazer e o sofrer, vinculado que é proporcional à ideia de jogo. Enquanto jogo, a ação deve conduzir ao prazer. Quando não há esse reconhecimento, a ação se converte para o sofrer.

Não será necessário lembrar que a indústria de jogos faz a fortuna de muitos, não apenas com os jogos de azar, os ganhadores da Mega Sena, mas também na indústria de games, responsável por um orçamento bilionário na área de entretenimento - em 2016 o lucro mundial foi de US$ 99.6 bilhões. Em tempos de conectividade, crescem as iniciativas dos jogos sérios (serious games), aqueles destinados a tarefas - e não ao entretenimento -, vinculados à capacitação, treinamentos e ao ensino nos diversos setores, tratamentos de saúde, comunicação e assemelhados. Com igual propulsão, crescem as ações de gamificação, que é o uso de elementos de jogo vinculados a outras atividades, como ocorre, por exemplo, com a dieta baseada em pontuação e o uso de estrelas para pontuar desempenho.

Essas duas modalidades, jogos sérios e gamificação, indicam a solução de vincular o prazer do jogo a tarefas enfadonhas ou de baixa motivação, otimizando a execução da tarefa. Os resultados têm sido bastante impactantes, com expressivo aumento de produtividade e interesse, nas várias faixas etárias. É notório que as carreiras técnicas e administrativas recorram a essa estratégia de modo mais célere, enquanto na educação, embora os discursos cuidem da plena absorção do expediente, a aculturação no método seja moroso, por vezes arredio.

Os jogos e suas estratégias aliam motivação e prazer a tarefas diversas, resultando em otimização, envolvimento e experiências prazerosas. A prática social do jogo, finalmente, faz ver que, ao menos nesse tema, não há erros, nem um, muito menos sete.

Tecnologia, virtualidades e uma batatinha

O termo tecnologia parece ser, por vezes, escorregadio: ainda que presente em várias falas, seu sentido serpenteia entre as várias noções que o termo adquire nos contextos em que é usado. Ora ele parece se referir a um aparelho, ora a uma técnica, ora a um estado de desenvolvimento da ciência, ora nem mesmo quem fala sabe precisar que sentido queria que o termo assumisse. Provavelmente, na maior parte das vezes, o termo é usado para se referir a um aparelho, como um computador, tablet ou smartphone. Ainda que assim o seja, essa noção não encontra respaldo técnico. Aparelho usa uma tecnologia, mas não é uma. Tecnologia é um conhecimento que se lastreia em uma comunidade, após a compreensão por comprovações da ciência. Logo, um aparelho não é uma tecnologia, mas faz uso desse conhecimento, na medida em que incorpora esse conhecimento para executar sua função.

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O computador usa tecnologia bluetooth, wireless ou mesmo o processamento algoritmo padrão. Esse conhecimento, e não o computador, é o que denominamos tecnologia. Ao computador damos o nome de aparelho. Usar o computador é uma habilidade técnica, e não tecnológica. Engana-se quem se diz conhecedor de tecnologia apenas por ser usuário de algum sistema operacional e seus softwares padrão, mais ainda quem faz uso de serviços online, como redes e sites sociais e se diz conhecedor da tecnologia computacional. Talvez essa breve explicação esclareça que tecnologia não é técnica, tampouco aparelho. E talvez essa breve explicação desmistifique a ingênua ideia de que os jovens conhecem muito de tecnologia, quando o correto seria dizer que sabem técnicas de uso de aplicativos computacionais. Mas quando confrontados com conhecimento tecnológico, de fato, vemos que não conseguem ultrapassar a barreira do usuário. Por analogia, é um cliente de açougue que não faz ideia de como são feitos ou mesmo a localização dos cortes, não reconhece uma carne, mas sabe comer. Distante de serem nativos digitais, a juventude ainda carece, e muito, de reconhecer a tecnologia, começando pelo uso correto do termo.

Virtual é outro termo cujo uso é, na maior parte das vezes, equivocado. Se para alguns o termo é um sinônimo de digital, para outros ele apenas representa uma oposição ao real, ainda que esse real não esteja bem definido. O termo virtual vem do latim virtus, e significa o que tem potência de vir a ser. Desse modo, virtual é algo que acreditamos ter força de existir, mas que de fato não existe ainda. Reconhecer que um jovem se tornará um adulto brilhante é reconhecer esse brilhantismo adulto virtualmente presente no jovem. Reconhecer uma árvore virtualmente presente em uma semente é um exercício similar. Virtual é algo que pressentimos, acreditamos, mas não vemos, não tocamos, não alcançamos com nossos sentidos. Jamais conseguirei ver uma imagem virtual. As imagens que vemos nos monitores dos computadores são digitais, mas não virtuais. Quando recebemos um pen-drive ou um DVD e somos informados que aquelas mídias contêm informações, acreditamos que elas contêm virtualmente aquelas informações, mas de fato não as vemos na mídia. Apenas quando acessamos um DVD player ou um computador temos acesso, pelos monitores, às informações contidas no DVD ou pen-drive. Quando vemos as informações elas deixam de ser virtuais e se atualizam, sendo percebidas por nós. Jamais enxergamos imagens virtuais, como muitos querem que acreditemos.

Notamos que compreender a cultura digital tem início na compreensão de elementos simples, como os termos que exploramos aqui. Longe que restringir a cultura digital ao ato de programar, o lastro da cultura se adensa e espraia, como a batatinha, que quando cresce, espalha a rama pelo chão - mas não esparrama nada.

Virtualmente a tecnologia pode mudar o mundo. Mas na prática quem muda o mundo são as pessoas, quando adquirem conhecimento e práticas capazes de provocar essa mudança.

O gosto contemporâneo pela conectividade

Traço inquestionável da cultura contemporânea, a conectividade tem se tornado tão necessária quanto a água e a energia, embora não seja, ainda, requisito vital como a primeira ou tão prática quanto a segunda. Ainda assim, a conectividade é a base de funcionamento de todo um contexto sócio-econômico-cultural, funcionando como um análogo ao sistema circulatório, para a sociedade.

Os processamentos econômicos, de saúde, educação, segurança, comunicação, lazer, setores produtivos e todos os demais dependem, essencialmente, dos fluxos de informações presentes nos sistemas conectados. O foco de desenvolvimento humano, nesse sentido, tem direção certa, com perspectivas de agilização e eficiência dos processos, quando estes são conectados entre si, gerando bases de informações qualificadas, democráticas e transparentes.

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Atualmente, as redes telemáticas possuem mais agentes não humanos conectados que humanos, embora a presença humana seja não apenas inquestionável, mas acima de tudo, fundamental. Em verdade, o receio do imaginário de uma tomada de poder, por parte de máquinas, além de infundado, desconsidera a razão maior da própria existência das máquinas: o humano. A dependência da tecnologia não se confunde com a servidão a ela, embora já tenham surgido anomalias psicológicas, baseadas no vício de conexão. Afora isso, a regularidade dos fluxos informacionais dão o tom para a construção de um futuro já iniciado, evidenciando o contexto em que a conectividade é mais que um item desejado: é valor, eficiência e eficácia, além de instaurar uma dinâmica computacionalmente chamada de em tempo real (a expressão indica o processamento imediato, com resultados igualmente imediatos ao processamento).

Observar a cultura contemporânea, seus gostos e valoração de seu patrimônio material e imaterial, permite enxergar como vetor de um tempo o acentuado gosto pela conectividade. Desde o cruzamento da indústria e do comércio, formando ecossistemas, passando pela economia globalizada, até se chegar ao cotidiano das pessoas com seus smartphones e computadores, a inegável presença da tecnologia dá o tom da conexão exercida em ambientes micro, meso e macro. Das mais variadas faixas etárias e sociais, a presença dos aparelhos tecnológicos é inegável. No Brasil, pesquisas apontam que em 2016, para uma população de pouco mais de 206 milhões de habitantes, havia pouco mais que 244 milhões de celulares, alcançando impressionantes 118% de densidade na relação celulares/habitantes, segundo dados da Teleco Inteligência em Telecomunicações.

Em 2015, 92,1% dos domicílios brasileiros acessaram a internet por meio do telefone celular, enquanto 70,1% dos domicílios o fizeram por meio do microcomputador. Em 2014, o acesso à internet alcançou 80,4% dos domicílios e se deu por meio do celular, que também foi predominante em relação ao uso do computador, que atingiu 76,6% dos domicílios, segundo dados do IBGE. Esses dados indicam que mobilidade e conectividade andam juntas, em uma perspectiva da vida conectada, independentemente do local em que a conexão se dá.

Esse traço da contemporaneidade, identificado como a eliminação das condições on e off line, instaura um inquietante predomínio da conectividade no cotidiano das pessoas. Em parques, escolas, bancos, metrôs e quaisquer outros lugares, nas cidades e no campo, é provável que pessoas estejam verificando suas redes sociais e aplicativos de comunicação em seus smartphones. Essa perspectiva, já profunda no gosto da sociedade contemporânea, não elimina sequer atividades que demandam um quase isolamento, como em rituais religiosos, nas salas de cinema, nas salas de aula e até mesmo nos presídios. A presença dos aparelhos tecnológicos de comunicação assumem uma incidência tal, que é possível falar sobre uma onipresença da tecnologia, de igual modo como é possível falar sobre uma onipresença de pessoas nas redes.

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A caracterização social em camadas informacionais aderentes ao mundo natural pode ser melhor compreendida nos processos de digitalização e virtualização de documentos, saberes, comunicação e processos envolvendo toda a sorte da organização informacional social, como economia e relacionamentos. A tecnologia desmaterializou a concretude dos documentos, da moeda, de objetos estéticos e das relações sociais, possibilitando que a sociedade contemporânea viva, efetivamente, o modelo social moldado pela ciência e por sua filha mais proeminente, a tecnologia.

Na cultura, a integração social experimenta modelos baseados nas relações mediadas pela tecnologia, em acessos a redes e sites sociais. A comunicação se intensificou, adotando modelos assíncronos e imediatos, presenciais e remotos, experimentando o relativismo do espaço-tempo. Os deslocamentos pelo mundo, contudo, continuam em acelerado crescimento, alimentados pelas relações decorrentes da comunicação. O modelo massivo, que se mantém como prática social, inclusive na tecnologia, encontrou seu par no modelo pós-massivo, reinventando relações de todas as ordens. De produção e consumo de informação até a relação entre marcas e consumidores, os agora prosumidores buscam relacionarem com marcas e produtos, assumindo um gosto pautado pela experiência de consumo. Se desde os anos 1990 já apontava o modelo que deixava o consumo baseado em posse para o consumo baseado em uso, é na condição pós-moderna que a sociedade passa a operar sobre novas perspectivas de gosto: a conectividade.

Ética, moral e tecnologia

Que o problema de corrupção é traço cultural e não somente político no Brasil, não parece haver dúvidas. É notório o comportamento do brasileiro, considerando apelos próprios dos corruptos, ativo e passivo, no cotidiano nacional. Desde a compra e venda de voto até a auferição de benefícios próprios mediante o trabalho que deveria ser cotidiano, brasileiros se deparam com situações de corrupção em todos os lugares e instâncias. De modo mais acentuado em órgãos públicos, inclusive, mas não só, na tentativa de agilizar a morosa e absurdamente máquina pública, nas intermináveis tramitações processuais. Processos, que deveriam ser finalizados em dois dias, levam por vezes um ano para percorrerem os trâmites.

Parte desses percursos se deve aos fluxos e normas quase irracionais que uns criam, e todos devem obedecer. Uma micro empresa individual, por exemplo, tem de afixar uma placa de identificação no exterior do estabelecimento, mesmo que o serviço seja ofertado exclusivamente pela internet, e que o endereço seja de uma residência em um condomínio fechado. Mais ainda, a placa serve tão somente para uma vistoria, pois o empresário pode retirá-la após a vistoria - inclusive é orientado a isso. Nos processos do Detran, o uso de despachantes tornou-se, certa época, quase que obrigatório, já que o cidadão comum não pagava suborno aos funcionários e, por esse motivo, seus processos permaneciam parados. De igual modo, eram comuns os pagamentos a policiais para não emitirem multas ou fazerem vistas grossas a crimes. Em alguns casos, ainda temos tais práticas.

De outro lado, a população que, sempre que pode, tenta tirar proveito da situação, aumentando tarifas de seus serviços quando estes são urgentes - em grandes festas, é impossível conseguir táxis e afins por preços de tabela, seja em Goiânia, Rio de Janeiro ou Salvador. Milhares de pessoas ainda buscam em políticos a oportunidade de ganhos de emprego, dentadura, exames médicos e tantas outras “ofertas”, em troca de seu voto. Outros tantos oferecem um dinheirinho para o café ou cerveja - entenda propina - para serem melhores atendidos.

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O tal jeitinho brasileiro se confunde com uma prática danosa que todos reclamam, mas que boa parte da população pratica. E se assim o é, a tecnologia auxilia a eliminação disso, ao retirar o controle de processos, cobranças e prazos das mãos das pessoas. Se ao chamar um serviço de táxi o cliente souber quanto vai pagar, certamente o motorista não tentaria dar voltas extras pela cidade, buscando percursos maiores para levar vantagem no preço final. Se os prazos de tramitação de processos forem fixados e observados por sistemas tecnológicos, teríamos, por certo, uma drástica redução de processos que tramitam mais rápido que outros, ou que simplesmente não tramitam. Se retirarmos das mãos humanas os processos que podem ser automatizados, gerando visibilidade para sua tramitação, certamente conseguiríamos minimizar os desmandos tidos em todos os setores, extirpando algumas práticas corruptas de nossa sociedade.

A tecnologia, nesse aspecto, auxilia a dinamizar os trâmites, dar transparência aos processos e reduzir intervenções que privilegiam alguns em detrimento de outros. E se a justiça é cega, a tecnologia legitimamente não enxerga seus usuários, tampouco solicitam ajuda para café ou cerveja, tratando como iguais os números que, afinal, compõem seus códigos de realização de tarefa. Esse é mais um motivo para que a inserção de tecnologia nos mais variados âmbitos sociais seja não apenas de interesse público, mas também de interesse cultural, na regulação de processos e comportamentos que hoje, e no passado, são baseados em condutas morais e éticas condenáveis.

Tiros pela culatra: a popularidade pela negação

Ainda causa estranheza o fato de determinadas personagens e eventos alcançarem enorme popularidade, tendo como motor justamente pessoas que reagem negativamente a eles. Parece mais um caso de insensatez que de ignorância, embora ambas possam conviver harmoniosamente. Do ponto de vista estritamente técnico, a replicação e comentários de posts, em redes sociais, considerados pelos comentadores como algo a se evitar, é responsável pelo crescimento da popularidade do que se pretendia negar.

A sociedade reproduz uma característica que se vê na política: ao invés de discutirmos soluções, apontamos os problemas, normalmente personificados em alguém ou alguma coisa. O desejo de expurgar um indivíduo e suas falácias cria um frenesi sobre ele, fazendo-o galgar postos de popularidade. E já que isso é desejado por muitos, o pretenso expurgado figurará mais e mais nos noticiosos, que buscam na popularidade e buzz o incremento de pageviews e consequente monetização e visibilidade de seus meios. Em outros termos, justamente quem nega é quem mais ajuda tais figuras a alcançar os postos de visualização e popularidade desejados. A máxima “falem mal, mas falem de mim” está mais evidente que nunca e, quem fala mal, mais ajuda que atrapalha.

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Foi assim que personagens do meio político e artístico construíram sua fama nacional. Foi assim que ações informais de repúdio ganharam destaque, não alcançando o pretendido e, ainda por cima, conquistando adeptos quando se buscavam críticos. Lembro-me de palestras de pouca repercussão ganharem destaque por grupos opositores conquistarem buzz para a sua divulgação. E não faltam curiosos, mais para disseminar balbúrdia que pela discussão, além de maledicentes, que creem que podem ganhar popularidade com seus comentários torpes, muitas vezes mentirosos ou injuriosos.

Talvez a solução seja muito simples: o maior ato de repúdio a uma notícia ou personagem, nas redes sociais, é retirar o post de sua timeline. Não concorda com alguém ou alguma coisa? Delete, mas não comente nem replique, muito menos aporte emojis, mesmo os que demonstrem irritação. Se o alimento desses indesejados são as visualizações, que morram por inanição. Se for imprescindível comentar, faça-o inbox, apenas para o emissor do post, logo depois de eliminar o post de sua timeline.

Talvez devamos lembrar que posts que não são visualizados não têm força. Ao invés de comentar sua indignação no post, elevando seu buzz, melhor será fazer um post com mensagem afirmativa de seu posicionamento, fazendo valer sua proposta, sem tornar o pensamento contrário um top trend das redes sociais. Os perfis pessoais em redes sociais não são canais abertos à discussão, não há qualquer problema em eliminar marcações, desfazer pretensos vínculos de amizade e, mesmo, bloquear pessoas que não coadunam com sua perspectiva de vida. Se Freud discutia a pulsão para a morte, aparentemente o fenômeno se repete nas redes sociais: quanto pior, mais popularidade alcança. Sejamos críticos o suficiente para exercitar a autoestima: se não gosto, se não concordo, ignoro, não permitindo que figure em minha timeline ou histórico. Sem tiro pela culatra.

A tecnologia da ficção

Dentre os vários serviços oferecidos na e para a Internet, um, em especial, merece ser comentado: a indústria de virais, baseada em informações falsas e descontextualizadas. Essa indústria, além de criar posts e matérias falsas, mantém milhares de perfis em redes sociais, responsáveis por viralizar o conteúdo criado. Com a viralização, perfis verdadeiros entram na onda, curtem e mesmo compartilham a manobra, seja por má fé ou por ingenuidade mesmo.

Com a aproximação do pleito eleitoral, os manipuladores de opinião ganham espaço e muito dinheiro, usando os desavisados e afoitos de plantão, na disseminação de informações falsas. Contratada por agentes políticos ou cabos eleitorais, essa indústria cria posts atacando adversários e desafetos ou vangloriando seus candidatos, servindo-se, para isso, de uma infinidade de abordagens possíveis: posses, comportamentos, história pessoal etc. A finalidade ou é denegrir ou enaltecer a imagem de alguém, quase sempre com informações de cunho ideológico.

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Uma vez criada a informação, a viralização começa a ocorrer a partir do uso de perfis falsos em redes sociais, mantidos por bots - simplificação do termo robôs -, máquinas que se passam por pessoas que curtem e compartilham determinados conteúdos. O buzz na rede se completa com a replicação desses posts, que rapidamente conquistam relevância pelo número de curtidas e compartilhamentos. O estrago, enfim, se consuma.

Como a maior parte dos usuários de Internet curte e até mesmo compartilha uma informação baseada tão somente na pessoa que a postou, e não necessariamente na relevância ou veracidade da informação, os manipuladores deitam e rolam na Internet, sustentados por essa característica, fazendo valer sua imposição. Contratantes e contratados agradecem a ignorância e imprudência de milhares de pessoas que fazem dessa indústria um grande sucesso.

A tecnologia a serviço da ficção deixou a forma artística da literatura, para protagonizar uma tragédia social. Talvez nunca a ficção tenha articulado tanto com a realidade quanto agora, impactando-a quase que em tempo real. Alguns experimentos evidenciaram como a cadeia de fake news age, propagando ideias e contextos falsos nas várias mentes conectadas na rede, mas sem qualquer conexão com a realidade.

Alguns sites utilizam o captcha - eu não sou um robot - para evitar ações dos bots. Esse recurso, entretanto, não tem reduzido a ingenuidade dos robôs humanos que, de modo acrítico, curtem e compartilham conteúdos, deixando-se levar por uma indústria de manipulação e por seus posts ideológicos.

Tecnologia, mídia e verdade

A crença de que texto escrito e imagem fotográfica expressarem verdades encontra um duro teste nas redes sociais. Montagens, nem sempre bem feitas, buscam falsear fatos, criando, nos menos atentos e nos canalhas de plantão, a oportunidade de manipular opiniões, semeando ventos que se convertem em tempestades avassaladoras.

A vinculação da imagem fotográfica com a verdade está caracterizada pela relação indicial da imagem, que aponta para algo realmente fotografado, portanto fato. Essa vinculação indicial se assemelha com a função referencial do texto jornalístico, que pretensamente se passa por fato. Ocorre, contudo, que a imagem realística não é, necessariamente, fotográfica. Os artistas, há séculos, pintavam retratos e paisagens realísticos. Com o advento das tecnologias digitais, que inclui a fotografia digital, a manipulação da imagem é cada vez mais fácil de ser executada. As próprias câmeras já oferecem recursos de filtros que alteram a coloração e a luz. Softwares de tratamento de imagem permitem alterar, incluir ou retirar elementos de uma imagem fotográfica, mantendo a verossimilhança visual. O problema, então, não está na imagem fotográfica, mas sim nas manipulações que descaracterizam tais imagens, tornando-as um misto de fotográficas e pós-fotográficas.

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De modo similar, o texto escrito goza de uma confiabilidade maior que a fala, a imagem ou vídeos, em nossa sociedade. A confiabilidade vem dos exercícios culturais tratados na formação, com escolas priorizando textos - livros, artigos, monografias, dissertações e teses -, e, também, na religião, que tem em textos um dos objetos mais cultuados - a Bíblia, o Alcorão, a Torá.

Em outro sentido, podemos observar um fenômeno, no mínimo curioso: nossa propensão à crença, principalmente à crença em quem não conhecemos e nas coisas que nos são ditas. Essa tendência conforma, por exemplo, o fato de darmos mais crédito a uma pessoa desconhecida que fala sobre uma pessoa conhecida, que a esta mesma. Por vezes, somos levados a crer mais em posts que em documentos, em fontes sem crédito algum, que em fontes minimamente confiáveis.

O tom de verdade, vindo na forma de denúncia, depoimento ou outro meio que emprega artifícios jornalísticos - função referencial da linguagem -, em textos, vídeos e imagens, já presentes na sociedade, em época de eleição se avolumam, com um aumento significativo de jornais engajados, tanto impressos quanto em ambientes digitais, sem que a função referencial seja sequer pensada. As imagens montadas, as denúncias falsas e os textos convenientes para seus autores, encontram a conivência e a cumplicidade das tais mentes incautas e/ou inescrupulosas, no afã de ganhar, mesmo que injustamente, o que tanto desejam.

Devemos ser críticos em relação à imagem, inclusive de origem fotográfica, de igual modo como devemos ser críticos aos textos que nos são entregues diariamente. A observação de fontes, a verificação de procedência e a consulta a outras versões de um fato são extremamente relevantes para não nos perdermos entre bullyings adultos e fake news, como testemunhamos ou protagonizamos nas redes sociais. A mídia, como meio, aceita todas as palavras e imagens, sem distinção. Mas mentes pensantes são capazes de definir que tipo de uso de mídia queremos: a que preza a verdade, ou aquela usada maledicentemente para alterar a relação de poder entre grupos e pessoas. Mídia, como meio, não expressa a verdade, apenas conduz mensagens, verdadeiras ou falsas, de acordo com o que dispõe a sociedade que a utiliza. As redes sociais, como mecanismos tecnológicos da mídia pós-massiva, comungam com essa regra.

E se a regra do digital é a descontinuidade, imagens e textos, vídeos e áudios são tão facilmente manipuláveis quanto qualquer outro elemento digital. A expressão da verdade, em última instância, não se firma pela mídia, tampouco por ser imagem ou ter sido publicado em um site que se intitule jornal, mas pela vinculação a fatos, sua indicialidade, que dependerá da visada crítica, atenta e, claro, com a intencionalidade do leitor em fazer uso do que lê, seja para criar um ambiente seguro e confiável de notícias, seja para torná-lo falseado, conivente com interesses escusos e instável política e moralmente.

A bola (tecnológica) da vez

Um chip na bola elimina, de vez, dúvidas sobre ter havido ou não um gol. Um sistema de videoarbitragem amplia a visão do jogo, retirando a primazia dos árbitros em campo, dando nova roupagem aos olhos atentos e apaixonados de torcedores, jogadores e árbitros. A tecnologia, enfim, participa olhos vistos de uma Copa do Mundo de Futebol, e já começa ganhando o jogo.

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Apesar de, de fato, a tecnologia já estar presente há tempos não apenas no futebol, mas praticamente em todos os esportes, a Copa do Mundo da FIFA inaugurou, este ano, recursos há tempos esperados, e que pretende reduzir ou eliminar erros de arbitragem, que até ali detinha a palavra final ao longo das partidas. Para o bem ou para o mal, o trio de arbitragem usa seus recursos visuais e geolocalizados para definir o que valeu e o que não valeu em uma partida de futebol. A partir de 2018, um novo elemento pretende reinventar o modo de reger o espetáculo em campo: o recurso de videoarbitragem VAR (Video Assistant Referee, na sigla em inglês). Várias câmeras registram detalhes das jogadas, oferecendo melhores ângulos e a possibilidade de replay, com uma equipe de arbitragem que acompanha tudo em uma cabine específica. Essa equipe de arbitragem orienta o árbitro em campo, na clara missão de reduzir erros, tornando o jogo mais imparcial e menos dependente da acuidade visual de quem corre todo o tempo em campo, tentando apreender o impossível.

A bola também ganhou tecnologia nova. A Telstar 18, nome oficial da bola do Mundial de 2018, já é resultado de processos tecnológicos que melhoram desde textura e percurso aéreo, até absorção de água e alteração de peso em diversas condições climáticas das partidas. A novidade, além desses quesitos, é um chip instalado na própria bola, monitorado por diversos leitores. O sistema possibilita, dentre outras coisas, o acompanhamento da bola em seu deslocamento, velocidade e posicionamento global, definindo se houve ou não gol, em caso de dúvidas.

Neste Mundial, nos primeiros 40 jogos, o sistema VAR foi usado 12 vezes, alterando posições iniciais da arbitragem e tornando a partida mais correta e transparente, inclusive para o torcedor, que pode perder o principal álibi de partidas malsucedidas de seu time favorito: o erro do árbitro. Ao que se registra, a inserção de tecnologia já gera resultados positivos, inclusive na cultura do jogo e da torcida.

Talvez cheguemos a uma copa em que os árbitros não estarão em campo, mas acompanhando os cobôs (robôs colaborativos), estrategicamente posicionados no campo e em drones. Talvez cheguemos a uma copa em que a bola tenha, além de chip, uma câmera que permitirá acompanhar seu deslocamento pelo campo, e sensores que medirão a intensidade do toque. Mas certamente o que mudará pouco é o gosto pelo jogo, uma prática cultural antiga, renovada a cada partida e a cada coração aflito de jogador e de torcedor.

A tecnologia torna eventos, como a Copa do Mundo da FIFA e os Jogos Olímpicos, verdadeiras comoções mundiais, com milhões de torcedores em todo o mundo acompanhando as imagens, as notícias e a emoção de ganhar e perder. Mas é o jogo em si, a disputa, que enleva o espírito humano e cativa a atenção de olhos e corações, na firme convicção de que torcer e jogar são ações essenciais do humano. A tecnologia aprimora o que a cultura define como relevante.

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Tecnologia da imagem

A imagem ganhou protagonismo na sociedade contemporânea. Se há algum tempo o texto gozava dessa prerrogativa, desde a segunda metade do século passado a imagem se notabilizou, ganhando corpos em vários formatos. A sedução da cor luz saltou do cinema para as telas menores, de TVs, de computadores, de tablets e smartphones. Também ocupa espaços maiores, nos imensos displays espalhados pelas cidades e estradas.

A relação entre texto e imagem, tema de várias pesquisas acadêmicas, fomentou discussões que alcançavam a iconoclastia, movimento político-religioso que pregava a eliminação de imagens. O texto bíblico faz menção ao fato, no episódio do bezerro de ouro, além de sugerir que Deus era, no princípio, verbo e o verbo se fez carne. Ainda que no texto original o termo se referia ao conhecimento e não a elemento verbal, a predominância do verbal sobre o visual foi regra, inclusive nas ciências. Não à toa, o discurso verbal é base para a sustentação do conhecimento.

Contudo, com a tecnologia, a imagem ganha notoriedade e se lastreia pelo mundo com a velocidade que a forma. As interfaces gráficas computacionais sustentam uma revolução tecnológica nos anos 1980, estabelecendo um marco nos processos socioculturais. A imagem é difundida e torna-se base de entretenimento e comunicação, tornando a inteligibilidade da informação mais ágil. De gráficos a infográficos, de painéis de carro a dashboard em salas de situação, a imagem passa a compor ambientes inteligentes de rápida apreensão de situações.

Salas de aula adotam projetores, empresas adotam equipamentos de videoconferência, carros ampliam e digitalizam seus painéis, até o modo de locomoção nas cidades passa a ser feito a partir de uma tela de GPS. Já é improvável percorrer alguns metros em uma cidade sem se deparar com alguém com olhar fixo em uma tela de smartphone.

De outro lado, as câmeras se espalham e se multiplicam pelas cidades, a exemplo de Londres, a cidade mais vigiada do mundo. Os exames baseados em imagens ganham volume e maior fidedignidade, em elaborados processos de ressonância e outras técnicas que reinventam a análise. Poderosas e minúsculas câmeras são já usuais em cirurgias, guiando mãos, ferramentas e robôs, com maior destreza que o olhar direto do cirurgião - embora não o prescinda.

Os sinais de TV alcançam a Internet, inventando canais que respondem não mais por frequência, mas por URL. A convergência digital desabrocha em milhares de dispositivos, de funcionalidades e serviços, com a abrangência da Internet 2.0, a diversidade da Internet 3.0 e a complexidade da Internet 4.0. Dispositivos baseados em inteligência artificial se acomodam a partir da visão computacional, via reconhecimento de padrões. Aparelhos com tecnologia IoT (Internet of Things ou Internet das coisas) e IoE (Internet of Everythings ou Internet de todas as coisas) se alinham com as interfaces cognitivas, em processamentos gráficos complexos. Ambientes de realidade virtual e realidade aumentada são, efetivamente, imagens.

O primado da imagem encontra seu par nos olhos, aparelho sensor de maior desenvolvimento e acuidade na espécie humana que, embora não atue isoladamente, ainda mantém o romantismo de ser a janela da alma, e também a porta de entrada do mundo para a consciência.

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Definições e indefinições - HD TV, UHD TV, 4K

Até há pouco tempo, os aparelhos de tubo, chamado de raios catódicos, reinavam absolutos nas salas brasileiras, nos formatos de 20 polegadas e, pouco depois, nos modernos 29 polegadas. Os aparelhos de tecnologia Plasma passaram despercebidos por muitos, que se depararam com a tecnologia LCD (Liquid Crystal Display), que obteve maior popularidade e menor preço. Ainda assim, os aparelhos não resistiram por muito tempo, sendo nocauteados pelas telas LED (Light Emitting Diode), mais econômicas e duradouras. Mas o embate e a superação não determinam somente o material das telas. A definição, medida em pixels e que resulta em melhor visualização, teve grande mudança, aliada à tecnologia das TVs e cinema.

Se o sinal analógico restringia a resolução das telas, fazendo do cinema de 35 milímetros uma experiência visual sem precedentes, o sinal digital, chamado HD (High Definition), melhorou significativamente a visualização das imagens, embora não se sobrepusesse, em qualidade, as imagens cinematográficas de 35 milímetros. Já a definição do UHD (Ultra High Definition), que se aproxima da resolução 2K, eleva a definição, gerando imagens de excelente visualização, em gama de cores maior que o espectro visível pelo olho humano.

Ainda assim, houve a superação dessa resolução, que atualmente se populariza em TVs: a chamada resolução 4K, atingindo 4096 X 2160 pixels.

Não fosse o fato de isso, por si, superar a capacidade do olho humano, já existem testes, desde a copa de 2014, da tecnologia 8K. Algo que somente faria sentido em uma dimensão pouco recomendável para os padrões antropométrico e fisiológico humanos. Não obstante, o fato é que as resoluções de imagens não seguem somente nossos padrões de visão, mas vão além, buscando um dimensionamento sobre-humano, principalmente para suportar nosso desejo de ampliação, aceleração ou desaceleração. Nesse aspecto, câmeras 8K poderiam identificar movimentos que o olho humano não enxerga nas mesmas condições, como placas de carro em alta velocidade ou a longa distância. Para a área de segurança, isso faz muito sentido. Mesmo no entretenimento ou no esporte, informações sem relevância aparente, como a velocidade de uma bola, podem resultar em um campeão do mundo.

Outro ponto fundamental nesse quesito está relacionado ao conjunto. De nada adianta eu ter uma TV com resolução 4K se minha emissora favorita não emite sinal nessa resolução. Há de pensar que a resolução é da imagem, e não somente do aparelho. Isso significa que o ponto de emissão e recepção, bem como da própria imagem, precisam estar alinhados, com a possibilidade de atingirem, todos, a resolução máxima requerida. Se a fonte emissora transmitir imagem de baixa resolução, ainda que o usuário tenha uma fonte receptora de altíssima resolução, não conseguirá melhorar a imagem. Esse problema foi enfrentado pela NASA, a Agência Espacial Americana, por muito tempo, com as sondas enviadas ao espaço, e que motivou a melhoria de resolução das TVs dos lares do mundo inteiro.

Mas, ainda que em sinal analógico ou digital de baixa resolução, o desejo humano de deixar-se capturar pela imagem, em uma imersão perceptiva na imagem, é algo fantástico. Ver milhares de torcedores absolutamente imersos na imagem de um jogo é fascinante, pelo poder que a mente tem sobre a tecnologia. Verificar o que a tecnologia pode fazer sobre o olho humano, retendo a atenção ou provocando experiências para além das provadas pelo mundo natural, é mais notório ainda. E quer seja no mundo natural ou com base nas imagens tecnológicas, o fato é que estamos imersos na condição contemporânea da ciência da imagem, com a potencialidade que a imaginação e a inventividade humanas são capazes de criar. Mas nada disso importa, se a mente do observador não se deixar levar, seja a imagem em sinal analógico, HD, UHD TV, 4K ou mesmo em 8K.

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Museu Casa de Cora Coralina: uma casa de poesia

Visitar o Museu Casa de Cora Coralina, na cidade de Goiás, é uma rica experiência. Não apenas pelo contato com a casa onde viveu a mais ilustre poetisa goiana, mas também pelas intervenções tecnológicas que o Museu tem implementado, em parceria com o Media Lab / UFG - Laboratório de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas da Universidade Federal de Goiás. Dessa parceria, iniciada em 2015, resultou o projeto de uma casa feita de poesia, com fragmentos dos poemas de Cora Coralina por todo o percurso da visita.

Baseado em um verso coralino que afirma que água, terra e ar constituem o triângulo da vida, a equipe da UFG instalou aparatos tecnológicos que lançam poesia no ar, na água e na terra, além de implementarem um videowall e um mini estúdio de fotografia com chroma key, técnica utilizada no cinema e TV para alterar o cenário. Diante da boa repercussão da iniciativa, que teve patrocínio da Caixa Econômica Federal através de edital público, uma segunda etapa também foi aprovada e o Museu Casa de Cora Coralina recebeu novas intervenções em 2018.

A casa passa a declamar poesia. Um dos projetos, instalado em um cantinho, é de uma parede que sussurra poesia. A equipe se desdobrou para implementar o projeto, que usa fones especiais que produzem som por vibração, para dar a impressão de que a parede declama versos da poetisa. É uma casa de poesia, proporcionando uma visita poética em um dos melhores museus-casas literárias do país.

O quintal, que a partir de agora se abre à visitação, apresenta um café, instalado em meio às fruteiras que renderam doces à menina feia da ponte da Lapa que se considerava melhor doceira que poetisa. Com iluminação cenográfica e projeções de letras - até a sinalização é por projeções -, o quintal se impõe como um lugar inspirador, como sempre foi para Cora, agora aberto para o mundo.

Ainda em 2018, a Agência Estadual de Turismo, Goiás Turismo, lançou oficialmente o Caminho de Cora, com seus 284 km para caminhantes que aceitarem a tarefa de coletar versos no trajeto compreendido entre Corumbá e Goiás. Ao final, na velha casa da ponte, os andarilhos recebem um merecido certificado. O trajeto se inspira em caminhos como o de Santiago de Compostela, na Espanha, mas aqui é movido pela cultura, em um trajeto de reconhecimento da história goiana, com sua arquitetura, seus cantos, recantos e versos.

Ainda no Museu, o visitante poderá acompanhar, com óculos de realidade virtual, a filmagem da chegada do Caminho de Cora, em uma cena aérea produzida com o uso de um drone, em imagens em 360 graus. Uma imersão que vale a pena se lançar. O Museu Casa de Cora Coralina ensina, com essas ações, que não guarda somente o passado: inventa o futuro, de mãos dadas com o melhor laboratório de mídias interativas da América Latina, o goianíssimo Media Lab / UFG.

Conectividade: a cultura do acesso e do compartilhamento

A passagem de uma cultura de posse e guarda para uma cultura de acesso e compartilhamento é fato, embora também seja fato que mudanças culturais não ocorram em breve espaço de tempo. A perspectiva de mudança já era notada na caracterização das gerações Baby Boomers, X, Y e Z, em serviços como Uber e AirBnb, em comportamentos socioculturais com o uso de tecnologias baseadas em mídias sociais e na produção de conhecimento, com uma tendência para publicações científicas em plataformas gratuitas, chamadas open access.

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Ainda no campo da produção científica e cultural, os ícones da cultura de posse e guarda se deixaram seduzir, finalmente, pela nova cultura. Bibliotecas e museus se abrem para a perspectiva de novos diálogos sociais, reinventando seu posicionamento e sua função na sociedade conectada. De origem grega, a palavra biblioteca significa depósito de livro, referindo-se a uma caixa ou armário para a guarda de livros. A terminação teca é usada ainda em palavras como midiateca, brinquedoteca, pinacoteca, cinemateca, videoteca, filmoteca, hemeroteca e discoteca, esta última em franco desuso, mas com o mesmo sentido de lugar de guarda. Os museus, lugares voltados para a guarda de bens naturais e culturais, se vincularam, ao longo de sua história, ao próprio conceito de passado, quando, de fato, sua função é o exercício do diálogo com as culturas, valendo-se da diacronia como princípio.

A revisão funcional desses lugares, a partir da lógica cultural do acesso e compartilhamento, não os faz abandonar os termos que os nominam, uma vez que a língua permite uma reordenação semântica, atualizando sentidos em função de seu uso. Por outro lado, algumas variações podem acusar essa mudança lógica e sua composição, como podemos notar em termos como biblioteca, biblioteca digital, midiateca e multiteca.

Enquanto o termo biblioteca faz referência a um espaço tradicional, que reúne livros impressos, visivelmente alinhado com seus acervos (posse) e preservação (guarda), as bibliotecas digitais migram seus acervos, colecionando bits que virtualmente se atualizam como livros e afins. A midiateca é fenômeno mais recente, normalmente um espaço da biblioteca que se dedica a mídias não impressas, como vídeos e áudios, em formatos que mudam com o tempo: de fitas cassete, microfilmes e VHS para CDs, DVDs e, mais recentemente, para e-books, podcasts e filmes armazenados em servidores off-line ou on-line.

Na cultura do acesso e compartilhamento, a multiteca ganha relevo ao se colocar como um ponto de compartilhamento de informações de múltiplos formatos, como livros, revistas, jornais, filmes, músicas, vídeos e toda a sorte de informações, sempre digitais e em rede, sem a necessidade de posse ou mesmo guarda. Os servidores que guardam essas informações não necessariamente pertencem à multiteca, que pode aproveitar a existência open access de várias informações já disponíveis e oferecer links diretos para essas fontes, em um exercício de curadoria informacional que provê acesso e compartilhamento. As multitecas podem ou não ter um espaço físico, dispondo, quando há, de dispositivos para acesso ao acervo oferecido, mas essencialmente seu habitat é a rede, e sua atuação se estabelece na seleção e manutenção de informações, não de objetos.

A dinamicidade digital repercute, na cultura, seu elo mais forte: a vinculação humana. As mudanças que provocamos em museus e bibliotecas, para além da inserção de aparatos tecnológicos e a digitalização de acervos, indicam uma lógica muito maior, ligada ao modo como contemporaneamente pensamos e construímos o conhecimento: a lógica do acesso e do compartilhamento.