Introdução
Acessibilidade é uma condição de algo ser acessível, de possibilitar o acesso. Em linhas gerais, a maior parte das coisas do mundo é acessível para humanos de antropometria padrão, e pouco acessíveis para o cidadão com especificidades em particular, como tamanho, velocidade ou acuidade visual, dentre outros. Indivíduos fora da condição convencional foram, ao longo da história, postos à margem da sociedade, em um processo de segregação (DALLA DÉA; ROCHA, 2016). Há registros de que os Vikings abandonavam suas crianças com deficiência e doentes até morrerem de frio e fome, justamente por não se ajustarem a uma condição de "normalidade". Na Grécia antiga, o comportamento não era muito diferente, embora os métodos o fossem.
No Brasil, a reclusão era regra (DALLA DÉA; ROCHA, 2016), derivando daí a possibilidade de abortos quando o feto era diagnosticado com alguma diferença ou deficiência. E os abortos nem sempre, quase nunca, eram legais. A perspectiva cultural supera, em muito, a jurídica, formando comportamentos sociais nem sempre alinhados com moral, ética ou mesmo humanitária.
Há algumas décadas, o Brasil superou a pior fase de reclusão na família, passando a "tratar" e "educar" as pessoas com deficiência. Escolas de ensino especial e hospitais/casas de recuperação formavam um conjunto de atendimento à pessoa com deficiência, em uma busca de integração ao contexto social, embora o fizesse ainda sob a égide da segregação. O discurso da inclusão surgiria algum tempo depois, tendo como vetor a inserção de pessoas com deficiência nos contextos sociais amplos e específicos, retirando o dogma de doente em tratamento e assumindo a posição de pessoa com algum tipo de necessidade específica. Essa necessidade se alinha com a noção de que o acesso deve ser provido à todos, não exatamente com as mesmas medidas ou métodos. Isso significa alterar o foco da acessibilidade, do método para o objeto/ação. Ao fazê-lo, as diferenças são ressaltadas e respeitadas, tornando de fato o objeto/ação acessível, em diferentes medidas e métodos. Aqui, a noção se equivale a possibilitar o acesso universal ao mundo, ainda que os métodos para tal se ajustem às várias condições de usuários.
Essa mudança de postura do quesito de acesso encontra repercussão no que chamamos de acessibilidade (DALLARI, 2007). Os modos de acesso respeitam as possibilidades e características de todos os usuários, ao invés de instruir o acesso somente aos humanos convencionais - fisiológica, psicológica e anatomicamente. Aos que desviam desse cânone corpóreo, que antes eram segregados e, em alguns casos, tinham um mundo (objetos e coisas) adaptado, mais hodiernamente passam a ter uma provisão de acessibilidade por novos métodos, o que faz com que eles não necessariamente tenham objetos adaptados, mas métodos adaptados para acesso ao mundo, que é único. Embora a cidade seja a mesma para todos, há rampas, semáforos sonoros, pisos táteis, dentre outros artefatos, que proveem o acesso à cidade, em uma relação de compartilhamento e não segregação. Ao invés de telefones especiais, métodos especiais para os mesmos telefones. Ao invés de computadores especiais, interfaces especiais para os mesmos computadores. Essa mudança mostrou-se fundamental para o avanço do que chamamos de tecnologias assistivas.
3Tecnologias assistivas
Aparelhos celulares possuem telas ou teclados acessíveis para o padrão antropométrico, mas pessoas com dedos maiores sentem dificuldade em acessar as teclas separadamente. Livros são acessíveis para o padrão de acuidade visual da população, mas são pouco acessíveis para aqueles com baixa acuidade visual. Prédios são acessíveis para o padrão antropométrico, mas não são para aqueles com mobilidade reduzida ou comprometida. As vias públicas possuem temporizador em semáforos que permite a travessia do humano padrão, mas qualquer pessoa com mobilidade reduzida teria dificuldade em cumprir a tarefa da travessia da via naquele diminuto prazo. Pessoas com baixa acuidade visual teriam problemas nessa travessia, já que poucos semáforos possuem sinalizador sonoro.
Normalmente usado para contexto de acesso a pessoas com deficiência, a abrangência da acessibilidade certamente é maior e atende a necessidade de muitos, senão da maioria das pessoas, em determinados momentos da vida. De crianças a idosos, a acessibilidade cria uma condição de cidadania frente a questões fundamentais do cotidiano. Barreiras urbanísticas, arquitetônicas, informacionais e atitudinais são as mais comuns, normalmente lembradas quando se discute acessibilidade, embora não sejam as únicas.
O processo de inclusão abrange, necessariamente, essas demandas, de métodos e materiais que tornem o mundo acessível. Não necessariamente a criação de produtos ou contextos diferenciados, mas de acesso geral ao mundo. Isso significa dizer que a segregação deixa de ter o privilégio como condição de atendimento das pessoas com deficiência e necessidades especiais, culminando na perspectiva de dotação de um acesso universal, via processos tecnológicos que provejam tal condição. Nesse sentido, temos os mesmos objetivos e coisas do mundo, com condições diferenciadas de acesso, alcançando uma gama maior de usuários, com uma performance de acessibilidade maior. O foco transfere-se do usuário para os objetos, de modo que a deficiência ou necessidade específica deixa de ser elemento de grande relevância, na medida em que a performance dos objetos do mundo é que estão sob avaliação, e não a performance do usuário. As coisas do mundo são tão mais relevantes e valoradas na medida em que possibilitam o acesso universal, superando sua fixação ergonômica e antropométrica, conquistando uma variação e flexibilidade capaz que colocar tais objetos em uma régua de acessibilidade. Não são mais os usuários os responsáveis por alcançar ou não determinados objetos ou tarefas, mas sim os objetos ou tarefas são valorados de acordo com sua capacidade de tornarem-se acessíveis.
Como as cidades possuem espaços públicos, portanto compartilhados entre seus cidadãos, é de todo recomendado que tais espaços sejam projetados para prover acessibilidade. Semáforos com sinalizadores sonoros, pisos táteis, rampas que ligam vias a calçadas, a edificações, principalmente de prédios públicos, são algumas soluções possíveis e desejáveis para manter os espaços coletivos verdadeiramente públicos. Pessoas com baixa mobilidade, de cadeirantes a pessoas com pé quebrado e idosos, têm o mesmo direito que qualquer outro cidadão, sobretudo ao acesso a bens e serviços públicos.
Na arquitetura, pelos mesmos motivos, observamos a necessidade de rampas, elevadores, pisos e paredes táteis, placas em braille ou com audiodescrição, como soluções que proveem a cidadania a todos. Nas bases informacionais, como websites, aplicativos para smartphones e tablets, TVs, bibliotecas e assemelhados, é preciso prover acessibilidade, garantindo o direito de acesso a todos. Mas talvez o prejuízo maior que o tema enfrenta sejam as barreiras atitudinais, responsáveis pelo preconceito generalizado e culturalmente instalado em nossa sociedade. Deriva dessa barreira as condições de tratamento diferenciados, indo do medo à piedade, da compaixão à rejeição.
4Proposituras
Se o tratamento preventivo para todos os males é a educação e a informação, fundamentadas na condição de que todos nós somos humanos, cidadãos com direito ao acesso aos bens, serviços e informações sociais, será preciso a ciência, a tecnologia e a inovação (ROCHA, 2014) para que as tecnologias assistivas sejam, de fato, desenvolvidas e inseridas no cotidiano. O pensamento de que as atitudes, as cidades, os prédios e as informações devem eliminar as barreiras de acesso é um passo grande. O problema não está nas pessoas com dificuldade de ver, andar, segurar ou ouvir. O problema está nos lugares, atitudes e coisas do mundo que não atendem o princípio básico de acessibilidade. E o acesso é um direito do cidadão.
Frente a essa constatação, compreende-se que as tecnologias não fazem avançar apenas questões pontuais, mas ela alcança para além de limites de computar dados. A tecnologia funda as humanidades digitais, lastro em franco desenvolvimento e que diz respeito à aplicação da tecnologia nas áreas de conhecimento das humanidades, inclusive, mas não somente, para questões de acessibilidade. A sociedade contemporânea, impregnada e dependente da tecnologia (ROCHA, 2014), alcança níveis invejáveis de produtividade, podendo, também, alcançar avanços memoráveis na dimensão das humanidades.
Já assistimos, nos últimos tempos, a tecnologia prover acessibilidade com a tecnologia assistiva. São leitores de tela e livro, cadeiras de rodas motorizadas - algumas sobem escadas -, bengalas com sensores, câmeras com audiodescrição e uma infinidade de gadgets que eliminam ou minimizam barreiras de todas as ordens - exceto as atitudinais. O sinal de TV digital assimila funções de audiodescrição e closed caption, quando a emissão provê essas funcionalidades, além de possibilitar a emissão de sinal com LIBRAS. As tecnologias assistivas são um bom exemplo de como a inteligência supera barreiras.
Enxergamos, culturalmente, a tecnologia alterar o status de “dependente” para super-herói, quando elementos tecnológicos fazem com que pessoas com deficiência se convertam em super-humanos. Desde o Homem de seis milhões de dólares e mulher biônica, nos anos 1970, até Robocop ou Homem de Ferro, a tecnologia, nesses casos, mais que prover acessibilidade, ela altera o modo como a sociedade enxerga a falta de acesso.
Todavia, o que se busca não é converter pessoas com deficiência em super-heróis, nem mesmo ver acessibilidade como obrigação. O que se busca é enxergar acessibilidade como algo necessário para toda a população. É enxergar que o problema não são as pessoas que necessitam de especificidades de acesso, mas são os lugares e informação que não são acessíveis. A cidadania e o mundo urgem pelo acesso aos bens, serviços e informações.
Conclusão
A mudança de foco, de pessoas para os objetos do mundo, resulta em algo notório: a crença que a deficiência não está relacionada a uma pessoa mais baixa, que enxerga mal ou que não escuta: a deficiência está nos meios e nos objetos do mundo que não são acessíveis para essas pessoas. Logo, é possível alterar ou prover esse acesso a partir de alterações no projeto e no uso de tecnologias assistivas.
5A cadeira pode ser regulável, a tela do computador pode aumentar o tamanho da letra ou melhorar seu contraste, o filme pode ter legenda. Se a deficiência passa a ser vista nos objetos do mundo, poderá ser possível observar as pessoas a partir de suas potencialidades e não restrições. A perspectiva de mudar o foco a partir das tecnologias assistivas alcança uma dimensão de relevância social gigantesca, superando o que já vivenciamos historicamente, em grande monta.
A cidadania é um direito de todos, independentemente de sua condição física ou psicológica. E as tecnologias auxiliam o alcance e o exercício desse direito, se não exatamente em igualdade de condições, ao menos enxergando as desigualdades, mas agindo em cada uma delas de modo a permitir o acesso à cidade, aos prédios, aos objetos e, mais importante, às pessoas, com a dignidade que todos e cada um merece.
O que se busca, afinal, é uma tomada de consciência social de que a acessibilidade é um valor para a cidadania, e não um problema de poucos.
Referências
DALLA DÉA, V. H. S.; ROCHA, Cleomar. Política de acessibilidade na Universidade Federal de Goiás: construção do documento. Goiânia: Revista Polyphonía, 2016.
DALLARI, Dalmo. O Brasil rumo à sociedade Justa. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.
ROCHA, C. Pontes, janelas e peles: cultura, poéticas e perspectivas das interfaces computacionais. Goiânia: Funape/Media Lab/Ciar/UFG, 2014. (Coleção Invenções).