Os desafios das novas tecnologias e dos novos modelos de negócios para os direitos autorais

Autora

Aline Iramina

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2003-2007), com especialização em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2008-2009) e Mestrado em Direito da Propriedade Intelectual na University College London (2016-2017). Exerceu o cargo de Coordenadora de Legislação em Direitos autorais (2015-2016) no Departamento de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura. Tem experiência em gestão de projetos e direitos autorais.

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Introdução

Não se pode falar em economia da cultura sem mencionar os direitos autorais. Segundo a UNCTAD, indústrias culturais podem ser definidas como as indústrias que “combinam a criação, produção e comercialização de conteúdos que são intangíveis e culturais por natureza” e que são tipicamente protegidos por direitos autorais, podendo assumir a forma de bens e serviços Atlas Econômico da Cultura Brasileira, v. II, p. 13.. Grande parte das indústrias culturais tem, portanto, como base, conteúdos protegidos por direitos autorais, sejam obras musicais ou literárias, sejam obras artísticas ou audiovisuais.

Atualmente, trata-se de um setor da cultura que movimenta mais de US$ 9 bilhões ao redor do mundo, apenas em direitos de autor CISAC, Creators’ global royalty collections hit record €9.2 billion. Disponível em: http://www.cisac.org/Newsroom/News-Releases/Creators-global-royalty-collections-hit-record-9.2-billion (acesso em 29/11/2017).. Desse valor, somente a indústria da música representa US$8 bilhões. Com a evolução do mercado digital, espera-se um crescimento ainda maior desse setor, especialmente considerando que o mercado mais que triplicou desde 2012, tendo crescido mais de 50% somente em 2016, o que sinaliza um futuro promissor. Atualmente as receitas provenientes dos usos na Internet correspondem a apenas 10,4% da renda global (quase US$1 bilhão) CISAC, Creators’ global royalty collections hit record €9.2 billion. Disponível em: http://www.cisac.org/Newsroom/News-Releases/Creators-global-royalty-collections-hit-record-9.2-billion (acesso em 29/11/2017)., ou seja, há grande espaço para crescimento e, por isso, merece atenção especial dos Estados.

Direitos autorais no ambiente digital

Histórico e contexto atual

A evolução do mercado digital representa uma oportunidade para criadores, artistas e demais titulares de direitos autorais e pode ser uma importante ferramenta de desenvolvimento, particularmente para países como o Brasil, que possui grande riqueza cultural. Contudo, assim como outras mudanças tecnológicas que ocorreram no passado, desde a criação da prensa até o surgimento da Internet, a transição do ambiente físico (fitas, CDs, DVDs) para o digital apresenta desafios. Nesse sentido, o surgimento, nos últimos anos, de novas tecnologias e modelos de negócios, no ambiente digital, representa um novo “turning point” para os operadores de direitos autorais.

Não é a primeira vez que a Internet revoluciona o sistema de direitos autorais. Na década de 1990, com a disseminação da Internet, os Estados, pressionados por seus criadores e artistas, organizaram-se, no âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), para buscar uma solução para o aumento em massa das violações a direitos autorais, que passaram a ocorrer na rede. À época, a OMPI lançou a Agenda do Digital, que resultou na aprovação de dois novos tratados, os Acordos da OMPI sobre o Direito de Autor (WCT) e sobre as Representações ou Execuções e sobre os Fonogramas (WPPT), ambos de 1996.

As principais soluções encontradas nos Tratados da Internet da OMPI foram a criação de um novo direito exclusivo, o direito de “colocação à disposição do público” (“making available”), pelo qual o conteúdo é acessado no local e no momento escolhido pelo usuário, e o uso de medidas tecnológicas de proteção (TPMs)TPMs: Technological Protection Measures., para auxiliar na proteção das obras na Internet WIPO, Proposal for Analysis of Copyright Related to the Digital Environment. Document presented by the Group of Latin American and Caribbean Countries (GRULAC). Disponível em: http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=322780 (acesso em 28/11/2017). P. 2. . Outra solução foi apresentada pelos EUA, em 1998, no âmbito do Digital Millennium Copyright Act (DMCA), que além de incorporar as medidas introduzidas pelo WCT e o WPPT, criou um novo instituto jurídico para limitar à responsabilidade civil dos provedores dos serviços de Internet (ISPs)ISPs: Internet Service Providers. pelas violações a direitos autorais que ocorrem em suas plataformas, que ficou conhecido como “safe harbour”. Esse instituto foi adotado por inúmeros países ao redor do mundo, inclusive pela União Europeia, em 2001, em sua Diretiva para o Comércio Eletrônico. A ideia era que a legislação de direitos autorais, ao mesmo tempo em que garantisse a proteção desses direitos na Internet, não inviabilizasse o surgimento de novas plataformas (startups) e o próprio desenvolvimento da rede.

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Desde então, houve inúmeras mudanças. Novos serviços digitais surgiram e outros desapareceram, com significativas mudanças na forma como bens intelectuais são consumidos, produzidos e distribuídos na Internet WIPO, Proposal for Analysis of Copyright Related to the Digital Environment. Document presented by the Group of Latin American and Caribbean Countries (GRULAC). Disponível em: http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=322780 (acesso em 28/11/2017). P. 3. . Vale lembrar que os Tratados da OMPI e o DMCA são anteriores até mesmo aos serviços de “file-sharing”, baseadas em tecnologias “Peer-to-Peer” (P2P), no qual havia o compartilhamento direto de conteúdo protegido entre usuários, como o Napster e o KaZaa em suas origens. Atualmente, existe uma multiplicidade de serviços, como o Spotify, o YouTube e o Netflix, cuja tendência predominante é o acesso das obras (por meio da tecnologia de streaming), em detrimento da transferência da propriedade ou posse (“download”) WIPO, Proposal for Analysis of Copyright Related to the Digital Environment. Document presented by the Group of Latin American and Caribbean Countries (GRULAC). Disponível em: http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=322780 (acesso em 28/11/2017). P. 3. . Ou seja, o contexto no qual o WCT, o WPPT e o DMCA foram desenhados é diferente do atual. Questiona-se, portanto, se as soluções propostas na década de 1990 são suficientes para lidar com as novas tecnologias e modelos de negócios que surgem no ambiente digital.

Exemplo da indústria da música e o “value gap”

Embora não se limitem à indústria da música, é nela onde se verifica, de forma mais acentuada, os problemas envolvendo os direitos autorais na Internet. O mercado digital da música é um dos mais desenvolvidos e não restam dúvidas de que a Internet revolucionou a forma como a música é produzida, distribuída e consumida. A receita com o uso da música em mídias físicas (CDs e DVDs), por exemplo, caiu consideravelmente, na última década. Enquanto isso, as receitas com o consumo de obras musicais por serviços de streaming remunerado, tanto por subscrição quanto por publicidade, têm crescido de forma vertiginosa nos últimos anos (mais de 60%, somente em 2016) IFPI, Global Music Report 2017. Disponível em: http://www.ifpi.org/downloads/GMR2017.pdf (Acesso em 01/12/2016). p. 6. , com mais de cem milhões de assinantes. Nesse contexto, o mercado digital hoje já corresponde a mais de 50% da renda global da música.

No Brasil, acompanhando a tendência mundial, o crescimento dos serviços de streaming, em 2016, foi de mais de 52% Pró-Musica Brasil, Mercado Fonográfico Mundial e Brasileiro em 2016. Disponível em: http://www.pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Mercado-de-M%C3%BAsica-Global-e-Brasileiro-em-2016-FINAL.pdf (Acesso em 01/12/2017) p. 3. . Nesse sentido, de acordo com Paulo Rosa, Presidente da Pró-Música Brasil:

O streaming interativo, seja bancado por subscrições/assinaturas ou receitas de publicidade está rapidamente convertendo-se no principal modelo de distribuição de música do setor fonográfico. Acontece no Brasil exatamente o que vem acontecendo em quase todos os mercados do mundo: crescimento significativo de assinantes de plataformas de streaming de áudio, combinado com elevação, embora num ritmo mais lento, das receitas com publicidade originadas em plataformas de streaming de áudio e vídeo. Se observarmos os quadros e gráficos mostrados mais adiante, fica claro que o mercado brasileiro de música já é predominantemente digital, com as receitas deste segmento correspondendo a 49% do total do mercado, mesma média apontada no relatório mundial do IFPI. Se considerarmos apenas o mercado físico (CDs, DVDs, Vinil, etc.) comparado ao digital (streaming, downloads, etc.), a proporção é de 22,8% para o físico e 77,2% para o digital Pró-Musica Brasil, Mercado Fonográfico Mundial e Brasileiro em 2016. Disponível em: http://www.pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Mercado-de-M%C3%BAsica-Global-e-Brasileiro-em-2016-FINAL.pdf (Acesso em 01/12/2017) p. 3. .
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Percebe-se, portanto, no Brasil e em todo o mundo, crescente importância do mercado digital para os titulares de direitos autorais, em especial para os titulares de obras musicais, o que cria oportunidades, mas também gera desafios para os que atuam nesse mercado. No caso particular da música, a baixa remuneração de autores e artistas pelo uso de suas obras no ambiente digital é uma das principais reclamações. Há dúvidas acerca de como a divisão da remuneração dos valores recebidos pelos serviços digitais é realizada, tendo em vista, por exemplo, a falta de transparência em relação aos contratos assinados entre gravadoras e plataformas e a falta de critérios e arbitrariedade na fixação de preços WIPO, Proposal for Analysis of Copyright Related to the Digital Environment. Document presented by the Group of Latin American and Caribbean Countries (GRULAC). Disponível em: http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=322780 (acesso em 28/11/2017). p. 6. . No entanto, a principal reclamação dos autores e artistas concentra-se atualmente no que eles denominaram “value gap” ou “transferência de valor”, que:

Trata-se de situação de mercado pela qual as plataformas de streaming de áudio e vídeo baseadas em conteúdo gerado por terceiros (o YouTube é a maior delas) persistem em remunerar de forma totalmente insatisfatória, tanto autores como artistas e produtores fonográficos, aproveitando-se do conceito de “safe harbour” criado na legislação americana pelo Digital Millenium Copyright Act (DMCA) em 1998 Pró-Musica Brasil, Mercado Fonográfico Mundial e Brasileiro em 2016. Disponível em: http://www.pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Mercado-de-M%C3%BAsica-Global-e-Brasileiro-em-2016-FINAL.pdf (Acesso em 01/12/2017). p. 2. .

Nesse sentido, tem havido grande pressão por parte dos titulares de direitos autorais para que os governos ajam para “consertar” o “value gap”. Para isso, alegam que é necessário retirar dos intermediários da Internet que exploram economicamente obras intelectuais em suas plataformas o benefício do “safe harbour”, uma vez que, ao criar limitações à responsabilidade civil dessas plataformas, esse instituto lhes permite impor condições ao mercado inferiores àquelas obtidas junto aos demais serviços digitais do setor Pró-Musica Brasil, Mercado Fonográfico Mundial e Brasileiro em 2016. Disponível em: http://www.pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Mercado-de-M%C3%BAsica-Global-e-Brasileiro-em-2016-FINAL.pdf (Acesso em 01/12/2017). p. 2. . No gráfico abaixo, é possível verificar a diferença entre os valores que os serviços de streaming de áudio e os de vídeo “on demand” repassam aos titulares:

Figura 1: Fonte: IFPI, Global Music Report 2017

Em 2016, em carta enviada à Comissão Europeia, mais de mil artistas e compositores, incluindo Paul McCartney e Coldplay, solicitaram que a União Europeia tomasse medidas urgentes para resolver o problema do “value gap”:

O value gap prejudica os direitos e as receitas daqueles que criam, investem e possuem música, e distorce o mercado. Isso ocorre porque, enquanto o consumo de música tem atingido números recordes, os serviços baseados em conteúdo disponibilizados (“upload”) por usuários estão abusando das limitações do “safe harbour”. Essas proteções foram criadas duas décadas atrás para auxiliar no desenvolvimento de nascentes startups digitais, mas hoje estão sendo usadas de forma equivocada por corporações que distribuem e monetizam nossas obras. Nós instamos a Comissão para que adote medidas para criar condições de concorrência justas para os artistas e titulares de direitos autorais. Ao fazer isso, vocês estão garantindo o futuro da música para as futuras gerações (tradução nossa) “The value gap undermines the rights and revenues of those who create, invest in and own music, and distorts the marketplace. This is because, while music consumption is at record highs, user upload services are misusing ‘safe harbour’ exemptions. These protections were put in place two decades ago to help develop nascent digital startups, but today are being misapplied to corporations that distribute and monetise our works. We urge you to take action now to create a fair playing field for artists and rights owners. In doing so, you will be securing the future of music for generations to come.” IFPI, Global Music Report 2017. Disponível em: http://www.ifpi.org/downloads/GMR2017.pdf (Acesso em 01/12/2016). p. 26. .
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Verifica-se, portanto, grande insatisfação dos artistas em relação ao instituto do “safe harbour”, que consideram ser o principal culpado pela baixa remuneração que recebem pelo uso de suas músicas nos serviços digitais.

Safe Harbour

Primeiramente, é necessário esclarecer que o safe harbour ou a limitação à responsabilidade civil dos provedores de serviços de Internet é concedido apenas para algumas categorias de intermediários e sob determinadas condições. Nos Estados Unidos, por exemplo, podem ser beneficiados pelo Safe Harbour apenas provedores que: atuam como mero canais transmissores (“mere conduits”), fazem apenas cópias locais e temporárias (“caching”), armazenam conteúdo disponibilizados por terceiros (“hosting”) ou fornecem o “link” para conteúdo (“linking”) na Internet. Além disso, o DMCA, na Seção 512, além de prever requisitos mínimos para que o intermediário seja beneficiado pela limitação (ex. política para os infratores reincidentes), também estabelece o “notice-and-takedown” como o sistema de retirada de conteúdo no caso de infrações de direitos autorais na Internet.

Em suma, de acordo o sistema de notice-and-takedown, primeiramente, o titular deve encaminhar notificação para a plataforma requisitando a retirada do conteúdo supostamente infringente. A plataforma é obrigada a retirar o conteúdo rapidamente após a notificação e comunicar o usuário que fez o “upload” do conteúdo para que apresente, se for de seu interesse, uma contra notificação. O intermediário, para ser beneficiado pelo safe harbour, não pode ter conhecimento da infração ou, ao saber de circunstâncias ou fatos pelos quais a atividade infratora é aparente, deve retirar o conteúdo infringente. Além disso, a plataforma não pode ter lucro ou qualquer ganho financeiro direto com o material infringente, se tem o direito ou a habilidade para controlá-lo.

Grande parte dos países seguiram os Estados Unidos e também adotaram, em suas legislações, um instituto de safe harbour, com regras semelhantes às previstas no DMCA. No entanto, algumas legislações nacionais diferem em relação ao sistema de retirada de conteúdo. Por exemplo, a União Europeia, assim como os Estados Unidos, adota o sistema de “Notice-and-Takedown”, ao passo que o Chile adota o “Notice-and-Judicial-Takedown”, que demanda uma decisão judicial para a retirada do conteúdo; o Canadá, o “Notice-and-Notice”, no qual a retirada do conteúdo é feita somente após a notificação do usuário que fez o “upload”; e a França, o “Graduated Response” ou “Three-Strikes down”, pelo qual, após três notificações de violação a direitos autorais, o suposto infrator pode ter a velocidade da internet diminuída ou até mesmo a conexão da Internet cortada Christina Angelopoulos, European Intermediary Liability in Copyright: A Tort-Based Analysis (Kluwer Law International BV 2017), p. 93.. Vale mencionar que o sistema de “Three-Strikes-Down” foi retirado da Lei francesa pelo ministro da Cultura por ser considerada uma medida desproporcional.

No Brasil, a Lei n° 12.965/2014, também conhecida como Marco Civil da Internet, estabeleceu o instituto de “safe harbour” para as infrações na Internet. Nesse sentido, em regra, segundo o art. 19, o provedor somente poderá ser responsabilizado civilmente se, “após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

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No entanto, em relação às infrações a direitos autorais, o § 2o estabelece que a forma de retirada de conteúdo depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o da Constituição Federal. Além disso, o art. 31 dispõe que, até a entrada em vigor da lei específica prevista no § 2o do art. 19, a responsabilidade do provedor de aplicações de Internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração aos direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral vigente aplicável na data da entrada em vigor do Marco Civil da Internet. Nesse sentido, o sistema brasileiro atual seria similar ao adotado na maioria dos países sul-americanos, no qual é necessária uma decisão judicial para a retirada de conteúdo da Internet.

Essa discussão é importante, pois os artistas e demais criadores pressionam por uma reforma do instituto de safe harbour que, além de retirar o benefício dos intermediários, cuja base do negócio é a exploração de obras protegidas por direitos autorais, como o YouTube, altere o sistema de retirada de conteúdo, de modo a substituir o sistema de “Notice-and-Takedown” pelo de “Notice-and-Stay-Down”, pelo qual, após uma notificação de violação não ter sido contestada, a plataforma deve filtrar e bloquear qualquer “upload” futuro do mesmo conteúdo supostamente infringente HARTLINE, Devlin. Attacking the Notice-and-Staydown Straw Man. Disponível em: https://cpip.gmu.edu/2016/02/03/attacking-the-notice-and-staydown-straw-man/ (acesso em 01/12/2017). No entanto, dados os riscos para a liberdade de expressão, a privacidade e a inovação, esse sistema é altamente questionado não só pelas plataformas digitais, mas também pelos usuários. Vale notar, contudo, que, embora não prevista em lei como parâmetro mínimo, alguns países, assim como algumas plataformas (ex. Google), já adotam sistemas similares ao “notice-and-staydown”.

Os titulares de direitos autorais alegam que é necessária tal reforma, pois o ambiente digital não é o mesmo da década de 1990. A Internet é muito mais rápida e disseminada. Por exemplo, em 1998, a Internet ainda era discada, assim, eram necessários vinte minutos para fazer um “download” de um clip de música de um minuto. Atualmente, a Internet é de banda larga. Em quatro segundos, é possível fazer o “download” de uma música de quatro minutos. Isso sem considerar os serviços de “streaming”, no qual o acesso ao conteúdo é instantâneo, sem a necessidade de “download”. Além disso, enquanto em 1998, apenas 5% da população utilizava a Internet, hoje mais de 40% da população está conectada. No entanto, apesar das vantagens, isso significa que as plataformas passaram também a receber dezenas de milhões de notificações mensais. Só o Google Search recebe mais de setenta milhões de notificações para a retirada de conteúdo por mês (dados de 2016). Ou seja, os desafios são ainda maiores e o peso de monitorar a rede para identificar infrações a direitos autorais tornou-se um fardo muito grande para os titulares de direitos autorais, que criticam o fato de que minutos, até segundos, após o conteúdo notificado ter sido retirado da plataforma, surge novamente na Internet.

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Ademais, alega-se que os provedores de Internet ou ISPs que disponibilizam conteúdo gerado por terceiros (“user-generated content”), embora tenham um papel importante na geração de renda e na disseminação da música e de outros conteúdos criativos na Internet, podem gerar distorções no mercado digital. Assim, ao beneficiar plataformas, como o YouTube, o safe harbour estaria criando uma concorrência desleal para com outros serviços, como o Spotify e o Apple Music, que necessitam de licenças para disponibilizar conteúdo protegido por direitos autorais em suas plataformas. Por isso, autores e criadores defendem a necessidade de reverem-se os princípios e as regras estabelecidas, no final da década de 1990, sobre as obrigações e as responsabilidades desses intermediários, tendo em vista os novos modelos de negócios e as tecnologias desenvolvidas. Eles defendem que o safe harbour deveria beneficiar apenas intermediários cuja atuação é meramente técnica, neutra ou automática, como os que atuam como meros canais transmissores, no entanto, a discussão está longe de uma solução.

Discussões internacionais

Em todo o mundo, a questão dos direitos de autor e direitos conexos no ambiente digital é um dos temas centrais para quem trabalha com direitos autorais. Nesse contexto, o Brasil, em conjunto com o Grupo dos Países Latino Americanos e Caribenhos (GRULAC), apresentou, em 2015, no âmbito do Comitê Permanente de Direitos de Autor e Direitos Conexos (SCCR/OMPI), uma proposta para a análise dos Direitos Autorais no Ambiente Digital, em que se buscou discutir os diversos problemas envolvendo a gestão dos direitos autorais na Internet, que incluiu desde a dificuldade de enquadrar-se legalmente os novos usos de obras protegidas na Internet nos direitos já existentes até as limitações e exceções aos direitos autorais no ambiente digital. Essa proposta resultou em um estudo sobre o impacto do ambiente digital nas legislações de direitos autorais adotadas entre 2006 e 2016, apresentado no último SCCR, em 2017.

Acompanhando essa tendência, a União Europeia apresentou, em 2016, uma proposta de Diretiva para os Direitos Autorais no Mercado Único Digital (“Digital Single Market”), em que busca solucionar vários problemas envolvendo os direitos autorais no ambiente digital, incluindo propostas de criação de um novo direito exclusivo para os editores (“publishers”) e de regulação de uma limitação ao direito autoral para a “mineração de dados” (“data mining”). Essa proposta também incluiu, em seu artigo 13, novas normas relacionadas aos intermediários da Internet, mais especificamente no tocante aos “prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e outro material protegido e carregados pelos seus utilizadores”European Union Commission, Proposal for a DIRECTIVE OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL on copyright in the Digital Single Market. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=COM%3A2016%3A593%3AFIN (acesso em 02/12/2017), atendendo às demandas dos titulares de direitos autorais.

Nos Estados Unidos, também têm ocorrido discussões acerca de uma reforma do DMCA. Nesse contexto, o Escritório de Direitos Autorais (“Copyright Office”) organizou um estudo sobre a Seção 512, que trata da responsabilidade civil dos provedores dos serviços de Internet, com a participação de todas as partes interessadas (usuários, plataformas e titulares) e da sociedade civil. Nas discussões, ficou clara a intenção dos titulares de excluírem do benefício do safe harbour os intermediários que disponibilizam e exploram economicamente conteúdos gerados por terceiro e a adoção do sistema de “Notice-and-Staydown”. A partir desse estudo, que foi finalizado no início de 2017, o Escritório comprometeu-se a apresentar uma proposta de reforma do DMCA.

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Brasil

No Brasil, a questão dos direitos autorais no ambiente digital também tem ganhado relevância, dada sua importância econômica e a pressão dos autores e criadores nacionais. Para o país, a solução para o digital deve ser global, considerando o alcance extraterritorial da Internet. Por isso, a proposta de análise do tema apresentada juntamente com o GRULAC na OMPI, envolvendo inúmeros problemas do ambiente digital, inclusive com a discussão de temas que vão além do “value gap” e do “safe harbour”, que foram foco principal dessa apresentação.

No entanto, vale destacar que as discussões internas também têm florescido. Além da necessidade de regulamentar a responsabilidade civil dos provedores de Internet por violações a direitos autorais, conforme previsto no art. 19, §2°, do Marco Civil da Internet, há também discussões acerca dos direitos envolvidos nos usos de obras intelectuais nos serviços digitais. Em 2016, o Departamento de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura, dentro de suas competências referentes à gestão coletiva de direitos autorais, buscou esclarecer, por meio da Instrução Normativa n° 02, de 04 de maio de 2017, quais são os direitos previstos na Lei de Direitos Autorais envolvidos nos usos na Internet, como “live streaming”, “simulcasting”, “webcasting” e “streaming” interativo online e off-line, para fins de habilitação das associações de gestão coletiva para cobrança de direitos autorais no ambiente digital.

Além disso, as discussões também se têm estendido ao Judiciário. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 1559264, envolvendo a OI e o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), deu sentença favorável ao ECAD, considerando o “simulcasting” e o “webcasting” de obra musical como execução pública. Essa decisão foi importante, pois foi a primeira sobre a questão em um Tribunal Superior no país. As discussões também têm ocorrido nas instâncias inferiores, como no Processo n° 0116365-13.2015.8.19.0001, no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, envolvendo o Google de um lado e a União Brasileira de Editores de Música (UBEM) e ECAD do outro, no qual se discutiu os direitos envolvidos nos usos de música pela plataforma.

Conclusão

Pode-se observar, portanto, que os desafios das novas tecnologias e dos novos modelos de negócios para o sistema de direitos autorais são muitos e devem ter a devida atenção do Estado. Além das questões envolvendo os direitos, a baixa remuneração de artistas e a responsabilidade de provedores na Internet, um dos desafios do Brasil, no âmbito dos direitos autorais, será inserir-se de forma mais produtiva nessa cadeia da economia digital, de modo a internalizar parte da crescente receita gerada pelos novos modelos de negócios.

Nesse contexto, o direito autoral é visto, cada vez mais, como um importante instrumento para o fomento da economia da cultura no país. Nesse sentido, a regulação e a difusão dos direitos autorais podem desempenhar um papel fundamental de garantir não só que os criadores e artistas brasileiras recebam um valor justo pelo uso de suas obras, mas também que a economia da cultura tenha cada vez mais relevância para o desenvolvimento nacional.

Referências

CRISTINA ANGELOPOULOS, European Intermediary Liability in Copyright: A Tort-Based Analysis (Kluwer Law International BV 2017).

CISAC, Creators’ global royalty collections hit record €9.2 billion. Disponível em: http://www.cisac.org/Newsroom/News-Releases/Creators-global-royalty-collections-hit-record-9.2-billion (acesso em 29/11/2017)

EUROPEAN UNION COMMISSION, Proposal for a DIRECTIVE OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL on copyright in the Digital Single Market. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=COM%3A2016%3A593%3AFIN (acesso em 02/12/2017).

HARTLINE, Devlin. Attacking the Notice-and-Staydown Straw Man. Disponível em: https://cpip.gmu.edu/2016/02/03/attacking-the-notice-and-staydown-straw-man/ (acesso em 01/12/2017)

IFPI, Global Music Report 2017. Disponível em: http://www.ifpi.org/downloads/GMR2017.pdf (Acesso em 01/12/2016).

Ministério da Cultura, Atlas Econômico da Cultura Brasileira, v. II.

Pró-Musica Brasil, Mercado Fonográfico Mundial e Brasileiro em 2016. Disponível em: http://www.pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Mercado-de-M%C3%BAsica-Global-e-Brasileiro-em-2016-FINAL.pdf (Acesso em 01/12/2017).

WIPO, Proposal for Analysis of Copyright Related to the Digital Environment. Document presented by the Group of Latin American and Caribbean Countries (GRULAC). Disponível em: http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=322780 (acesso em 28/11/2017).