Introdução
O Programa Cultura e Pensamento, criado em 2005, foi pensado como um ciclo nacional de palestras e publicações, com a finalidade de constituição de um fórum qualificado para a reflexão sobre as dinâmicas culturais do país. O foco do projeto é a promoção de debates teóricos e críticos capazes de ampliar a reflexão sobre as políticas públicas de cultura Sobre o Programa vide http://www.brasil.gov.br/cultura/2012/02/cultura-e-pensamento.
Nesta edição de 2017 do Seminário, as perguntas que coloco para a reflexão conjunta são: onde queremos chegar com as políticas culturais? Quais são os futuros possíveis para as políticas culturais? Quais são as questões que nos levariam a vislumbrar tal futuro?
No âmbito das políticas culturais brasileiras, o que fazer para desenhar políticas adequadas às demandas contemporâneas do setor cultural? Em nível supranacional, quais seriam as estratégias possíveis para a consolidação do espaço cultural latino-americano e para o desenho de uma política cultural do e para o continente?
Não são questões fáceis de serem enfrentadas, já que exigem observação, avaliação, reflexão e certa dose de ousadia. Tampouco são respostas. Mas proponho aqui uma das inúmeras abordagens possíveis, no sentido de apresentar problemáticas presentes e especular alternativas futuras a elas. Do ponto de vista temático, trago questões em duas frentes: uma ligada às políticas públicas para a organização produtiva do setor musical no Brasil (tema ligado à minha atual pesquisa financiada pelo IPEA); e outra ligada à tentativa de construção de uma política cultural do e para o continente latino-americano (questão que enfrentei em uma recente consultoria para o Mercosul Cultural).
Economia da Música: os Festivais
A programação deste Seminário, que reuniu principalmente pesquisadores e gestores culturais, incluiu também apresentações musicais de grupos representativos da cena indie brasileira – afinal não há sentido em refletir sobre a gestão cultural sem pensar também na fruição cultural, um dos alvos de nossas preocupações neste fórum. Bandas como Carne Doce (de Goiânia), Francisco, El Hombre (do interior de São Paulo, com integrantes brasileiros e de origem mexicana) e Metá-Metá (de São Paulo) fizeram apresentações memoráveis, o que para os gestores tornou ainda mais forte o senso de responsabilidade em relação ao setor cultural. Como garantir que esses e outros jovens possam criar livremente Entendendo que criação artística não se trata meramente de autoexpressão e formação da identidade juvenil, mas também de processos de simbolização que articulam questões individuais a coletivas, ganhando relevância social e cultural. e viver de seus próprios processos criativos? Como garantir que esses e outros grupos possam se apresentar publicamente e assim ter a possibilidade de consolidar uma carreira artística? Ou ainda, de um ponto de vista ligado à gestão de políticas públicas, como fomentar o setor musical de maneira adequada às demandas dos diversos profissionais envolvidos (músicos, produtores, empresários, etc.), às complexas lógicas culturais contemporâneas e às prerrogativas governamentais de garantia de acesso à cultura e uso racional de recursos financeiros?
A música ao vivo é um importante elo da cadeia produtiva do setor musical, pois articula a música gravada a seus públicos. Os festivais de música exercem importante função nesse circuito criação/produção – circulação/difusão – fruição/consumo. O pressuposto da pesquisa que estou desenvolvendo junto ao IPEA é o de que os impactos dos eventos da economia criativa (como festivais de música) se estendem para além dos recursos públicos que estes mobilizam e para além de sua efêmera realização, gerando efeitos na economia cultural e também na esfera simbólica, esta de apreensão menos evidente. De acordo com o termo de referência que originou a proposta de pesquisa,
54Os eventos fazem parte das políticas culturais, mas uma nuvem de preconceitos ainda paira sobre eles, mesmo que sejam ferramentas centrais que auxiliam as políticas públicas na dinamização de setores importantes da economia cultural e dos mercados simbólicos gerando impactos nos vários setores e na cultura como um todo. (...) Parte-se da perspectiva de que a economia criativa e os eventos culturais integram as políticas públicas de cultura para além da sua ação exclusiva e efêmera de realização. Isto é, são ações culturais que estão conectadas à política cultural de diferentes maneiras. A principal delas refere-se ao financiamento dessas ações que são, em sua maioria, dependentes de recursos públicos para a sua viabilização. No entanto, os eventos culturais favorecem um dinamismo econômico diferenciado na medida em que o planejamento, produção e execução de tais ações acarreta uma série de outras ações constituidoras de uma verdadeira rede de ações e serviços. Os eventos são multiplicadores de ações que promovem a dinamização dos circuitos culturais em diferentes escalas. Dessa forma, para além da notória economia dos eventos – custos para a sua realização, financiamento, patrocínio, profissionais contratados, produtos e serviços comercializados, venda de ingressos, etc – existe uma lógica econômica subjacente, de apreensão mais complexa e menos evidente. Refere-se a uma perspectiva mais ampla de economia política do evento, o que significa analisar os impactos dos eventos culturais para além da quantidade de recursos e públicos que estes mobilizam. Significa abordar os eventos a partir das relações que estes criam não apenas na geração de riqueza e produção, circulação e distribuição de bens culturais, mas a partir da noção de que eles próprios constituem fonte real de valor. (IPEA, Termo de Referência Chamada Pública PNPD nº 086/2017, Projeto” Políticas Públicas, Economia Criativa e da Cultura”, p. 7-8) Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/chamadas_publicas/promob/2017/28092017pnpd086.pdf.
No Brasil, ainda estamos na fase de reconhecer a importância dos festivais, que não se reduz aos seus impactos estritamente econômicos. Não há políticas públicas específicas. As iniciativas mais importantes dependem do empreendedorismo individual de produtores independentes e de financiamento público através de leis de incentivo fiscal, como a Lei Rouanet.
Para analisar a importância dos festivais nos propusemos a investigar as seguintes questões: como os festivais articulam, cumprem e combinam várias funções (artísticas, culturais, sociais, educacionais, econômicas) e conciliam expectativas divergentes e, às vezes, incompatíveis de seus stakeholders (financiadores, patrocinadores, parceiros, artistas, público e outros)?; como os festivais gerenciam seu próprio crescimento (desenvolvimento conceitual, programático e organizacional) em relação às mudanças de seu contexto imediato e, ao mesmo tempo, atuam como agentes de mudança na produção cultural? Para atacar estas questões nos propusemos a estudar um evento do tipo Music Convention (que reúne música ao vivo, palestras e rodadas de negócios), denominado Semana Internacional de Música de São Paulo – SIM SP Web site oficial SIM SP: http://www.simsaopaulo.com, realizado anualmente em São Paulo desde 2013. Esse evento faz parte de um importante arranjo produtivo local (APL) da cidade de São Paulo, com efeitos sentidos na cadeia produtiva da música em nível nacional, o que faz com que a perspectiva local do objeto se articule a um fenômeno de maior abrangência.
55Essas são algumas das inúmeras possibilidades de pesquisa na área, que devem se somar a outras surgidas em eventos como este, em que gestores e pesquisadores se reúnem para ampliar a reflexão sobre as políticas públicas de cultura e para compartilhar preocupações setoriais que se articulam, e que devem orientar a elaboração das políticas do continente.
Na Europa, por exemplo, a “festivalização” da cultura (NÉGRIER, 2015; MAUGHAN, JORDAN, BIANCHINI & NEWBOLD, 2015) faz parte das agendas de pesquisa Citamos rapidamente duas iniciativas europeias importantes. A primeira é a da Escola de Música, Drama e Mídia da Universidade de Hanover (Alemanha), que está desenvolvendo uma pesquisa chamada “Showcase Festivals & Music Conferences Impacts”, cujo objetivo é investigar a relevância e os benefícios de conferências de música para o setor, bem como os valores agregados que contribuem para outros setores intimamente relacionados às indústrias criativas. A segunda iniciativa são as pesquisas desenvolvidas no âmbito do European Festivals Research Project (EFRP), consórcio de pesquisa internacional apoiado pela Society for European Festivals Research (SEFR), e pela European Festivals Association (EFA) – projeto com cofundação do Programa Europa Criativa da União Europeia.. Lá os festivais se tornaram emblemáticos dos problemas e contradições das práticas culturais atuais na Europa (marcadas pela globalização, necessidade de integração regional, fadiga institucional, indústria cultural e pela diminuição dos subsídios públicos). Os festivais estariam reformulando o espaço público na Europa, colocando em cena novos locais além dos centros culturais tradicionais, e com potencial para forjar novas parcerias, além de promover a competência intercultural das partes envolvidas.
O contexto brasileiro, em particular, impõe outras problemáticas. A questão do financiamento público, por exemplo, é recorrente e de grande complexidade Sobre o assunto vide BARBOSA DA SILVA (2017).. Sendo os mecanismos de renúncia fiscal os principais instrumentos da política de financiamento à circulação artística e aos eventos que a propiciam, o debate concentra-se na detém-se à de recursos nos grandes projetos e proponentes, e na desburocratização da prestação de contas. Esta discussão é importante, mas ela encobre outra igualmente relevante: ao privilegiar uma prestação de contas meramente protocolar em detrimento de acompanhamentos processuais e qualitativos, o Ministério da Cultura perde a oportunidade de mapear demandas reais que poderiam nortear uma política adequada, sistêmica e inovadora para o setor cultural e para as iniciativas privadas na área da cultura, tanto em termos de financiamento às iniciativas como em termos de uma política nacional para as artes. Ou seja, ao prevalecer o caráter formal da prestação de contas, deixa-se de interpretar as movimentações financeiras reais e cotidianas que poderiam indicar as demandas e necessidades prioritárias do setor.
Essa é apenas uma das inúmeras questões que poderiam ser levantadas para se pensar numa política cultural em novo paradigma, em que os critérios da contrapartida social e da sustentabilidade econômica dos setores artísticos não fossem os únicos a serem considerados na economia da cultura. Estes são importantes e devem contar com ações específicas no escopo de uma política cultural ampla. Mas também é necessário pensar que, para além dos impactos econômicos mais visíveis (como geração de empregos e renda, ou até mesmo como meios de “acesso à cultura”), os eventos culturais são detentores de valor em si, pois promovem a dinamização dos circuitos culturais em diferentes escalas. Não se trata de defender a arte pela arte, mas de interpretar a cultura como esfera fundante da experiência social contemporânea e que não deve se pautar exclusivamente por critérios econométricos ou pela possibilidade de haver contrapartida social. A cultura é um fim em si, e não apenas meio, e a política cultural deve contemplar estas duas perspectivas.
56Economia da Cultura na América Latina: Plataformas de Mapeamento e a Integração Regional
A despeito do processo histórico colonial em comum, as diferenças entre os países que compõem o continente são imensas, e qualquer ação no sentido de aproximar nossos desconhecimentos mútuos (BOTELHO, 2016, p. 109) deve levar em conta que o espaço cultural latino-americano não está dado, e permanece em constante construção. Para além dos estados nacionais que o compõe, o território está sob jurisdição de órgãos multilaterais como o Mercosul Cultural (criado em 1998)http://www.mercosurcultural.org e a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) http://www.oei.es/ . Para compreender o espaço cultural latino-americano é necessário entender também a institucionalidade desses órgãos e seu histórico de ações, para que se possa dimensionar os desafios e possibilidades de ação nesse espaço tão diverso.
O primeiro documento produzido na construção desse espaço cultural foi a Carta Cultural Ibero-Americana http://www.oei.es/historico/cultura/carta_cultural_iberoamericana3.htm de 2006, que, em diálogo com a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005, traz princípios para a atuação na complexa unidade transatlântica em questão, no sentido de atuar no campo das políticas culturais supranacionais para “o melhor concerto possível das diferenças” (BOTELHO, 2016, p. 108). Dando um grande salto na linha do tempo das ações promovidas por essas organizações, uma das iniciativas mais recentes encabeçadas pelo Mercosul Cultural é a criação, ainda em curso, de um Mapa de Residências Artísticas, atividade que teve avanços importantes no decorrer de 2017 (quase vinte anos após a criação do Mercosul Cultural).
A ideia de criação de um Mapa de Residências surgiu em 2015, durante a II Reunião da Comissão de Artes do Mercosul Cultural. Na época, a Funarte apresentou os resultados de um levantamento realizado no Brasil (VASCONCELOS; BEZERRA, 2014) https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/Varsovia/pt-br/file/miolo+capa-livro-res-artisticas-FINAL_baixa-res.pdf, experiência que deu início a debates sobre a possibilidade de um mapeamento em nível regional. O Ministério da Cultura da Argentina, que então exercia a presidência pro-tempore do Mercosul Cultural, conduziu processos que culminaram na contratação de três consultorias através de editais internacionais para a realização de pesquisas, cujo objetivo era o de subsidiar a criação de uma plataforma web de mapeamento de residências artísticas no bloco, e que trouxesse também os instrumentos nacionais de apoio à mobilidade artística.
As consultorias foram contratadas pelo Ministério argentino em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). A primeira delas consistiu num levantamento inicial de residências e políticas nacionais para subsidiar os primeiros esforços de criação da plataforma web; a segunda consistiu num estudo sobre o estado atual das residências e das políticas, com a proposição de uma tipificação dessas residências; e a terceira consistiu numa avaliação de impacto do projeto, incluindo a proposição de metodologias para a sistematização das informações na plataforma, a construção de indicadores de impacto do projeto e sua articulação com outras plataformas já existentes na região A seleção final foi precedida de prévias nacionais, cabendo a cada país divulgar e receber inscrições em seu respectivo território. No caso do Brasil, coube à Funarte, em ação coordenada com o Ministério da Cultura, receber as postulações e classificá-las segundo os critérios de cada convocatória, podendo ser consultada no link: http://www.funarte.gov.br/artes-integradas/projeto-mapa-de-residencias-artisticas-do-mercosul-seleciona-consultores/ O resultado da convocatória das consultorias 2 e 3 pode ser consultado no link "http://www.funarte.gov.br/funarte/"> O resultado da convocatória das consultorias 2 e 3 pode ser consultado no link http://www.funarte.gov.br/funarte/comunicado-convocatorias-2-e-317-mapa-de-residencias-artisticas-mercosul/>. Tive o prazer de ter sido selecionada para a convocatória 3, o que me levou a buscar informações sobre as políticas culturais no bloco. Sem esgotar as questões, reproduzo a seguir algumas das reflexões que julgo serem importantes para a presente discussão Os parágrafos a seguir reproduzem alguns trechos do relatório final da Consultoria 03/2017, apresentado ao Ministério da Cultura da Argentina, em Setembro de 2017, que estará disponível na Plataforma Mapa de Residências Artísticas do Mercosul assim que ela for lançada. Não houve ainda o lançamento oficial da Plataforma, houve apenas uma oficina para a apresentação dos resultados das três consultorias envolvidas. Informações do evento, ocorrido em 9 de novembro de 2017 no Rio de Janeiro, podem ser consultadas nos site do Mercosul Culturalhttp://mercosurcultural.org/index.php/2015-09-30-12-49-44/145-oficina-do-mapa-de-residencias-artisticas-do-mercosul, do Ministério da Cultura do Brasil http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/id/1456368> e da Funarte http://www.funarte.gov.br/funarte/funarte-conduz-reuniao-da-comissao-de-artes-do-mercosul-cultural/>. 57
O aspecto mais importante a se considerar para a implementação de políticas culturais de organismos supranacionais é a orquestração entre as políticas locais/nacionais e as diretrizes das políticas de tais organismos. A construção da governança da política é tão importante quanto a construção das próprias diretrizes temáticas das políticas, já que políticas culturais de integração dependem dos instrumentos nacionais de apoio à criação e circulação de bens culturais. “É a consistência das políticas internas que dá condição para os acordos externos” (BOTELHO, 2016, p. 113). Além disso, na construção cirúrgica da governança de projetos supranacionais deve-se lembrar que os entes nacionais que compõem a unidade podem não estar plenamente convencidos da necessidade da construção conjunta, havendo a necessidade permanente de convencimento e alinhamento de expectativas e responsabilidades.
Na construção dessas responsabilidades compartilhadas, há de se considerar o fluxo down-top da construção das políticas, em que os programas concretos já praticados nos espaços nacionais, conectados a processos de amadurecimento endógenos, têm mais chances de ter êxito num contexto supranacional do que modelos importados ou inventados. Nesse sentido, a intimidade intelectual entre pesquisas e projetos na área de inovação tecnológica entre os países são tão importantes quanto a intimidade cultural buscada na diversidade. As tecnologias nativas e os projetos partilhados têm o papel não apenas de atuarem como soluções tecnológicas a certas demandas (como as de mapeamento, por exemplo), mas têm importante função no uso social que se faz do patrimônio cultural, e devem referir-se aos produtores culturais como “sujeitos de trocas recíprocas entre si e com o restante do planeta, em contraposição a uma condição subalterna diante dos focos centrais das indústrias culturais e polos hegemônicos que controlam a circulação de bens simbólicos” (BOTELHO, 2016, p. 97).
Ainda do ponto de vista sociocultural, outra questão essencial seria pensar em como uma política regional poderia articular as múltiplas identidades que compõem a diversidade cultural do continente. O tema da diversidade cultural é de suma importância para se refletir nas articulações necessárias entre os países, já que esta é uma questão relevante nos contextos nacionais e desperta interesses internacionais, tanto no sentido da salvaguarda como no sentido da exploração econômica. Pensar na diversidade como foco de direitos pode ser interessante para a integração de segmentos ainda marginais. Essa diretriz “supõe que se dê maior ênfase à dimensão criativa e à plasticidade de cada segmento do espaço cultural, em vez de enrijecer sua dimensão patrimonialista e conservadora” (BOTELHO, 2016, p. 108). Nesse sentido, investir na construção da política regional do Mercosul a partir de um projeto de mapeamento de residências artísticas – espaços de reflexão e criação por excelência – é algo extremamente oportuno para dar voz a segmentos marginais que não têm apelo mercadológico.
Se existe um importante patrimônio cultural comum, o essencial é a busca de projetos de desenvolvimento e a consolidação de uma afinidade política que permita que o imaginário produzido nas artes, em parte viabilizado por políticas públicas dos diversos países do bloco, tenha participação fundamental nesse processo de construção conjunta do futuro (BOTELHO, 2016, p. 110).58
Assim, a dimensão especializada de cultura implicada nos processos artísticos, em contraposição à sua dimensão antropológica, nos parece, portanto, ser a melhor opção para o desenvolvimento de “políticas que propiciem um maior conhecimento mútuo e a construção de um espaço de circulação de bens, obras e saberes” (BOTELHO, 2016, p. 111). Faltam, contudo, marcos legais (como instruções normativas), instrumentos regulatórios (como o Selo Mercosul Cultural para livre circulação de bens e serviços) e planos estratégicos para ultrapassarmos as barreiras que dificultam uma real política de circulação e intercâmbio.
Ligada à dimensão simbólica e artística está, portanto, a questão econômica. Sabe-se que a circulação em outros territórios e mercados oferece aprendizado, acesso a novos públicos e a uma diversidade de interpretações e reações sobre a obra de arte produzida. Mas para além dos efeitos sobre a criação artística propriamente dita, há de se pensar que a experiência da mobilidade interfere na difusão do trabalho artístico, introduzindo uma dimensão econômica ao processo de produção cultural.
A mobilidade internacional contribui para a difusão das obras e, eventualmente, para a introdução do artista em novos mercados. Tal aspecto é particularmente importante se pensarmos que há desigualdades no interior do bloco, e que há mercados que não têm condições de propiciar sustentabilidade econômica para artistas em seu território. Apesar de este não ser o único elemento importante para o desenho de uma política cultural, ele não deve ser esquecido. A mobilidade pode ser uma alternativa para a sustentabilidade econômica de projetos culturais. No que diz respeito à Plataforma, ela pode contribuir para a legitimação artística do mercado sul-americano e, consequentemente, para sua inserção em mercados com maior potencial econômico. E tal perspectiva não prejudicaria a ideia de proteção da diversidade. A própria Convenção da Diversidade da Unesco preconiza que os processos de difusão cultural potencializam a manifestação da diversidade:
A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados (UNESCO, 2005, p. 5).
Ainda que os limites impostos à diversidade cultural se reproduzam no ambiente digital, pode-se pensar nas TIC´s como meio de difundir, para além das fronteiras territoriais, as manifestações da diversidade cultural. Nesse sentido, uma Plataforma voltada à comunidade do Bloco, ao intensificar a relação entre culturas e ao proporcionar acesso a conteúdos e experiências culturais diversas, pode contribuir para amenizar as desigualdades no interior do continente, ainda que se saiba que ela, sozinha, não seja capaz de solucionar tais assimetrias.
Nesse sentido, é de fundamental importância que o Bloco pense conjuntamente à Plataforma Mapa de Residências Artísticas, um repositório de obras artísticas sul-americanas a exemplo da Europeana, e que poderia começar a ser alimentada pelas obras geradas pelos programas de mobilidade artística em questão. Isso contribuiria para a difusão da diversidade cultural do continente, não só no interior de suas fronteiras, mas também para outros continentes. Seria uma ação que contribuiria fortemente para o acesso digital a bens culturais, contribuindo ainda para a formação de públicos e dos próprios artistas interessados/envolvidos nos programas de residências artísticas. E de maneira subsidiária, isso contribuiria para os processos de legitimação dos artistas dos países do Mercosul, o que pode facilitar muito o acesso desses artistas a mercados europeus e norte-americanos, capazes de proporcionar maior sustentabilidade financeira aos produtores culturais.
59A Plataforma Mapa de Residências Artísticas é, portanto, uma iniciativa importante para dar visibilidade à pesquisa em criação artística no continente. Contudo, há outras iniciativas de mapeamento ou de disponibilização de informações geo-referenciadas no continente. É o caso do Mapa Cultural https://www.sinca.gob.ar/mapa.aspx?id=1 do Sistema de Informação Cultural da Argentina - SInCA https://www.sinca.gob.ar/; do Mapa Cultural do Sistema de Informação Cultural do Sul - SICSUR http://sicsur.mercosurcultural.org/mapa.html (Sistema Integrado de Informação Cultural dos Países Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, criado em 2006, gerido sob a estrutura do Mercosul Cultural, e atualmente coordenado pela Argentina); e das aplicações dos Mapas Culturais do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC, do Ministério da Cultura do Brasil http://mapas.cultura.gov.br.
No caso do Mapa Cultural do SInCA, é possível fazer visualizações no país todo ou por província, e filtrar por linguagem artística e algumas subdivisões: artes cênicas, audiovisual, editorial, multissetorial, música, patrimônio imaterial e patrimônio material. Não é possível extrair relatórios como nos Mapas Culturais do SNIIC-Brasil, assim como não é possível saber mais informações além do nome de cada um dos pontos georreferenciados no mapa. Há disponível um formulário de validação https://www.sinca.gob.ar/login.aspx?ReturnUrl=%2fFormulario_guia.aspx, em que é possível corrigir dados e inserir novos agentes. Há também um manual de definições e procedimentos https://www.sinca.gob.ar/files/ManualMapaCultural.pdf.
No caso do Mapa Cultural do SICSUR, lançado originalmente em 2009 e que conta com um novo site desde 2016, são reunidos dados georreferenciados de mais de dez mil espaços culturais dentre Museus, Cinemas, Livrarias e Patrimônios da Humanidade da UNESCO. É possível adicionar camadas aos resultados: densidade populacional, alfabetização e mortalidade infantil. No site do SICSUR Desde 2009, o site do SICSUR pôs em circulação mais de 4200 registros no mapa cultural, mais de 50 quadros e gráficos sobre estatísticas culturais, 248 leis culturais, 9 documentos e 2 publicações (informações datadas de 23 de agosto de 2011, disponíveis em: http://www.oei.es/historico/noticias/spip.php?article9285 (portanto, fora do mapa, mas alocado no mesmo domínio web) há na Aba “Biblioteca” uma seção denominada “Legislação”, em que consta um protótipo do que poderia ser um Compendium da política cultural sul-americana. Contudo, parece que ela ainda não foi alimentada de forma completa, bem como até agora não é capaz de gerar relatórios comparativos a partir de filtros de busca, como no caso do Compendium de Políticas Culturais da União Europeia A Plataforma Compêndio de Políticas Culturais Europeias reúne, sob uma mesma estrutura de organização da informação, dados sumarizados sobre o desenho geral da política cultural de cada um dos países do bloco. A partir de um Diretório de Países, a Plataforma divide todo o seu conteúdo em 12 grandes temas, sendo possível realizar monitoramentos e comparações, pesquisar estatísticas, e explorar outras informações. A Plataforma é interativa e torna comparáveis os instrumentos de política cultural dos diversos países, e gera relatórios customizados sob diversos recortes, bastando selecionar os países desejados e os tópicos desejados. Vide http://www.culturalpolicies.net/web/index.php (verificar link: o link está ok, mas este também funciona: http://www.culturalpolicies.net (plataforma onde é possível comparar os instrumentos de políticas culturais do bloco através de extrações customizáveis). É apenas uma lista com os nomes dos principais instrumentos legislativos de cada país, e não traz a sistematização sobre a institucionalidade cultural proposta pelo SICSUR (2012, p. 141-174). É necessário disponibilizar tais informações de maneira interativa numa plataforma web, assim como ocorre no Compendium de Políticas Culturais da União Europeia – o que seria importante não só do ponto de vista da recuperação da informação pelo usuário na ponta, como também para a qualificação e atualização das informações já levantadas.
60Compatibilizar metodologicamente todas essas iniciativas (Mapa SInCA-Argentina, Mapa SICSUR, Mapas Culturais SNIIC-Brasil e Mapa de Residências Mercosul), tanto no nível da captação como da publicização dos dados, seria altamente recomendável do ponto de vista da qualidade da informação disponibilizada para a gestão pública e para os usuários de maneira geral. Mas há uma outra camada que se beneficiaria com tal compatibilização: o nível de integração dessas iniciativas poderia contribuir fortemente para a conformação e fortalecimento do espaço cultural sul-americano.
Outras iniciativas em andamento que podem contribuir para a compatibilização metodológica e para o adensamento da experiência sul-americana seriam os projetos nacionais de criação de Contas Satélites da Cultura, subsidiadas pelo convênio Andrés Bello. O acúmulo metodológico sobre esse tema (SICSUR, 2012 já seria capaz de sugerir com segurança algumas das categorias relativas à área econômica que poderiam fazer parte da estrutura de metadados a ser utilizada para a sistematização das informações das plataformas web. Por outro lado, as informações das plataformas poderiam contribuir para as aferições que fazem parte do rol de elementos a serem medidos pelas contas satélites nacionais.
Considerações Finais
É fundamental que a Plataforma Mapa de Residências Artísticas do Mercosul sirva à manifestação da diversidade cultural latino-americana e à circulação de artistas e obras; que agregue um repositório digital capaz de dar acesso ampliado a tais manifestações; que funcione como instrumento de difusão e legitimação do patrimônio cultural do continente; e que potencialize a economia criativa e qualifique a formulação de uma política regional apropriada aos desafios dos países que a integram. Tais perspectivas se adequam totalmente aos fins e princípios dispostos na Carta Cultural Ibero-americana de 2006, e nesse sentido, já encontram sua justificativa normativa para sua implementação.
Cremos que uma política de informações culturais do bloco, tal como o SICSUR vem trabalhando, aliada a uma compatibilização metodológica entre as diversas plataformas web citadas, alinhada às recentes inovações tecnológicas de publicação de meta-dados (especialmente web semântica e sua ferramenta Ontologia Estes foram assuntos bastante abordados no relatório final de minha consultoria ao projeto Mapa de Residências Artísticas do Mercosul, e que, em função do escopo deste texto, não puderam ser trabalhadas. Sobre o assunto vide, por exemplo, VIGNOLI; SOUTO; CERVANTES (2013); VEIGA; MARTINS; SILVA (2016); SANTARÉM SEGUNDO; CONEGLIAN (2016); e SANTARÉM SEGUNDO (2015)) e articuladas às demandas por democratização do acesso (com que os repositórios digitais poderiam contribuir), possa ser um eixo estratégico de desenvolvimento da política cultural do bloco. Podendo, inclusive, ser um case de sucesso dentre os países ocidentais que já demonstram ter ações consistentes no sentido de uma política cultural para o ambiente digital.
A agenda política do bloco deve incluir ações concretas nesse sentido, de modo a contornar a posição meramente retórica que a cultura tem nas agendas políticas de uma forma geral. Tais ações concretas devem ir desde discussões em fóruns especializados como este (ou como os promovidos pelo Mercosul no âmbito do SICSUR, os promovidos por universidades Destaco o Seminário “El Espacio cultural ibero-americano: un desafío para el siglo XXI”, promovido pela UNTREF (Argentina) em outubro de 2014, cuja relatoria encontra-se em TASAT (2014)., ou como o MICSur), passando pela continuidade de convênios e esforços para a criação de contas satélites da cultura, chegando à criação de grupos de trabalho e deliberações políticas pactuadas entre os entes nacionais para a concretização das compatibilizações metodológicas e adoção de novas tecnologias às referidas plataformas web. Tais ações agregariam maior protagonismo e legitimidade aos entes supranacionais como Mercosul Cultural e OEI, bem como proporcionariam melhores condições institucionais para o desenvolvimento das políticas regionais em diálogo com as nacionais que já apresentem certa consistência.
61No plano nacional brasileiro, apontamos a necessidade do desenvolvimento de políticas voltadas à economia da música, dirigida especialmente aos eventos e festivais, responsáveis por boa parte da circulação musical do país. Se, conforme foi argumentado, o sucesso das políticas regionais para a América Latina depende da consistência das políticas nacionais dos países que a constituem, urge, no plano local, entendermos a melhor forma de construir uma política de financiamento público e privado que atenda às demandas artísticas, do mercado e da ação pública. É necessário, no entanto, nos libertarmos de certas ideias arraigadas que privilegiam a lógica da prestação de contas meramente protocolar de projetos incentivados, que impedem que se conheçam as reais demandas desse setor produtivo. Seria adequado ainda pensar em políticas complementares às que privilegiam apenas a sustentabilidade dos empreendimentos culturais ou as contrapartidas sociais dos projetos. Estas, que entendemos serem necessárias, de certa maneira já orientam boa parte da ação governamental na área da cultura. Cabe agora dar um passo adiante e promover a cultura como fim em si. Isso contribuiria não apenas para que no plano local vislumbrássemos novas possibilidades de desenho de políticas culturais, mas também para que no plano mundial a cultura latino-americana se afirmasse como legítimo patrimônio cultural da humanidade, e não apenas como matéria-prima bruta, exótica e de tradição folclórica consumida como souvenir. Precisamos, enquanto continente, integrar a economia mundial de bens culturais de maneira menos marginal, e para isso precisamos pensar em novas formas de se fazer política cultural tanto no plano local como em nível regional.
Referências
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BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura: políticas culturais e seus desafios. São Paulo: Edições Sesc, 2016.
MAUGHAN, Christopher Maughan; JORDAN, Jennie; BIANCHINI, Franco; NEWBOLD, Chris. Focus on festivals: contemporary european case studies and perspectives. UK: Goodfellow Publishers, 2015.
NÉGRIER, Emmanuel. Festivalisation: patterns and limits. In: MAUGHAN et al. Focus on festivals: contemporary european case studies and perspectives. UK: Goodfellow Publishers, 2015.
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