Sociedade

Autor

Cleomar Rocha

Possui Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (2004), pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP/2009), pós-doutorado em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011), pós-doutorado em Poéticas Interdisciplinares pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Goiás, onde coordena o Media Lab/UFG, o Observatório de Economia Criativa de Goiás e do Núcleo de Tecnologias Assistivas da UFG. É pesquisador visitante na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde supervisiona pesquisas de pós-doutorado e na Universidade de Caldas, na Colômbia, com orientação de doutorado. Tem projetos financiados pela FINEP, MDIC, MCTI, CAPES, CNPq, MinC e FAPEG. É coordenador executivo do Arranjo Produtivo Local em Audiovisual e Games de Goiânia.

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Po(r)ética para as cidades

O filósofo grego Aristóteles definiu a poética como sendo uma estratégia de produção de encanto. Para ele, a poética é um modo de provocar efeitos, a partir do conhecimento e domínio estratégico das várias linguagens. Em seu texto Poética, o filósofo exemplificou a poética a partir da estratégia usada no teatro, enquanto modalidade literária. Tragédia e comédia são exemplos tidos no texto aristotélico.

O filósofo grego Aristóteles definiu a poética como sendo uma estratégia de produção de encanto. Para ele, a poética é um modo de provocar efeitos, a partir do conhecimento e domínio estratégico das várias linguagens. Em seu texto Poética, o filósofo exemplificou a poética a partir da estratégia usada no teatro, enquanto modalidade literária. Tragédia e comédia são exemplos tidos no texto aristotélico.

É também de Aristóteles a primeira discussão que separa ética da política. Para ele, ética se vincula à ação voluntária e moral do indivíduo, enquanto a política se volta para as questões da pólis, da cidade. Ética é posicionamento individual, enquanto política é um posicionamento comunitário. A ética na política, nesse sentido, seria um posicionamento de moral individual ao se pensar e atuar em prol da cidade, como espaço comunitário, espaço social compartilhado.

Em tempos de turbulência da ética na política, ou da falta de ambos os preceitos aristotélicos no tecido social, parece nos sobrepor a necessidade de pensar a poética voltada para a pólis, para a cidade. Em Aristóteles, a cidade é o berço da civilização e a causa da associação humana. A cidade é um dos principais círculos em que o homem se move, precedendo a família, respondendo a um impulso natural. Dos círculos de relacionamento, a cidade é o responsável pela constituição da sociedade, base de bem-estar social e, consequentemente, individual. Em sendo o humano um ser social, a cidade representa a otimização da espécie, espaço ótimo para sua plenitude evolutiva.

Propor poética para as cidades alinha, desde a Grécia Antiga, embutir a ética e a política, o individual e o comunitário, na produção de encantamentos voltados para a comunidade, para a vida conjunta. Se a ética é pessoal e a política é comunitária, a poética se volta para modos de operar a cidade, suas linguagens e seu alicerce, os cidadãos, na perspectiva de o efeito ser a melhoria da qualidade de vida, da sociabilidade.

Não creio que a ausência de ética seja um problema da política, mas sim da sociedade. O problema da política é não pensar a comunidade, como deveria. A sociedade padece de falta de ética como princípio da cultura, não como princípio da política. Talvez, e apenas talvez, a poética possa ser um belo caminho para ser seguido, justamente por produzir encantamentos, por sensibilizar as pessoas por seus efeitos.

E entre feitos, efeitos e defeitos, a poética para a urbe, que reúne estratégias para cidades melhores, poderia ser alternativa para repensar as experiências de cidadania, assumindo a ética como elemento formador, inclusive da palavra. Poética, por ética nas cidades.

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Os gritos e o silêncio das urbes e tribos

Causou estranheza a prisão do performer Maikon K, ocorrida em Brasília, em 15/07/2017, durante a apresentação performática DNA de DAN, de frente ao Museu Nacional da República, atividade que compunha o Festival SESC Palco Giratório. A estranheza não se limita ao cerceamento da expressão artística, sob a alegação de ofensa ao pudor - o que por si só mereceria ampla discussão. Ela se estende ao conceito próprio de pudor, e às formas de fazer emergir uma performance social, de vozes que caladas, gritam ou sussurram pelas cidades.

Literal e metaforicamente, a Polícia Militar do Distrito Federal rasgou a bolha do DNA de DAN, fazendo aflorar a pele da cultura, que seca presa ao corpo, impedindo que a pele sensória emerja. Por mais incrível que possa parecer, a PM DF acabou participando de um afloramento artístico social, quando a intenção era suprimi-lo.

Há um outro mérito da performance, que não o silêncio buscado pela repressão: são os gritos nas redes sociais. Julgamentos e xingamentos de todos os lados, cores e timbres. São comentadores de todos os assuntos, mesmo sem entender sobre nenhum, são os ávidos colecionadores de likes, os provocadores de plantão e os ingênuos sobre Arte, em sua maioria. Seus desejos de gritar, não importando muito sobre o quê, apenas pelo desejo de impor seu pensamento, sua lógica, seu lugar de deus no mundo, são uma tônica que rivaliza com a dialogicidade, com a urbanidade e sociabilidade.

Brados de apoio à repressão, à descontextualização do ato artístico, ao retorno ao lugar comum, à mediana mediocridade do mundo, em que o diapasão iguala e torna tudo a mesma coisa, toma a dimensão de um câncer social, corrompendo cruzes, credos, corpos e mentes, na demência de uma lógica vazia.

Li um internauta questionar o reconhecimento do artista pelo fato de ele, o internauta, nunca ter ouvido nada sobre ele, o artista. Como se ele, o internauta, fosse um interessado por arte. Talvez esse internauta não tenha lido ou ouvido nada também de Matisse, Braque, Pollock, Siron Franco ou Antonio Poteiro, e esse desconhecimento fosse o motivo da insignificância desses artistas, quando o que ocorre é o afloramento da prepotência e ignorância dele mesmo. Nem na matéria legal essa justificativa é validada, pelo contrário, é fato que a ignorância sobre a lei não desobriga a sua obediência. E a lei assegura, ou deveria assegurar, a livre expressão, a arte e os credos - ainda que seus agentes nem sempre cumpram seu dever. E a lei assegura, também, o direito à expressão do pensamento, por mais torpe ou ingênuo que seja.

O DNA de DAN, de Maikon K, ganhou a dimensão de performance social, com todos os elementos compostos pelo artista: a bolha, a secura de uma pele sintética morta, a pressão que ela exerce na pele sensória, a ativação de uma visada profunda e a singularidade da provocação da arte.

A tríade grega poética, estética e catarse é, novamente, movida pela arte: a poética como estratégia de linguagem; a estética como um programa de gosto; e a catarse como uma purificação pela expurgação.

Independentemente de achares e pareceres, de conhecedores ou desconhecedores da Arte, o fato é que a ação performática deflagrou uma possibilidade de colocar a Arte no centro de discussões sobre seu papel, seu lugar, seus pontos de vista, sua ontologia provocativa, questionadora e crítica.

Por mais lastimável que a opressão sofrida pelo performer seja, a tentativa de silenciar a Arte é, sempre, frustrada, porque em seu silêncio ela grita, e seu brado ressoa legítimo, numa catarse social que expurga a insensibilidade. A Arte é o ápice da invenção humana, sempre renovada, sempre simbólica, sempre atrelada com os mais elevados conceitos de humanidade, sensibilidade, sociabilidade e transcendência. Um viva para a Arte.

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A arte está nua

A nudez é algo recorrente na história humana. Desde antes dos gregos, desde os artefatos pré-históricos, passando por todas as fases, movimentos, períodos e culturas, a nudez humana é alvo de interesse, dos mais variados tipos. Na cultura, na economia, na arte, na medicina ou na história, na fotografia, no cinema, na escultura, na holografia, nos pensamentos mais nobres e mais mundanos, a nudez parece bradar seu espaço, requerer seu posto de ícone de nossa condição.

A arte, igualmente, desvela nossos medos, nossos sonhos, nossos desejos, expondo a uma condução poética, estética, catársica, as agruras e tessituras da sociedade, da subjetividade, da projeção dos eus. Nisso consiste a gênese da arte, produto humano, cuja finalidade é humanizar, afetar e vencer nossa carne, transcender nosso espaço-tempo. Para fomentar e guardar nosso pequeno tesouro de subjetividades, inventamos os museus, fiéis depositários de nossa produção, guardiões da historicidade da sensibilidade humana.

Mas eis que a nudez humana se revela, não exatamente nos museus, mas em função deles. Em um momento foi pelo Museu Nacional da República, em Brasília, e noutro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A agressividade de falas e posturas, a incitação à violência e as palavras de baixíssimo calão contrastam com a intenção de zelo pela cultura ou cuidado para com as crianças. Os desvarios e descontroles são sintomáticos, inclusive nas quase cômicas confusões: sem saber a quem atacar, metralhadoras verbais cospem ameaças para museus errados - MAM Rio e MASP sofreram ataques verbais em seus sites, em 2017 - em clara deformação de foco. Talvez, de fato, não seja deformação de foco, seja o desejo de acabar não apenas com a arte e seu guardião, mas com uma cultura completa, em nome do autoritarismo de um olho só.

Somos favoráveis à arte, desde que ela passe pelo meu crivo - bradam alguns. De modo similar, bradam ser favoráveis ao ensino religioso, desde que da sua religião. Sintomática, a cultura se rebela da ausência do ensino das artes. O estranhamento e a negação da produção em arte é mais reflexo de uma falha na política e na educação da arte e da cultura, que uma falha da própria arte. Quando estádios, sambódromos, camelódromos e até conventilhos são mais frequentados que museus e escolas, o resultado não poderia ser outro: estranhamentos.

Os ataques à performance, ao performer e ao MAM-SP não dizem respeito à nudez, base poética milenar encontrada em todas as culturas de todos os tempos. A nudez que estarrece e preocupa é da violência baixa, mesquinha e prepotente que apequena a sociedade, com enunciado zeloso pela cultura e enunciação violenta que a destrói. Estamos a ponto de nos tornarmos um Estado Islâmico destruindo Palmira. Mas é preciso lembrar que jamais apagaremos o passado. O que conseguimos destruir será sempre nosso futuro.

O Brasil está nu.

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A cultura arde

O fogo consumiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, como o último lampejo de um fim previsível. Com o fogo, também foram milhares de documentos, peças históricas, arqueológicas, pesquisas, arte e memória. 200 anos, mais de 20 milhões de peças, que incluía o crânio de Luzia, fóssil mais antigo das Américas, foram convertidos em pó, como tem ocorrido com os espaços de cultura, e a própria cultura, em todo o território brasileiro.

O Museu Nacional já havia fechado suas portas para visitação em 2015, por falta de manutenção. Agora vê suas portas e teto abertos pelas chamas, que chama a atenção, comove alguns, mas dificilmente alterará um fato que soa como ruído branco aos ouvidos já surdos de uma nação: a cultura arde. Arde pelo fogo que destruiu o Museu da Língua Portuguesa, o Museu Nacional e alguns outros espaços da própria UFRJ, instituição de vínculo do Museu Nacional. Arde pelas chamas do esquecimento, consumindo a história, o presente e o futuro identitário de um Brasil pouco afeito a espelhos, porque as janelas parecem mostrar paisagens mais interessantes, embora saibamos que nossos bosques têm mais vida, e aqui há gorjeios que não existem lá. Arde pelas predileções de políticas públicas aos novos palácios, deixando a história e a cultura perecerem sob a poeira do descaso e pelo fogo das vaidades, das urdiduras e conluios, do pensamento do salve-se quem puder.

Enquanto Medelin, na Colômbia, se reinventou a partir da cultura, o Brasil implode, deixando em ruínas sua cultura, com batimentos insuspeitos de seu pulsar fragilizado. Nosso coma social apenas faz ver o modus operandi de caos insuspeito, sustentado pela lógica abdutiva de um povo que se comove sem aprender a lição, que chora pelo cadáver, mas não medica seus outros moribundos, que faz vaquinha para reconstruir o que foi perdido, quando não se importou em deixar perder.

Nosso infortúnio talvez não seja o consumo, pelo fogo, de 200 anos de história e pesquisa, mas de 500 anos de ausência de planejamento, de responsabilidade e compromisso com o social. A UFRJ, tal qual várias outras Universidades Federais e Estaduais, encontra-se em situação de penúria, enquanto os temas de educação e cultura são recorrentes nos discursos insonsos dos candidatos de plantão, que já estiveram tantas vezes despachando sem atentar para tais temas, visto que não geram caixa 2 ou propina.

O fogo do Museu Nacional escancara nossa falta de perspectiva para o país, o mesmo que gastou mais de um bilhão de reais com uma intervenção militar que não alterou as estatísticas ruins do estado fluminense em crise; que gasta mais de 1,7 bilhão de reais para as campanhas eleitorais, mas permite que pessoas morram sem atendimento médico, que museus queimem sem um sistema de alarme de incêndio, que o ensino médio agonize pela falta de aderência com a realidade em que vivemos.

Nosso incêndio faz arder o presente, levando pelos ares as cinzas do nosso passado e do nosso futuro. Já não temos um Museu Nacional e sua ilustre e pouco conhecida coleção - por isso muitos não se sentirão afetados. O incêndio, de fato, é um último lampejo de um fim previsível, ocasionado pelo descaso que brilha com a intensidade das labaredas que aumentam de dimensão e intensidade, mas que deixam como rastro apenas a destruição e a sensação de impotência frente ao pensamento que opera nos gabinetes - que trabalha intensamente nas campanhas, mas descansa em berço esplêndido nos mandatos -, casas - que constroem muros e grades, defendendo-se das cidades - e escolas - cujos índices de eficiência são vergonhosos, mas qualquer mudança é contestada antes mesmo de compreender que precisamos mudar.

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Necessidades humanas e o bem-estar nas cidades

O psicólogo estadunidense Abraham H. Maslow desenvolveu um conceito que determina as condições necessárias para o ser humano atingir sua satisfação pessoal. Para Maslow, existem necessidades básicas e elementares para a sobrevivência, que detêm o nível de prioridade, indo a níveis menos determinantes para a vida, mais vinculados à satisfação e bem-estar. Há, para o psicólogo, uma hierarquia dessas necessidades, que partem das necessidades fisiológicas, passando pelas necessidades de segurança, sociais, status ou estima e finalmente, no topo, as necessidades de autorrealização.

O diagrama desse conceito ficou conhecido como Pirâmide de Maslow, que organiza em cinco níveis as necessidades humanas, em um processo hierarquizado. O avanço da base dessa pirâmide para o topo depende da satisfação das necessidades de cada nível.

O primeiro nível diz das necessidades fisiológicas, como o alimento, a água, a respiração, a excreção e o abrigo. São as necessidades básicas para a manutenção da vida. Prover essas necessidades é primordial e, sem esse provimento, nenhum outro fará sentido, visto que a ausência deles coloca a vida em risco.

Nas cidades, as ações de atendimento à saúde encontram-se neste nível, além de ações humanitárias e de assistência social, provendo ao cidadão as condições de sobrevivência.

O segundo nível, das necessidades com segurança, indica uma relação entre o lastro da vida e o lastro psicológico. Ter segurança na cidade, nas casas e até na saúde, com os planos de saúde, por exemplo, estão nesse nível. Na cidade, o conceito de segurança pública se alinha a esse nível, embora ele diga respeito a todo tipo de segurança - alimentar, individual, de trânsito etc.

O terceiro nível, das necessidades sociais, se vincula ao lastro de pertencimento social, de grupos, como família, amizade e amor. Nas cidades, o pertencimento à cidade é exemplo, bem como os grupamentos de bairros, religiosos e comunitários. Espaços públicos destinados a esse quesito, como parques para as famílias, praças para grupos culturais e esportivos e mesmo escolas, fazem parte deste grupamento.

O quarto nível, as necessidades de status ou estima, indica a satisfação pessoal com o reconhecimento das suas capacidades por outras pessoas ou grupos. É a auto-estima, a capacidade de uma pessoa em se orgulhar de si mesma pelos seus feitos a partir do reconhecimento conquistado, bem como o reconhecimento dos feitos dos outros. Estão nesse nível as questões específicas de poder, orgulho e reconhecimento, dentre outros. Nas cidades, dar motivo ao cidadão de orgulhar-se de morar ali é o melhor exemplo. Melhoria das condições urbanas, elaboração de lugares e serviços diferenciados, que resultem em autoestima para o cidadão.

No último nível, topo da pirâmide, estão as necessidades de autorrealização, compostas pela independência, a exercício pleno de suas capacidades, controle de suas ações, a possibilidade de fazer o que se gosta, com satisfação. Nas cidades, o pleno exercício da cidadania é o melhor dos exemplos. Conhecer seus direitos, ter atendimento satisfatório e eficiente do poder público, poder usufruir dos bens e serviços públicos em sua completude compõem esse nível.

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Maslow considera uma hierarquia dos níveis de necessidades, de modo que para passar para o segundo nível a pessoa terá que ter suas necessidades de primeiro nível completa ou parcialmente atendidas, indo na sequência até o topo da pirâmide, quando suas necessidades dos quatro níveis anteriores estiverem atendidas, ainda que parcialmente.

As necessidades cognitivas foram propostas por Maslow após a construção do diagrama da pirâmide, vinculadas à autorrealização: conhecer e compreender o mundo à sua volta e a necessidade de satisfação estética.

As cidades atendem ou buscam atender as necessidades humanas em seus vários níveis. As necessidades de primeiro e segundo níveis são, em grande parte, previstas em nossa Constituição Federal, como garantias do cidadão. As demais necessidades são supridas a partir da implantação de projetos que atentem para estas finalidades. Projetos de automação de processos resultam em melhor acompanhamento, por parte do cidadão, de suas solicitações, gerando bem estar no nível 4, de autoestima, na medida em que gera orgulho de uso de tecnologia e métodos modernos em sua cidade, e no nível 5, que estimula o controle que ele tem sobre processos, com bons níveis de empoderamento.

De modo geral, os projetos de cidades inteligentes devem contribuir para o atendimento das necessidades de todos os níveis, otimizando todos eles, seja no cadastro e distribuição de cestas básicas para a população carente, no atendimento imediato à saúde, na otimização da segurança pela iluminação pública e policiamento municipal, na criação de ações de pertencimento, em belas áreas públicas que resultem em orgulho de viver naquela cidade. O ideal de projetos é o provimento de todos os níveis de necessidades, inclusive enxergando a diversidade dos munícipes e seus interesses.

Se temas como saúde, educação e segurança são fundamentais para as cidades, não menos importantes, embora em escala menor de prioridade, são os demais temas. Ainda que saúde e alimentação sejam absolutamente prioritários, eles não são, sozinhos, elementos que garantam nossa satisfação pessoal, nossa realização. Pensar na complexidade das necessidades humanas ajuda a pensar, inteligentemente, em projetos para as cidades.

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Mobilidade e imobilidade nas cidades

As discussões sobre mobilidade nas cidades têm conquistado espaços cada vez maiores, com perspectivas de soluções ou, no mínimo, de enfrentamento do problema. Questões como a quantidade e qualidade das vias, os sentidos de tráfego, os modais - principalmente voltados para transporte público -, a malha viária, a identificação de origem e destino de pessoas, dos carros e cargas, a quantidade de automóveis, a educação no trânsito e a poluição são temas que ganham destaque quando a mobilidade ganha o prefixo indicativo da falta dela. Quando uma solução se torna problema, não resta outra coisa a fazer se não buscar uma solução para os problemas de mobilidade, que em si é uma solução para se viver nas cidades.

São Paulo reduz o problema da quantidade de carros nas ruas adotando o rodízio - em horários específicos determinados automóveis estão impedidos de transitar, organizados pelos números de placas -, além de reduzir a velocidade em determinadas vias. Paris já impediu o trânsito de automóveis em determinados dias, para reduzir a poluição. Roma proibiu o trânsito de carros no centro histórico, como medida de proteção ao patrimônio. Brasília muda o sentido de algumas vias em determinados horários, observando o maior fluxo na cidade. Dentre os enfrentamentos do problema, ideias como alterar sentidos de vias, aumentar a quantidade e ampliar as vias, mudar horários de trabalho regulando fluxos, buscar modais diferentes - como bicicletas, motocicletas, ônibus, metrô, BRT (Bus Rapid Transit), VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) - e usar a tecnologia para melhorar os fluxos, problematizam a questão da mobilidade urbana, propondo soluções de várias ordens, desde as vias, os veículos e os fluxos.

O uso do modal bicicleta se tornou vedete nessas discussões, embora o veículo em si não resolva o problema, do mesmo modo que um carro em si não é o problema. Para o carro há a necessidade de vias, sinalização, rotas, regulação e ordenamento de fluxos, além de infraestrutura de apoio, como postos de combustível, oficinas, borracharias, além de um sistema de capacitação e educação dos usuários. Para bicicletas não é diferente. Não basta criar ciclovias ou ciclofaixas, é preciso possibilitar o uso da bicicleta, a partir de uma infraestrutura urbana capaz de apoiar esse uso, fazendo de fato surgir daí uma alternativa de deslocamento na cidade. Ações como disponibilizar ciclofaixas em horários específicos nos fins de semana e mesmo oferecer um sistema de bicicletas compartilhadas não resultarão em melhoria da mobilidade urbana, estas ações estão claramente voltadas para o uso de bicicletas como lazer ou, no máximo, como modo exercício físico, mas definitivamente não são ações sobre mobilidade.

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Atualmente, o cidadão perde muito tempo em seus deslocamentos urbanos. Por vezes a espera em pontos de ônibus responde por grande parte desse tempo perdido, do mesmo modo que nas retenções e congestionamentos do trânsito. O problema da mobilidade requer o enfrentamento devido, de modo inteligente e determinado. Se a tecnologia ajuda o usuário a se organizar, otimizando seu tempo em deslocamento, ela também auxilia os gestores a planejar, executar e corrigir as regulações. A informação pode e tem sido uma grande ferramenta para reduzir os problemas de mobilidade urbana, ou da falta dela. Aplicativos que indicam áreas de retenção e oferecem rotas alternativas são exemplos, do mesmo modo que aplicativos que informam ao usuário do transporte coletivo em quanto tempo passará seu ônibus ou metrô. Monitoramento do tempo médio de espera, de deslocamento pela cidade, identificação de gargalos no trânsito, com indicação de locais e horários, são informações que possibilitam a tomada de decisão para modelos mais racionais de deslocamento nas cidades, evitando que se chegue a soluções de proibição do uso de determinados modais.

Do outro lado, um sistema racional e inteligente não resolve o problema se os usuários não respeitarem tais fluxos. Atravessar cruzamentos com sinal fechado, desrespeitar regras simples de convivência no trânsito, não usar a seta indicando conversão, dispensar passarelas e faixas de pedestres para se aventurar nas vias são problemas que atingem a mobilidade, e constituem prática danosa para a inteligência das cidades.

Uma cidade inteligente diversifica os modos possíveis de deslocamento, buscando na informação a base das políticas implementadas sobre o tema, com uma infraestrutura capaz de orientar os fluxos de pessoas, na complexidade do ir e vir contemporâneo. Cidadãos inteligentes compreendem que a cidade é um espaço compartilhado, e a educação no trânsito é instrumento simples de civilidade, tendo os usuários como maiores responsáveis em sua implementação, qualquer que seja o modal usado. Uma cidade em movimento precisa de soluções de mobilidade, condição para permanecer em movimento. Informação e educação são um caminho pavimentado para soluções de mobilidade, com fluxo em via de mão dupla: da infraestrutura da cidade para o cidadão e do cidadão para a cidade.

Cibercidadania

O conceito de cidadania está vinculado, desde seus primórdios, à participação de um governo, ao menos no que diz respeito a propostas que repercutirão na sociedade. No Brasil, audiências e consultas públicas reforçam a perspectiva de que o poder é exercido pelo povo, a partir de sua representação, democraticamente eleita pelo voto, ainda que ambos estejam em um nível de sugestão, não de decreto, como ocorre nos plebiscitos (do Lat. plebiscitu - decreto da plebe). Embora em teoria isso seja fato, na prática não se verifica a representatividade a partir do voto, visto que as matérias levadas à discussão são mais numerosas e urgentes que aquelas constantes de qualquer programa de governo, e mesmo as tomadas de decisão estarem sujeitas a uma diversidade de interesses, além do interesse do povo.

As audiências e consultas públicas têm se tornado comuns em matérias legislativas, com enquetes frequentes nos sites da Câmara Federal e Senado Federal. Em alguns estados e até municípios, o procedimento é instalado, como modo de prover uma maior participação popular. Nos ambientes executivos, a prática é menor, embora exista, principalmente para tomada de decisões sobre espaços públicos e suas destinações.

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As tecnologias de comunicação têm conseguido viabilizar essas ações, otimizando um processo que remonta o surgimento da democracia, na Grécia Antiga. A tecnologia, ainda que frustre alguns pela sua abrangência ainda limitada, é o meio mais eficaz de possibilitar a manifestação espontânea em matéria de cidadania. Como tal, estamos diante de uma prática social legitimadora para o exercício da cidadania, que podemos reconhecer como cibercidadania, ou a cidadania exercida a partir de ferramentas tecnológicas - o prefixo ciber faz a indicação do contexto cibernético, na orientação tecnológica da ferramenta e ambiente de consulta.

Se, de um lado, o uso de ferramentas tecnológicas em ambiente de rede promove uma maior transparência e controle das ações e serviços públicos, de outro consegue promover o exercício da cidadania, pela participação popular. As ferramentas interativas, organizadas em fluxos de comunicação pós-massivas, distintamente dos meios de comunicação de massa, figuram como meio ideal para realizar uma participação efetiva da população nos desígnios da sociedade, de modo verdadeiramente democrático.

A cibercidadania, nesse aspecto, se coaduna com as prerrogativas de vínculo original da população com suas decisões, respeitando sua vontade. É o mecanismo tecnológico de reivindicar o justo lugar do cidadão nas esferas decisórias do governo, ainda que por meio de consultas e audiências, não tendo força de decreto, como apontado. Ainda assim, parece que esse vetor possível tende a ganhar musculatura, resultando não exatamente na reinvenção da democracia pela tecnologia, mas certamente no modus operandi do exercício da cidadania, mediada pela tecnologia.

A democracia e o palanque nas redes sociais

Inglória a tarefa de alcançar informação reconfortante ou minimamente confiável nas redes sociais. Os posicionamentos agressivos, extremistas e antidemocráticos disputam visibilidade com imagens de animais, vídeos nem tão engraçados assim em um barroquismo informacional contemporâneo. De modo assustador vemos pessoas que se dizem democráticas se desfazerem da maioria e se posicionarem autoritariamente como detentoras da verdade, da opção correta, dos desígnios do mundo. E ainda afirmam que a maioria está acabando com a democracia. Talvez estejamos gerando um paradoxo social: se a maioria se posiciona de um modo desacreditado por uma minoria, seria democrático essa minoria definir um caminho para a sociedade? Ou seria mais sensato levantar discussões, com base em argumentos?

Paradoxos à parte, é preocupante o número de replicações de notícias falsas, posicionamentos questionáveis e uma expressão desregrada, impensada e inconsequente. As redes sociais são de acesso público e, mesmo quando estamos em contextos fechados, como em grupos de amigos, a lógica da ressonância cibernética (buzz na rede) faz com que os posts prosperem e alcancem públicos diversos em tempos diversos. Isto equivale dizer que todas as nossas postagens são públicas e atemporais, passíveis de serem enviadas para toda e qualquer pessoa, hoje, amanhã ou daqui a dez anos. Este ambiente exige, por si, responsabilidade. Eticamente deveríamos pensar se cada postagem que fazemos reflete de fato o que pensamos, e se este pensamento é passível de exposição pública, para todo o sempre. Ainda que não saibamos o que virá, responsabilidade e ética são a dose necessária para que não soframos amanhã as consequências de nossas ações hoje.

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A responsabilidade e a democracia correm risco nas redes sociais, nos comentários e replicações de má fé que perambulam pela Internet. A ferocidade de respostas e comentários, maldosos e falseados em sua maior parte, por ignorância e ingenuidade em outra parcela, desviam discussões e, em boa parte das vezes, deixa a discussão argumentativa, quanto ela existe, a passa para agressão verbal, posições individuais e uma crença absurda de que a expressão, garantida em nossa constituição, se sobrepõe à lei, à ordem e ao bom senso.

O sociólogo francês François Dubet construiu uma perspectiva de análise da experiência social baseada em três dimensões lógicas: a estratégica, que remete ao útil; a de integração, que remete ao social; e a subjetiva, que remete à realização subjetiva. Neste escopo, seria lícito analisar o comportamento tido nas redes sociais, como ambiente de interações. Na dimensão da lógica estratégica, os falseamentos e a má fé tem endereçamento certo, a saber provocar instabilidade, dúvida. Esta ação contraria a construção do discernimento social. Neste sentido, o pretendido é a ignorância, na mais acintosa afronta social possível. Na dimensão da lógica da integração, a dissociação é o pretendido. Terrorismo sociocomunicacional. Resta saber qual a lógica advinda da dimensão da realização subjetiva alcançada por estes detratores sociais. Mas todos sabemos, na verdade.

Será preciso lembrar que as redes deveriam ser sociais, e não antissociais, como por vezes somos levados a acreditar. Que a conectividade proporcionada pelas tecnologias da informação e da comunicação pretenderam, em seu nascedouro, elevar o nível das discussões, ampliando repertórios, argumentos e inteligências. Contudo, a contribuição de muitos vai de encontro a esta perspectiva, criando rotas de colisão por todos os lados, em desrespeito ao outro e à sociabilidade, ao bem comum.

No palanque das redes sociais, não podemos permitir que o discurso mais ouvido seja antidemocrático, pautado pela maledicência, intolerância e falseamento. Sejamos críticos e inteligentes, capazes desse enfrentamento que é, antes de tudo, responsável e ético.

As redes sociais, como palanques contemporâneos dos discursos descomprometidos, ainda que engajados, não devem se converter em octógonos, até porque não o são.

Por redes sociais baseadas em fatos e argumentos, pela livre expressão responsável e ética. Que os maledicentes não encontrem ressonância em nossas redes ou em nossa sociedade. O Brasil merece discursos e posições mais inteligentes e sensatas. Parafraseando Quintana, eles (e também nós) passarão, mas o Brasil, passarinho.

Quadrilha social

João curtia Teresa no Facebook, que seguia Raimundo no Instagram, que compartilhava os posts de Maria no Twitter, que visualizava as imagens do Joaquim no Pinterest, que assinava o canal da YouTuber Lili, que não seguia, curtia, compartilhava nem visualizava ninguém, só tinha olhos para ela mesma. João foi para os Estados Unidos trabalhar com mídia social, Teresa para o convento, mas não conseguiu deixar o WhatsApp; Raimundo morreu de desastre de carro enquanto tentava responder uma mensagem pelo Telegram , Maria faz videoconferência por Skype com a tia, Joaquim suicidou-se quando descobriu que suas contas do Tumblr, Vimeo, Snapchat, Badoo e Tinder foram raqueadas e Lili perdeu seguidores quando vendeu espaço em seu canal para fazer propaganda do J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história, mas queria visibilidade depois de ter compartilhado notícias falsas e perdido espaço nas mídias sociais.

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Curtir, seguir, compartilhar e visualizar podem parecer, hoje, mais importantes que João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim ou Lili, embora, de fato, os substantivos acionem os verbos. O protagonismo das redes e mídias sociais continua sendo das pessoas, que escolhem os meios, as mensagens e as abordagens para se mostrarem, posicionarem, defenderem e expressarem sua forma de ver e entender o mundo. As ações expressas pelos verbos não se desvinculam de seus autores e, cada vez mais, será preciso lembrar que postagens nas redes e mídias sociais equivalem à praça pública, em apresentação contínua. Fechar a porta do quarto e abrir as janelas do mundo implica em mostrar ao mundo nosso modo de pensar e agir. Compartilhar notícias falsas, por ingenuidade, ignorância ou má fé, significa espalhar que o autor do compartilhamento é ingênuo, ignorante ou malfeitor.

A construção de relacionamento social on-line requer cuidados, como aqueles que temos ao nos tornarmos amigos de fato de determinadas pessoas. As mensagens que compartilhamos igualmente devem ser averiguadas, para que nossa quadrilha on-line não seja criminosa, mas que persevere a partir da ética, da informação, da comunicação e do respeito, bases da sociabilidade e civilidade, mesmo on-line.

O mundo se preocupa com a propagação de notícias falsas nas redes sociais, criadas por malfeitores e compartilhadas por internautas incautos ou igualmente perniciosos, sedentos pela novidade do dia e por curtidas a qualquer preço. Mas o preço pode ser a vida de alguém, como ocorreu com Fabiane Maria de Jesus, casada, 33 anos e mãe de duas meninas, espancada publicamente na cidade de Guarujá, São Paulo, no dia 3 de maio de 2014, dois dias antes de morrer vitimada pelas agressões sofridas. A morte nem sempre é o resultado dessas quadrilhas que compartilham a mentira. A desinformação começa a se tornar crônica, colocando a sociedade em uma crise aguda.

A quadrilha do poeta, tão viçosa e inventiva, encontra no black mirror um correlato insosso e perigoso. Seja no LinkedIn ou Foursquare, ou qualquer mídia ou rede social, as mensagens que espalhamos, compartilhamos, curtimos ou apenas visualizamos não são ingênuas. Também nós não podemos ser.

Cadê a comoção nacional?

Não importa muito o que comove a população, mas o fato de haver seleção nesse processo faz tocar o alarme em muitos, que não tardam para incendiar as redes sociais com posts de agravo. Se há comoção por uma criança, vários se queixam por não haver comoção por outra criança. Se há comoção pela morte de alguém, vários outros alguéns são lembrados, não somente por seus feitos, mas por os considerarem merecedores de comoção. Se algum político é investigado, milhares de posts questionam a razão de outros não serem, igualmente, investigados ou punidos por seus atos. Se considerarmos a exigência das redes, ou jamais poderemos nos comover, ou ficaremos em eterno estado de comoção, trocando o objeto várias vezes ao dia.

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A queixa de muitos, nesse contexto, passa mais por crivos políticos e ideológicos que humanitários. A solicitação de comoção por outros ou outras se volta menos pela sensibilidade do ato que comoveu e mais pela indignação de não haver equivalência de comoção com os vários casos equivalentes. Em resumo, as redes sociais cobram a sensibilização, motivada por um inconformismo, ao mesmo tempo em que não se deixam sensibilizar.

O tom egocêntrico e por vezes autoritário que emerge das redes sociais evidencia o inconformismo de sermos diferentes, com posições, vivências e crenças distintas. De igual modo, a ausência de diálogos e discussões minimamente civilizadas é ponto bastante evidente. O poder de argumentação sucumbe-se aos ataques, xingamentos e rebaixamentos. O exercício de insensibilização é praticado incessantemente nas redes. A gritaria geral cria oposições acirradas, promovendo rotas de colisão, não exatamente de pensamentos, deixados de lado ou inexistentes, mas de personas que disputam, no grito, a imposição de seu modo de ver o mundo.

Em vários casos, deixamos a perspectiva de construção de uma inteligência coletiva para promovermos um cyber histerismo coletivo, fundado na visão estreita e torta de quem quer se impor, usando não argumentos, mas um vasto vocabulário de impropérios. As perguntas ou chamadas que requerem comoção ou mobilização são, prioritariamente, impositivas e pouco sensíveis a um fator chave: o livre arbítrio. As pessoas têm liberdade para erguerem suas bandeiras, serem sensíveis a um fato em detrimento a outro, deixarem-se impactar por uma situação e não por outras. A aceitação dessa condição é fundamental para um ambiente instrutivo e inteligente.

Diante de quadros desalentadores de discussões sem projetos, que se estendem na já próxima fase eleitoral do país, resta-nos saber como sensibilizar as pessoas, em meio a um inconformismo enredado aparentemente típico das redes sociais, convertendo-as em contribuidores de discussões de um projeto para o Brasil. Será preciso, para melhorar nossa realidade, uma comoção voltada para o bem comum que ultrapasse o pensamento egocêntrico, manipulador e inconformista.

E a culpa vai para…

O desejo de culpar alguém ou alguma coisa é uma atrofia social. Insatisfeitos com o preço da gasolina, com a reforma da previdência, com a falta de civilidade de uns e outros, se desdobram em bradar seu descontentamento culpando quem votou ou não votou em alguém, que apoiou ou não apoiou esse ou aquele candidato, partido ou ação. Parece que o importante é depositar culpa, encontrar alguém em quem a carapuça sirva.

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Em termos psicanalíticos, a culpa advém de um mal-estar provocado por uma desorientação, de tal modo que o sentimento de culpa é uma tentativa de livrar-se do mal-estar, buscando uma orientação. A busca dessa orientação que satisfaça a necessidade humana é um problema ético, porque está relacionado ao campo dos valores. Ao se sentir desorientado eticamente, o sujeito imputa a culpa como atenuador desse mal-estar. Ética, aqui, se refere à moral. No jogo da culpa, aquilo que incomoda é reduzido em função de uma solução aliviadora: atribuir essa culpa a alguém, como se o jogo lógico de localizar a relação de causalidade estabelecesse uma vitória reconfortante. Nesse sentido, a culpa e sua atribuição a outros é, em si, uma solução para o desnorteamento que o incômodo causa.

Na esfera social, localizar o culpado não resolve o problema, apenas alivia a consciência do sujeito, por transferência de foco: do problema enfrentado para a localização da origem do mal-estar, em um movimento de compensação ética. Já problema, ele permanece, inabalável. Se a culpa redime a consciência, ela não soluciona o problema, podendo, antes, corroborar para seu agravamento, na medida em que a compensação se converte em acomodação.

É exatamente por isso que a imputação de culpa é mais um entrave para as soluções que uma solução em si, na medida em que alivia uma desorientação. A perspectiva de enfrentamento do problema, buscando a solução, é mais efetiva para o sujeito e para a sociedade, que a imputação de culpa que não resolve o problema. A sociedade dará um passo significativo se ao invés de se preocupar em localizar culpados, preocupar-se em buscar soluções para os problemas que a aflige.

Se a gasolina aumentou, qual a solução? Se há um rombo pretensamente criado no Sistema Previdenciário, qual a solução? Se alguém foi eleito quando não representa a vontade do povo, qual a solução? Se a proposta não é boa, qual a solução? Identificar culpados é diferente de solucionar problemas, até porque isso não fará reduzir o preço da gasolina, não eliminará o rombo da previdência, nem fará com que nossos representantes deixem de pensar na manutenção de seus privilégios, para finalmente pensarem no bem-estar daqueles que representam. Nosso exercício, então, deveria ser de buscar solução, e não de atribuir culpa.

Essa ação de conveniência, apesar de normal no comportamento humano, é agravada em um ambiente social caracterizado pela V.U.C.A. - condições de volatilidade (volatility), incerteza (uncertainty), complexidade (complexity) e ambiguidade (ambiguity). Esse agravamento amplia a ação de minimização de ansiedade e insatisfação ao se atribuir culpa a alguém, mas tem como efeito colateral a possibilidade de agravos, alcançando índices de violência, seja física ou verbal, e de acomodação, como se a atribuição da culpa substituísse a solução do problema. Frente a isso, o conceito de competência adaptativa parece ser boa chave, ao indicar a habilidade de adaptar-se ao contexto contemporâneo, marcado pela V.U.C.A. Ao estabelecer adaptabilidade, a resposta pode ser mais manejo que enfrentamento, solução que atribuição de culpa. Até porque a culpa dos problemas sociais é tão nossa quanto a solução.

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Sobre modelos energéticos e as alternativas brasileiras

A energia elétrica normalmente só é notada quando falta e quando a conta chega. Produto tecnológico essencial para o modo de vida e a cultura contemporânea, a energia e seus modelos de geração são temas recorrentes nos setores produtivos, principalmente na indústria, na política e nas questões ambientais.

Se a energia elétrica se torna solução para a vida contemporânea, suas fontes, modos de produção e distribuição são preocupações constantes pelas falhas e pelo custo, inclusive ambiental. As falhas geram prejuízos enormes, seja pela perda de produção, perda de produtos e serviços, e pela necessidade de geração de energia mais cara, por geradores normalmente baseados em energia não renovável. Hospitais, por exemplo, são espaços que dependem da energia elétrica para a manutenção de alguns serviços e, em alguns casos, pela vida de alguns pacientes. A cidade se converte em caos quando os semáforos se calam por falta de energia. Prédios, residências e escolas sofrem quando a energia se esvai. A vida contemporânea, mesmo rural, depende de energia para se manter.

O custo, todavia, não para de aumentar, seja para o bolso dos usuários, seja para o meio ambiente. Os acidentes radioativos de Chernobyl, na Rússia, em 1986, e em Fukushima, no Japão, em 2011, alertaram o mundo sobre a necessidade de se repensar as fontes de energia, tendo como orientação as energias limpas, renováveis e de baixo custo. Os modelos de produção baseados em fonte hidrelétrica, geotérmica, eólica e solar são vedetes, podendo, no último caso, tornar-se uma revolução pela variação de escala. Embora os demais modelos possam, efetivamente, variar também em escala, a energia solar se mostra mais factível, pela fonte inesgotável de matéria prima e pelo modelo que se ajustam à necessidade e capacidade de instalação.

O modelo de hidrelétrica é o mais comum no Brasil, dada a abundância de rios. Limpa, renovável e relativamente barata, essa energia tem seu custo elevado em função da distribuição, comum a todas as outras fontes, além do alto custo de implantação. O crescimento do país, e consequente demanda por energia, não consegue ser acompanhado pelo incremento da produção. A ausência de políticas públicas voltadas para a exploração de novas fontes de energia e implementação de novos modelos no setor, é problema grave, que resulta em apagões, como o ocorrido em 16 de outubro de 2016.

Para se ter uma ideia do descaso brasileiro com energia, enquanto boa parte do mundo aposta em redução de poluentes no ar e renovação de frota de automóveis com subsídio para carros elétricos, o Brasil perde o bonde e se move em sentido contrário, com sobrecarga de impostos que dificultam a vinda desses carros para terras brasileiras. O uso de combustível fóssil, sujo e não renovável, é a orientação ditada para o brasileiro. De modo similar, com muito vento e sol disponíveis no país, os modelos eólico e solar avançam preguiçosamente, dando preferência para construções de usinas hidrelétricas, como a de Belo Monte que, apesar de fonte de energia limpa, carrega a mácula da corrupção, além de questionamentos ambientais da área inundada para sua represa.

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Outro modelo energético apontado como eficiente é a microgeração, já exercitada com geradores residenciais, embora a nova roupagem seja limpa e renovável. A produção de energia em indústrias e residências equilibra a produção e o custo, além de racionalizar o consumo. A energia solar tem sido a maior responsável pelo modelo, e a instalação do conjunto gerador e demais sistemas acessórios têm, em média, seis anos para anular o investimento inicial. A microgeração de energia é uma alternativa promissora, quando se pensa em uma produção colaborativa e efetiva, com custos distribuídos e maior envolvimento do público, que passa a ser produtor e consumidor.

Energia baseada em movimento cinético tende a ser usual em performances e educação, como ocorre com o projeto Cine Pedal, que esteve recentemente em Goiânia, mas é pouco eficiente quando se pensa em demandas constantes.

A despeito de oscilações nas bandeiras que elevam mais ou menos as tarifas de energia no Brasil, a grande e necessária bandeira deveria ser a de políticas e ações voltadas para a melhoria da produção, distribuição e qualidade da energia produzida no Brasil, privilegiando a energia limpa e renovável, alcançando o consumo.

Quando nossas casas e cidades demandam maior consumo de energia para suprir as necessidades diárias, a resposta de todos, inclusive do poder público, deveria ser de buscar alternativas viáveis e eficientes para evitar os apagões, altos custos e o modelo baseado em energia suja e não renovável. A produção e consumo energéticos dependem de nossa energia para abraçar a causa, gerando o calor necessário para suprir demandas, com a premência e eficiência que queremos para um país melhor. A esperança, boa, vem com projetos como a inédita usina de biogás, que será instalada no sul de Minas Gerais, e que gerará energia a partir do lixo, utilizando tecnologia brasileira de gaseificação, diferente da incineração. E a cidade não poderia ter nome mais apropriado: Boa Esperança!

Inversões e contradições: a sociedade e o governo

O abusivo aumento de impostos (e dos combustíveis, gás de cozinha,...), a impunidade dos corruptos e a manutenção de regalias de governantes a juízes asseveram uma condição preocupante de um Brasil cansado e quase entregue. E se o brasileiro corre para nichos que deveriam manter a honestidade como um pilar, encontra religiosos ávidos em propagar ideias conservadoras, sempre mediante doações que garantem uma vida plena e abençoada.

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Na democracia, o governo deveria ser representante do povo, com a missão de organizar a própria sociedade, visando ao seu desenvolvimento. Para tal, lança mão dos poderes executivo, legislativo e judiciário, cujos deveres, articulados, se vinculam à ordem e ao progresso. Na prática, porém, estamos conseguindo inverter essa ordem: os governos se mostram sanguessugas da sociedade, confabulando meios e modos de injetar substâncias de dormência, enquanto mantêm suas práticas danosas, atuando para o declínio e a involução social.

Os ataques aos cofres públicos, às leis e à ética são mascarados com discursos conservadores e moralistas, baseados em factoides que (des)orientam a opinião pública, deflagrando posições cada vez menos urbanas e civilizadas, desviantes do que de fato deveria importar. Enquanto alijam a ciência e a tecnologia (que transformaram países como Israel e a cidade-Estado da República de Singapura), cortam verbas da Educação e da Saúde, entregam as obrigações públicas aos interesses privados e nossas cidades às milícias e criminosos, o país discute, via redes sociais, um processo eleitoral que pouco deve alterar no cenário da democracia brasileira. Isso quando o assunto da vez não é o carnaval ou o futebol.

Não há discussão sobre as reformas que deveriam estruturar o país. Não há projetos ou propostas em discussão, dos velhos partidos de novos nomes, cheios de velhos nomes. A reforma política, a previdenciária e a tributária perdem espaço para gols, apoios partidários e as trapalhadas governamentais em um país colapsando.

Enquanto a Europa proíbe veículos poluentes em suas cidades, o brasileiro tem dificuldades em adquirir carro elétrico, visto que temos de bancar o cofre federal do propinoduto e seus filhotes, os cartéis dos combustíveis espalhados pelo Brasil. Baixa o preço do diesel, triplica dos demais combustíveis, além de acrescentar uma carga nos preços de tudo. Enquanto a inflação oficial possui um único dígito, as taxas e impostos refletem aumento real de 3 dígitos em vários casos. A contrapartida social, a devolução do que é pago em impostos, continua sendo a ineficiência, a morosidade e o cabide de empregos para os chegados. São rodovias pedagiadas, normalmente após uma boa reforma paga pelos cofres públicos; são a segurança, a saúde e a educação achatadas e o direito constitucional privatizado, sem que nada disso implique na redução de impostos.

O brasileiro aprendeu rápido a olhar o que é apontado, sem enxergar o que realmente está presente no ato de quem aponta. Seus antolhos, tal qual postam em equinos, reduzem sua visão, direcionando-os para onde suas rédeas os fazem seguir. E seguimos como diz os versos de Cecília Meireles: “como o boi, que vai com inocência para a morte”.

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Burocracia e a morosidade do serviço público

A burocracia é definida como o sistema de organização dos serviços da administração pública, ordenados por rotinas, linhas de autoridade e responsabilidades, a partir de regulamentos fixos. Essa ordenação é necessária, para que não haja sobreposição de tarefas ou rotas de colisão entre competências.

Contudo, o que deveria servir para organizar toma ares de morosidade, com tramitações longas e ineficientes, resultando em uma variação semântica do termo burocracia, que passou a designar a ineficiência do serviço público. O ataque à burocracia e seu processo veio à galope, no salvador da pátria chamado desburocratização.

A burocracia, antes tida como elemento organizador do serviço público, se perdeu no excesso, criando rotinas longas, tramitações intermináveis, vários níveis de responsabilidades e um pensamento de que o serviço público é moroso por natureza. Os servidores públicos se apegaram a tais rotinas, cujo ícone continua sendo o carimbo, mantendo uma relação cômoda de segurança, sem minimamente compreender as razões do modelo mental do trâmite. Perde-se a lógica, instaura-se o fazer porque “sempre foi assim”. Alie-se a isto a ideia de que o serviço público é o emprego ideal do brasileiro, que passa a ter a segurança da estabilidade, independentemente da competência exercida no cargo que ocupa. Essa ideia, embora não seja a regra, é ainda comum, a ponto de servidores enxergarem normal a morosidade de respostas do serviço público. Uma lástima.

Talvez, de fato, a desburocratização signifique somente uma revisão da burocracia, buscando racionalizar processos e fluxos, responsabilidades e competências. Ao inserir tecnologia nos processos, será preciso desenhar novos fluxos, reduzindo os trâmites. Aos órgãos que devem ser notificados, uma cópia dos processos pode ser enviada, sem a necessidade da ciência daquele órgão no processo físico. Isso, por si, reduziria os fluxos existentes em algo por volta de 50% do tempo de trâmite. Os pontos de decisão, e somente esses, representam o fluxo verdadeiro da tramitação que, digitalmente, pode se dar em velocidade maior, ganhando os prazos de envio e despachos na forma de ofícios ao tramitar por encaminhamentos digitais.

A modelização das tarefas do serviço público é uma necessidade, uma vez que os trâmites continuam observando lógicas do século passado. A digitalização sem isso é um equívoco, do mesmo modo que o é o pensamento do servidor que vê a morosidade como normal e a ineficiência como uma característica do serviço público.

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Os processos de revisão da burocracia devem, necessariamente, atentar para esses dois aspectos, os fluxos e a cultura, o primeiro em uma revisão, assumindo o século XXI e suas lógicas de conectividade e interatividade, além de agilidade e eficiência; e o segundo, na perspectiva de que a cidadania é a motivação do serviço que os poderes públicos oferecem e que nós, cidadãos, merecemos ter, não somente pela alta taxa de impostos que pagamos, mas principalmente por nossa condição de cidadãos.

Inteligência e eficiência devem ter a perspectiva da cidadania a favor do cidadão, de sua qualidade de vida, de nossa qualidade de vida. A característica do serviço público deveria ser o zelo pela dignidade e o bom atendimento ao cidadão, e não pela morosidade de uma burocracia baseada em carimbos antiquados.

Transparência como princípio para a cidadania

A cidadania é definida pela participação. Na democracia, inclui, mas não é exclusiva, a participação com o voto. A cidadania indica uma participação do cidadão na condução da sociedade, via representação e atuação direta, pelos diversos mecanismos existentes. Ações populares, denúncias, requerimentos e solicitações são apenas alguns aspectos possíveis.

Para que tais ações possam existir, há a necessidade de que as ações dos governos sejam transparentes, visíveis ao cidadão, que poderá ter maior zelo social, no efetivo acompanhamento das ações governamentais, sejam gastos, prioridades e observação de normas legais e institucionais, como leis e regimentos.

Cresce, no Brasil, a perspectiva de compliance, que é a fiel observância de leis, normas, políticas e diretrizes de um órgão ou instituição, bem como a verificação de possíveis desvios e inobservâncias a elas. Em outros termos, compliance são programas de acompanhamento de empresas e governos, zelando pela correta aplicação de normas, bem como eliminando possíveis desvios.

O melhor agente de compliance, contudo, é o cidadão bem informado, que pode acionar ouvidorias, agências de regulação, ministério público e demais órgãos de defesa do cidadão e da cidadania. Para se informar, a tecnologia cumpre papel fundamental, não apenas da visibilidade das ações governamentais, mas também ao gerenciar processos, tornando toda a tramitação passível de visualização por todos. Isso significa dizer que todo cidadão pode acompanhar os procedimentos e gastos dos órgãos públicos. É possível, por exemplo, verificar onde os processos demoram mais a receber instruções, onde cada órgão está aplicando o dinheiro público e quem o recebe.

A perspectiva de visibilidade pretende, por um lado, tornar o cidadão instruído para exercer sua cidadania. Por outro, tal prática inibe corrupção, resulta em maior agilidade nos processos e pode reduzir a burocracia, ao adotar boas práticas de gestão.

Alguns municípios regulamentam leis anticorrupção, baseadas nas práticas de transparência. Lei como a de Acesso à Informação igualmente auxiliam na política de transparência, fundamental para uma sociedade mais justa e participativa. As informações geradas e guardadas por órgãos públicos são, em tese, públicas, resguardados os casos de sigilo. Fora estes, todos os dados são públicos, pertencentes à sociedade.

O modelo de gestão transparente já resulta em revisões de práticas no Brasil, e é caminho seguro para governos mais ágeis, menos corruptos, e cidadãos mais informados, participativos e inteligentes. A transparência é um princípio para a cidadania.

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Gostar do que faz ou fazer o que se gosta: perspectiva do mundo do trabalho

Há algum tempo, o trabalho era encarado como uma necessidade, nem sempre muito agradável. O senso de dever, vinculado à atividade laboral, era tão cultuado e valorado, que normalmente vinha em primeiro lugar: primeiro o dever, depois o prazer. Esse pensamento, característico da geração Baby Boom (nascidos nas décadas de 1940 a 1950), ainda repercutia na geração seguinte, chamada geração X (nascidos nos anos 1970 e 1980).

A tentativa de converter o trabalho em diversão se inicia com a geração X (anos 1980), mas tem pleno desenvolvimento com a geração Y (nascidos entre 1980 até 2000), já alcançando uma crise, que se estenderá pela geração Z (nascidos depois dos anos 2000). A crise deriva, em grande parte, da tentativa de se fazer o que gosta, e não exatamente aprender a gostar do que se faz. Como consequência, a rápida mudança não apenas de emprego, mas de área de atuação e mesmo de formação, frente a qualquer descontentamento, é algo notório. Os empregos e áreas de atuação dependem mais de contexto e interesse, com mudanças rápidas e constantes.

Se os pertencentes à geração Baby Boom encaravam a formação e profissão como algo determinante para a atuação profissional, seus filhos já se permitiam burlar as regras, deixando trabalhos de anos para montar uma pousada em alguma praia. Os nascidos na geração Y descobriram o mundo conectado, transformando o trabalho em algo mais prazeroso, como aprenderam com seus pais. Divertir é importante, fazer o que se gosta é mais relevante ainda. Essa perspectiva rivaliza com o pensamento anterior, que era preciso aprender a gostar do que se faz, como se aprende a conviver com um mal necessário.

Essa relação entre gostar do que se faz e fazer o que se gosta parece ser um embate não exatamente de gerações, mas de comportamento social. Os novos trabalhadores, pertencentes à geração Y, não se adaptam ao modelo tradicional do trabalho. Antes de se adaptarem, eles preferem alterar o mundo do trabalho. Surgem as empresas descoladas, de ambiente descontraído, jovial. Os espaços laborais não são mais burocráticos, com cores neutras. São coloridos, confortáveis, criativos. O trabalho é uma mescla entre necessidade e prazer. E se não estiver bom, é sempre possível mudar de emprego, de área de atuação e, mesmo, buscar uma nova formação.

Embora as atividades profissionais tenham momentos de penúria e de prazer, a busca por tornar tais atividades mais agradáveis, ou mesmo torná-las menos enfadonhas, é um mantra do presente. Este vetor é forte e força empresas a se atualizarem, tornando suas tarefas e ambientes mais inventivos e criativos. Processos de gamificação são forte tendência, para citar um exemplo, bem como espaços goumert que substituem as copas, com possibilidade de inserir uma área de descanso ou mesmo de jogos.

Mais que um choque de gerações, o que vemos à nossa frente é uma mudança de comportamento social, no que diz respeito ao trabalho. Algumas profissões deixarão de existir, novas áreas surgirão. A discussão dos taxistas com os motoristas da Uber são apenas uma ponta do iceberg. Prédios de escritórios e espaços de coworking, idem. Ainda que não alcancemos a perspectiva de fazer apenas o que gostamos, é cada vez mais premente a busca de trabalhos que gerem prazer e não apenas garanta o pão de cada dia.

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Saúde, tecnologia e cidadania

A estrutura pública de saúde se organiza, regularmente, nas Unidades Básicas de Saúde - as UBSs ou postos de saúde -, nas Unidades de Pronto Atendimento - UPAs - e nos hospitais. Via de regra, as unidades de atendimento básico deveriam atender preventivamente o cidadão, com casos corriqueiros e mais rápidos, além de um primeiro atendimento. Assim, consultas, vacinas, tratamentos e acompanhamentos são de atendimento nesses postos, que deveriam atender 80% dos casos.

Para as Unidades de Pronto Atendimento, deveriam seguir os casos de urgência e emergência, além dos casos de atendimento específicos de média e alta complexidade, conduzidos por especialistas, com a finalidade de estabilizar o paciente. Cerca de 90% dos casos atendidos nas UPAs são resolvidos ali mesmo, sem a necessidade de encaminhamento para hospitais. As UPAs atendem aos chamados do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência - SAMU.

Finalmente, os hospitais estão reservados para internações e intervenções cirúrgicas, prioritariamente, além dos atendimentos de pronto socorro, para casos de emergência - aqueles que necessitam de atendimento imediato, com risco de morte - e urgência - aqueles que necessitam de atendimento médico, mas podem aguardar um pouco mais, já que o risco de morte, embora exista, não é imediato.

Se o modelo é operacional - funciona como filtro, de modo que o atendimento de maior abrangência se dá na primeira instância, seguindo para um atendimento em menor quantidade para as unidades de pronto atendimento e, em casos menos intensos, nos hospitais -, o que está errado com o sistema? De que modo a eficiência poderia surgir nesse contexto?

De início, podemos observar que, em termos de números proporcionais, a regra funciona: a população tem mais postos de saúde que UPAs e menos hospitais que UPAs. Contudo, o número deveria ser relacionado ao quantitativo da população atendida, o que nem sempre ocorre, resultando em quantidades menores que a demanda populacional.

Na outra ponta, o desconhecimento desse fluxo e das regras de atendimento gera demanda imprópria: casos que deveriam ser atendidos em UBSs sendo atendidos em UPAs, por exemplo. A população cria demandas indevidas, porque de algum modo o atendimento ocorre se se burlar o sistema. A prática, contudo, desvia fluxos que atrapalham ainda mais o funcionamento geral do sistema. Em analogia, é aquele carro que avança fora da via, para tentar entrar na via um pouco mais adiante, atrapalhando todo o fluxo.

Em países com estruturas mais avançadas, a telemedicina tem contribuído sobremaneira para melhorar o fluxo, com atendimentos ágeis. Consultas simples de pedido de exames e mesmo de devolutiva médica podem ser substituídas por consultas mediadas pela tecnologia. Análises de resultados de exames e acompanhamento médico podem, igualmente, dispensar o paciente, na maioria dos casos. Em havendo necessidades pontuais, o paciente pode se dirigir para uma consulta presencial. Essa implementação resulta em otimização de tempo, deslocamento e mão de obra, racionalizando o atendimento médico, reduzindo as filas para atendimento e promovendo uma melhor qualidade nos atendimentos em geral, remota e presencialmente.

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Na perspectiva contemporânea de otimização dos recursos, a partir da tecnologia, a telemedicina urge, justamente por cumprir importante papel na redução de atendimentos presenciais, na otimização do trabalho das equipes médicas e na agilidade do serviço público.

A despeito de programas como o Mais Médicos, que é um paliativo para um grave problema brasileiro, precisamos implementar algo como Mais Saúde, com toda a inteligência possível, auxiliando o atendimento na prevenção de doenças mediante exames e vacinas e, mais ainda, a promoção de ações preventivas, como a educação para a saúde, o esporte como elemento fundamental de bem estar físico, e a cultura, na valorização de alimentos saudáveis e ações de melhoria da qualidade de vida.

Governo e inovação

O governo, em suas três esferas de atuação - federal, estadual e municipal - e três poderes - executivo, legislativo e judiciário - é, simultaneamente, o regulador social e o consumidor de maior impacto em quaisquer das esferas. Nesse aspecto, o governo pode atuar na criação de ecossistemas sustentáveis de negócios, do mesmo modo que pode estrangular iniciativas nesse sentido. O forte impacto do governo no mercado é notório, tanto na regulação, pelas políticas públicas, quanto pela atuação direta, na contratação.

Os índices de inovação são resultado das políticas voltadas para a inovação. Nos anos 1980, o Governo Federal, a título de proteger a nascente indústria de tecnologia, taxou fortemente produtos importados, gerando praticamente uma reserva de mercado para o produto nacional. Essa política, que vigorou por praticamente 20 anos, resultou baixa eficiência do mercado, atrasando o desenvolvimento dos mercados, que sobreviveram com computadores e softwares de baixa robustez. Findo o prazo, a fraca indústria nacional não conseguiu se firmar com a concorrência estrangeira, perdendo o terreno que pensava ser seu.

Na área de inovação, a demora excessiva nos registros de patentes e a falta de estímulo para as áreas de pesquisa, desenvolvimento e inovação em seus centros de pesquisa, principalmente em universidades, desembocam em baixa participação mundial no setor, mesmo sendo o brasileiro reconhecido internacionalmente como povo criativo e inventivo.

As políticas públicas direcionam o desenvolvimento, estimulam indústrias e mercados, e pode tornar a inovação uma área estratégica para o país. Infelizmente, isso não ocorre no Brasil. Professores pesquisadores valoram mais os seus currículos com a publicação de artigos em revistas, do que se desenvolverem um produto ou processo que gere emprego e renda para uma população. Nessa lógica de valorização da produção intelectual e não social, o país perde a possibilidade de gerar riquezas para sua gente, de transformar suas cidades, seus mercados e produtos, de melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos.

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Um bom exemplo é o mercado de automóveis. As altas taxas para importação de carros resulta em baixa qualidade da produção nacional, que não tem concorrência direta, impedindo que tecnologias como a do carro elétrico se torne viável no Brasil. Por outro lado, para incrementar a produção de etanol, o Brasil investiu em subsidiar a produção de carros flex e desse combustível, inclusive alterando a composição da gasolina. O papel do estado, nessa área, é notório, inclusive com a exportação de carros e combustível a preços melhores para o estrangeiro, que para o brasileiro - a elevada taxa de impostos que compete ao brasileiro responde por essa diferença.

Enquanto a política econômica em alguns países se define em menos impostos para ativação de mercados, no Brasil, a escolha sempre foi pela elevação de impostos para regular os mercados. Perdemos em competitividade internacional, em desenvolvimento tecnológico e em disposição para a inovação, mantendo o Brasil, o gigante, deitado eternamente em berço não tão esplêndido mais.

Uma sociedade em busca de salvadores da Pátria

Por várias vezes, recursos tecnológicos foram investidos de soluções para problemas de várias ordens. Sistemas de ponto eletrônico como solução para ausências, laboratórios de informática, tablets e um computador por aluno como soluções para a educação, smartphones como solução para falta de comunicação, aplicativos de relacionamento como solução para solidão, etc. Trata-se de uma analogia de que caçador de marajá é solução para o Brasil, ou um ex-mecânico ou um ex-militar, ou até mesmo um militar. Ao que parece, a sociedade brasileira se esforça mais por encontrar alguém que solucione os problemas, que buscar a solução em si, por mérito social de fato. Enquanto isso, protagonizamos a velha e decadente epopeia de perder o futuro, por absoluta falta de compromisso. O brasileiro é, de fato, um Macunaíma.

Enquanto as redes sociais estão entupidas de críticas e anedotas de todas as ordens e emblemas, o país ainda chafurda na corrupção, com a perspectiva de reeleger seus nobres representantes que, há tempos, provam que seus interesses estão mais vinculados à manutenção de seus benefícios, inclusive com algumas condenações já definidas, que com o interesse de fato público. Aliás, há de se perguntar qual é o interesse público, de fato. Pelos discursos antagônicos e, das mais das vezes, autocentrado, o interesse público se dilui frente aos interesses particulares.

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Ocorre que, seja na indicação de soluções tecnológicas, seja na discussão instaurada no ciberespaço, a tecnologia, tal qual a mídia, parece merecer a personalização que é, somente, figura de linguagem. A solução para a evasão escolar não é mera questão de controle de entrada e saída de alunos na escola. A inserção de computadores ou kits de robótica não alterará nada além dos bolsos dos contribuintes brasileiros, já penalizados por uma gastança desenfreada em projetos inócuos, quando a população ainda sofre pela falta de vacinas, condições dignas de atendimento médico e uma ausência de segurança que afronta os principais postos da justiça brasileira. A inserção de lousas interativas não alterará nossas vergonhosas médias da educação. A inserção de urnas eletrônicas não alterará o péssimo comportamento de candidatos e eleitores, em suas campanhas de caixa 2, suprindo demandas de eleitores corruptos ávidos pelas oportunidades. Carros elétricos não mudarão o comportamento dos motoristas que teimam em descumprir os requisitos mínimos de civilidade e respeito para com o outro.

Definitivamente, a tecnologia não é solução para os problemas sociais. Dito isso, será preciso estabelecer o papel da tecnologia nesse contexto, para não querermos dispensá-la de pronto. Ainda que não seja a solução, a tecnologia pode e, na maior parte das vezes está relacionada a uma solução. Isso quer dizer que a tecnologia é parte e não o todo de uma solução, que passa a existir se os demais componentes igualmente existirem. Falamos de programas, e não dispositivos, voltados para a inserção tecnológica. Um kit de robótica não alterará nada se o contexto educacional não se alinhar para uma dinâmica igualmente inovadora. Criar disciplinas de robótica, desvinculada do mundo, para um aprendizado distante do cotidiano, com professores preocupados com o funcionamento ou não do sistema, ao invés do processo ensino-aprendizagem, significará um investimento fadado ao insucesso, como o foram o um computador por aluno ou um tablet por professor. Será preciso mais que kits de robótica para alavancar um país já atrasado, que sobretaxa veículos elétricos para manter uma empresa estatal de combustíveis e seus esquemas. Um país que desmantela suas estruturas de Ciência, Tecnologia e Inovação, mas que persiste em gastos absurdos com benefícios para quem sequer necessita deles.

Não será a tecnologia que salvará um país, do mesmo modo que um candidato ou um político não mudará os rumos de uma nação. A realidade é mais complexa que isso. A educação melhoraria com o envolvimento de pais e comunidade, muito mais que com uma lousa interativa. O país melhoraria se a população se dispusesse a discutir projetos, ao invés de se posicionar passionalmente por candidatos, sem mesmo saber de seus projetos. A evasão escolar não ocorre por falta de controle de entrada e saída de alunos, mas por não fazer sentido para aqueles que querem aprender. Falamos, portanto, de cultura social, e não de tecnologia.

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Sobre tecnologia, sobre política e sobre a vida, podemos fazer uma analogia com o próprio desempenho muscular: o que fortalece a musculatura é o exercício e não o aparelho. O salvador da Pátria é, afinal, a cidadania, que depende de cada um, e não de um ou outro candidato ou governante. Oxalá, possamos discutir projetos para nossas escolas, para nossos sistemas de saúde e de segurança, para nosso Brasil, ao invés de atacar e defender pessoas, como se repousassem nelas o desafio que é da nação.

Consciência da diversidade: um país chamado Brasil

“Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”. A frase, uma armadilha provocativa de Nelson Rodrigues, é um convite à diversidade. E se todos concordarem com ele, bem… a frase será verdadeira, ainda que evidencie uma unanimidade burra.

A diversidade biológica, ideológica, metodológica, epistemológica, cultural etc, enriquece e complexifica o mundo, amplia repertórios e faz avançar a sociedade e o planeta. É na e pela diversidade que o planeta segue seu curso, em uma harmonia distante da singeleza do pensamento de muitos que querem calar vozes que diferem de seu pensamento, em atos de censura ideológica. A diversidade dos reinos da biologia, a complexidade da física, da química, da arte, da vida, como um todo, estabelece como padrão normativo o complexo diverso. Em um contexto evolucionista, o surgimento de novas espécies e a extinção de outras é apenas natural, visto que as condições naturais de vida no planeta são dinâmicas.

As variantes epistemológicas - teorias do conhecimento - criam tensões que fazem avançar o conhecimento. O apaziguamento nessa área representaria a estagnação do conhecimento humano, algo absolutamente nefasto. Nas linguagens, as variações semânticas - que alguns nominam equivocamente de ressignificação - são constantes, inclusive no surgimento de palavras, os neologismos. Do outro lado, os arcaísmos, palavras que caem em desuso, línguas inteiras, chamadas línguas mortas (diz-se assim quando não há comunidades linguísticas fazendo uso corrente dessa língua) são tão verdadeiras quanto normais.

Nas ciências e nas artes, as tensões alimentam a busca pelo adensamento, pelo aprofundamento e pela discussão, fazendo rodar a roda da criatividade, da inventividade e da inovação. Teorias e leis científicas, estilos e estéticas artísticas, a diversidade representa um pulsar do conhecimento e da sensibilidade humanos. Negar a diversidade indica negar os estados de pulsação do mundo.

A beleza da diversidade religiosa, artística, política, social, sexual, metodológica, biológica, enfim, de toda a diversidade, reside nas tensões e harmonias. Tensões, se observados os indivíduos, universo micro, harmonia, se observado o contexto macro. A diversidade humana indica uma fortaleza para sua permanência no planeta. As várias crenças, cores, interesses, modos de vida, resistências e resiliências proporcionam uma sociedade tão complexa quanto a própria humanidade.

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Se todos fossem médicos, se todos gostassem de amarelo, se todos preferissem matemática, se todos fossem loiros, se todos alcançassem a unanimidade, seríamos fracos, simples e, seguramente, vivendo aos moldes do período medievo ou anterior. A evolução depende da existência da diversidade.

Ao comemorarmos o Dia Nacional da Consciência Negra, homenagem a Zumbi dos Palmares, um escravo que foi líder do Quilombo dos Palmares e que morreu em 20 de novembro de 1695, devemos lembrar que a diversidade é a teia da vida. O 20 de novembro não é dia do negro comemorar, mas de toda a sociedade comemorar a existência do negro, braço forte na construção de uma nação rica exatamente pela diversidade. O Brasil é negro, pardo, branco, amarelo, vermelho, o Brasil é de toda cor. E nossa consciência, negra, parda, branca, amarela, vermelha, é de que na diversidade somos ricos e complexos.

Sobre diferenças e indiferenças

Bullying e ataques verbais e físicos são apenas alguns modos que têm eclodido nos ambientes físicos e digitais, causando ora revolta, ora indiferença. A intolerância ao diferente e ao igual são torpes motivos para posturas intransigentes que significam, em última instância, uma incapacidade de sociabilidade, completa ausência de alteridade. O cultivo da estratégia do salve-se quem puder, em posturas não apenas egocêntricas, mas que se convertem em patológicas, resultam em casos como o do estudante que assassinou colegas na escola em Goiânia, em Realengo, no Rio de Janeiro ou em Columbine, nos EUA. São assim também ataques como os sofridos pelo Centro de Cidadania LGBT Luiz Carlos Ruas, em São Paulo e por Titi, pela Internet.

Se por um lado somos machistas e preconceituosos como traço da cultura - ataques, ameaças e assédios são naturalizados como componentes de anedotário corrente -, os desdobramentos não são tão engraçados ou naturais. Assassinatos, agressões, bullyings, depredações e várias outras anomalias sociais são mais reflexo das práticas sociais admitidas cotidianamente, que episódios isolados de um mundo cão.

Esse adoecimento social, cujas feridas são verificadas diuturnamente em praticamente todos os veículos de comunicação e nas redes sociais, se alastra em metástase virulenta, agressiva, roendo tecidos da malha social. Os que deveriam medicar, antes tiram proveito em posições populistas que agravam a cena, enquanto do outro lado usurpam o país econômica e moralmente. Enquanto esse caos se instaura, curandeiros de plantão avançam, extorquindo a sociedade com promessas endereçadas a uma pretensa moral e bons costumes impostos goela abaixo, que incentiva exatamente o belicoso jogo da autoridade incontestável, da impossibilidade de convívio com o diferente e da constrangedora indiferença.

É preocupante o quadro que estamos desenhando, com as duras e quentes cores que escolhemos para nossa paleta. Dificilmente teremos um quadro social harmônico e equilibrado. Ao que se aponta, teremos o contrário disso. São pessoas fazendo selfies ao lado de bandidos e vítimas de acidente, são posições que desprezam o respeito ao humano, ganhando destaque como modelos de comportamento. Enquanto isso, crianças ainda têm seus cabelos cortados pelos colegas, alegando precisarem de bombril, museus e universidades são ameaçadas, artistas são conduzidos a prestarem depoimento a partir de notícias falaciosas, veículos de comunicação e personagens ganham visibilidade por depreciarem e deturparem a verdade.

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Se um dia tivemos ensinamentos baseados na sociabilidade e na civilidade, esses sustentáculos parecem ruir frente à debandada frenética e incólume das massas que se golpeiam, em um autoflagelo social. A cultura do tudo posso sobre aquilo com o que não concordo, legitimando o desrespeito como diapasão da convivência, a agressão como método argumentativo e a indiferença como ação pacificadora, são aspectos a serem tratados pelos psicólogos sociais, em atendimento de emergência.

O gosto social por desenho animado

Em novembro de 2018, o ratinho mais famoso do mundo, Mickey Mouse, personagem símbolo da Disney, maior complexo de entretenimento do mundo, completa 90 anos. Sua primeira aparição se deu em 18 de novembro de 1928 e, de lá para cá, ele ajudou a mudar o mundo e, principalmente, as pessoas.

No século passado, o desenho animado era um produto destinado ao público infantil. Nos anos 1970 e 1980, com a massificação da televisão no Brasil, as manhãs eram destinadas ao desfile dos desenhos animados nas TVs, com um batalhão de telespectadores mirins com olhos grudados nas telinhas. Esse batalhão cresceu, mas não perdeu o interesse por desenhos animados. A partir da década de 1980, a indústria do entretenimento experimentava a produção de desenhos animados voltados para várias faixas etárias, aproveitando o crescimento de seu público. Os longa metragens de animação ganham subtextos, com exploração de conteúdo voltado também para um público não infantil. A geração X, formada pelos nascidos entre 1960 e 1980, torna-se a geração que leva o gosto do desenho animado para a fase adulta.

Essa geração e as seguintes não se desprendem dos universos ficcionais, gerando recordes de vendas e público para produções fantasiosas, ainda que não somente de animação. Da saga Harry Potter às trilogias de O Senhor dos Anéis, o público já adulto consome a produção da indústria de animação, incluindo aí o que é tipificado para esse público, como as séries Family Guy, South Park e Os Simpsons. Novos lançamentos estão engatilhados, observando o crescente público adulto que demanda tais produções.

Esse público, além de um gosto por personagens de desenho animado e por ficção, legado muito bem recebido pelas gerações Y e Z, vê as novas gerações mesclarem esse interesse com games, histórias em quadrinho e, claro, tecnologia. No mundo inteiro, aumentam os eventos voltados para essa mescla, a exemplo da Comic Con, maior evento mundial do segmento, que se vincula também à atividade de Cosplay - simplificação da expressão costume play, uso de fantasias para representar personagens.

Desse gosto, surgem os nerds e os geeks, em uma mistura de tecnologia, games, desenhos animados, séries e HQs, tudo levado a sério, intelectualizados. O número de estudos de alto nível - mestrado e doutorado - sobre esses temas cresce na mesma proporção dessa indústria, que é responsável por boa parcela da economia mundial. É a economia da criatividade, da inventividade, que não tem nada de ficção, muito pelo contrário.

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De um e outro modo, a cultura contemporânea se forma na complexidade de seus atores. A sociedade, tão distinta nos nossos tempos modernos, vivencia o mundo em sua completude natural e de ideias, sem a pretensa distinção platônica. Até aqui, parece que Aristóteles vence seu mestre.

Declaração Universal dos Direitos Humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948. Prestes a comemorar 70 anos, muitas pessoas ainda não conhecem a ilustre senhora. Prova disso são as confusões mescladas com rebeldia, verificadas em falas que pretensamente são contrárias aos Direitos Humanos.

Historicamente, defensores dos Direitos Humanos têm requerido sua observação a grupos de alta vulnerabilidade, como moradores de rua, presidiários, mulheres e negros, para citar alguns exemplos. Ao fazerem essa reivindicação, muitas pessoas acabam protestando, considerando que os Direitos Humanos somente observam tais grupos.

Os trinta artigos da Declaração abrangem todas as pessoas e não somente parte delas. Não há restrição ou indicação de grupos especiais, embora haja indicações de condições especiais, como a maternidade e a infância, que requerem proteção especial. A Declaração não protege bandidos e não se configura como o “direito dos mano”, do mesmo modo que ela não inocenta ninguém de crimes ou se sobrepõe ao direito penal. A Declaração é um instrumento internacional para se preservar a dignidade humana, coibindo ações que desconfigurem essa condição.

Naturalmente que grupos de maior vulnerabilidade social, nesse aspecto, são os mais propensos a terem desrespeitadas essas condições essenciais, no que comissões e grupos de Direitos Humanos tendem a estabelecer ali seu campo de atuação. Em países em guerra, em situações regulares de descumprimento de leis, a Declaração é usada como instrumento de coibir ações que distratem o que está declarado.

No Brasil, o baixo grau de instrução da população, a remuneração que não garante dignidade mínima, a privação de assistência social, à saúde, à segurança e a tantas outras mazelas são objetos de denúncia junto às Nações Unidas, do mesmo modo que o são os destratos e torturas sofridos pelos presidiários ou por suspeitos de crime. A Declaração não inocenta ninguém, mas observa que todos têm direito a um julgamento com ampla defesa.

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Em tempos de redes sociais, várias manifestações emergem quando grupos de Direitos Humanos reivindicam os direitos ali expressos, relacionando-os a grupos específicos. As manifestações apontam a Declaração dos Direitos Humanos como algo que protege culpados. Quem foi assaltado recebe menos atenção do que o assaltante, vociferam alguns. Será preciso entender que a Declaração não protege assaltante ou assaltado, e sim o direito que ambos têm de serem tratados dignamente, como assaltado e assaltante. Ao assaltado cabe toda a proteção e assistência, sem que se negue, ao assaltante, os direitos a ele conferidos. Se o Estado não cumpre seu papel de proteção de seus cidadãos, o problema, efetivamente, não está na Declaração dos Direitos Humanos, mas no descaso do Estado, cabendo denúncia.

Em última instância, a Declaração é uma conquista humana, devendo ser protegida, e não atacada. Olhar para as estrelas significa fazer avançar o que já conquistamos, buscando melhorias. O ataque às conquistas é um retrocesso, motivado não pela justiça, mas pela pequenez daqueles que vivem olhando os pés, pelo sentimento egoísta de quem se sente atacado e, ao invés de buscar acabar com o ataque, reivindica um ataque a todos.

Prestes a completar 70 anos, a digna senhora pode ouvir vozes de destratos, mas ecoa mundo afora a gratidão de vários povos e minorias que se sentem menos vulneráveis. E esse eco há de soar como trovão, prevalecendo sobre os ruídos autocráticos deflagrados por quem defende apenas os seus próprios direitos.