Sumário

Inteligência

Autor

Cleomar Rocha

Possui Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (2004), pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP/2009), pós-doutorado em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011), pós-doutorado em Poéticas Interdisciplinares pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Goiás, onde coordena o Media Lab/UFG, o Observatório de Economia Criativa de Goiás e do Núcleo de Tecnologias Assistivas da UFG. É pesquisador visitante na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde supervisiona pesquisas de pós-doutorado e na Universidade de Caldas, na Colômbia, com orientação de doutorado. Tem projetos financiados pela FINEP, MDIC, MCTI, CAPES, CNPq, MinC e FAPEG. É coordenador executivo do Arranjo Produtivo Local em Audiovisual e Games de Goiânia.

Inteligência

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Civilidade e democracia

Com a proximidade das eleições, a população brasileira, aos poucos, revive a costumeira guerra declarada ao respeito, à tolerância, à civilidade e à democracia. As posições partidárias beiram ao fanatismo, se considerarmos fanatismo como a adesão cega a um sistema ou doutrina. De fato, a cegueira advinda da defesa de um candidato conduz pessoas de bem a se insurgirem contra amigos, conhecidos, desconhecidos e a toda uma parcela social que simplesmente têm opiniões diversas às delas. E as batalhas são organizadas em forma de carreatas, adesivos, panfletos e toda a ordem de falatório, tendo, nesta edição, o palanque das redes sociais, com ataques e mais ataques, de todos os lados.

É nesta época em que assistimos ao surgimento de vários “jornais” declaradamente à serviço deste ou daquele grupo. É nesta época que a noção de democracia deixa o cérebro de algumas pessoas que, de resto, seriam democráticas, mas que no arder da brasa eleitoral declaram que todos que pensam distintamente delas são ignorantes. Talvez seja necessário revermos alguns conceitos que fundamentam a noção de civilidade e de democracia, retomando o princípio do que nos une como nação, ao invés de elevar aquilo que nos separa, enquanto indivíduo.

Civilidade (do latim civilĭtas, -ātis) é o conjunto de ações, atos, palavras e formalidades adotado pelos cidadãos para demonstrar respeito mútuo e consideração. O radical da palavra também dá origem ao termo cidadão. Constitui ato contra a civilidade o desvio dessa conduta social, como a que assistimos - e protagonizamos - pelas redes sociais, por exemplo. Democracia (do grego demos, que significa “povo”, e kratos, “domínio, poder”) é entendido como o poder do povo, definido pelo corpo social, um coletivo. A perspectiva de maioria é base para se pensar o poder exercido pelo povo, e é o argumento utilizado para manter a obrigatoriedade do voto no Brasil, ainda que esse argumento possa ser questionável.

Assumindo que a democracia é um exercício coletivo, fundado nas escolhas de uma maioria, e não daqueles que pensam iguais a mim, temos a perspectiva de que a democracia é escolha de método, e não de caminho: a maioria pode fazer escolhas erradas, e ainda assim o método será preservado. Democracia é, portanto, um sistema político, em que o povo elege seus representantes para exercer o poder. Deveria estar acima de toda e qualquer posição ou motivação política.

Admitindo-se que as motivações políticas são de várias ordens - pessoais, parentais, financeiras, afetivas, mnemônicas, estéticas etc -, e admitindo-se que a maioria dos eleitores sequer tem conhecimento das propostas ou planos de governo de seus candidatos, é fácil entender um desvirtuamento na condução dos eleitores, na medida em que não elegem os projetos que querem para a sociedade, mas atentam somente para pessoas que, ao notarem que são eleitas por si e não pelos projetos, não se sentem devedores aos projetos. Mas ainda assim, motivados por crenças, análises e posições boas ou nem tanto, a democracia e a civilidade deveriam estar acima de tudo, por princípio.

Entretanto, os discursos criados, alimentados e largamente difundidos nas redes sociais, escancaram uma formação deficitária de cidadania, de civilidade e de democracia em nossa sociedade. As posições antidemocráticas, autoritaristas e atos fascistas denotam uma fragilidade de formação e de educação, sobre os dois termos que dão título a este artigo. Ações como intolerância, ataques verbais ou tecnológicos, alcançando ataques físicos, são evidências de como nossos valores democráticos sucumbem à experiência social. Desde os ataques a torcedores de outros times, passando por eliminação de “amizades virtuais” por divergência partidária, alcançando as falas alicerçadas pelo exercício de demérito do outro, pelo simples fato de eu não conhecer a verdade do outro e vice-versa, essas evidências sociais indicam a premência de revermos o Brasil como civilização.

Se as “brincadeiras” de nossos torcedores na Copa do Mundo se equiparam à crime, se a ida a um estádio, para torcer, se converte em guerra, se as eleições, que deveriam festejar a democracia, tornam-se palco para a intolerância, o fundamento da civilidade carece ser exercitado socialmente. Meu direito de não comungar dos interesses dos outros e vice-versa é democracia. Não aceitar que o outro faça suas escolhas é intolerância. Não admitir a existência do diferente, impondo conceitos e valores individuais em detrimento dos interesses e direitos do outro, é comportamento fascista.

Entre eleitores dos diversos partidos, dos candidatos aos diversos cargos, o mais relevante é, ou deveria ser, nossa consciência de democracia como princípio e de civilidade como atitude. Considerar ignorantes os eleitores de quem eu, definitivamente, não considero ser a melhor opção, não ajuda a consolidar a democracia, muito menos a formar, na sociedade, a consciência de civilidade. A defesa do meu candidato e de seus planos ou de minhas posições políticas, identitárias ou sociais, não pode ser confundida com o direito de atacar posições e pessoas com pensamentos divergentes. A civilidade é fundamento para a consolidação da democracia.

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Sobre inteligência nas cidades

Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Esse dito popular que aponta para falas destoantes das ações do emissor parece ter o tom de cidades que dizem querer gerar qualidade de vida e desenvolvimento social, mas que, na prática, ainda se perdem nas burocracias de atividades simples. Mais que isso, ao invés de gerar satisfação de seus residentes, são um convite, por vezes uma convocação, para burlar a ineficiência dessas prefeituras, gerando estatísticas pouco confortáveis para um município.

O órgão público deveria ser exemplo de agilidade e presteza em uma cidade, otimizando a geração de emprego e renda e contribuindo para o desenvolvimento social e econômico. Quando o órgão trabalha em sentido contrário, dificultando a vida de pessoas e empresas, o resultado é a involução social, com aumento de soluções alheias aos trâmites considerados normais. Empregos informais, construções irregulares e negócios de gaveta são sintomáticos para o excesso de burocracia e ineficiência neste campo. Junte ao conjunto a previsível fuga de talentos e empresas, que naturalmente irão buscar lugares mais prósperos para atender sua necessidade de crescimento e temos a receita das cidades que ficam estagnadas ou até decrescem.

A burocracia só não é maior que a ineficiência de órgãos públicos que atrasam o crescimento das cidades. Goiás, por exemplo, que tem mais de 90% da sua população vivendo em cidades, experimenta um movimento já vivido em outros estados: a interiorização do desenvolvimento. Cidades como Aparecida de Goiânia e Senador Canedo, que junto de Goiânia estão prestes a terem 100% de sua população vivendo em cidades, buscam na eficiência municipal o principal trunfo para atraírem pessoas e empresas. De outro lado, a capital perde espaço e envelhece, prisioneira dos morosos processos administrativos.

O tempo médio para se registrar uma empresa ou conseguir os alvarás de construção é bom exemplo. Goiânia iniciou uma forma prática para expedição de alvará de construção, prometido em prazo de 24h. Contudo, se houver necessidade de remembramento de lotes, o prazo facilmente ultrapassa um ano. A dificuldade de acesso à informação é outro problema da capital. Embora o cidadão possa acompanhar seu processo pela Internet, conhecer o percurso que cada processo deve fazer é tarefa inglória, e a considerar a disposição dos funcionários públicos municipais em dirimir dúvidas, será mais rápido procurar outro município ou mesmo burlar as regras.

De fato, cidades que querem atrair investimentos e talentos devem ser exemplos de bom atendimento e agilidade em seus processos. Rever e otimizar trâmites, contribuindo para o desenvolvimento social e econômico do município é o mínimo que uma boa gestão deve fazer. O cidadão contribuinte deve ser visto como aliado para o desenvolvimento das cidades, o que ele de fato é. E a gestão municipal deve enxergar que para construir uma cidade inteligente será preciso ser exemplo.

“Faça o que eu digo e faço” deveria ser a máxima da gestão pública, ao construir trâmites que favoreçam a dinâmica social, a inovação e o desenvolvimento econômico do município. Inteligência nas cidades tem início com políticas e ações públicas, tanto dentro quanto fora de seus órgãos administrativos.

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Inteligências nas cidades

O uso de figuras de linguagens é uma constante na vida moderna. Entrar na Internet (acessar a Internet), minha Internet caiu (perda da conexão à Internet), Internet das coisas (coisas conectadas à Internet) e cidades inteligentes (inteligências nas cidades), são exemplos de processos metafóricos e metonímicos que, de tanto serem usados, acabam por confundir quem os use. A confusão ocorre pela naturalização do uso, fazendo com que falantes acabem por esquecer a figura de linguagem e endereçar o significado para uma noção denotativa. O fenômeno também ocorre por transposição, quando usamos um termo que indica o sentido do outro, como, por exemplo, quando falamos mouse para nos referirmos ao cursor ou ponteiro. Mouse, aquele objeto físico que seguramos com uma mão e que sincroniza seu movimento do cursor, aquela seta (ou mão ou traço ou barra...) que existe na interface gráfica. Dada a relação de causalidade do movimento entre mouse e cursor, várias pessoas chamam de mouse o que de fato não o é, mas sua representação funcional nas telas, o cursor.

No que diz respeito a cidades inteligentes será preciso, igualmente, reconhecer o princípio metonímico de considerar o conteúdo pelo continente. A cidade, tida como conjunto de edificações e vias, não é nem pode ser, de fato, inteligente. Do mesmo modo que casas e edifícios não o são. O princípio, então, é considerar cidades inteligentes o conjunto de elementos que incluem o cidadão e suas ações, este sim merecedor, ou não, do adjetivo inteligente.

Em situação análoga, o filósofo francês Pierre Lévy construiu a ideia de uma cultura do ciberespaço, denominada cibercultura, apregoando que um novo “espaço” traria condições para reinventar uma cultura humana, de modo que o surgimento do ciberespaço seria uma oportunidade de inventar uma cultura sem as mazelas já conhecidas das sociedades modernas. Ocorre, contudo, que um espaço não tem cultura. Cultura é algo característico do humano, simplificado nas formas de ser e estar. A cultura é o conjunto de comportamentos, ações e modos de ser que caracterizam as comunidades em determinadas épocas. Deste modo, quando falamos em cultura europeia, referimo-nos ao modo dos europeus e não exatamente em como são as casas, os bosques e as cidades. Quando falamos em cultura medieval, falamos em modos de ser daquela época. De modo correlato, ao falarmos em cibercultura, falamos em modos de ser e agir no ciberespaço. O ciberespaço tem a cultura de quem o compõe. Isto, por si, coloca a perspectiva do filósofo em condição indefensável.

Voltando às cidades, ao nos referirmos a cidades inteligentes, queremos acreditar que falamos sobre cidadãos que, inteligentemente, geram um modo articulado de viver nas cidades, zelando por este tipo de sociabilidade e pelo espaço que a compõe - os espaços sociais, públicos, em última instância. Reconhecendo esse princípio ficará mais fácil compreender como cidadãos que não cuidam de sua cidade não poderão viver em uma cidade inteligente. Como atos como jogar lixo em terrenos baldios ou córregos, provocar queimadas, danificar equipamentos públicos ou desrespeitar regras de sociabilidade indicam uma baixa inteligência para a cidade como um todo.

De outro modo, como ações colaborativas, zelo com a cidade e manutenção da ética social são índices para alcançar uma cidade inteligente.

Cidades inteligentes não são conjuntos de aparelhos tecnológicos dispostos em uma cidade, mas sim sistemas de pessoas usando energia, materiais, serviços e financiamentos para alcançarem uma melhoria na qualidade de vida nas cidades. Este fluxo social recebe o adjetivo inteligente pela estratégia das pessoas ao fazerem uso da infraestrutura disponível - inclusive serviços e tecnologias. Ao reduzir o lixo nas vias públicas o cidadão reduz a possibilidade de enchentes por obstrução de bueiros e ainda amplia a possibilidade de realização de coleta seletiva do lixo - os empregos podem ser reduzidos na limpeza das ruas e ampliados na reciclagem dos resíduos urbanos. Ao usarmos as áreas de lazer cuidando do que é público, contribuímos para manutenção e ampliação destas áreas. Este mesmo pensamento vale para toda a infraestrutura e serviços oferecidos em uma cidade e seu uso estratégico dimensiona a inteligência reconhecida como da cidade. Mais que cidades inteligentes, falamos de cidadãos, pessoas inteligentes, vivendo nas cidades. E aqui já não há figura de linguagem.

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Inteligência e meio ambiente

O conceito de cidade inteligente define, dentre seus vários índices, o meio ambiente e a sustentabilidade enquanto um de seus pilares. Naturalmente, sua finalidade não se limita à preservação dos recursos naturais, mas se estende aos espaços urbanos que incluem áreas arborizadas, com melhoria de conforto sonoro e térmico e, consequentemente, de qualidade de vida. Tais aspectos se estendem, ainda, ao uso sustentável de recursos hídricos, minerais e vegetais.

Recentemente, para citar um exemplo, a cidade de São Paulo - e várias outras cidades brasileiras - tiveram de racionar água. Os administradores culparam a falta de chuva, com alarmante redução das reservas nos pontos de coleta, como a represa Billings. É de se estranhar que uma cidade deixe morrer seus rios, elimine suas nascentes, maltrate o meio ambiente, e depois aponte a falta de chuva como culpada pela falta de água potável. De fato, não faltaria se os recursos hídricos disponíveis não fossem descartados como são.

Em terras goianas, os índices de maus tratos com os recursos hídricos não alcançam o patamar visto em São Paulo, embora já se aproximem. A recuperação dos rios, o cuidado com nascentes e o tratamento do esgoto são condições urgentes para reverter o quadro que temos construído em nossas cidades. A ciência e a tecnologia têm buscado soluções para essas questões, com sensores que monitoram a erosão e a qualidade da água, detectam a saúde ambiental da flora e a sustentabilidade dos recursos hídricos de um dado lugar, além de auxiliar na organização do descarte sustentável dos bens de consumo.

A inteligência nas cidades, com a colaboração da tecnologia, é base também para o meio ambiente, seja na organização e manutenção de espaços arborizados - como praças e parques - com conforto térmico e sonoro, seja na recuperação e tratamento de recursos hídricos, apontados como uma das grandes preocupações mundiais, itens presentes em todos os índices de cidades inteligentes e protagonista da agenda 2030, da ONU, que estabelece metas de sustentabilidade para o ano de 2030 em todo o mundo.

Não havemos de reclamar pela falta de chuva, quando o que há é falta de compromisso e de inteligência de todos, desde os governantes, que não formulam políticas e serviços públicos voltados para a sustentabilidade, até o morador, que descarta lixo e esgoto no córrego mais próximo ou a céu aberto. O caso de São Paulo, cidade que matou seus rios, tornando-os valas para esgoto, e agora padece de falta de água potável, não pode ser o exemplo que devemos seguir. Ainda temos água em abundância. O que nos falta é inteligência e responsabilidade com o meio ambiente e com nosso futuro.

Uma agenda para melhorar o mundo

Em 2015 a ONU, Organização das Nações Unidas, adotou formalmente uma agenda de desenvolvimento sustentável. Mais de 150 líderes mundiais definiram juntos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e um prazo para atingi-los, a agenda 2030. Baseado nas perspectivas de desenvolvimento com sustentabilidade, a agenda é um plano de ação para pessoas e para o planeta. Conceitos como a paz e a liberdade são pontos fundamentais da agenda, que elege cinco áreas prioritárias, a saber as pessoas, o planeta, a prosperidade, a paz e a parceira.

A partir dessas áreas foram elaborados dezessete objetivos, tidos como transformadores do mundo, com vistas ao desenvolvimento sustentável das pessoas e do planeta. Os objetivos caracterizam as ações a serem realizadas nas cidades e, por conseguinte, nos países, de modo a alcançar não apenas os objetivos, mas a melhoria de vida no planeta.

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Os objetivos são:

  1. Erradicação da pobreza
  2. Fome zero e agricultura sustentável
  3. Saúde e bem-estar
  4. Educação de qualidade
  5. Igualdade de gênero
  6. Água potável e saneamento
  7. Energia limpa e acessível
  8. Trabalho decente e crescimento econômico
  9. Indústria, inovação e infraestrutura
  10. Redução das desigualdades
  11. Cidades e comunidades sustentáveis
  12. Consumo e produção responsáveis
  13. Ação contra a mudança global do clima
  14. Vida na água
  15. Vida terrestre
  16. Paz, justiça e instituições eficazes
  17. Parcerias e meios de implementação

A agenda 2030 pressupõe esforços das nações para atingir os objetivos até o ano de 2030, tendo, na época de sua elaboração, quinze anos para o desenvolvimento dessas ações. Dois anos depois, estamos envoltos em um contexto político social bem distinto, embora a agenda permaneça com suas marcações. Enquanto os Estados Unidos buscam rever suas posições, que antes apontavam para redução do consumo do planeta e agora parece sofrer crise de abstinência, o Brasil continua prospectando tacanhamente sua posição, baseada na redução do desmatamento da floresta amazônica e combate à pobreza, ainda que as ações para isso sejam tímidas, por vezes inexistentes.

Nos espaços das cidades, lócus onde de fato ocorrem as ações, a mobilização ainda é inexpressiva, embora tenha sido o foco de eventos como o IV Encontro dos Municípios com o Desenvolvimento Sustentável, evento organizado pela Frente Nacional de Prefeitos, nos dias 24 a 28 de abril de 2017, em Brasília.

Educação, saúde e segurança continuam sendo carros-chefe do chamado G100, grupo que reúne cidades brasileiras com mais de 80 mil habitantes, baixa renda e alta vulnerabilidade socioeconômica, o que equivale dizer de menor qualidade de vida de seus habitantes. Saneamento, por outro lado, é outro dos grandes problemas das cidades brasileiras, que resulta em rios e córregos mortos, proliferação de doenças e os já velhos problemas de enchentes, desmoronamentos, aedes aegypti e postos de saúde insuficientes para a demanda, em um círculo vicioso que encontra base na sustentabilidade de um sistema individualista fundado no jeitinho brasileiro, nascido da criatividade e transformado em eufemismo para a burla de regras.

A sustentabilidade no Brasil parece não estar ligada ao desenvolvimento social e econômico, como pretende o mundo, mas aos desmandos, conluios e mamatas, cujo ápice parece repousar em palácios públicos, mas que se lastreia pelas residências todas, amalgamada que se encontra no tecido social. A sustentabilidade tramada diariamente, fantasiada de jeitinho brasileiro, empurra o Brasil para disputas acirradas dos municípios para entrarem para o G100, quando deveríamos enfrentar, com inteligência e criatividade, os problemas das cidades, na busca não somente da agenda 2030, mas para uma agenda Brasil, com foco em desenvolvimento econômico e social, sempre atrelado à sustentabilidade das pessoas, do planeta e da vida.

Girar a chave-mestra da cultura é fundamental para adotarmos uma agenda como a 2030. Enquanto os palanques das redes sociais servem para terapia social, com veneno destilado na forma de julgamentos imediatos e ofensas, sem a catarse esperada, a História passa ao lado, com países como Chile e Colômbia fazendo o dever de casa, alcançando índices de desenvolvimento invejáveis e títulos de cidades inteligentes.

“Temos a obrigação de preparar nossas cidades para o futuro”, disse o prefeito de Aparecida de Goiânia, Gustavo Mendanha, em seu discurso de posse como vice-presidente da Frente Nacional de Prefeitos no Estado de Goiás. E se é esse o caminho, sustentabilidade é, necessariamente, um percurso que conduz ao futuro.

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Nem sempre insípida, inodora e incolor

A última semana deveria ter sido dominada por um tema de interesse mundial e relevância inquestionável: a água. Ao longo da semana foi realizado, em Brasília, o Fórum Mundial da Água e no dia 22 de março foi comemorado o Dia Mundial da Água. O bem precioso é apontado como um dos itens de maior valorização em um futuro breve e algumas cidades experimentam o futuro desde já: Brasília e São Paulo tiveram racionamento de água em 2017. Goiânia e região metropolitana, a despeito de não terem oficializado o racionamento, mantiveram seus cidadãos sem água por longos períodos do dia, por longos dias.

Com o fim do verão e o início do período de estiagem, voltamos a nos preocupar com o nível de nossos reservatórios, com o desperdício de água e com nossa baixa competência em tratar a água descartada. Enquanto Israel se vangloria da tecnologia de dessalinização da água do mar e entrega água potável para todos os seus habitantes, o Brasil, que não é um deserto, imputa aos seus cidadãos um racionamento, colocando em xeque não apenas sua competência em relação aos recursos hídricos, mas à própria consciência da importância da água. O índice pluviométrico nacional, as bacias hidrográficas e o aquífero Guarani produzem a ilusão de que teremos água por longos anos, sem a necessidade de preocupação. Já está provado que não é bem assim.

A morte de nossos rios, antes doces, o descaso com o esgoto, cujos índices de tratamento são desalentadores, a baixa utilização de água de reuso e o baixo aproveitamento das precipitações pluviométricas apenas agravam um fato preocupante: nossa cultura de desperdício de água e a incomum despreocupação com esse bem. A eliminação das matas ciliares, como é sabido, faz secar nossas nascentes e cria ravinas em nossos rios, maiores responsáveis por seu assoreamento. Junte-se a esse quadro o despejo de esgoto com baixo ou nenhum tratamento em nossos rios e temos os ingredientes para tornar água inapropriada para uso humano, seja pela baixa qualidade, que requer tratamentos químicos mais intensos, seja pela quantidade de água, cada vez menor.

Nas casas, o uso descomedido de água para os diversos fins e o descarte inapropriado de óleos e lixo não orgânico sentenciam o lençol freático, do mesmo modo que no campo, com o uso de agrotóxicos. Esse comprometimento reduz ainda mais o baixo índice de água potável do planeta, estimado em 0,007% da água existente (quase 98% da água do planeta estão nos oceanos, portanto não potável, e pouco mais de 2% da água doce são inacessíveis, por estarem em seu estado sólido, formando as geleiras polares).

O quadro se torna dramático quando não se verifica a existência de projetos educacionais e sociais sérios para reverter a situação. As ações públicas apontam somente em duas direções: aumento de tarifa - Goiás é o estado brasileiro com maior tarifação sobre a água - e o racionamento. Nota-se que nenhuma delas, infelizmente, conseguirá solucionar o problema, mas tão somente reduzir o consumo, o que, por si, não melhora em nada o problema.

Talvez em alguns poucos anos, quando a situação estiver definitivamente impraticável, tenhamos ações inteligentes de políticas públicas e educação social, com o propósito de eliminar as causas do problema, e não seus efeitos.

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Universidade e inovação

A instituição universidade tem longa história, tendo seu primeiro registro no Marrocos, com a Universidade Al-Karaouine, em Fes, datada de 859 d.C. No mundo ocidental, a Universidade de Bolonha, na Itália, é a mais antiga, criada em 1088, inaugurando o modelo adotado até hoje. No Brasil, as discussões ainda não alcançam consenso, estando na disputa a atual Universidade Federal do Amazonas, a Universidade Federal do Paraná, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal da Bahia. A discussão se mantém porque alternam entre os primeiros cursos superiores, a primeira faculdade e a primeira universidade legitimada oficialmente. A depender do critério, mudamos a primeira posição. Distante dessa discussão, a questão que se levanta é como uma instituição centenária, que se afastou da sociedade por longos anos, poderia ser fonte de inovação.

Pensamentos como concentrar a elite intelectual da sociedade, e mesmo vincular somente a extensão à comunidade, deixando a pesquisa e o ensino distantes dessa relação social, são exemplos de como a universidade se posicionou socialmente, criando um fosso entre sua atuação, voltadas para a produção intelectual, e sua vinculação social. Não por outro motivo, a extensão é a perna fraca da tríade institucional, em quantidade e relevância de atividades e de mobilização de docentes, técnicos e discentes.

Esse fosso criado pelas universidades fez com que sua articulação com mercado seja, atualmente, um desejo e uma dificuldade. Desejo, porque a articulação pode garantir recursos para pesquisas e a inovação para o mercado. Dificuldade, porque poucos centros de pesquisa em universidades possuem capacidade técnica e desejo intelectual de desenvolver tecnologias e transferi-las para o mercado. Enquanto países como Estados Unidos e Japão possuem maior número de patentes vindas de empresas (nos EUA a média é de 85% do total), no Brasil, a maior quantidade de pedidos de patentes vem de Institutos de Ensino e Pesquisa e Governo (em 2016 foram 77%, segundo o INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

A forte interação entre universidades e empresas nos Estados Unidos faz com que o ecossistema de inovação tenha na universidade seu principal trunfo. No Brasil, a ideologia de que a universidade deve produzir artigos, pontuando mais para o professor, indica uma baixa motivação para as intervenções sociais e de mercado, com baixa produção de produtos e processos inovadores e, consequentemente, baixa transferência de tecnologia. Isso retroalimenta a baixa performance brasileira, responsável por apenas 0,2% da produção de patentes no mundo, segundo a base de dados estatísticos da OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual -, de maio de 2016. O Brasil inteiro produz menos inovação que empresas como a coreana Samsung Electronics. A empresa, líder de inovação no mundo e braço da Samsung, produz dez vezes mais que o Brasil.

Na abordagem da tríplice hélice, que define que a dinâmica da inovação sustentável, o papel da universidade, em articulação com o governo e a iniciativa privada, torna-se fundamental. A universidade, aqui, não está interessada apenas em produzir textos e expedir diplomas, mas fundamentalmente contribuir para o desenvolvimento social - e não na manutenção de sua base cultural. Inovação incremental, radical e disruptiva formam a base da pesquisa, do ensino e da extensão, esta última responsável pela transferência tecnológica para o mercado. O impacto social das atividades universitárias torna-se, nesse modelo, de grande relevância, com ganhos para todas as áreas. Dentro das universidades, os projetos de pesquisa com essa relevância conseguem financiamento privado, mantendo laboratórios em constante atualização, o que per si repercute em ensino atualizado e formação capaz de fazer avançar não só o estado-da-arte da pesquisa, mas a sociedade como um todo.

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A universidade do século XXI, nessa abordagem, está disposta a contribuir efetivamente para o desenvolvimento da sociedade em que se insere, apresentando soluções para a melhoria da qualidade de vida e da performance de seus mercados, mesmo quando sua preocupação esteja centrada na sustentabilidade e sociabilidade. O modelo brasileiro de universidade, com seus professores pesquisadores preocupados com seus currículos, da baixa inserção da pesquisa em empresas e da baixa valorização da inovação em currículos, apenas amplia o já grande fosso que separa o Brasil do desenvolvimento. Mais ainda, impede que o ecossistema baseado na tríplice hélice seja implementado em terras tupiniquins, fazendo força para a perda de competitividade do país, que já foi a sexta maior economia do planeta.

Liberdade de expressão, não de agressão

A Constituição da República Federativa do Brasil expressa, em seu Art. 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Ao que parece, alguns brasileiros confundem liberdade de expressão com liberdade para agressão. A prática, infelizmente comum nas “torcidas organizadas” do futebol mundial, avança para a seara política e social. As agressões, físicas e verbais, ocorrem diariamente em vários locais no Brasil. É um tiro no acampamento que alguém considera não estar correto, é um traumatismo craniano em um outro que não pensa como o agressor, um xingamento aqui, um empurrão acolá.

Enquanto jornalistas são assassinados e/ou impedidos de trabalhar, cada vez mais as notícias falsas invadem as mentes dos menos críticos, em um trabalho diuturno dos menos honestos. E a tropa cresce cada vez mais de ambos os lados. Jornalismo engajado e falacioso, contando meias verdades - que não deixam de ser meias mentiras, conduzindo a entendimentos completamente equivocados - com milhares de replicadores humanos e não-humanos, com o firme propósito de tirar proveito de algum modo.

Em verdade, historicamente o Brasil nasceu como terra de exploração. E, meio milênio depois, continuamos no mesmo pé, como se estivéssemos aqui não para permanecer, mas para explorar o máximo e seguir para uma terra melhor que esta, onde a lei é respeitada e as pessoas não são exploradas. Mas, paradoxalmente, o desejo pelas terras de lá é tido pelas mesmas pessoas que não respeitam a lei e exploram as pessoas, nessas terras de cá.

Na terra dos sem-lei, a força é a melhor arma. São milícias que extorquem cidadãos, policiais que descumprem leis que cobram do cidadão, políticos usurpadores do patrimônio de todos, eleitos democraticamente pelos votos que conseguiu comprar ou conquistaram por fake news, pressões sociais ou pelas clássicas promessas que são facilmente esquecidas por quem prometeu e a quem foi prometido. São eleitores em busca de uma vaguinha de emprego para o filho, de um terreno para construir sua casa, de um aceno que o faça sentir gente.

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Nessa terra sem-lei, as pessoas desaprendem o respeito, a tolerância e a civilidade. Atiram em um grupo que pensa diferente, atacam alguém que se veste ou age de modo diferente, ridiculariza o diferente e matam aqueles que torcem ou oram para outros que não para quem eu torço ou oro. Imagino se todos torcessem pelo mesmo time e se existisse somente o time para o qual eu torço, como seriam enfadonhos os jogos, jogando sempre consigo mesmo.

Parte da sociedade confunde a liberdade de expressão do pensamento com a inexistente liberdade de agressão e repressão dos que não pensam ou agem iguais. O mais extraordinário é que essa parte da sociedade jura que está apenas defendendo seu direito de expressão, e que apenas se defende dos ataques dos outros. Culturalmente, aprendemos a explorar a sociedade e a buscar culpados, ao invés de construir uma sociedade e a buscar soluções. Somos frutos de nossa história, com uma boa pitada de cultura de autoflagelação social.

A Lógica nas redes

Era comum, em tempos escolares, os alunos se depararem com situações, no mínimo, esdrúxulas: o professor de matemática ensina que não podemos juntar maçãs com bananas, uma metáfora para a solução de problemas relacionadas a equações, com valores para as incógnitas X e Y. Já em Português, o professor gostava de solicitar comparações entre o livro e o filme, extraindo uma qualificação que, via de regra, buscava elevar a produção literária frente à produção cinematográfica. A ação, iconoclasta, contradiz o célebre ditado de que uma imagem vale mais que mil palavras.

Em tempos de conectividade, em que a sociabilidade é praticada em redes sociais, evidencia-se a contradição, talvez elevada a potência n, para manter a relação com a matemática. Os discursos, verbais e visuais, operam em várias frentes, normalmente fragmentadas e simplórias, como estratégia de persuasão e controle de opiniões. E que, de fato, conseguem lastreio e buzz nas redes, graças à conivência de uns e à má fé de outros tantos.

Comparações simplistas com formalismos lógicos atestam, aos coniventes por opção e aos aproveitadores por conveniência, que o pensamento lógico ainda carece de formação em terras tupiniquins. Os princípios de causalidade, por exemplo, parecem não existir no universo forjado pelos posts em redes sociais. Outro dia vi uma postagem que sugeria a legalização da laqueadura e da vasectomia, para os que não queriam filho, ao invés da legalização do aborto. Certamente o autor desconhece que laqueadura e vasectomia são legalizadas, e que a matéria do aborto se vincula a casos específicos, como estupro, má formação do feto e riscos na gravidez - riscos elevados que causam morte, é bom que fique claro.

Comparações de cunho político são a bola da vez, com previsível ascendência nos próximos meses, vencida a etapa futebolística. As comparações e análises sobre gênero, raça, religião e das nossas mazelas do judiciário e do legislativo servem de pano de fundo para a busca veemente de curtidas e compartilhamento, atestando a conquista ideológica e, mais que isso, a demarcação de território, da democracia de que tudo pode, desde que eu concorde.

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Será preciso, para uma visada mais atenta, relembrar a lógica como fundamento do pensamento ou lógica formal, e a comparação e análise como métodos da lógica material. Nos posts, a presunção de verdade supera o pensamento lógico, por partirem de premissas nem sempre verdadeiras, ou por chegaram a conclusões falazes. Esses estratagemas são comuns, quer sejam explorados pelo pensamento lógico indutivo, quer sejam pelo pensamento lógico dedutivo. Apontar um erro de alguém e generalizar, dizendo que o erro é a pessoa e não seu ato, tem uma orientação lógica indutiva, mas não configura verdade. De outro lado, dizer que uma classe de pessoas é errada e, por alguém pertencer a essa classe, ela necessariamente não poder estar certa, cumpre um quesito do pensamento lógico dedutivo, embora a aplicação seja absolutamente contestável.

Entre silogismos e sofismas, os argumentos padecem, nas redes sociais, de estruturação lógica e, mais ainda, de boa fé de seus usuários. As prerrogativas tendenciosas nas estruturações de argumentos e do modelo de declarar verdades atestam, em um primeiro momento, a incipiência argumentativa de quem as elaboraram. De outro lado, mais preocupante ainda, evidencia a ausência de criticidade e pensamento lógico de quem curte e compartilha tais posts.

No que diz respeito aos métodos, as comparações despropositadas e ardilosas buscam, em premissas incorretas, conclusões igualmente incorretas, mas que seguem um argumento lógico. Princípios da indução desmantelam a cadeia de raciocínio, notadamente pela generalização a partir de um dado particular. Para o bom combate, nesses casos, será preciso que o leitor atente para os elementos declarados, considerando a verdade das premissas, além do argumento. Para a comparação, é preciso que o elemento comparado seja um igual em dois, o que dificulta a realização em meio social, de modo genérico. É a dificuldade de educadores mensurarem a evolução de seus alunos, a partir da mesma régua de avaliação atribuída a sujeitos diferentes. A solução é mensurar o processo ensino-aprendizagem, e não o aluno.

A análise, que é a técnica de decomposição de uma substância, tópico ou argumento, não deve ser confundida com valoração, como muitos fazem. Atribuir um adjetivo a algo não é analisar. Várias afirmações, que se querem passar, nas redes sociais, por análises, encontram terreno fértil para suas plantas daninhas. A análise cuida da decomposição uma substância em elementos constituintes, sem medida de valor, como uma análise sintática ou morfológica não indica se a afirmação é verdadeira ou é falsa. A análise é método que conduz a uma possível compreensão, não é a compreensão.

A lógica das redes, entretanto, é a lógica da mídia, que é meio, canal que serve para a passagem de água que limpa e irriga a vida, mas não se nega a passagem do esgoto. E isso é um pensamento lógico, de estruturação indutiva.

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O córtex cerebral e tecnologia

A camada externa do cérebro é também responsável pelo processamento da linguagem, da memória, da atenção e da consciência. Conhecido como o local do processamento cerebral mais sofisticado e singular, o córtex cerebral tem sido usado como uma metáfora para inteligência, pela função que ele exerce, sintetizando o que chamamos de inteligência. Paleocórtex, Arquicórtex e Neocórtex formam as áreas responsáveis pelas percepções, sensações e inteligência, havendo, pelas sinapses e pelas características da neuroplasticidade, estudos que indicam a redução da massa cinzenta, como é popularmente chamado o cérebro, em função do desenvolvimento da inteligência colaborativa, também conhecida como coletiva.

De um modo ou outro, está claro que o impacto das tecnologias digitais alcança o córtex cerebral, alterando suas características funcionais e mesmo sua constituição fisioanatômica, com repercussões na evolução da espécie humana, a longo prazo. Algumas pesquisas do neurocientista Miguel Nicolelis identificam a vinculação de cérebros, em sinapses tecnológicas, criando uma nova e poderosa rede mundial de conexões, chamada Brain-net, um tipo de conexão cérebro-cérebro, via tecnologia, algo como uma internet cerebral.

Esse exercício, que hoje já efetiva seus primeiros passos, estabelece uma nova matriz de pensamento, cuja evolução se funda na colaboração, tendo a tecnologia como a mídia. A tecnologia baseada em conectividade supera as mídias clássicas, não mais convergindo-as para um único ponto, mas suplantando-as a partir de um único fundamento: a conectividade.

Se nosso exercício contemporâneo de mídias sociais e estruturas multiplataformas já nos faz ler jornal no computador, assistir televisão no celular e fazer chamadas de vídeo nas Smart TVs, é de ponderar também que a aceleração tecnológica reinventará o modelos sociais, com empregos, funções, práticas sociais e culturais, em um contexto de cidades inteligentes e, mais que isso, de uma inteligência compartilhada, como é o caso da própria tecnologia, que é conhecimento científico culturalmente assimilado por uma comunidade. Em outras palavras, estamos inventando nosso futuro a cada dia, sempre mais apressadamente, pela urgência que temos de sermos melhores, de fazermos melhores. Se a zona rural está reinventando métodos de produção, com eliminação de empregos e aumento de produtividade, as cidades farão operações de crescimento, criação de novas funções e profissões, para demandas menos relacionadas à base da pirâmide de Maslow. Vamos poder exercitar, colaborativamente, nossas inteligências, compondo um amálgama criativo de novas práticas sociais. É nosso córtex, operando na modelização da cultura, como sempre fez.

Entre a inteligência e a subserviência tecnológica

Há algum tempo, temos notado o adjetivo inteligente ser usado para crianças e jovens que usam aparelhos tecnológicos, ao demonstrarem familiaridade com os vários serviços oferecidos e os não menos numerosos gadgets disponíveis no mercado. Aparentemente, a facilidade é tamanha que impressiona os adultos, que aprendem com menos desenvoltura e velocidade que crianças e adolescentes.

Observando tais aspectos, o escritor estadunidense Marc Prensky desenvolveu a teoria dos nativos e imigrantes digitais, estabelecendo como marco divisor das gerações o ano de 1980. Antes desse ano, temos os imigrantes digitais, aqueles que nasceram antes da revolução dos meios digitais. Os nascidos depois de 1980 teriam, segundo o autor, uma vivência já imersa na cultura digital, portanto considerados nativos digitais.

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Já discutimos, em outros textos, sobre o fato de a cultura nascer na pessoa e não exatamente o contrário. Posso estar imerso em uma cultura e não me deixar aculturar, do mesmo modo que posso me aculturar sem necessariamente estar imerso em uma cultura. Isso, por si, faz refletir sobre a teoria de Prensky. Mais ainda, se considerarmos que o processo de digitalização não ocorreu homogeneamente no mundo, existindo lugares, e muitos, cuja revolução digital ainda é uma teoria, podemos relativizar a vivência que parte das crianças do mundo tem em relação aos sistemas computacionais e a cultura digital.

Se, por outro lado, problematizarmos a questão da interatividade, considerando que em vários momentos as mídias sociais acabam por não apenas parametrizar as possibilidades interativas, mas efetivamente instruí-las, em uma perspectiva esvaziada de visada crítica, talvez tenhamos pensamentos mais densos sobre quem domina quem, se a tecnologia domina alguns usuários ou se é efetivamente o contrário.

O filósofo Vilém Flusser já chamava a atenção para a possibilidade de sermos meros operadores de máquinas, em seu livro Filosofia da Caixa Preta. O argumento é que os usuários das ferramentas aprendem, ou são treinados, a operar a máquina exatamente como se espera, sem qualquer lastro crítico. Em outros termos, seríamos novos pombos nas caixas de Skinner, o pai da psicologia comportamentalista. O comportamento do usuário não seria apenas controlado, mas absolutamente manipulado.

Ao observarmos alguns comportamentos de jovens e crianças, e mesmo adultos, que atendem aos chamados das mídias sociais, fazendo uso dos apps da moda, sem qualquer criticidade e pudor, somos levados a repensar o uso de inteligente para os operadores de apps, imersos em seus smartphones em todos os pontos da cidade, inclusive em casa.

De início, os recursos tecnológicos deveriam ser tidos como meios para agilizarem e proporcionarem soluções de comunicação e socialização. Mas é comum vermos um estado de torpor em que se encontram usuários de aplicativos, sendo conduzidos cada vez mais para uma dependência de conectividade, sem um lastro utilitário ou de realização pessoal.

A tecnologia, base para a cultura contemporânea, é de tal ordem relevante que seria impensável mantermos nossa cultura sem ela. De elevadores a computadores, sistemas bancários a matrículas escolares, nossa vida é completamente envolvida, direta ou indiretamente, pelos modernos sistemas computacionais. Todavia, o uso mais doméstico e social, movido pelas TDICs - Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação, carece ainda de densidade para alcançar a relevância merecedora do adjetivo inteligente.

Pensar a tecnologia ou a conectividade para resolver problemas sociais, comunitários ou mesmo individuais é uma perspectiva salutar e inteligente. Usar as redes sociais e demais mídias apenas como passatempo social, em uma perspectiva de ócio nada criativo, é atender a demanda de mercado por usuários que efetivamente não criam inteligência, são antes meros manipuladores de interfaces gráficas, sendo treinados para o consumo de informações de baixa ou nenhuma relevância.

No fim das contas, ser um usuário de mídias digitais não indica inteligência, per si. A inteligência da cultura digital está no modo como tais sistemas são usados, e como isso pode impactar uma cultura.

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Viagens no tempo

Entre a realidade, o verossímil e a ficção, situamos nós, humanos, inventores de tempos e espaços, além de muitas histórias. Como não estamos fixos no espaço-tempo, deslizamos suave na nave terrestre, como verdadeiros viajantes do tempo. Nossa nave gira em seu próprio eixo (rotação) a uma velocidade média de 1.700 km/h, considerando a região do Equador. Ao redor do Sol (translação), nossa velocidade é de 107 mil km/h e nosso Sistema Solar atinge impressionantes um milhão de quilômetro por hora, em relação ao centro da galáxia.

Como o universo é analógico, o movimento linear no espaço-tempo é a regra, embora estudos confirmem a existência do buraco negro, ou buraco de minhoca, que são saltos no espaço-tempo, em uma configuração que o faz ter lógica digital, caracterizada pela descontinuidade. Embora essa possibilidade, teorizada pela Física Quântica, se vincule ao espaço-tempo em que vivemos, e que considera a possibilidade de saltos espaciais, no movimento pelo tempo essa possibilidade não é considerada, mesmo que o tempo seja relativo. Ir e vir, entre passado, presente e futuro, é ficção, ainda que pareça verossímil. A flexibilidade temporal diz mais da passagem dele, que se vincula à velocidade da luz. Na velocidade da luz, o tempo é mais lento, afirma o Paradoxo dos Gêmeos, modelizado por Albert Einstein e confirmado experimentalmente.

E se a velocidade de nosso deslocamento no espaço-tempo é, de fato, incontestável, embora variável, conforme nossa velocidade, é em nossa mente que o tempo se mostra mais flexível, quase plástico, podendo ser moldado pelo pensamento, em movimentos completamente digitais. “Terra! Terra! / Por mais distante / O errante navegante / Quem jamais te esqueceria?...” canta Caetano Veloso.

Nessa plástica do pensamento, inventamos o tempo futuro, que é invenção construída a cada dia, em um exercício de prospecção que considera a possibilidade, o virtual e nossa expectativa. A possibilidade como algo já pronto, dado, faltando somente sua existência, como o nascer do Sol; o virtual, como um complexo que se resolve no atual, como uma semente que pode vir a ser árvore - ou não; e a expectativa, interpretação individual de um porvir, que tem cunho mais subjetivo.

Se o futuro é invenção, o passado é uma reconstrução. Como rastro, dele existe apenas seus vestígios, incluindo a lembrança. A existência factual se perdeu no tempo e, como tecido, é comido diuturnamente pelas traças da memória, restando, a cada dia, uma superfície mais e mais porosa que no dia anterior. Essa porosidade é completada por nossas impressões, baseadas no sentimento, na subjetividade que permanece indelével em nossa mente. A cada dia resta menos dos fatos vividos, e a memória adquire mais de nosso modo de ver. Isso explica a sensação de frustração quando queremos reviver uma experiência prazerosa e, quando o fazemos, não se assemelha com o que nos lembramos.

Finalmente, chegamos ao presente, que não é invenção nem reconstrução. Ele é interpretação, é nosso modo próprio de ver os fatos, porque não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos. E é essa a maior lição da Fenomenologia, que não estuda os fenômenos, mas a consciência que temos do fenômeno. Isso também explica a diferença entre o real, que é o todo inatingível, e a realidade, nossa percepção individual do real. O presente, em síntese, é nossa realidade, nosso pequeno e pessoal modo de ver o mundo, com todas as restrições físicas, fisiológicas e psicológicas.

Entre o futuro imaginado, o passado reconstruído, e o presente interpretado, estamos no real presente, em alta velocidade, percorrendo o universo em nossa nave Terra, brincando de inventar futuros e de preencher a porosidade de nosso passado, que teima em fugir, deixando apenas seus rastros. Somos viajantes do espaço-tempo, a vigiar neurônios, a afagar nosso lugar no mundo, no passado, no presente e no futuro.

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Apocalípticos e integrados

O filósofo italiano Umberto Eco discutiu, no livro de 1967 que também atribui nome a este artigo, o fenômeno do mass media – mídia de massa -, e as posições tornadas célebres em relação ao tema. A análise do italiano parece ressurgir quando o assunto é tecnologia digital, mídia pós-massiva e conectividade.

De um lado, o grupo que enxerga nas tecnologias uma perspectiva de melhoria social, com a renovação da cultura e de suas práticas. No extremo oposto, aqueles que veem a tecnologia como instrumento de manipulação e autoritarismo, vinculando-a ao domínio de algumas poucas empresas, detentoras majoritárias das informações existentes no mundo. Esse domínio resultaria em uma situação crítica da sociedade, incapaz de rever seus valores e retomar seu movimento natural e libertário.

Se Eco apontava os erros de ambos os lados, suas contribuições não ficaram em desalento. Tampouco faltou eco para a fala de Umberto, que finalizou sua análise com sugestões de estudos, como a evolução da mídia, seu impacto e influência nas práticas sociais, as articulações entre os níveis culturais decorrentes dessa influência e, por fim, como os valores sociais são afetados, alterados ou criados por força da mídia de massa. Tudo isso grosso modo, como qualquer síntese irrompe sua existência.

O fato é que, a despeito de apocalípticos e integrados, a cultura de massa, com sua indústria cultural, teve seu momento na construção coletiva de uma perspectiva de mundo, de uma sociedade. Perspectivada do momento posterior, e já há algum tempo, o modus operandi social parece repetir, com algumas alterações, o que foi descrito pelo filósofo, agora em relação ao digital pós-massivo.

E será a despeito dos novos apocalípticos e integrados que a trama social viverá seu momento, indelevelmente marcada pela tecnologia. Aliás, já o vive, com suas redes sociais (des)integradoras, com as práticas sociais (des)niveladas, com a perspectiva de fazer melhor orientando uns, e o medo de nos fazermos piores amedrontando outros. E a tecnologia segue, sustentando o modelo social contemporâneo, criado pela Ciência, (des)acalentando a todos. E talvez isso ocorra porque o movimento contínuo da cultura e da sociedade não seja definido por esses dois extremos, mas sua verve esteja justamente entre eles, importando-se menos com suas extremidades que pelo seu corpo volumoso que rege, frenético, a urgência do tempo.

Ainda assim, mantemos a emergência gerida e gerada pelos apocalípticos e pelos integrados. Os últimos, buscando fundamentar um modelo melhor dimensionado de sociedade, com o auxílio dos aparatos tecnológicos e dos conceitos que adjetivam de inteligente o que surge dessa construção social, e os primeiros, supervisionando as práticas estabelecidas a partir desses aparatos, como atentos policiais que asseveram a ordem e sondam, fio a fio, a trama que se forma.

Somos devedores, nessa construção histórica de nosso envolvimento com as mídias, massivas e pós-massivas, dos extremos e do meio, dos Umbertos e dos ecos, que nos fazem ver melhor as tensões teóricas e práticas que nos fazem avançar, retroceder e, principalmente, enxergar nossos movimentos.

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O pensamento e sua permanência na cultura

Desde a invenção da escrita, fato que divide o tempo entre a pré-História e a História (em aproximadamente 3.500 a.C.), sua gravação é uma epopeia. Não bastasse a saga para essa invenção, o modo de manutenção também gerou, ao longo da História, fatos extraordinários, em um número enorme de superfícies e materiais. Pedra, argila, papiro, pele de animais, papel e, mais recentemente, a impermanência dos fluxos luminosos dos pixels, todos esses suportes foram largamente utilizados - e ainda o são.

A conformação da matéria escrita igualmente mantém uma história rica, tendo pergaminhos, códices, incunábulos e livros como objetos mais conhecidos. Recentemente, e-books, arquivos de texto, e-readers, aplicativos e suas variações constroem o repertório de dispositivos e formatos de apresentação da matéria livresca, conteúdo que até há pouco tempo tinha no livro sua conformação mais usual.

Há registros de que, com o surgimento do áudio-livro, na década de 1940, os livros impressos perderiam espaço. Não foi exatamente o que aconteceu. Na década de 1990 futurólogos determinavam o tempo de sobrevida do livro impresso, visto que a tendência era pela eliminação desse objeto em prol de um substituto, o livro eletrônico, conhecido como e-book. De modo similar, a frustração da previsão foi a resposta da cultura. Os livros impressos se mantêm, em fecundo terreno, apesar de crises econômicas resultarem em terremotos para a área, com gráficos em linha descendente. Todavia, a linha indica redução e não desaparecimento.

De outro lado, o consumo de informação cresce, em especial para veículos transmídia - utilizando várias mídias, como TV, rádio, jornal, revista, blogs, vlogs, redes sociais e outros. O hábito de leitura não aterrissa, embora não navegue em céu de brigadeiro.

A leitura e o leitor descobrem novas formas de se construir, fazendo ver que livro, pedra, argila ou pixel são formas de apresentar o pensamento, não de moldar suas formas de existir. A escrita, ao longo de pouco mais de cinco mil anos, experimentou várias condições materiais de apresentação, mas o pensamento é que desafia o tempo, inscrevendo-se na cultura, nos vários estágios, métodos, materiais e tecnologias que ela experimenta.

Seja jornal, livro, revista, e-readers, smartphones ou qualquer outro dispositivo, o pensamento vai mais longe, como o poeta já disse. A imaterialidade do pensamento toma de empréstimo a materialidade do suporte em que se assenta. Mas locus continua sendo a cultura, independentemente do material, da tecnologia ou da mídia. A escrita é a inscrição do pensamento na pele da cultura, mas seu lugar não se prende à determinação da materialidade.

O modelo copista e a ausência de pensamento

O modelo de aprendizagem pela cópia ou observação é uma constante em nossa civilização. Mais que isso, faz parte de nossa e de várias outras espécies. Os chamados neurônios espelhos cumprem exatamente essa missão: o aprendizado baseado na experiência do outro, por observação. Nesse tipo de aprendizado, observar e copiar cumprem perfeitamente as premissas de aprender pelo outro, com o outro. Se algo faz mal ao outro, provavelmente fará mal a mim, se faz bem ao outro, igualmente poderá me beneficiar.

As crianças aprendem, e muito, por esse método. Animais, empresas e toda a sorte de seres e experiências partem dessa perspectiva para superarem o desgaste de uma experiência própria, tornando o aprendizado algo social.

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Todavia, o aprendizado baseado em cópia tomou ares de baixa eficiência quando o copiar se tornou objetivo, e não método. Enquanto artistas e cientistas aprendiam métodos de representação e lógicas físicas e químicas em experimentos copiando seus mestres, assimilando processos lógicos do conhecimento para avançarem, tudo fazia sentido. Quando, contudo, a meta era copiar por copiar, sem perspectiva de ultrapassar o já sabido, tornamos o aprendizado destituído de sentido prático, nem mesmo teórico. Se os animais copiam comportamentos para sobreviverem, humanos parecem copiar apenas para agradar a alguns.

Nos ensinos fundamental e médio, a cópia é um paradigma da aprendizagem. Exercícios de memorização de palavras e frases são constantes, reforçados por avaliações de reproduções de palavras, cópias de pensamentos e ausência de crítica. Mesmo os livros dos professores são distribuídos já com os exercícios resolvidos, de modo a não permitir que professores pensem criticamente, ou corram o risco de errar a matéria que deveriam ser conhecedores. Aos alunos, resta tentar memorizar palavras, no cansativo e enfadonho exercício de preencher espaços em branco, que depende mais da capacidade de memória que de raciocínio lógico. Perdemos a perspectiva de que copiar ajuda como método, não como objetivo.

Já no terceiro grau, a prática do aprendizado baseada na cópia recebe o nome de plágio, com rumores de que seja crime. O mecanismo defendido por vários anos agora é danoso, criminoso. Mas os livros didáticos continuam respondidos nas edições destinadas aos professores. Os textos literários continuam tendo como acompanhamento um encarte comentado, com análises e respostas, para que o profissional apenas copie, replique o que está posto.

O aprendizado baseado na crítica social, no adensamento e na construção da liberdade de pensamento, inclusive interpretativa, parece ser para poucos. Nem mesmo os doutos professores universitários se livram do legado copista. Algumas avaliações nacionais destinadas aos doutores avaliadores de cursos e universidades mantêm a perspectiva de preenchimento de lacunas, sempre com palavras vindas de textos tidos como base. Qualquer sinônimo utilizado, por mais valor semântico ou sintático que acrescente, constitui erro de resposta.

Talvez o erro não esteja em colocar um sinônimo em uma lacuna de um período. O erro, pelo que podemos verificar, está na premissa de um modelo que é método de aprendizagem, não objetivo. Um modelo que se destina tão somente a atualizar o conhecimento, compreendendo-o, para superá-lo, e não para se fixar nele, como tábua de conhecimento e salvação.

O modelo copista, em que pese seu potencial de avanço, apenas alcança o ponto inicial para poder fazer avançar o estado-da-arte da pesquisa, do potencial individual e humano. O mundo precisa superar o neurônio espelho, para não viver em refletir sua própria imagem, em estágio de fixação eterna. A cópia é um primeiro passo, de alinhamento de onde estamos enquanto sociedade e conhecimento, mas adquirir um estilo próprio de caminhar é a perspectiva do mundo e da construção de um pensamento crítico e construtivo. Avancemos para além da cópia, para além de modelos de aprendizagem superados há séculos.

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Cegueira desatencional e eleição

Um método bastante recorrente para deixar um observador cego para algumas coisas é levá-lo a prestar atenção em algo desviante, enquanto ações relevantes são feitas, na vista deste mesmo observador. O fato de ele estar atento a um elemento, deixando passar despercebida uma ação, é chamado de cegueira desatencional. Esse efeito é bastante usual em apresentações de mágicas, em propaganda e também em eleições.

A cegueira desatencional pode ser verificada, por exemplo, quando os elementos desviantes apontam para questões superficiais, enquanto questões fundamentais não alcançam a visibilidade condizente com sua relevância. Esse desvio é verificado em estudos que vão desde o sistema de formação onírica, tratado por Freud em seu famoso estudo sobre a interpretação de sonhos, chamado por ele de deslocamento, até como estratégias do marketing eleitoral, aproveitando temas de interesse do momento ou meramente elementos que desviem a atenção de eleitores menos atentos ao contexto eleitoral.

No terreno político, a prática encontra reforço nas fake news e nos interesses individuais, que acabam se sobrepondo aos interesses coletivos e relevantes. Formatos já tradicionais são as piadas, charges, denúncias, dramas e mesmo pós-verdades - aquelas notícias que não partem da verdade, mas cujos efeitos repercutem com forte impacto, em função de crenças e posições dogmáticas -, usuais desde a Grécia Antiga e, mais recentemente, os memes.

Histórias de gatinhos que abrem os olhos, projetos de confisco de poupanças e salvadores da pátria identificados por adjetivos impactantes são elementos desviantes de itens essenciais, como a discussão de Planos de Governo e de temas verdadeiramente relevantes para o Brasil. Imagens pautadas em temas de grande apelo mobilizador e enunciados fora de contexto fazem parte das artimanhas que provocam leitores, arregimentando-os em tomadas de decisão por impulso. Tais elementos formam o contexto exato da cegueira desatencional, vivida fortemente nos dias que antecedem as eleições.

Enquanto o duelo entre renovação e continuidade é o mote atemporal para as eleições, discussões fundantes como projetos para a Educação, Saúde, Segurança e Cultura perdem espaço, não apenas na mídia, mas principalmente nas discussões entre eleitores, entregues que estão a discussões aguerridas de temas mornos e sem relevância alguma naquele contexto.

Temas que são de decisão do Legislativo passam a ter destaque na disputa do executivo. Alterações que dependem de uma alteração constitucional, portanto dependente de uma Assembleia Nacional Constituinte, passam a ser discutidas como se dependessem de uma mera assinatura de um presidente. Outros tantos que se vinculam a contextos específicos são desviados para contextos gerais, mobilizando exércitos atuantes em redes sociais, levadas pelo fervor de suas posições pessoais, jamais pela estruturação de um pensamento coletivo e minimamente balizado pela alteridade.

A cegueira desatencional é uma estratégia comum em nosso contexto eleitoral, mas seu sucesso depende essencialmente da desatenção e crença de inocentes olhares que se deixam levar por temas, imagens e assuntos desviantes, quando o que temos em jogo é a construção de uma sociedade mais honesta consigo mesma. A criticidade pode ser um antídoto para esse tipo de cegueira, construída na verificação dos fatos e das competências específicas, bem como nos históricos e posicionamentos dos seus candidatos. Outra ação bastante funcional seria conduzir os esforços para confirmar as práticas de seus candidatos e de seus projetos de ação, ao invés de desviar o foco para elencar defeitos e contradições de seus oponentes. Aliás, ainda é incomum que eleitores defensores de alguns candidatos sejam capazes de apontar os projetos defendidos por seus candidatos. A cegueira desatencional, neste caso, é apontar a trava que está no olho do outro, enquanto a sua própria permanece intacta, e crescente.

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A banalidade do mal

O polêmico conceito criado pela filósofa alemã judia Hannah Arendt, aluna preferida de Martin Heidegger, foi apresentado no livro Eichmann em Jerusalém. O livro, publicado originalmente em 1963, a partir dos artigos que publicara como correspondente na revista The New Yorker, discutia o julgamento de Adolf Eichmann, iniciado em 1961, em Jerusalém, e que resultou na pena de morte por enforcamento, ocorrida em 1962, nas proximidades de Tel Aviv. Arendt discutia a perspectiva do mal provocado por ninguém, ou por pessoas destituídas da capacidade do pensar, visto que ela não atribuiu o mal ao nazista julgado, mas via nele tão somente o burocrata zeloso, incapaz de pensar por si.

A banalidade do mal é, para a filósofa, a mediocridade do não pensar, e não exatamente o desejo ou a premeditação do mal, personificado e alinhado ao sujeito demente ou demoníaco. Como postura política e histórica, e não ontológica, a banalidade do mal se instala por encontrar o espaço institucional, criado pelo não pensar. Em Eichmann, Arendt via não alguém perverso ou doentio, sequer alguém antissemita ou raivoso, mas tão somente alguém que cumpre ordens, incapaz de pensar no que realmente fazia, mantendo o foco somente no cumprimento de ordens.

Diante de destratos e violências físicas e verbais a que testemunhamos, e que certamente alguns leitores protagonizam, cotidianamente, em redes sociais e pelos jornais, não há como negar que daríamos farto material para a discussão da filósofa, nesses momentos críticos da eleição presidencial brasileira. Ao extremismo não falta apenas alteridade - a capacidade de se colocar no lugar do outro -, mas falta o pensar. As posições políticas e históricas assumidas banalizam o bullying, a violência e a ação, sejam elas uma replicação de post, um compartilhamento de fake news ou a realização de comentários agressivos contra seus opositores políticos, que se sobrepõem a amizades, à família e a crenças religiosas.

Tais quais movimentos da manada, a horda faz fugir o pensamento, deixando o espaço necessário para que a banalização do mal se instale. Relatos de amizades desfeitas, grupos de família e de bairros em crise diante de posições políticas acirradas em que não há respeito, mas despeito, pelas posições contrárias, a proliferação do bullying, político, histórico, é farto material para a discussão central de Arendt.

Embora a mídia tecnológica seja, de fato, pós-massiva, a massa continua sendo uma perspectiva de manipulação, inclusive e principalmente por ações acríticas, motivadas por consenso institucional: os exemplos de violência parecem ser regra nas relações entre eleitores, tal qual entre torcedores. A massa incapaz de pensar age, acéfala, não enxergando o mal que comete, socialmente. Mas ressente-se, quando igualmente agredida, o que a impele a responder, com maior violência ainda. Cria-se o círculo vicioso da banalidade do mal.

Ainda que não se queira comparar os contextos utilizados pela filósofa e neste artigo, não há dúvida de que vivemos uma banalização da violência, por motivações políticas. Por sorte, eleições passam, e a maior parte dos eleitores esquece seu ardor de defesa, suas posições políticas inquebrantáveis, provando que a tese de Arendt tem sua aplicação: a mediocridade do não pensar não é ontológica, mas política e histórica.

Cleomar Rocha

Possui Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (2004), pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP/2009), pós-doutorado em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011), pós-doutorado em Poéticas Interdisciplinares pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Goiás, onde coordena o Media Lab/UFG, o Observatório de Economia Criativa de Goiás e do Núcleo de Tecnologias Assistivas da UFG. É pesquisador visitante na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde supervisiona pesquisas de pós-doutorado e na Universidade de Caldas, na Colômbia, com orientação de doutorado. Tem projetos financiados pela FINEP, MDIC, MCTI, CAPES, CNPq, MinC e FAPEG. É coordenador executivo do Arranjo Produtivo Local em Audiovisual e Games de Goiânia.