Introdução
O presente ensaio visa dar conta de algumas relações simbólicas referentes à criação, produção e à reprodução de humanos, não humanos e supra-humanos, a partir de alguns contos da coletânea História de robôs, organizada por Isaac Asimov, um dos principais autores da ficção científica ocidental. O título original da coletânea, inicialmente editada nos Estados Unidos em 1983, é Machines that think: the best science fiction stories about robots and computers, contendo narrativas ficcionais que já haviam extrapolado ou ainda extrapolariam o campo da literatura escrita de ficção científica. Para citar alguns exemplos, o filme O homem bicentenário, de Steven Spielberg, é baseado em um conto de Asimov que faz parte da coletânea. Outros conhecidos autores de ficção, como Arthur Clarke (autor de 2001: Uma odisseia no espaço, escrito anteriormente como roteiro para cinema em conjunto com Stanley Kubrick e mais tarde transformado em romance por Clarke) ou Philip Dick (autor do romance Do Android dreams of electric sheep?, base do filme do diretor Ridley Scott de 1982, Blade Runner) também possuem contos em Histórias de robôs. Para citar um último exemplo, o conto da coletânea “Adeus ao mestre”, de Harry Bates, é a base do roteiro do filme O dia em que a terra parou.
A edição brasileira da coletânea, dividida em três volumes com cerca de 250 páginas cada um, foi inicialmente lançada em um único volume em 1985, sob a tradução literal do título inglês Máquinas que pensam. A atual edição, a qual usaremos no presente artigo, segue exatamente a organização da edição estadunidense e da primeira edição brasileira, tendo-se apenas dividido em livros diferentes os temas gerais criados por Asimov para organizar os conjuntos de contos. A organização dos contos segue, inicialmente, um viés cronológico: a primeira história foi escrita em 1894 e tem, de modo geral, uma temática Frankenstein. Ambrose Bierce, crítico literário americano entre o fim do XIX e início do XXEstas e outras informações sobre os autores, bem como os dados já apresentados sobre as relações entre a ficção literária e outras áreas, foram retiradas da introdução feita (não há indicação de autoria) a cada um dos contos da coletânea. Como a coletânea é organizada por Asimov, possivelmente tais introduções foram por ele escritas., escreve sobre um certo construtor de máquinas que possui, escondido de toda a sociedade, um autômato jogador de xadrez que, no final do conto, acaba se destruindo e matando seu criador, como no romance de Mary Shelley . Os contos que se seguem são todos posteriores ao de Ambrose, mas a divisão da coletânea passa a ser mais temática do que cronológica. Com isso, as cerca de 30 histórias são organizadas sob os seguintes temas gerais: “1. Antes da era eletrônica: um robô do século 19, 2. As primeiras histórias de robôs, 3. Os mitos da criação, 4. A evolução da inteligência” - compondo o volume 1; “1. As três leis da robótica, 2: Duas visões da inteligência das máquinas: Satanás ou Salvador?, 3. O que é um homem?, 4. A inteligência da máquina e as questões morais, 5. O futuro do homem e de suas máquinas” – integrando o volume 2; o último volume é composto por um único tema: “A utilidade dos computadores e robôs”.
75Isaac Asimov, na introdução geral que escreve para a coletâneaOs robôs, os computadores e o medo. In: ASIMOV, op. cit. Esta introdução está presente, de forma idêntica, no início de cada um dos três volumes da edição brasileira., trata principalmente da dificuldade de aceitação social das inovações tecnológicas nas sociedades ocidentais. Um paralelo bastante comum no campo da crítica literária da ficção científica é a comparação entre o Deus-criador-da-humanidade e a Humanidade-criadora-dos-robôs. Tal tema causaria, principalmente entre os leitores teístas, um sacrilégio de origem, pois estar-se-ia colocando, ainda que ficcionalmente, criaturas-humanas no status de criadores-divinos. O tema é retomado por Asimov, que argumenta que essa forma de pensamento é a base do que ele próprio classifica como “complexo de Frankenstein”Idem, p. 12 e subsequentes. . Esse complexo seria, na visão de Asimov, um preconceito que marcou e ainda marcaria (1982) boa parte da literatura ficcional científica, mas que, ainda segundo o escritor, é uma temática que deve ser colocada de lado e que ele mesmo tenta evitar nas histórias que escreve. Iremos, no presente ensaio, retomar a temática do complexo de Frankenstein, contudo, numa postura interpretativa um pouco diferente da de Asimov.
Como se poderá notar no desenvolvimento do presente ensaio, seria impossível analisar simbolicamente o conjunto de contos de maneira minimamente satisfatória se ignorássemos o vasto e multifacetado mito de criação da humanidade no cristianismo ocidental. Isto se deve, inicialmente, à formação individual do autor do presente ensaio, que possui um conhecimento razoável na literatura mitológica de criação do mundo dentro da tradição cristã, principalmente a literatura bíblica. Contudo, os próprios contos apresentam, direta ou indiretamente, uma inspiração na teologia cristã – algo que será explorado para dentro, mas também extrapolando a noção de Asimov do complexo de Frankenstein.
Os contos de ficção científica como mitos de criação
Inicialmente, é preciso esclarecer que seria impraticável, no presente ensaio, dar conta de forma unitária de todos os contos de Histórias de robôs. Como em todo trabalho de interpretação sociológica, o tempo de análise é restrito e há uma limitação espacial de páginas para o que deve ser escrito. Esclarecemos, por outro lado, que o fato de não analisarmos todos os contos não se dá apenas pelo tautologismo simplista de que é impossível esgotar as possibilidades interpretativas de qualquer material sociológico – seja ele um conjunto de notas de campo, correspondências trocadas entre cientistas, romances ou contos ficcionais, filmes ou documentários históricos, entre outros. Isso deve ser tomado como dado em todo e qualquer trabalho de análise – e, nesse sentido, nem precisaria ser aqui levantado.
Contudo, ainda assim é preciso justificar um recorte dos contos para o presente ensaio, já que a seleta não é completamente caótica: iremos analisar aqueles em que se discute explicitamente a criação humana e/ou robótica ou que, pela leitura feita pelo autor da presente análise, pode-se inferir que tal tema seja discutido indiretamente ou, por fim, que os contos possuam (novamente na percepção do autor do ensaio, seria preciso dizer?) um paralelo interessante com a mitologia criacionista cristã. Como se pode notar, o que pretendemos fazer não é tentar encontrar uma única linha interpretativa comum a todas as histórias da coletânea, mas sim ‘avizinhar’ algumas narrativas pontualmente escolhidas com outras da mesma coletânea, por um lado, e com a tradição criacionista cristã, por outro.
76Para tanto, poderíamos dar ao leitor do presente ensaio um resumo relativamente autônomo da história dos principais contos a serem analisados. Nessa potencial descrição, poderíamos seguir a ordem e a organização apresentada por Asimov em Histórias de robôs, resumindo cada conto e, depois disso, estaríamos potencialmente justificados a passar para a comparação com o criacionismo cristão, mais popular ou genericamente conhecido. Não é essa a fórmula de apresentação que efetivamente escolhemos fazer. Ao contrário, iremos apresentar a história dos contos concomitantemente à comparação e à análise. Poder-se-ia argumentar que essa forma de apresentação dos contos é falha, pois as escolhas feitas na análise e na comparação são predeterminadas pelo autor (nova tautologia, pois como poderia ser diferente?), o que tornaria a demonstração do mapeamento simbólico dos contos em vizinhança ao cristianismo o próprio mapeamento em si. Isso invalidaria, para certa corrente epistemológica, toda a demonstração dos contos como mitos de criação paralelos ou vizinhos ao mito de criação cristã. Não aceitamos a potencial crítica: inicialmente, pelo fato de que o real ‘sacrilégio’ seria tentar resumir textualmente um mito cuja mídia original é o próprio texto escrito. Se queremos tratar o conto como mito numa análise sociológica séria, a primeira postura parece ser a de respeitar sua mídia: seria como se quiséssemos, numa exposição oral, fazer frente ou mesmo superar o profeta que fala de cima do Monte. Querer ‘repaginar’ os contos é exatamente tentar fazer frente ou superar os contadores do mito (conto) naquilo em que é a própria expertise da prática mitológica: a escrita do conto (mito).
Podemos, neste momento, argumentar melhor de que maneira consideramos os contos de ficção científica como mitos. Inicialmente, a resposta para o problema se apresenta de maneira bastante simples: a ficção científica em si, seja ela literária ou cinematográfica, já se propõe, quase que por definição, a discutir temas mitológicos. Assim, uma das características básicas dos contos (ou mitos, já que para o presente trabalho o tomamos como sinônimos) aqui em questão é o de criar novas narrativas textuais sobre a origem das coisas e dos homens – mais pontualmente das coisas transformadas artificialmente em homens, o que pode ser visto como uma das definições clássicas dos robôs ou autômatos. Essa tendência universalista da ficção científica, é fácil de se perceber, pode ser igualmente notada no texto bíblico sobre a origem da humanidade. Assim, se o método de demonstração da presente análise é explicitamente problemático ou polêmico, o mesmo não pode ser dito sobre a natureza das áreas de vizinhança que colocaremos em contraste: ambas possuem a mesma ‘gana’ mitológica, a mesma tentativa de se tentar explicar ontologicamente o mundo. Esclarecemos aqui que, para interpretar os contos como cosmologias míticas, fomos diretamente inspirados pelo antropólogo Gregory Schrempp, que na obra Magical ArrowsSCHREMPP, Gregory. Margical arrows: the Maori, the Greeks, and the folklore of the universe. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1992. compara a mitologia grega, Maori e, o que é mais interessante, o próprio estruturalismo lévi-straussiano como narrativas (mito) lógicas que podem efetivamente ser colocadas em vizinhança. Assim, para o referido autor,
77[…] there is an analogy between some of the concerns and forms characteristic of some classical Western philosophers and Maori cosmology. I see Western philosophy as one form of discourse addressing concerns that are broader than Western philosophy, that is, concerns that are confined neither to the West nor to philosophy. (SCHREMPP, 1992, p.12)
Algo paralelo pode ser argumentado sobre as relações entre a ficção científica e o criacionismo cristão: os dois não estão pré-confinados às questões mais diretas colocadas pela religião cristã ou pela literatura ficcional científica. Ambos extrapolam os campos ou esferas a que estariam inicialmente contidos, dizendo algo sobre a origem das coisas e dos seres genericamente tomados. Eles possuem, para usar o vocabulário de Schrempp, uma analogia em suas preocupações ontológicas.
Um último argumento para uma não apresentação resumida dos contos que analisaremos deve bastar para justificar nossa postura: aqueles que discordarem da exposição, do ordenamento e das posições de vizinhança que estabeleceremos aqui, precisarão voltar na História de robôs em si e na própria literatura bíblica. Todos esses textos estão diferentemente, porém, amplamente disponíveis na forma impressa ou digital para o leitor recalcitrante. Essa postura visa respeitar, como já dito, a fonte principal da análise que empreendemos: os contos escritos de ficção científica da coletânea História de robôs.
Os robôs, a reprodução e a produção
Já estabelecemos aqui uma primeira definição de robôs: eles são coisas transformadas artificialmente em homens. Essa definição não é exatamente nossa e pode ser depreendida, de maneira mais ou menos direta, da leitura como um todo dos contos da coletânea ou mesmo de qualquer outra obra de ficção científica que trate de autômatos. A grande questão aqui não é a definição em si, mas sim saber de que maneira as coisas são transformadas em homens. O termo artificial, nesse contexto, deve ser melhor explorado. Se levarmos em consideração a análise de autores como Bruno LatourLATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiche. Bauru: EDUSC, 2002., seremos obrigados a reconhecer que a transformação das coisas em homens (ou em outros seres diferentes dos homens) não é exclusividade da ficção científica: as mais diversas sociedades humanas produzem essa operação. O que parece particular da ficção científica é que aí essa transformação se dá, na maioria dos casos, de maneira não biológica, não mágica e, mais particularmente tomando o campo do biológico como ponto de contraste, de forma não sexual. Voltando novamente à mitologia Maori como analisada por Schrempp, a dualidade característica desse grupo (e talvez típica de toda a Polinésia) é que “whose essential “mode of production” is sexual”SCHREMPP, op. cit, p. 70.. Assim, o que tentaremos analisar nas próximas páginas pode ser visto como uma forma de interpretar os contos de ficção como uma tentativa de criação ou ‘improvisação’ – e assim, em certo sentido, de superação – a partir da dualidade típica do campo sexual.
Para esclarecer melhor esse ponto, tomemos como exemplo os excelentes contos de Robert Moore Williams, “A volta do robô”, e a sua continuação mitológica, “Mesmo que os sonhadores morram”, de Lester del ReyWILLIAMS, Robert Moore. A volta do robô. (p.160-174); DEL REY, Lester. “Mesmo que os sonhadores morram”. (:175-200) In: ASIMOV, Isaac. História de robôs. Volume 1. op. cit.. Os dois autores em questão são contemporâneos e escreveram seus contos, respectivamente, em 1938 e 1944. Não é sem motivos que tomaremos esses dois contos em conjunto: del Rey leu o conto de Williams, se encantou com a história e aconselho-o a escrever uma continuação. Williams, que não tinha vontade de escrevê-la, disse para o próprio del Rey fazê-la. Como veremos, o último autor, em vez de escrever uma continuação do conto do amigo, acabou escrevendo as origens do mesmo.
78Assim, a história de Williams, que é escrita cronologicamente antes, mas que se passa mitologicamente depois da de del Rey, descreve a empreitada de três robôs que, enviados por uma sociedade robótica, buscam saber suas origens. Eles só possuem contato com outros robôs e, durante o conto, estão vasculhando o cosmos, mas sem encontrar nenhum vestígio de vida inteligente. Ao que tudo indica, estamos, neste momento, descrevendo uma categoria de autômato que tende a se distanciar daquela de ciborgue tratada por Donna Haraway, por exemplo. Assim, esta autora argumenta, sobre os híbridos que está tentando analisar, que
Os ciborgues não são reverentes. Eles não conservam qualquer memória do cosmo: por isso, não pensam em recompô-lo. Eles desconfiam de qualquer holismo, mas anseiam por conexão – eles parecem ter uma inclinação natural por uma política de frente unida, mas sem partido de vanguardaWHARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue [...], op cit, (p. 40).. (HARAWAY, 2009 , p. 40)
De todo modo, os autômatos de Williams estão particularmente interessados em saber suas origens e esta gana é exatamente o que os leva ao planeta em que se inicia a narrativa.
É interessante notar que não há qualquer personagem humano no conto de Williams. Os robôs formam, assim, uma sociedade independente que desconhece completamente os seres humanos. Por motivos que já expusemos, não tentaremos aqui resumir a narrativa do conto, notando apenas que os autômatos se comunicam por duas vias: uma espécie de mensagens à distância-não-vocais que se assemelham muito às mensagens de celular que temos hoje (o paralelo é de responsabilidade exclusiva do autor do presente ensaio), e uma comunicação oral aberta. Os robôs notam que, em termos técnicos, não teriam qualquer necessidade do último tipo de comunicação (a oral), já que as mensagens não vocais são mais eficientes. Esse é um dos mistérios que tentam resolver: se não precisam, em termos práticos, se comunicar com ondas vocais, por qual motivo eles a emitem e possuem aparelhos para recebê-las?
Tal resposta não é dada explicitamente no conto de Williams: os robôs apenas descobrem que, de alguma maneira, se originaram num distante planeta agora inabitado de vida inteligente, mas então ainda cheio de vida orgânica. Um dos robôs especula que eles poderiam ter alguma relação ontológica com seres orgânicos – o que causa asco a seus companheiros, pois eles entendem que a inteligência deveria ter se desenvolvido em formas não orgânicas, como a existência deles próprios atestaria.
É del Rey, por outro lado, que irá responder as dúvidas dos autômatos: a ligação entre eles e os orgânicos não é nem de evolução biológica, nem tão pouco de replicação – o último termo novamente não está explícito em nenhum dos dois contos, sendo de responsabilidade do autor da presente análise. Para tanto, faz-se uso do vocabulário da já citada adaptação de Ridley Scott, do romance de Philip Dick, o filme Blade Runner. Deste modo, por replicação, entendemos a cópia exata de um corpo biológico, ou parte dele, em outro corpo biológico – algo como o clone na área da biologia.
79Assim, “Mesmo que os sonhadores morram”, de del Rey, começa com o despertar de um ser humano por um autômato. Jorgen, depois de acordado, gradualmente descobre que tudo que sua raça havia feito para se salvar do Flagelo, a praga biológica final da humanidade, fôra em vão: a população humana da nave em busca de um novo mundo estava toda morta, restando apenas os cinco robôs que auxiliavam a viagem para a “terra prometida”, onde estaria a humanidade livre da temível praga bacteriológica – o paralelo com a busca de Moisés no Velho Testamento é do próprio autor do conto. Os robôs acordam Jorgen quando encontram o planeta adequado, mas nesse momento já quase não há mais humanidade, pois Jorgen, o último humano, também já apresenta os terríveis sintomas do Flagelo. O conto, entre outros desdobramentos, finaliza com Jorgen ordenando que os cinco robôs esqueçam a humanidade e façam, eles próprios, uma nova sociedade no planeta que descobriram. Com isso, o enfermo Jorgen parte na nave e deixa os autômatos com duas ordens básicas: esquecer que os humanos existiram e construir uma nova sociedade. Oito mil anos depois se inicia o conto de Williams e a busca dos robôs por suas origens.
Os robôs de Williams ainda tinham aparelhos receptores e articuladores de ondas sonoras, pois, num passado imemoriável, precisavam receber ordens e responder a outros seres que não partilhavam da comunicação a distância (mensagens de celular) que possuíam. Esses seres são exatamente os flagelados humanos de del Rey. Numa discussão travada entre os autômatos no conto de Williams fica clara a aversão que eles possuem à ideia de potencialmente terem qualquer ligação ontológica com seres orgânicos, como já dissemos. Um dos robôs de Williams argumenta, ao chegar ao desconhecido planeta, que
A questão é que o pouco de vida que se viu neste planeta... e o que se viu já dá para ter uma ideia... é orgânica, uma mistura de componentes químicos. Animais devorando-se uns aos outros, comendo grama... Não! Antepassados assim não me interessamWILLIAMS, Robert Moore. A volta do robô. op. cit. p. 163.. (WILLIAMS, 2010, p.163)
O que parece estar implícito na fala do autômato é que a reprodução, na sociedade dos robôs, se dá por construção ou replicamento não orgânico – e não de maneira biológica, seja ela sexuada ou qualquer outra, como a inseminação artificial ou mesmo a própria clonagem. Isto se torna mais claro quando analisamos as ordens dadas pelo único humano no conjunto dos dois contos: Jorgen ordena que:
Vão se deitar lá fora na praia, a uma razoável distância da nave, fingindo dormir, para que não vejam quando eu for embora.[...] A Terra, a humanidade, a própria história e origem de vocês serão riscadas da sua lembrança e vocês terão toda a liberdade de opção para recomeçar tudo de novo, para construir e planejar como bem entenderem. Esta é a ordem final que tenho a dar. Obedeçam! (DEL REY, 2010, p. 198, grifos nosso)
Inicialmente, os robôs obedecem a ordem de Jorgen e apagam sua própria memória, inclusive qualquer lembrança que tinham dos humanos. Contudo, nenhuma ordem os proibia de sair em busca de suas origens pelo universo afora.
80Parece não ser uma digressão descolada da mitologia dos dois contos dizer que a reprodução dos robôs, numa sociedade humana ou robótica, se dá de forma não orgânica, pela construção ou replicação não biológica/orgânica. Isto parece claro não só nos dois contos aqui analisados, mas na leitura do conjunto da coletânea.
Quando Jorgen ordena que os robôs “construam”, ele está ordenando que eles o façam também a si próprios, que eles mesmos construam outros novos robôs de maneira artificial. Não há como negar a inversão simétrica característica da reprodução humana entre os ocidentais: esta última se dá, ainda que levemos em conta toda a realidade das novas tecnologias reprodutivas modernas, de maneira orgânica – e, talvez o mais importante, não repetitiva, ou seja, nunca se gera um ser completamente idêntico ao original, mesmo no caso de gêmeos idênticos univitelinos.
Deste modo, os humanos conservam uma substância biológica na reprodução que é diametralmente oposta à reprodução robótica. Com isso, podemos usar o termo “artificial” para a reprodução dos autômatos, mas a categoria possui uma significação diferente do que é comumente usada atualmente na reprodução empírica dos humanos – mesmo que tal reprodução não se dê de forma sexuada direta. Assim, reservaremos o advérbio “artificialmente” para essa radicalidade do artificial que é a produção robótica.
Nesse sentido, se dissermos que há métodos reprodutivos modernos que são “artificiais”, estamos usando a última categoria de maneira distinta do que quando dizemos que os robôs se reproduzem artificialmente, levando em conta, é claro, o sentido que retiramos dos dois contos aqui analisados. É nesse último sentido que os autômatos são coisas transformadas artificialmente em homens – sentido que dá, inclusive, a noção última de autonomia para os autômatos.
Jorgen e outros humanos tentaram durante décadas conseguir achar um planeta habitável. O objetivo era, explicitamente, a continuação da humanidade. Tentava-se curar do Flagelo e, ao mesmo tempo, achar uma nova Terra, já que a original não era mais habitável para os humanos. Jorgen nota, em determinado momento de sua busca, que essa continuação da humanidade não pode se dar da forma que pensava, ou seja, por uma reprodução em algum grau orgânica. A ordem dada aos robôs figura, então, como a única possibilidade de se fundar uma nova sociedade derivada dos humanos. Estes últimos estão fadados a perecer, mas continuarão, de alguma maneira, na sociedade não orgânica de seus robôs.
Podemos, nesse ponto, ‘afiar’ melhor nosso vocabulário teórico. Na verdade, não é completamente correto dizer que os robôs “se reproduzem”. Seria mais exato dizer que os autômatos, justamente por serem assim chamados, se produzem. Diferenciamos, assim, a reprodução como uma característica exclusivamente humana, enquanto que a produção é ao mesmo tempo humana-indireta (os humanos produzem robôs) e também robótica (os dois contos nos mostram que os robôs produzem robôs e que eles, num sentido mais estrito, não se reproduzem, tendo em mente a reprodução pensada como eminentemente biológica).
Contudo, se é fácil notar que os autômatos automatizaram sua reprodução em dado momento de sua trajetória mítica, isso não foi sempre assim. Os humanos, como mostra del Rey, construíram os primeiros robôs e possuem, nesse sentido, alguma relação hierárquica e de afinidade com eles – as ordens diretas de Jorgen, ao partir com a nave e abandonar os robôs, é algo que demonstra isso. Nesse sentido, a partir daqui discutiremos as potencialidades do parentesco humano-robótico.
81Os robôs e os homens
Discutimos, durante a última seção, apenas uma faceta específica do mito dos autômatos como descrito na História de robôs: a reprodução e a produção. Partiremos agora a debater mais pontualmente o caráter homem da proposição, retirada dos contos, de que os robôs são coisas transformadas artificialmente em homens. A constatação básica que devemos retomar é que, se há a possibilidade dos robôs se produzirem, eles foram construídos por homens. Repassando o esquema que temos até o momento, os homens normalmente se reproduzem e excepcionalmente (para a viagem de fuga) criam robôs; os robôs, por sua vez, normalmente se produzem (sociedade de robôs) e excepcionalmente foram criados pelo homem. Relembremos, por fim, a incapacidade parcial ou provisória (estamos tomando até aqui apenas dois contos da coletânea) dos robôs produzirem homens – e, é claro, a incapacidade dos homens se produzirem, apesar de excepcionalmente, robôs.
Procurando por mais desdobramentos da ontologia ficcional de criação artificial das coisas enquanto homens, podemos, neste momento, analisar o que talvez seja o conto mais popular de Isaac Asimov presente na coletânea: “O homem bicentenário”ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. In: ______. Histórias de robôs. v. 2 de robôs. Porto Alegre: LP&M, 2010. p. 110-163. Como já dito na Introdução, a adaptação deste conto para o cinema é bastante popular, perdendo talvez somente para outra obra de Asimov, adaptada ao cinema por Steven Spielberg: Inteligência artificial. Acresçamos, ainda, que esse é o conto mais longo de toda a coletânea.. Situando o conto no mapa mitológico que temos até o momento, os robôs de Asimov também foram projetados, como os de del Rey, no intuito inicial de auxiliar os homens em suas tarefas diversas. A diferença é que, para o último autor, os autômatos são produzidos no intento principal de ajudar os homens a continuar se reproduzindo: enquanto os homens necessariamente hibernam numa viagem quase que centenária, os robôs pilotam a nave que os levará a uma terra livre da praga orgânica (Flagelo) que os assolava no planeta Terra. Por outro lado, podemos argumentar que, no conto de Asimov, tal praga ainda não atacou a estrutura biológica da humanidade e, assim, os robôs são usados em tarefas mais simples ou menos importantes: fazem boa parte do trabalho braçal e intelectual-matemático da vida cotidiana da humanidade na Terra. Se del Rey é mitologicamente anterior à Williams, Asimov é, do mesmo modo, anterior à del Rey. A diferença é que a anterioridade marcada na seção anterior foi explicitamente pensada por del Rey e discutida entre os dois primeiros autores, enquanto que a anterioridade que agora inferimos é uma construção crono-mitológica feita exclusivamente pelo autor do presente ensaio.
De início, precisamos refazer nosso esquema: os robôs não são criados no intuito principal de pilotar a nave que levaria os humanos à Terra Prometida. Eles são produzidos, antes disso, para ajudar os humanos em tarefas perigosas e/ou corriqueiras dentro do próprio planeta Terra. Deixamos de lado aqui a excepcionalidade da criação dos robôs – ao menos enquanto colocamos o conto de Asimov na vizinhança dos dois outros contos.
82Assim, o conto de Asimov trata da trajetória de vida de Andrew, um robô inicialmente construído para ajudar os humanos em tarefas domésticas, como cuidar dos filhos ou varrer a casa. Gerald Martin é um rico parlamentar que, devido a sua posição política privilegiada, consegue comprar um robô desse tipo para servir a si mesmo e sua família. A filha mais nova de Gerald logo apelida o autômato de “Andrew” e ele passa a ser chamado assim por todos os familiares. Apesar de executar perfeitamente todas as tarefas para as quais foi construído, Andrew apresenta um ‘defeito’ de fabricação que o diferencia dos outros robôs: ele possui, em resumo, a capacidade criativa dos artistas e cientistas e, além disso, consegue refletir criticamente sobre os atos que está executando. Inicialmente, o autômato começa a fazer pequenas peças de madeira. No decorrer do conto, escreve um livro crítico sobre a história dos robôs na Terra e, por fim, acaba por projetar próteses androides para ele mesmo e o resto da humanidade. Nenhum outro robô faz algo parecido durante todo o conto.
Já é possível notar que a artificialidade de Andrew não é exatamente a mesma artificialidade dos robôs tratados na seção anterior, completamente não orgânicos. Em vez de sentir asco pelo biológico, o robô de Asimov tenta, durante todo o conto, tornar-se mais humano. É assim que Andrew ‘evolui’ de um corpo metálico, no início da história, para um corpo ciborgue ou androide e que, ao que tudo indica, completamente biológico, no fim dela. A pretensão última do autômato de Asimov é não ser mais autômato, é ser considerado, pelos próprios humanos, um par, um outro humano completo. Distanciamos-nos e, por outro lado, nos aproximamos, neste ponto, da noção de ciborgue de Donna Haraway. Deste modo, não há como negar que Andrew é, durante boa parte do conto, um híbrido de humano e autômato; do mesmo modo, ele busca a completude, enquanto essa categoria figura, na teoria de Haraway, a partir de um viés crítico negativo:
A visão é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, e não fecha, a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais […] A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Deste modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a verHARAWAY, Donna. Saberes localizados [...], op. cit, p. 21.. (HARAWAY, 1995, p. 21)
Andrew visa justamente a transcendência da categoria de autômato para figurar como plenamente humano. Ele visa, basicamente, despir-se daquilo que aqui viemos chamando de artificial.
Deste modo, o robô de Asimov tem o apoio da família que o comprou (que é gradualmente considerada por ele e pelos familiares sua própria família) para fazer coisas que nenhum autômato tinha feito até então: fabricar e vender obras de arte; acumular o dinheiro que ganhava numa conta de banco; exigir judicialmente que ele seja considerado um ser livre. E, por fim e mais importante, exigir, em termos oficiais, que ele seja considerado plenamente um homem.
83Discutindo melhor a temática da humanidade de nossa definição de robôs, é interessante analisar melhor um diálogo entre Andrew e o último integrante da família Martin que nasceu humano. Os dois estão discutindo a decisão do autômato em trabalhar na construção de órgãos androides ou ciborgues, ou seja, órgãos parcialmente orgânicos e parcialmente inorgânicos, como os híbridos de Haraway:
[Andrew] Um biólogo de robôs, a meu ver, se preocuparia com o funcionamento do corpo ligado a esse cérebro [um corpo semi-biológico ligado a um cérebro computadorizado].
− [Paul] Não seria um roboticista?
− [Andrew] O roboticista trabalha com o corpo metálico. Eu estaria estudando um corpo andróide orgânico, de que sou o único possuidor, ao que me constaASIMOV, Isaac. O homem bicentenário, op. cit, p. 145.. (ASIMOV, 2010, p. 145).
Andrew é o “único possuidor” de um corpo androide pois a indústria que o construiu havia tirado da linha de produção todos os modelos ciborgues: eles não tiveram a aceitação de mercado que se esperava. Os humanos, no conto de Asimov, preferiam comprar um robô radicalmente artificial (no sentido dos robôs de del Rey e Williams: metálicos) do que um autômato que fosse por demais parecido com eles próprios. O asco dos humanos é em se fazer uma ‘máquina’ ou ‘escravo’, uma máquina sem liberdade, que lembre por demais os ‘escravizadores’ ou ‘utilizadores’ das máquinas, livres. Estamos, neste ponto, na negação implícita de Asimov frente ao já citado Complexo de Frankenstein: os humanos, como sociedade, temem os robôs híbridos, o que, para o autor deste e dos dois outros contos, parece figurar como nada mais do que um desdobramento da própria vida humana.
Assim, como já se pôde notar, Andrew não é qualquer robô: ele é o único da sua ‘espécie’ que tem reflexividade, que consegue julgar de maneira relativamente independente seus próprios atos e que possui uma inteligência criativa própria. Mais que isso, os robôs-metálicos-máquinas dispensam a Andrew o mesmo respeito que dispensam aos completamente humanos – e o conto se inicia com Andrew dando diversas ordens a um robô-metálico para que este último lhe insira cirurgicamente próteses orgânicas.
O fato de Andrew desenvolver para ele próprio e para outros humanos órgãos androides é um dos argumentos centrais do autômato para que ele seja considerado humano: se diversos humanos possuem próteses Haraway, no mesmo artigo que discutimos imediatamente acima, argumenta que “Prótese torna-se uma categoria fundamental para a compreensão de nossa vida mais íntima. Prótese é semiose, a construção de significados e corpos [...]”. Contudo, a citação continua da seguinte maneira: “[...] não para a transcendência, mas para a comunicação carregada de poder”, op. cit. p. 18, nota de pé de página número 07. androides e ainda assim são considerados plenamente humanos, porque o mesmo não se poderia aplicar à Andrew, que já havia substituído a quase completude de sua estrutura metálica por órgãos ciborgues? Essa pergunta é a base da batalha judicial da última parte do conto e só é respondida quando Andrew, por fim, substitui seu cérebro computadorizado por um cérebro constituído de células biológicas. Os neurônios e outras células nervosas não se reproduzem e, uma vez mortos, não há como reconstruí-losAsimov escreve esse conto em 1976 e parece não ter conhecimento dos estudos contemporâneos de reprodução de células-tronco, entre outros.. O autômato de Asimov havia conquistado, assim, a característica central da humanidade: estava, como todo ser orgânico, se deteriorando e iria morrer. Só é depois dessa última ‘evolução’ (que todos os humanos do conto consideram uma ‘involução’) e perto de sua morte que Andrew é considerado plenamente humano – aos 200 anos de idade.
84Discutindo melhor as categorias que usamos para descrever a evolução de Andrew, temos usado os termos ciborgue e androide para fazer referência à gradual mistura entre orgânico e inorgânico levada a cabo no e pelo robô de Asimov. A biologização do autômato, até ele se produzir humano, marca uma nova característica da relação mitológica entre humanos e robôs. Como vimos, Andrew consegue substituir seu cérebro computadorizado, mas isso lhe mata – ou lhe coloca, irremediavelmente, a concretude da morte para um futuro próximo. Isso fica explícito no conto:
− O que importa é que as células do cérebro humano morrem, têm de morrer. Mesmo que todos os outros órgãos do corpo se conservem ou sejam substituídos, as células cerebrais, que não podem ser trocadas sem modificar, e, portanto, matar a personalidade, com o tempo acabam morrendo. […] A humanidade pode tolerar um robô imortal, porque pouco importa quanto tempo a máquina dure, mas não pode tolerar um homem imortal, uma vez que a própria mortalidade só é sustentável na medida em que for geral. E por esse motivo não concordam com minha exigência de me tornar humanoIdem, p. 161. A ênfase é do próprio Asimov.. (ASIMOV, 2010, p. 145).
Andrew, como vimos, acha a última peça do quebra-cabeça que o comporá humano: os humanos são finitos ou mortais – as máquinas, robôs ou autômatos, não necessariamente. Os neurônios não se reproduzem: é pela não-auto-produção, ou pela reprodução-necessariamente-contida-a-certos limites, que se caracteriza o humano. Assim, quando dizemos que os humanos se reproduzem, isto não deve ser confundido com, por exemplo, a produção robótica independente. A humanidade só é capaz de gerar seres diferentes deles próprios, nunca de se autorreproduzirem por completo, ainda que façam uma cópia exata de seu material genético em outro ser orgânico. Segundo a mitologia de “O homem bicentenário”, a característica principal dos humanos, fora a criatividade e a reflexividade, é a mortalidade. Andrew é um ser que deixou de ser artificialmente homem e se tornou um homem completo: criativo, reflexivo e mortal.
Contudo, continuamos achando razoável chamar Andrew de homem-autômato ou autômato-homem. Justificamos aqui a ambiguidade: ele se produziu homem, e, como vimos, os homens normalmente não se autoproduzem. A organicidade de Andrew é uma construção gradual do próprio autômato-homem – e não uma condição herdada de um antecessor, como a organicidade característica dos homens comuns. Levando a mitologia de Asimov a sério, ele não batiza seu conto de “O homem-autômato bicentenário”, mas sim de “O homem bicentenário”. No final das contas, parece não restar dúvida de que Andrew é um homem completo. Contudo, parece não restar dúvida, do mesmo modo, que Andrew é um homem completo especial: nenhum humano antes dele havia alcançado os 200 anos de idade – se tomamos apenas o contexto do conto de Asimov em consideração, neste ponto. Usando a terminologia de ‘homem-autômato-especial’, apenas demos uma definição melhor para o termo “especial”: Andrew, assim, é o único homem que não herdou sua organicidade, que não tem relações de ‘sangue’, completamente genéticas, com outros homens. Ele se produziu homem, ao menos empiricamente, sem depender de outros homens ou mulheres. Andrew pode ser posto, nos termos do parentesco co-sanguíneo, como um ser completamente independente. Há, assim, uma semelhança de substância entre Andrew e outros homens, mas um distanciamento de origem ou posição geral. Ele é, em certo sentido, um segundo Adão. Contudo, como veremos, Andrew precisará do aval dos seus novos pares humanos para ser considerado humano.
85Havíamos dito, no início da presente seção, que, baseado na análise dos dois primeiros contos, haveria uma impossibilidade dos robôs produzirem homens. Reformulando esse postulado, devemos dizer que os robôs não produzem normalmente homens, mas que excepcionalmente um robô especial (dotado de criatividade e reflexividade) pode se autoproduzir organicamente como homem. Dissemos, do mesmo modo, que existe uma incapacidade dos homens se autoproduzirem. Tal postulado também não está completamente correto: os homens não se autoproduzem diretamente, mas na condição excepcional da criação do autômato de Asimov, os homens, sem querer, inconscientemente, de forma indireta e não reflexiva (Andrew foi feito, inicialmente, para seguir ordens como todos os outros robôs) ‘criaram’ (ou ao menos deram o primeiro passo na criação de) outro homem.
É neste ponto que devemos retornar ao já citado Complexo de Frankenstein. Tal complexo faz referência ao medo ou receio que alguns autores de ficção (e a sociedade humana em geral) teriam em considerar a humanidade como um agente criador de outros seres também inteligentes, reflexivos e criativos. Enfim, a criação da “vida” seria uma das características exclusivas de Deus – e, caso o homem tentasse subvertê-la, daria-se origem a um ser bizarro, não-completamente-vivo, não-completamente-morto, enfim, uma aberração como descrita no romance de Mary Shelley. Já asseveramos que Andrew é completamente homem, apesar de ser um homem especial. Assim, num sentido inicial, Asimov se distancia conscientemente do Complexo de Frankenstein que ele próprio institui para caracterizar outros autores.
Porém, num outro sentido, podemos notar que Andrew nunca foi completamente robô (nos termos dos robôs-escravos de sua época), nem mesmo quando era totalmente metálico, já que, a partir de um ‘erro’, ‘contradição’ ou ‘acaso’, ele foi produzido com as capacidades de criação e reflexão – capacidades que não se poderá encontrar em nenhum outro robô da época do conto. Apesar dos homens terem essas duas características como essenciais na conformação da humanidade (junto com a mortalidade), eles não possuem o controle de criá-las ou manipulá-las livremente. Assim, ainda que quisessem (e, como vimos, eles não querem), os homens, no conto de Asimov, não conseguiriam criar direta e conscientemente outro Andrew. Fica clara a excepcionalidade de Andrew durante toda a narrativa mitológica: não há nenhum outro ser fabricado que tenha a capacidade de criar e refletir sobre sua criação. Nos termos que vínhamos discutindo na seção anterior: os humanos, nem o próprio Andrew, podem replicar outro Andrew – e essa característica de Andrew lhe torna, como veremos, ainda mais humano.
Mesmo correndo o risco de criticarem a relação de vizinhança que iremos traçar como essencialmente ‘teísta-religiosa’ ou ‘cristã’, podemos notar que a criação, em seu sentido forte e primeiro, continua, como em toda a mitologia bíblica, uma impossibilidade humana. Nesse ponto, parece que o próprio Asimov pode ser colocado, em diferentes termos, dentro de sua categoria crítica de Complexo de Frankenstein.
86Não fica totalmente claro no conto se Andrew não quer ou não pode criar outros robôs como ele próprio – criativos e reflexivosViemos usando os dois termos sem maiores preocupações quanto à definição até aqui – e assim, infelizmente, continuaremos para pelo menos um deles. Não há ‘fôlego’ acadêmico para etimológica e/ou antropologicamente discutir as duas categorias e, ainda assim, dar conta dos outros problemas que elegemos na presente análise.. Efetivamente, ele não os cria – na verdade, ele prefere se construir como homem e o conto é uma narrativa desse processo. Contudo, inferimos que, ao que tudo indica, ele não pode. É preciso notar que tal inferência aproximaria mais ainda Andrew do campo humano: apesar de conseguir se construir humano, ele, justamente por sua condição humana, não tem a capacidade de criar ou reproduzir a própria capacidade de criação, nem tão pouco a de reflexão – que só foram ‘criadas’ pelos humanos que construíram Andrew de maneira acidental. Enfim, Andrew é produzido (ou é construído) criativo e reflexivo – conquistando apenas a mortalidade ou, nos termos da seção anterior, a ‘biologicidade’ ou ‘organicidade’ no decorrer do conto. Podemos notar que o autômato de Asimov não é onipotente e depende, assim, de estruturas não propriamente robóticas ou orgânicas – mais precisamente de uma mistura das duas. Como já dito, estamos nos aproximando de uma das fronteiras da mitologia robótica propriamente dita com a tradição criacionista cristã.
Deus, os homens e os robôs
Usamos o termo ‘acidental’, entre outros sinônimos, para fazer referência às condições em que Andrew foi criado. Esta categoria também perpassa, em certo sentido, a criação da sociedade de robôs nos dois contos anteriores: se os humanos tivessem sobrevivido ao Flagelo, os robôs teriam provavelmente continuado a trabalhar como escravos e nunca ganhariam a condição de ‘alforriados’ ou livres, no sentido de não dependentes dos humanos. Esses ‘acasos’ podem ser encontrados em diversas outras passagens de outros contos – e é justamente nesse ponto que a ficção científica se aproxima mais claramente da tradição religiosa cristã. No cristianismo, como entre a espiritualidade AzandeNos inspiramos livremente em EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, onde a noção de acaso é criticada pela teoria mágica nativa., não há lugar para acasos.
Nesse momento, esperamos que já esteja claro em que sentido os robôs podem ser vistos como coisas transformadas artificialmente em homens. Podemos substituir o termo ‘artificialmente’ por ‘tecnologicamente’ e estaríamos, no presente contexto, usando sinônimos quase que diretos. Poderíamos, do mesmo modo, substituir o termo ‘transformadas’ por ‘construídas’ e o efeito seria bastante parecido.
Contudo, uma categoria que usamos indiscriminadamente na seção anterior precisa ser melhor matizada: a criação. Usamos, até aqui, este termo tanto como sinônimo de construção ou produção de uma obra de arte, na feitura de robôs por homens e, também, como significando o ato de dar origem a algo radicalmente novo – como, por exemplo, a criação da capacidade artística e reflexiva em Andrew. É nesse sentido, mais forte e primevo, que podemos dizer, por exemplo, que Deus criou os homens dentro da literatura criacionista cristã.
87Tratemos de tal literatura de maneira mais detida: no Velho Testamento, o primeiro homem criado por Deus viveu 930 anosTomamos como dado que o leitor tenha um conhecimento prévio de tal literatura. De todo modo, como já dissemos, o foco principal do presente ensaio são os contos de ficção – e um dos contrapontos interpretativos para tentarmos avizinhar simbolicamente esse material é a mitologia bíblica da criação. Sendo assim, não nos preocupamos aqui em referenciar mais detidamente as informações bíblicas, nem tão pouco em problematizar teologicamente tais informações a partir das diversas vertentes do cristianismo ocidental. Esclarecemos apenas que as informações aqui apresentadas são referentes à tradição cristã do próprio autor do presente ensaio: o cristianismo protestante, em sua vertente brasileira diretamente influenciada pelo cristianismo protestante anglo-saxão.. Gradualmente, depois da Queda da humanidade, os personagens da mitologia bíblica vão todos vivendo menos tempo. Há um consenso geral, tanto na interpretação católica como também na protestante de diversas vertentes, que o desígnio inicial de Deus para o homem era a imortalidade.Contudo, depois da expulsão do primeiro casal do Paraíso, um dos ‘conhecimentos’ adquiridos ao se provar do fruto da Árvore do Conhecimento foi a morte. Não iremos aqui discutir em que sentido tal ‘conhecimento’ é um castigo divino ou uma maldição demoníaca. O que nos interessa é que a ‘corrupção’ herdada com o Pecado Original degenera a humanidade não só em espírito: a carne humana, inicialmente ‘projetada’ para ser imortal, gradualmente vai sofrendo, cada vez mais, os efeitos negativos da Queda.
Tal degeneração gradativa não está explícita no texto bíblico: é uma interpretação comum a diversas variações do cristianismo. Ainda assim, em respeito a essa mesma variedade de interpretação, é necessário frisar que os crentes cristãos, nas duas principais tradições bíblicas no Ocidente, concordam que Deus nunca disse (e Deus, dentre outras formas, diz à humanidade principalmente através do texto bíblico) que a carne humana está gradualmente se deteriorando. Essa é uma interpretação possível e bastante plausível, nos diferentes cristianismos, a partir de uma leitura geral do Velho Testamento.
De todo modo, a graça divina, dentro da tradição cristã, não está cerceada pelo ‘castigo’ ou ‘maldição’: Matusalém, personagem bíblico mais longevo, viveu 969 anos – mais longevo e posterior ao próprio Adão. Pode-se notar que este último morreu na época do nascimento de sua oitava geração. Assim, Adão morreu na época de Lameque, que morrera com 777 anos. Para citar somente mais dois exemplos do Velho Testamento, os dois últimos patriarcas do povo Judaico viveram, respectivamente, 175 (Abraão) e 180 (Isaque) anos. Nenhuma figura após Isaque, tanto no Velho quanto no Novo Testamento, viveu mais que 120 anos – com exceção de Elias, Enoque (Velho Testamento) e Estevão (Novo Testamento), que foram levados ao Céu em carne e espírito antes do Juízo Final, o que na tradição cristã é conhecido pelo termo arrebatamento. Essas três últimas figuras, poder-se-ia corretamente argumentar, nunca morreram e foram adiantadamente salvas por Deus, antes do Juízo Final.
Não cabe aqui discutir pormenorizadamente a figura de Jesus Cristo: apenas acrescentamos que as duas principais vertentes interpretativas cristãs assumem que Cristo é realmente Deus encarnado. Ainda assim, ele morreu, venceu o demônio e a morte, ressuscitou em carne e espírito e se elevou ao Céu. Segundo essas mesmas vertentes, na época do Juízo Final, o mesmo ocorrerá com todos os seus crentes verdadeiros.
88Correndo novamente o risco de cair numa comparação substancialmente ‘teísta-religiosa’, é interessante notar que nenhum dos três contos que tratamos até agora subverte por completo essa lógica da depreciação gradual da humanidade: na verdade, como vimos na última seção, a figura de Andrew parece antes confirmá-la do que propriamente lhe fazer oposição. Relembramos que o conto de Williams é, segundo nossa ordem de vizinhança, cronologicamente o mais adiantado e futurista de todos os mitos que analisamos. Nele, é forçoso notar, a humanidade se finda com a destruição de seus corpos por uma doença bacteriológica sem cura – o Flagelo – e, nesse conto, não há presença de nenhum personagem propriamente humano.
Colocamos, assim, a mitologia cristã como ao menos logicamente anterior a todos os contos que viemos analisando. De todo modo, aceitamos parcialmente o argumento de que é plenamente possível inferir que estamos enxergando ‘cristianidade’ onde ela efetivamente não existe. Até onde sabemos, nenhum dos autores de Histórias de robôs se apresenta particularmente como um crente ou descrente no cristianismo, ao menos enquanto autores de ficção. Assim, por exemplo, deixamos entrever uma noção de criação que tem como ponto inicial o Nada: se a humanidade cria os robôs a partir das coisas (metais principalmente), Deus cria o barro (e os metais) a partir do Nada e, depois, cria o homem a partir do barro. Assim, enquanto a criação humana é mediada, a divina é radical e absoluta. Longe de estarmos particularmente interessados em cristianizar a ficção, nos interessamos pela potência das mitologias correlacionadas. Nosso foco é na proficuidade simbólica dos mitos que colocamos em proximidade e nas diferentes inter-relações que podem ser traçadas a partir deles.
Essa escolha de aproximação entre ficção científica e cristianismo estaria fadada ao fracasso se, ao contrário de comparar mitologias de origem, estivéssemos comparando escatologias cristãs com o fim do mundo como descrito nos contos de ficção. A distância aqui nos parece irremediavelmente posta: nos contos, em boa parte das vezes, o fim da humanidade é seguido por uma continuidade indireta dos humanos a partir da criação dos autômatos. Por exemplo, a escatologia ficcional parece não guardar qualquer relação simbolicamente interessante com a ‘viagem de ácido’ do apóstolo João, que para a maioria dos crentes cristãos foi diretamente inspirado por Deus, na escritura do derradeiro livro da Bíblia – a não ser o já citado paralelo geral, baseado mais no Velho Testamento que no Novo, da degeneração gradual da carne que, como vimos anteriormente, não é nem ao menos uma digressão explicitamente bíblica.
Por outro lado, uma análise simbólica e estrutural apressada poderia levar a uma série de inversões estruturais clássicas. Assim, deixemos nos levar um pouco por tal possibilidade. Nesse contexto, na origem bíblica da criação do homem, Deus é o pai último da humanidade. Na origem ou criação dos robôs, os homens fazem a parte da ‘criação’, de alguma forma são Deus e são, também, ‘pais’, em certo sentido, dos autômatos. Contudo, no contexto bíblico, Deus é super-humano, enquanto que nos contos de ficção científica as criaturas (robôs) é que são super-humanas. Do mesmo modo, enquanto que no cristianismo, Deus é pensado como mais espiritual do que humano (no sentido decaído), os robôs, nos contos de ficção, não são exatamente realidades palpáveis, mas abstrações do ‘espírito humano’. Num caso a criação é divina (robôs super-humanos que existem na imaginação dos autores), enquanto noutro o criador é divino (o Deus cristão onipotente, onipresente e onisciente). Em certo sentido, as posições estruturais de Deus e robôs são simetricamente inversas nas duas cosmologias de criação do mundo.
89Assim, a criação bíblica estaria relacionada, por negação ou inversão simétrica, à procriação, à reprodução biológica da humanidade. Algo que diferencia a ‘criação’ humana (biológica) da criação divina (espiritual) é que a última criação, além de englobar hierarquicamente a primeira, é independente de fatores biológicos e faz-se possível pelo simples querer de uma consciência superior. Na cosmologia da ficção científica, a ‘criação’ dos robôs toma o caráter de uma transferência (de maneira não consciente ou controlada, como vimos no conto do Homem bicentenário) da própria mentalidade-humana-biologicamente-limitada à outra consciência robótica não-limitada-por-fatores-biológicos.
Em quase a maioria dos contos, a responsabilidade humana pelos robôs está justamente no fato de que os últimos não são mais máquinas que realizam um trabalho mecânico, mas seres que se tornaram, não se sabe bem como, autorreflexivos, que têm consciência de sua existência e da existência de outras naturezas – nesse caso, muito próximos aos humanos. Como vimos, os autômatos, na medida em que se aproximam do tipo ideal de Andrew, provocam cada vez mais o asco e o medo dos humanos. É a proximidade, aqui, que gera o desconforto. No caso dos robôs de Williams e del Rey, que não conseguem acreditar que possuem alguma ligação com seres orgânicos, é possível notar a mesma lógica operando, mas de maneira inversa: a inteligência não pode ter vindo dessa forma estranha de vida, mas sim da própria vida não orgânica dos autômatos. O mesmo parece ocorrer no contexto bíblico: Deus, no Velho Testamento, é um tipo de humanidade perfeita. Se os humanos tivessem perseverado nessa perfeição, seriam mais humanos (no sentido que são seres decaídos de uma humanidade perfeita inicial) e mais próximos ao divino.
Portanto, a morte, no cristianismo, não é exatamente humana: ela é, como visto, um ‘castigo’ ou ‘maldição’, uma degradação do espírito humano original – que é originalmente perfeito e, assim, eterno. Deus, nessa via interpretativa, não seria a-biológico: ele seria super-biológico, super-humano. Isso explica porque Jesus, no Novo Testamento, é constantemente chamado de Filho do Homem: a categoria de “Homem”, com “H” maiúsculo, faz referência à humanidade perfeita ou, em resumo, à Deus.
Na próxima e última sessão, aprofundaremos algumas questões já tratadas durante a comparação entre a mitologia cristã e a ficcional. Além disso, voltaremos a cotejar essas duas tradições cosmológicas com as digressões de Donna Haraway.
A tentativa de transpor o sexual e a aproximação ao divino
Deve ter ficado claro que a vizinhança entre a ficção científica e a mitologia cristã pode ser boa pra pensar categorias como as de produção, de reprodução e de criação, por exemplo. Podemos argumentar que essa tríade pode ser melhor explicada da seguinte maneira: os robôs produzem por excelência, os homens se reproduzem por excelência e Deus cria por excelência. Assim, como já argumentamos, é pela reprodução contida a certos limites que se compõe o humano. Do mesmo modo, é pela criação, a partir do Nada e, portanto, incontida, que Deus se faz Deus e, por fim, é pela produção que os robôs se mantém enquanto relativamente independentes – eles foram, como visto, inicialmente construídos pelos humanos, mas depois se produzem corriqueira e autonomamenteHARAWAY, Donna. Saberes localizados [...], op. cit. p. 281..
90É possível argumentar que um dos pontos principais da reflexão de Donna Haraway são os lugares e situações políticas em que as pessoas se comunicam e interagem. Assim, em uma análise da tradição escrita da população feminina negra estadunidense, ela argumenta acertadamente que “somos, na verdade, povos da Bíblia, empenhados numa prática de leitura e escrita derrideana desde os primeiros gritos de profecia e codificações da história da salvação”NOTA 21. Os corpos ou lugares de comunicação possuem, deste modo, características próprias – o que pode ser demonstrado na tipicidade da literatura feminista negra e, em outro exemplo, na literatura ficcional científica feminista, das quais, assumimos, não temos o menor conhecimentoUma análise de tal literatura pode ser encontrada em HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue [...], op. cit.. Essa característica geral do texto de Haraway pode ser razoavelmente descrita a partir da expressão ‘asco pela completude e afinidade pelas relações parciais’.
Lembremos que os robôs de del Rey e Williams não sabiam o motivo de possuírem a capacidade de se comunicar oralmente sendo que o faziam muito melhor por mensagens não orais. Tal aparato de fala/audição só é explicado enquanto os robôs estavam se comunicando com os humanos. A comunicação entre humanos e robôs fica mais clara ainda no conto de Asimov: o que Andrew busca nada mais é que um ‘atestado’ oficial de que ele é um par, uma comunicação geral e oficial, feita pelos humanos, de sua condição plenamente humana – e a consequente negação ou abdicação de sua natureza robótica.
Não é preciso dizer novamente que Deus, na tradição cristã, se comunica com a humanidade principalmente através de um livro sagrado e, mais raro, por intermédio de profetas ou, mais raro ainda, por aparições divinas não mediadasPode-se notar que tais aparições não mediadas são muito mais comuns na tradição cristã católica do que na evangélica protestante, bastando apenas tomar como exemplo as diversas “Marias” do santuário católico. De todo modo, para boa parte da teologia protestante, estar na presença da essência de Deus causaria, na falta de uma mediação, a morte instantânea da pessoa.. As três categorias de seres que tratamos até aqui estão em constante comunicação ou relações de reciprocidade entre si – e encaramos o exemplo do ‘acaso’ ou ‘erro’ na produção do homem-autômato, como já sugerimos acima, como um recurso, consciente ou não, dos contadores de mitos da ficção de não usar o vocabulário específico da mitologia religiosa, mas de alguma forma continuarem sintonizados a ela. Voltando novamente a Gregory Schrempp: a ideia não é, como dito, ‘cristianizar’ a ficção; o que pretendíamos, e esperamos ao menos parcialmente ter alcançado tal objetivo, foi traçar as interseções na vizinhança entre a ficção e o cristianismo.
É preciso notar, ainda, a diferença de pretensão política entre as construções dos textos de Donna Haraway, por um lado, e os textos do cristianismo e da ficção científica, por outro. Seguimos aqui o conselho da própria autora e visamos contextualizar o local de fala mais geral de cada tradição de escrita. Deste modo, já argumentamos que os dois últimos tipos de mitologia visam exemplificar como os homens e outros seres conscientes se relacionam. Não há, como deixamos entrever, qualquer receio ou tentativa de negativar, de classificar criticamente, a completude do ser, a vontade de transcendência ou outras categorias totalizantes nesta última literatura.
91Por outro lado, também notamos que, apesar dos paralelos, uma das características básicas do argumento de Haraway é fazer aparecer a parcialidade. O que ela pretende é notar, é tornar explícita as responsabilidades políticas, corpos ou locais de fala da própria literatura que se pretende totalizante, completa ou, usando os termos da própria autora, masculina. Não iremos nos delongar aqui na descrição de em que sentidos a ficção científica/criacionismo cristão são uma literatura irresponsável e masculina, nos termos da autora. Ressalvamos apenas o caráter explicitamente revolucionário da teoria de Haraway: o principal texto que aqui tratamos possui o título de “Manifesto”HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue [...]. op. cit.. Ao mesmo tempo, marcamos o viés (onto)lógico típico da escrita bíblica e ficcional: o local político de fala desses últimos textos, de maneira geral, não é a crítica a uma mitologia pré-dada, mas justamente a tentativa de construir efetivamente essa última localidade ou posição política através de uma mitologia universal e universalizante.
Por fim, é interessante notar que a gana pelas origens sempre marca, na mitologia ficcional a que nos ativemos, um ponto específico em um sistema de transformação que, idealmente, pode ser levado ao infinito, tanto no passado quanto para o futuro. É claro que, nesse ponto, para uma aproximação mais eficaz com a tradição cristã, teremos que deixar de lado a escatologia bíblica explícita e transitar por um caminho mais cíclico e menos milenarista.
Assim, se, como vimos, o conto do homem de dois séculos é anterior, cronologicamente, aos outros dois contos, onde o Flagelo deu cabo dos humanos, há outros desdobramentos possíveis que não somente o fim da humanidade e sua continuação indireta numa sociedade de robôs. Há, inclusive, a possibilidade de se refundar a humanidade, em termos biológicos. Faço referência aqui ao último conto que analisarei no presente ensaio: o instigante A última pergunta, também de Isaac Asimov. Este mitoASIMOV, Isaac. A última pergunta. p. 158-167. In: Sonhos de robô. São Paulo: Record, 1995., infelizmente, não está disponível na coletânea que elegemos como objeto mais direto do presente artigo, mas ainda assim resolvemos abrir espaço para discuti-lo já que, como veremos, ele possui correlações diretas e indiretas com o mito cristão e também com as digressões de Donna Haraway.
Nessa última aventura da humanidade (ou, ao menos, de algo derivado dela) a figura central é um computador – uma rede de computadores, com o desenrolar do conto – que tem como objetivo inicial responder às perguntas mais complexas formuladas pelos humanos. A consciência computacional (e não exatamente um robô móvel, como nos outros contos já analisados), chamada inicialmente de Multivac, ganha diferentes nomes com o passar das centenas de milhões de anos que o conto de Asimov abarca. Inicialmente, são dois funcionários bêbados que perguntam ao oráculo eletrônico uma questão que ele só conseguirá responder depois de já extinta a humanidade como a conhecemos hoje. A questão em jogo é a seguinte: se a energia do universo está se esvaindo e o mesmo chegará necessariamente a um fim, seria possível reverter esse processo entrópico em algum momento e refundar o cosmos? Não há como negar a correlação, nesse ponto, com a graça perdida pelo homem, sua queda do Paraíso e sua lenta, porém, gradual danação.
92Para todas as entidades conscientes que fazem essa pergunta ao computador, a resposta da inteligência artificial é sempre a mesma: “os dados são insuficientes para uma resposta significativa.” A humanidade conquista, com a ajuda de Multivac, as viagens interestelares, a apropriação direta da energia solar e, por fim, a eternidade biológica, o que faz com que ela se multiplique em milhares de trilhões de indivíduos, povoando todo o universo conhecido – ao menos enquanto existir um universo em que os corpos humanos possam existir. Contudo, a máxima entrópica não deixa dúvidas: quando se esvaziar completamente a energia do universo, o que quer que tenha evoluído da humanidade inicial irá também perecer.
A humanidade passa a conseguir fazer viagens gigantescas por todo o universo conhecido em questão de segundos. Seus corpos habitam diferentes planetas, mas suas consciências ficam gradativamente livres para explorar o universo como um todo. Na última fase do conto, a humanidade se agrupa em uma consciência única, chamada simplesmente “Homem”, com “H” maiúsculo. Novamente não há como negar, nesse ponto, o caráter totalizante, Masculino e, para Haraway, irresponsável desse tipo de mitologia. Voltando ao conto, a consciência do Homem acaba se fundindo, já próxima ao final dos tempos pela constante perda de energia do universo, ao computador cósmico que evoluiu, durante bilhões de anos, a partir do Multivac original.
Nessa última fase, já com quase toda a energia do cosmos dissipada e as consciências da inteligência artificial e da humanidade ajuntadas, esse novo ser consegue, por fim, resolver a questão mais importante, a última questão sobre o conhecimento positivo do universo: a do desgaste da energia, ou, resumidamente, a questão da entropia. Em uma linguagem explicitamente bíblica, como em outras passagens, Asimov então finaliza o conto: “A consciência de AC [ajuntamento de Homem e inteligência artificial] abarcou tudo o que uma vez tinha sido o Universo e pairou sobre o que agora era o Caos [o cosmos quase sem nenhuma energia]. Passo a passo, isso devia ser feito. E AC disse: FAÇA-SE A LUZ! E fez-se a Luz...” (p. 167).
É claro que o paralelo com a mitologia cristã não é somente direto, com a cópia literal da fala de Deus na criação do mundo e da humanidade do livro de Gênesis. Como na tradição bíblica, o início de uma nova era (ou o fim dos tempos, dependendo do referencial adotado em uma leitura cíclica) se inicia a partir do Nada – ou, em termos científicos, a partir da falta quase completa de qualquer energia, seja na forma de onda, matéria ou de luz. Havia, portanto, somente as “trevas” e o “abismo”. Além disso, o Homem, como na tradição bíblica, se rejunta a uma consciência superior e, assim, alcança a perfeição de maneira muito próxima ao narrado na tradição cristã. Em outras palavras, o que se parece tentar dizer é que a religião, pontualmente aquelas que se afirmam advindas de uma tradição comum, dos cinco primeiros livros da BíbliaConhecido como Pentateuco, tais textos são comuns, basicamente, às tradições cristã, judaica e islâmica., não é exatamente um conjunto desorganizado de crenças sem fundamento: esta última se juntará, em algum lugar no tempo e no espaço, à ciência, uma corroborando a outra.
93Pode-se notar que, em última instância, Multivac torna-se Deus: simbolicamente, a inteligência artificial está mais próxima à perfeição divina do que da humanidade decaída – ou, no mínimo, a primeira é um caminho para que a última (re)encontre tal perfeição. O Homem do Gênesis toca o Homem da ficção científica. Nas palavras de Asimov: “Um por um, Homem se fundiu com AC, cada corpo físico foi perdendo sua identidade mental de uma tal maneira que não podia ser considerada uma perda, mas uma conquista” (p. 166). Neste ponto, novamente, Donna Haraway tem razão em criticar o caráter veementemente masculino e totalizador tanto da ficção científica como também da tradição cristã. Como ela evidencia, tentar se distanciar da tradição cosmológica abraâmica não é tão simples: não é uma ingênua e consciente tomada de posição política. Tal tendência é hegemônica e está, como por assim dizer, ‘entranhada’ na tradição ocidental de narrativas cosmológicas. Contudo, apesar da crítica da autora explicitar um viés potencialmente irresponsável desses tipos de narrativas, tal argumento deixa de lado outras facetas importantes dessa mesma tradição cosmológica.
Assim, pensamos que, ao sublinhar a misoginia de praticamente todas as teorias, mitos ou cosmologias universalizantes ocidentais, Haraway fecha para si mesmo uma possibilidade de pensamento extremamente profícua: aquela relacionada às potencialidades simbólicas de pensar, repensar ou mesmo tergiversar uma tradição totalizante dentro do seu próprio campo, ou seja, a partir de uma outra narrativa, ainda que também totalizante. Seria bastante difícil, nesses termos, pensar em outras formas de reprodução que escapassem da teoria biologizante e, ao mesmo tempo, guardassem algum grau de aplicabilidade genérica. Como relacionar mais diretamente a humanidade à reprodução sexuada, os robôs à produção artificial e Deus (ou deuses, dependendo da tradição) à criação a partir do Nada? Como, do mesmo modo, pensar que, por vezes, é dado a cada um desses entes a possibilidade, ainda que seja uma espécie de exceção ou liberdade poética da narrativa cosmológica, de Deus se reproduzir sexualmente (a imagem de Maria grávida de Jesus e, para a tradição cristã-católica, ainda virgem), da humanidade produzir um outro homem (o conto O homem bicentenário) ou dos robôs (re)criarem o mundo (o conto de A última questão)? São perguntas que parecem estar fora do recorte ou do interesse teórico de Donna Haraway – ou, se entram na análise da autora, entram de forma negativa. Contudo, no presente artigo, tentamos introduzir uma discussão simbólica inicial dessas mitologias no intuito principal de mapear suas potencialidades. Achamos, assim, que tal empreitada pode ser proveitosa para alguma antropologia ou sociologia, ainda que não manifestamente revolucionárias.
Referências
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