Xenoblade Chronicles: Tecnologia, Coexistência e Humanidade

Autor

José Antônio Loures Custódio

José Antônio Loures Custódio, artista multimídia com produção em temáticas contemporâneas como a relação homem e computador, redes sociais, política e videogames. Desde 2011 trabalha nas linguagens da arte computacional, histórias em quadrinhos, web arte, fake arte e game arte. Em 2013 foi professor no curso de Ilustração no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), no Centro de Internação de Adolescentes de Anápolis - CIAA. Professor de História da Arte e Histórias em Quadrinho, e membro da Associação dos Amigos da Galeria Antônio Sibasolly em Anápolis. Mestre em Arte e Cultura Visual, pelo Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual - UFG. Também já foi expulso durante a apresentação da banda performática Posthuman Tantra na UniEvangélica em Anápolis, e já teve obras censuradas devido ao conteúdo poético. Atualmente doutorando e bolsista CAPES no Programa de Pós-graduação em Arte pelo Instituto de Artes - UnB. Em sua tese em desenvolvimento defende a hipótese que considera que a sexualidade nos games está presente em quase todas as categorias, desde o seu modus operandi, no gameplay, até os aspectos visuais e sensoriais. A pesquisa aborda uma breve retrospectiva com os primeiros jogos que apresentaram elementos sexuais na sua narrativa, o apelo sexual nas propagandas de videogames, jogos cinematográficos e pornográficos, e artistas que usam a linguagem dos videogames. Sua pesquisa se volta para a gamearte e suas variações analógicas e digitais.

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Introdução

Xenoblade Chronicles (fig.1) foi desenvolvido pelo estúdio japonês Monolith Soft e publicado pela Nintendo. Foi lançado em 2010 no oriente para o console Wii, e posteriormente em 2012 no ocidente, além de uma versão para o portátil New 3DS em 2015. Estima-se que até o fim de 2016 o game tenha vendido aproximadamente 1 milhão e 500 mil unidadesDados completos podem ser acessados em: /www.vgchartz.com/gamedb/?name=Xenoblade+Chronicles.. O jogo de JRPGEm inglês: Japanese role-playing game ou JRPG, em português jogo japonês de interpretação de papéis. Neste gênero o jogador controla um personagem ou um grupo através de aventuras pautadas por uma narrativa imersiva, em que geralmente é apresentado um universo fictício. Sua ambientação pode variar desde fantasia a ficção cientifica, entre outros. se destaca não apenas por ser um dos poucos games do gênero para o console Wii, mas por tocar em temas complexos como a relação homem-máquina e suas consequências físicas e espirituais. Este artigo possui spoilers sobre sua história e personagens, pois é indispensável descrever e analisar pontos sobre o enredo e mitologia do game para o desenvolvimento das ideias.

Figura 1 - Arte presente na capa do jogo. Fonte: https://www.dualshockers.com/if-youre-not-happy-with-the-box-art-for-xenoblade-chronicles-3d-check-out-these-wonderful-alternative-covers-from-nintendo/

Uma das principais características que diferenciam um RPG ocidental de um oriental geralmente é uma abordagem filosófica e mística em suas histórias, além de seu aspecto visual baseado nos desenhos animados japoneses, os animes. Um dos maiores representantes do gênero é a série Final Fantasy, como bem pontuam Mario Maciel e Suzete Venturelli:

Atualmente, apreciamos particularmente o videogame Final Fantasy, pois representa uma geração de games com ambientes altamente realísticos, que aplicam o desenvolvimento científico-tecnológico da simulação e de modelagem física, assim como de inteligência artificial que controla e inicia as ações dos personagens e objetos virtuais. (MACIEL & VENTURELLI, 2004, p.4)

Figura 2 - Titãs in game. Fonte: http://xenoblade.wikia.com/wiki/Bionis?file=Xenoblade_Official_Art_God_Fight.jpg
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O enredo de Xenoblade Chronicles foi escrito por Tetsuya Takahashi e Yuichiro Hattori. Em entrevistaEntrevista completa pode ser acessada em: http://iwataasks.nintendo.com/interviews/#/wii/xenoblade/1/0., o diretor Tetsuya Takahashi revela que a ideia para Xenoblade Chronicles nasceu durante uma viajem de trem após uma reunião de trabalho. De acordo o desenvolvedor, seria fantástico ter seres vivos dentro de gigantescos deuses. O jogo, em suas primeiras cenas, já surpreende o jogador ao contextualizar o universo onde o game acontece. Somos apresentados a um mundo dominado por um imenso e vazio oceano, e acima do nível do mar, dois seres imensos se enfrentam: os titãs (fig.2) Bionis e Mechonis. O terrível combate se encerra com ambos feridos mortalmente, e após a luta, os corpos colossais estão aparentemente sem vida.

Entre o orgânico e o Silício

A escala apresentada em Xenoblade Chronicles é impressionante: ao explorar seu universo fictício realmente sentimo-nos como meros insetos e até mesmo bactérias. Foi comum durante o jogo, parar, refletir e olhar para minha própria mão e imaginar a dimensão que aquilo representa para pequenos seres. Subir por uma unha custaria várias horas para percorrer todo o caminho. E neste universo persistem em existir diversas espécies de seres vivos.

Após milhares de anos, a vida surge dos corpos inertes dos titãs. Bionis, o titã orgânico e biológico, torna-se habitado por seres vivosPersonagens principais de Xenoblade Chronicles: Melia, Sharla, Fiora, Shulk, Riki, Reyn e Dunban podem ser visualizados em: https://xeno-underground.net/media_xenoblade_monado_archives.html.: os Homs, similares aos seres humanos, vivem em pequenas vilas nos membros inferiores de Bionis; Nopons são seres humanoides similares a coelhos, habitam florestas na parte central de Bionis; e os High Entia são uma raça similar aos elfos dos escritos de J.R.R. Tolkien, mas com um par de asas em suas cabeças – sábios, sua civilização reside na cabeça do titã e possuem a tecnologia mais avançada encontrada em Bionis. Além deles, o mundo de Xenoblade possui fauna e flora divididas em vários ecossistemas, reunindo uma infinidade de criaturas que o jogador pode enfrentar em busca de matérias primas e equipamentos.

O titã Mechonis é uma máquina, formado por gigantescas engrenagens e conectores. Também é habitado por seres vivosExemplos de Machina, os personagens Linada e Egil podem ser vizualizados em: https://xeno-underground.net/media_xenoblade_monado_archives.html., mas ao contrário de Bionis, seres robóticos proliferam em sua superfície: Mechons são similares a abelhas em uma colmeia: uma raça de máquinas devotadas ao objetivo de exterminar toda a vida orgânica em Bionis; Machinas, por sua vez, são sobreviventes do conflito entre os titãs e a raça mais antiga encontrada no game: formada por poucos indivíduos, são seres robóticos extremamente avançados cientificamente. Apesar do titã ser habitado por máquinas, seu braço decepado no combate com Bionis é lar de flora e fauna orgânica.

Os titãs Bionis e Mechonis podem ser comparados com Gaia, que na mitologia grega é a deusa que representa a mãe-terra, ser primordial e geradora de toda a vida planetária. Gaia transcendeu a mitologia e também se tornou objeto de estudos. Durante décadas, o pesquisador e cientista James Lovelock desenvolveu a polêmica Teoria de Gaia. Para o autor, o planeta Terra é um complexo organismo vivo e, devido às ações do homem, está sofrendo e definhando:

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Ele (Lovelock) acredita que nossa espécie está agora impondo à Terra um estresse sem precedentes e que a mudança climática poderá levar a um mundo com um ecossistema bem empobrecido, quase inóspito para os seres humanos. Mais assustadora (e mais controvertida) é a sua afirmação de que o “ponto sem retorno” já pode ter sido ultrapassado. (REES, 2010, p.10)

O pesquisador e artista Roy Ascoot também defende a ideia de uma Gaia, entretanto, em um contexto híbrido, uma realidade mista:

Realidade mista também é a rubrica de uma tecnologia emergente que lida ao mesmo tempo com o mundo virtual sintetizado e o mundo físico real. Ela cria ambientes que integram quase que perfeitamente os mundos real e virtual. (ASCOTT, p.274)

Para Ascott, estamos entrando em uma era pós-biológica, em que o fluxo constante de informação está transformando a relação entre consciência e o mundo material. Poderíamos categorizar os dois titãs nos estudos de Ascott e Lovelock, ainda mais se levarmos em consideração os acontecimentos no enredo.

Civilizações

Após a introdução da mitologia do game, o jogador é lançado em meio um combate entre homs e mechons. É curioso perceber que as máquinas são apresentadas de maneira maniqueísta, como ferramentas de destruição e morte: o eterno conflito entre os seres de carne e silício. Neste universo fictício, a tecnologia existe em vários níveis, assim como os seus meios de utilização e complexidade.

Na visão dos homsExemplos de Homs podem ser visualizados em: https://xeno-underground.net/media_xenoblade_monado_archives.html. a tecnologia é uma ameaça e não é inserida em sua sociedade de forma natural, e sim como uma resposta defensiva. Os homs são tecnologicamente parecidos com os humanos, entretanto, o reaproveitamento de sucata é essencial, pois não há vastos recursos tecnológicos. Devido a conflitos, os homs são dependentes da tecnologia para sobreviver aos ataques de mechons. Os nopons são tribais, sua tecnologia é rústica e usada em sua maior parte para a obtenção de alimentos e grãos. Não utilizam metais em suas ferramentas, mas madeira, e por isso, seus mecanismos são similares a moinhos. Na cidadela de Alcamoth, lar dos High Entia, a situação é outra: sua tecnologia é capaz de criar cidades flutuantes, teletransportes, armas e máquinas voadoras. Tons brancos e azuis são predominantes, dando assim a impressão de um local divino e messiânico. Os mechons se comportam como armas, logo, são ferramentas bélicas. Sua aparência varia entre seres bípedes e insetos, mas todos têm lâminas espalhadas pelo corpo. Como abelhas, obedecem apenas ao seu líder, Egil, um machina rebelde que lidera o ataque a bionis. Já os machinas são constituídos tecnologicamente, em uma aparente imortalidade vinda de sua tecnologia. Alguns machinas são humanoides, mas outros transcenderam essa questão.

Alguns utilizam cadeiras flutuantes, como o líder MiqolMiqol pode ser visualizado em: https://xeno-underground.net/media_xenoblade_monado_archives.html. Seus corpos são utilizados de maneira a obter o máximo de aproveitamento em suas tarefas: Não precisam dormir, nem se alimentar, mas apenas cumprir suas funções na sociedade. A cidade de Junks, última cidade do povo machina, é constituída basicamente por sobreviventes. É comum conversar com NPCsEm inglês: non-player character ou NPC, personagens não controláveis pelo jogador mas que estão presentes no jogo, tendo alguma função interativa e narrativa. dessa região e perceber que estão em constante evolução. Apesar de não sofrerem de doenças ou morte natural, existe uma busca por um corpo adaptável a ameaças naturais e ao ataque de mechons.

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É interessante perceber que cada raça se relaciona com a tecnologia de maneira diferente, numa escala que a caracteriza como essencial até absolutamente desnecessária. Existem aquelas que enxergam a tecnologia como arma, algumas que abraçam-na como parte de si mesma, e outras que evitam tal contato. Podemos traçar um paralelo com a humanidade, pois países desenvolvidos apresentam maior integração tecnológica em sua sociedade – seu cotidiano é tecnológico. Os estadunidenses, por exemplo, estão migrando para as plataformas móveis, abandonando aos poucos os cabos:

Estudo da empresa de pesquisas Pew Research, divulgado nesta segunda-feira (21), mostra que a adoção da banda larga nos lares norte-americanos caiu para 67% em 2015, ante 70% em 2013. O retrocesso colocou o uso da internet caseira de alta velocidade de volta ao patamar de 2012, o que, de acordo com o relatório, “pode representar um pequeno desvio ou uma realidade mais prolongada”.

A diminuição do uso da banda larga nos lares dos americanos vem junto ao aumento do número de adultos “smartphone-only” (apenas celulares inteligentes, em tradução literal) – aqueles que têm um celular para acessar a internet, mas não assinam serviços tradicionais de alta velocidade em casa. Hoje, diz o estudo, a adoção de smartphones está no mesmo patamar (68%) das conexões caseiras, e 13% dos norte-americanos são “smartphone-only”, ante 8% em 2013.

Além disso, o estudo mostra que 15% dos norte-americanos adultos se dizem “cord cutters” (cortadores de cabos, literalmente) – expressão usada nos Estados Unidos para designar aqueles que abandonaram a televisão a cabo ou via satélite. Muitos deles, diz a Pew, afirmam que a disponibilidade de conteúdo televisivo na internet é um fator para distanciá-los da assinatura de serviços de televisão tradicionais. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2015)

A mobilidade se mostra fundamental somada à conectividade e qualidade de acesso a internet. Entretanto, não basta conectividade sem bons serviços oferecidos ao consumidor. No Brasil a realidade é completamente diferente:

O Brasil é o quarto país mais conectado do planeta, segundo o levantamento Internet Live Stats, mas está na 93ª posição no quesito velocidade média da conexão, de acordo com o relatório State of the Internet, com uma taxa de transmissão de 3,6 megabits por segundo. A Coreia do Sul, líder do ranking, tem acesso a uma velocidade média de 20,5 megabits por segundo. (OLIVEIRA, 2016)

Por aqui ainda temos o fator corrupção e uma relação intrínseca entre as provedoras de internet e a ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações, acusada muitas vezes de privilegiar e defender as empresas, sem pensar nas condições de serviço oferecidas ao consumidor. Dessa forma, podemos compreender os estágios tecnológicos apresentados em Xenoblade Chronicles como um reflexo da sociedade atualmente, assim como seus graus de adaptação e acesso a bens tecnológicos.

Os nopons podem ser comparados tecnologicamente com tribos isoladas, como por exemplo, os Moxihatëtëa, indígenas que ainda hoje vivem isolados ao norte de Roraima, fotografados pela primeira vez em 2016Notícia completa pode ser acessada em: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2016/11/indios-de-tribo-isolada-na-amazonia-sao-fotografados-pela-1-vez-em-rr.html. Porém, os nopons possuem uma boa relação com os homs e os High Entia, diferente dos Moxihatëtëa que são um povo guerreiro e evitam contato até mesmo com outros povos indígenas. Os Moxihatëtëa e os nopons escolheram não se desenvolver tecnologicamente, de acordo com Laymert Garcia dos Santos:

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A analogia com os povos indígenas soa interessante, não porque estes sejam “atrasados” ou “arcaicos” em termos sociais e culturais, mas porque não trilharam o caminho do desenvolvimento técnico cada vez mais celerado, optando por outros rumos. Assim, quem já esteve numa aldeia Yanomami, por exemplo, sabe da distância que separa a sua vida cotidiana do universo tecnologizado e constata a sua dificuldade em lidar com nossas máquinas; mas esse caso, o problema que eles enfrentam não é com sua sociedade, e sim com a organização dos outros, dos brancos. (SANTOS, p.138)

Se os nopons escolheram um modo de vida livre das máquinas, os machinas são máquinas com consciência própria. Este povo hackeia, modela e melhora seus corpos afim de uma melhor performance. Esse desejo por melhorias no corpo e de ir além do orgânico já se tornou realidade. Em 2015, durante a Feira Ciborgue de Dusseldorf, na Alemanha, Jowan Österlund se prepara para uma mesa cirúrgica, para colocar o Northstar V1, implante de LED. Seu criador é Tim Cannon, co-fundador da Grindhouse Wetware, um coletivo biohacker americano de Pittsburgh. Cannon, que também é implantado durante a feira por Österlund, fala em entrevista sobre o seus desejos e motivações com suas modificações corporais:

“Todos estão empolgados com o tamanho do Northstar V1; o último implante que criamos era do tamanho de um maço de cigarro. Mas ele ainda é grande demais, queremos criar implantes bem menores”, diz Cannon. “Queremos transformar a ficção científica em realidade. Para que isso aconteça, porém, são necessários vários estudos, alguns deles de até uma década. A equipe da Grindhouse Wetware não é composta por acadêmicos. O que nos move é nossa paixão pela ciência cidadã.”

Adepto do transhumanismo, Cannon se recusa a deixar seu destino nas mãos de sua própria cognição. “Não confio no meu cérebro”, diz. “Mas confio nos dados produzidos pelo meu corpo. Hoje nossas criações podem parecer produtos de nicho, mas, quando tivermos desenvolvido um implante de coração acessível capaz de ativar um alarme automático antes de um ataque cardíaco, todos vão querer nossos produtos.”(NEIFER, 2015)

A iniciativa reflete o desejo de atualizar o próprio corpo: para além de modificações comuns como tatuagens, tingimento de cabelo ou piercings, aqui o desenho é um corpo individualizado com a união entre carne e máquina. Artistas como o australiano Stelarc ArcadiouStelarc Arcadiou e sua terceira orelha implantada em seu braço: http://stelarc.org/?catID=20242 defendem o conceito de que o corpo humano está obsoleto, tornando necessárias atualizações que permitam ao ser humano acompanhar as exigências das tarefas contemporâneas. Em 2007, Stelarc implantou uma terceira orelha em seu braço, que transmitia os sons captados para a internet. Além disso, o artista realiza performances com membros robóticos acoplados em seu próprio corpo.

Por mais que os corpos dos machinas sejam avançados, nem sempre realizam todos os desejos. Temos como exemplo o NPC Rakzet, um machina que deseja salvar os nopons e homs que caem no oceano próximo ao Fallen Arm (braço decepado do titã Mechonis), mas seu corpo não reage bem ao contato com água. Por esse motivo nobre, Rakzet deseja se tornar um homs. Ou seja, o caminho inverso também é possível, de regredir ao orgânico. Vamos falar então de um interessante personagem de Xenoblade Chronicles, apresentado justamente com os conflitos que mencionamos.

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Eva Transhumana

Fiora é irmã do herói de guerra Dunban, amiga de infância de Reyn e apaixonada por Shulk, o protagonista. Todos esses personagens residem em Colony 9, um assentamento homs nos pés do titã Bionis. No começo da jornada, a personagem é apresentada de forma adimensional, recatada e simplória, nutrindo um amor adolescente por Shulk. Nas primeiras horas de jogo, Fiora se sacrifica para salvar seus amigos, em uma morte cruel e sádica pelas mãos de um híbrido entre hom e mechon. Esse acontecimento se torna a motivação dos personagens para buscar por vingança. Porém, depois de dezenas de horas de jogo, Fiora é encontrada dentro de um mechon humanoide, renascida em um corpo robotizado em que sua cabeça é a única lembrança da sua forma carnal. É nesse momento que a personagem torna-se interessante e complexa.

Dentro do universo ficcional “Aurora Pós-Humana”, do artista transmídia Edgar Franco (2013), Fiora seria um uma extropiana, pois sua mente foi transferida para um novo corpo robótico. No caso da personagem, ainda resta a sua cabeça humana, ou seja, ela não se tornou completamente abiológica. No universo de Franco os extropianos são consciências humanas dentro de máquinas ou em estágios avançados, simplesmente blocos de informação. Então podemos considerar Fiora em um estágio híbrido perante a figura dos extropianos. Devido à natureza interdisciplinar e transdisciplinar da Arte e Tecnologia, cada vez mais artistas e cientistas estão se unindo, para assim criar arte e ciência:

Um grupo de cientistas, artistas, sociólogos e filósofos da região do Vale do Silício, nos Estados Unidos, investiga a possibilidade de transplantar a consciência humana para um chip de computador, em busca do almejado sonho de imortalidade. Eles fazem parte de um movimento científico-filosófico anteriormente batizado de Extropy, que seria uma alusão ao oposto do conceito de entropia. Defendem a ideia de extropia como a possibilidade de perpetuação ilimitada, que rompe com noções tão valoradas como ecologia e religiosidade, bem como cria todo um sistema de novos conceitos e valores que permearão uma sociedade extropiana. O movimento foi renomeado para Transhuman Society (Sociedade Transumana). (FRANCO, 2013, p.12-13)

A temática vai além do aspecto visual conceitual em Xenoblade Chronicles e altera também a experiência proporcionada pelo game. Em gameplay, a mudança também foi drástica: antes a personagem possuía algumas habilidades simples com adagas; já em seu novo corpo, ela consegue absorver a força do adversário, paralisar mechons por alguns instantes, criar uma aura que recupera aos poucos a energia, criar um escudo que absorve o dano sofrido, lançar uma rajada energética e, por fim, uma devastadora sequência de golpes que acerta todos os inimigos próximos. É possivelmente a personagem controlável com maior poder de dano aos inimigos em Xenoblade Chronicles.

Figura 3 - Fiora e alguns conjuntos de armaduras in game. Fonte: http://xenoblade.wikia.com/wiki/Fiora
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Mesmo sem possuir um corpo humano, Fiora exala sexualidade em seu novo design (fig.3), assim como as demais machinas mulheres. Praticamente todos os equipamentos da personagem disponíveis durante o jogo destacam seus seios, virilha, salto alto e até mesmo uma espécie de calcinha à mostra. Não existe razão funcional para a escolha desse design, a não ser o fan serviceQuando alguma obra destaca cenas ou objetos que não desenvolvem a trama, mas focam em agradar seus fãs. Por exemplo, as adaptações de heróis dos quadrinhos quando alguma referência ao material original surge na tela. No caso dos jogos orientais, a erotização das personagens femininas..

Para entender o motivo disso, devemos falar um pouco sobre o mercado de games. Apesar do público feminino que gosta de videogames ter aumentado, a maioria ainda se dedica a jogos casuais – jogos mobile e de redes sociais:

Videogame é coisa de menina sim, e agora tem até estudo no Brasil provando isso. Segundo a pesquisa Game Brasil 2016, divulgada nesta quarta-feira (16), as mulheres já representam 52,6% do público que joga games no Brasil.

A pesquisa do ano passado, divulgada durante a Campus Party 2015, já indicava uma maior presença do público feminino brasileiro no segmento de games. Em 2013, elas respondiam por 41% do total de jogadores, porcentagem que saltou para 47,1% na Game Brasil 2015.

“No ano passado já havia o indicador de que as mulheres brasileiras superariam os homens no mercado de jogos em um curto espaço de tempo e isso se concretizou. Porém, o tempo que elas jogam é menor do que o do sexo oposto e o estilo de jogos que elas preferem também caracteriza um comportamento mais casual”, diz em nota Guilherme Camargo, CEO da Sioux. (G1, 2016)

Então podemos entender que o público alvo dos RPGs digitais são em maioria jovens adultos. Um jogo como Xenoblade Chronicles requer em média 60 horas para completar a história principal e, para seu conteúdo completo, as horas ultrapassam as centenasInformações completas em: https://howlongtobeat.com/game.php?id=11401 – uma quantidade de horas dedicadas bem diferente daquela exigida pelos jogos casuais. Logo, os desenvolvedores tendem a criar produtos voltados para os homens, seus maiores consumidores. Não podemos abordar o tema sem citar algumas particularidades nipônicas envolvendo o assunto. O Japão possui métricas peculiares quando se trata de sexo:

Mais de 40% dos japoneses jovens adultos e solteiros são virgens, segundo um estudo realizado pelo governo, e quase três quartos dos homens não estão em nenhum relacionamento. A pesquisa revela a dimensão da falta de atividade sexual em um país onde os políticos se preocupam com as baixas taxas de natalidade e seu efeito em uma sociedade em envelhecimento.

O Instituto Nacional de População e Pesquisa da Segurança Social entrevistou mais de 5 mil solteiros com idades entre 18 e 34 anos sobre suas atividades sexuais. Foi constatado que 42% dos homens e 44% das mulheres nunca fizeram sexo. A pesquisa de 2015 também detectou que sete em cada 10 homens não estavam em um relacionamento, enquanto quase 60% das mulheres iam para a cama sozinhas.

É difícil encontrar estatísticas internacionais diretamente comparáveis, mas o povo japonês parece fazer menos sexo que cidadãos de outros países desenvolvidos.

Em um estudo de 2010 realizado pelo mesmo órgão governamental, 68% dos japoneses de 18 e 19 anos disseram ser virgens; uma pesquisa feita naquele mesmo ano na Europa pela empresa de preservativos Durex descobriu que as taxas de virgindade entre as pessoas de 15 a 20 anos eram muito menores.

Por exemplo, menos de 20% dos jovens alemães eram virgens quando chegavam aos 20 anos, enquanto mesmo na conservadora Turquia este número era de apenas 37%.

A aparente reduzida libido do povo japonês não confirma a impressão que muitos visitantes têm sobre a atitude do país em relação ao sexo. Imagens de jovens mulheres com seios enormes - e frequentemente seminuas - são comuns nos famosos mangás e nos outdoors. (G1, 2016)

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É essa a cultura que cria uma ciborgue com curvas sinuosas e calcinha aparente. Apesar de produzir grandes quantidades de pornografia, os japoneses não chegam a realizar o ato sexual. Dessa forma, o assunto aparece em Xenoblade Chronicles no design das personagens femininas e também em discretos e interessantes diálogos. Em determinado momento, Melia, a princesa do império High Entia, questiona Fiora sobre seus pensamentos. Melia diz: [...] Existe algo que você fantasia? Seu futuro? Filhos? Viver feliz para sempre? Fiora responde: Eu não quero dizer fantasiar... É apenas aquele dia... Sempre me lembro. Eu não sei o motivo. Fiora é apegada a uma lembrança cotidiana, um piquenique com Shulk (cena que acontece nos momentos iniciais do jogo). Mas como ela pode se relacionar, reproduzir e ter filhos? Ela se tornou uma máquina, privada de seus órgãos sexuais e seu emocional ainda não sabe como lidar com seu novo corpo, então permanece presa à última lembrança feliz em seu corpo de carne e osso. Para Jean Baudrillard (1981), a reprodução sexuada é um dos fatores que nos definem como humanos: negar a sexualidade é encerrar a própria vida e morte. De acordo com o autor:

Mas justamente o sexo não é uma função, é o que faz com que um corpo seja um corpo, é o que excede todas as partes, todas as funções diversas desse corpo. O sexo (ou a morte: nesse sentido é a mesma coisa) é o que excede toda a informação que pode ser reunida sobre um corpo. (BAUDRILLARD, 1981, p.128)

Baudrillard (1981) apresenta uma visão um tanto quanto distópica sobre determinados assuntos, como a clonagem, em que o autor compara o processo com um câncer em metástase. Recentemente cientistas criaram um embrião híbrido entre homem e porco, uma combinação entre as células-tronco das duas espéciesMatéria completa pode ser acessada em: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/cientistas-criam-embrioes-hibridos-de-porcos-e-humanos.ghtml. Para o autor, isso altera a essência do ser humano: não são como próteses que fazem um retorno à figura humana:

Mas quando se atinge um ponto de não retorno (dead-line) na simulação, isto é, quando a prótese se aprofunda, se interioriza, se infiltra no coração anônimo e micromolecular do corpo, quando se impõe ao próprio corpo como modelo “original”, queimando todos os circuitos simbólicos ulteriore, não sendo todo o corpo possível mais que sua repetição imutável, então é o fim do corpo, da sua história e suas peripécias. (BAUDRILLARD, 1981, p.129)

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A personagem inconsequente e involuntariamente cruzou essa linha definida por Baudrillard. Fiora possui algumas similaridades com o Robocop, personagem popularizado pelos filmes dirigidos por Paul Verhoeven. Ambos tiveram uma morte violenta, não escolheram retornar dos mortos, tornaram-se ciborgues, são armas de destruição e enfrentam dificuldades para se adaptar à vida em sociedade. Entretanto, Fiora é extremamente ágil, bem diferente do policial máquina dos anos 80. Em diversos momentos a personagem é questionada sobre o seu estado, pois não se alimenta nem dorme. Ela não precisa disso, apenas de alguma quantidade de água uma vez ou outra. O pesquisador Massimo Di Felice (2008, p.78) chama este atravessar de fronteiras de trespassing: o ato de transgredir e transpor a condição humana, além do orgânico e inorgânico. O autor categoriza os cinco níveis de transpassing, cada um com suas origens e transgressões. Fiora se enquadra em quatro dessas categorias:

Tresspassing I – no desenrolar da história é descoberto que Fiora é o receptáculo de Lady Meyneth, o ser que controla o titã Mechonis, criadora dos mechons e machinas, e por isso foi ressuscitada. Ela se transforma em uma divindade transitória, como um anjo (ibidem, p.78): nem homem, nem Deus, um mensageiro assexuado.

Tresspassing II – a personagem é um ser híbrido, nem hom, nem machina, e transita entre civilizações que se odeiam. Como o minotauro (ibidem, p.80), fruto de uma relação não natural. Um ser monstruoso que não pertence a nenhum mundo, mas está presente em ambos.

Tresspassing III – a imortalidade alcançada pela personagem ao retornar dos mortos. Este corpo tecnológico não pode morrer de velhice ou de doenças (ibidem, p.81), apenas se for destruído. A condição básica que é a consciência de seu próprio fim já não existe.

Tresspassing IV – o hibridismo com o sintético – no caso da personagem, seu visual fetichista, sob os padrões de cultura nipônica. União entre o humano e o inorgânico (ibidem, p.84). Modificações corporais e estéticas extremas, geralmente devidas à cultura de tribos urbanas.

Tresspassing V – a transformação em ciborgue. Um homem ampliado (ibidem, p.86) devido à tecnologia, aumentando o poder de seus sentidos além da capacidade humana. Um pós-humano nascido da união entre carne e técnica.

É importante citar que apesar de possuir um corpo superior, a personagem almeja ter o seu antiquado corpo de volta para tornar-se mortal outra vez. Diversos momentos em Xenoblade Chronicles abordam a possibilidade de recuperar seu antigo corpo e, dessa forma, retornar ao seu estágio natural e coexistir com sua espécie. Diferente de Rakzet, que sempre foi machina e deseja ser um hom, a personagem deseja recuperar as sensações e experiências de ser uma simples hom, deixando de lado qualquer superioridade de sentidos, física e mentalmente.

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Coexistência

Ao fim de Xenoblade Chronicles, o vilão Zanza, a entidade que controla o corpo do titã Bionis e responsável pelo conflito na era mitológica, é derrotado. Finalmente é explicado que o universo do jogo nasceu de um experimento com uma espécie de acelerador de partículas na órbita da Terra. Como resultado, a vida orgânica presente na estação espacial sofreu um reboot e os principais cientistas envolvidos tornaram-se as entidades responsáveis pelos titãs e pela criação da vida: nopons, mechons, machinas, homs e a fauna e a flora presente no corpo dos titãs. Em 2010, havia o temor de que o LHCLarge Hadron Collider - em português: acelerador de partículas da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear. Seu objetivo é coletar dados sobre experiências envolvendo colisão entre partículas. quando ligado poderia criar buracos negros e com isso, destruir o planeta Terra. Bem, pelo que notamos nada disso aconteceu. Percebo que isso serviu de inspiração para a dupla de roteiristas, mas com um olhar não-apocalíptico. A vida não se findou, e sim foi reformulada e ressignificada.

Durante o epílogo do jogo, a personagem Fiora aparece transitando em uma cidade agora habitada por diversas espécies em harmonia, onde aquelas tecnologicamente mais evoluídas dividem seus conhecimentos científicos. Com a visão em primeira pessoa, não temos a resposta sobre qual é a condição de seu corpo. Ao encontrar o protagonista em uma praia, é revelada a sua aparência: Fiora voltou ao seu estado de origem, carne e osso.

Durante uma cena romântica, Shulk revela que está curioso em conhecer as outras formas de vida existentes no universo. O final do jogo mostra uma mensagem progressista sobre a ciência: As diversas raças unidas por um ideal de coexistência podem realizar maravilhas. Fiora é um exemplo disso, ao conseguir seu corpo humano de volta – mesmo que o processo para alcançar esse resultado não seja explicado. O jogo se encerra com diversos mistérios, mas a proposta dos desenvolvedores era enfatizar o caminho percorrido e as experiências vividas pelos jogadores em centenas de horas.

Em 12 de janeiro de 2017, foi anunciado para o console Nintendo Switch o jogo Xenoblade Chronicles 2, produzido pelo mesmo time de desenvolvedores do game original. O trailer mostra cenas curtas e o novo protagonista explorando o que aparentemente é um “titã”. Não foram divulgadas informações sobre o enredo ou personagens, apenas que o game se passa no mesmo universo do primeiro jogo.

Embora Xenoblade Chronicles tenha sido lançado para um hardware ultrapassado até mesmo para sua época, o resultado final foi excepcional. Ainda que seja um produto colocado no mercado, isso não desqualifica a importância das discussões encontradas ao jogar. O universo do game apresenta situações e questionamentos que vivenciamos diariamente, não mais exclusivos da ficção científica. Os temas abordados pelos desenvolvedores mostram não apenas um jogo oriental, mas um olhar da cultura japonesa sobre tecnologia, sexualidade e humanidade. Os games se tornaram uma mídia complexa: as possibilidades de abordagens, imersão e narrativas proporcionadas por essa ferramenta apresentam uma divertida e interessante área para pesquisas, permitindo-nos conhecer as possibilidades tecnológicas e sociais de um objeto que antigamente era tratado como um mero brinquedo.

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Referências

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Sites

xenoblade.wikia.com/

Game

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