Cultura Digital
Seja como área organizacional ou como conceito, o termo Cultura Digital tem prestado serviço relevante, sobretudo na última década no Brasil (MARTINS, 2017). Como reflexão coletiva em rede, a abordagem cumpriu papel na articulação de uma multiplicidade de novas atividades e movimentos, servindo como ponto de apoio na produção de um comum para falar sobre a construção de políticas públicas, projetos experimentais, ativismos, pesquisa acadêmica, laboratórios liberais, inovação social, movimentos de democratização da comunicação, participação cidadã, acervos digitais, modelos de gestão, entre tantas outras coisas que poderiam ser aqui enumeradas.
Dentre os muitos campos impactados pelas práticas do universo da cultura digital, talvez nenhum outro tenha sido ressignificado de maneira tão abrangente como o campo da memória, pública e privada. Tais práticas impulsionam fluxos dinâmicos e imprevisíveis, que têm nos últimos anos constantemente redefinido e ampliado o conceito de memória cultural. O formato de memória com o qual a sociedade se acostumou no último século, baseada na lógica dos arquivos impressos, é profundamente alterado pela ascendência da mídia digital.
Memória digital como prática social
Desde a virada do século, e particularmente a partir de 2002 com o advento da web 2.0 (‘read-write web’), as instituições custodiais, em seu modelo padrão de operação, deixaram de cumprir o papel de registrar e preservar o que se define como a memória cultural do tempo presente para o acesso das gerações futuras. Em regiões com bom acesso à internet, a ascendência da mídia digital sobre outras formas de transmissão (TV, rádio, cinema, impressos) introduzem práticas que alteram a relação da memória pública com as instituições custodiais do Estado.
Novas práticas sociais passam a compor o mosaico de possibilidades informacionais disponíveis para o cidadão comum. A sociedade civil pode agora produzir coleções de objetos digitais de seu interesse e arquivar esses objetos em sistemas de alta disponibilidade de serviços. Pode classificar esses objetos da maneira que achar relevante, subvertendo a necessidade restrita de utilizar taxonomias hierárquicas e vocabulários controlados -- gerando a folksonomia A folksonomia é uma maneira de indexar informações. Esta expressão foi cunhada por Thomas Vander Wal. É uma analogia à taxonomia, mas inclui o prefixo folks, palavra da língua inglesa que significa pessoas. como prática. O cidadão interessado pode ainda publicar sua opinião sobre temas que considera de relevância, pode votar, curtir e selecionar aquilo que considera mais interessante.
Em resposta a esta demanda por arquivamento em meio digital, nos últimos anos surgiram diferentes formatos de ‘publicação’, como blogs, wikis, gerenciadores de conteúdo (CMSs) e repositórios digitais. Tais novidades surgem não mais em um campo dominado pelas instituições custodiais e suas normas técnicas, mas no universo dinâmico da economia das startups digitais. São empresas privadas que produzem os sistemas interativos da internet, e são responsáveis pelas suas funcionalidades técnicas, bases de dados, políticas de uso e pelas possibilidades de interação de seus usuários.
A cada semana, startups lançam novas ideias para atrair usuários dispostos a ‘postar’ seus conteúdos online, sem prestar muita atenção aos termos de uso a que se submetem. Entretanto, a velocidade de assimilação desses novos serviços pelas grandes corporações da internet, como Google e Facebook, tem resultado em monopólios globais para disponibilização de conteúdos culturais digitais.
De certa maneira, na perspectiva da cultura digital, as práticas de memória saem do domínio do Estado, incluem a sociedade civil como força social de produção, e passam a ser gestadas e geridas no âmbito das empresas que dominam a internet como espaço de inovação e produção de serviços em rede.
15‘Instituições de Memória’: referências em trânsito
Diante do desafio de repensar as práticas sociais da memória em tempos de cultura digital, algumas iniciativas têm se proposto a discutir a atual limitação do papel do Estado por meio de suas instituições custodiais, e o papel crítico exercido pelas empresas de Internet. É inquietante saber que parte expressiva do que é produzido como práticas de memória nos tempos atuais encontra-se sob a guarda de empresas privadas que podem, a depender hoje unicamente de seus interesses, fechar serviços e deixar de dar acesso a base de dados tão relevantes como foi o caso do Orkut Criada pelo Google em 2002 e com existência de 12 anos, a rede social encerrou suas funcionalidades dinâmicas em 2014, deixando seu conteúdo disponível para download até meados de 2016. Durante os dois anos que a rede esteve disponível para consulta, os processos de extração de conteúdo não eram considerados de fácil acesso para grandes volumes de dados e, o que pode se considerar um dos elementos mais importantes em redes sociais, as conexões ficavam fortemente comprometidas na reconstituição desses dados, mesmo em ambientes preparados e contando com recursos técnicos profissionais para a pesquisa. Sem dúvida, o Orkut teve um papel extremamente importante nos processos de socialização em redes digitais no Brasil, sendo um dos territórios mais atuantes e participativos do ambiente. É importante dizer que o patrimônio cultural ali produzido e armazenado também faz parte do patrimônio cultural brasileiro, servindo de referência como fonte de pesquisa e, sobretudo, como dinâmica social de articulação em rede e como campo de produção de capital social e cultural de uma nação. O país perde com seu desaparecimento, que causa impactos em nossa memória cultural, e tais riscos são preocupações relevantes para uma política pública de memória digital. Estariam nossas instituições custodiais preparadas para operar como (ou com?) arquitetura de socialização de produção informacional em rede? , especialmente para o Brasil.
Para lidar com este cenário, conceitos estruturantes como memória cultural e memória coletiva estão agora estabelecidos no discurso acadêmico, e nos debates contemporâneos sobre patrimônio cultural digital (STAINFORTH, 2017). No contexto organizacional, alguns projetos e iniciativas utilizam esta abordagem de memória digitalizada como valor significativo; nos EUA temos o projeto ‘American Memory’http://memory.loc.gov/ , da Library of Congress, e a estruturação do consórcio DPLA http://dp.la/(Digital Public Library of America), além do pioneiro ‘Internet Archive’http://archive.org/ ; no Reino Unido, o projeto ‘Web Archive UK’ http://www.webarchive.org.uk/; também o projeto ‘Trove’http://trove.nla.gov.au/, na Austrália, e o ‘DigitalNZ’http://digitalnz.org/, na Nova Zelândia.
Vamos destacar aqui a experiência da Europeana www.europeana.eu, uma ampla estratégia de integração digital de acervos culturais de instituições custodiais dos países que compõem a União Europeia, a qual vem produzindo efeitos que chamam atenção para os possíveis impactos da lógica de rede na integração de bases de dados de importantes instituições culturais. A iniciativa é composta por 175 instituições europeias que fornecem conteúdo para a formação de uma única base de dados integrada chegando a mais de 54 milhões de objetos digitalizadosDados de fevereiro de 2017.. É nos documentos de diretrizes e estratégias do projeto Europeana que encontramos explicitamente o termo coletivo “instituição de memória” para fazer referência aos museus, bibliotecas e arquivos europeus.
16[Europeana] tem facilitado a colaboração inovadora e a transferência de conhecimento entre as instituições de memória da Europa. O resultado é um novo espírito de empresa colaborativa que está viabilizando a sustentabilidade de um espaço informacional europeu (EUROPEANA, 2011, p. 4)Europeana (2011) ‘Strategic Plan 2011-2015’, Brussels,https://pro.europeana.eu/files/Europeana_Professional/Publications/Strategic%20Plan%202011-2015%20(colour).pdf .
Os benefícios da colaboração e da transferência de conhecimento sugere que a abordagem ‘instituições de memória’ facilita novos relacionamentos e arranjos organizacionais. Mas é importante destacar que a nova abordagem sugere uma reconceituação dessas instituições no ambiente online. Em outra dimensão, os planos e documentos de estratégia do projeto Europeana revelam tensões entre museus, bibliotecas e arquivos, tanto nas questões de interoperabilidade como na gestão das informações de patrimônio cultural gerados pela estrutura que integra as bases de dados das diferentes instituições.
O termo ‘instituições de memória’ aparece com maior intensidade a partir do estudo encomendado pela Comissão Europeia (EC) em 2001 -- Technological Landscapes for Tomorrow’s Cultural Economy: Unlocking the Value of Cultural Heritage (Relatório DigiCULT). O objetivo do Relatório foi estabelecer diretrizes e estratégias para os desafios políticos, organizacionais e tecnológicos enfrentados por museus, bibliotecas e arquivos em seu processo de modernização, no período 2002-2006. A introdução do estudo define o cenário da seguinte forma:
Instituições culturais e de memória europeias passam por transformações rápidas e dramáticas. Tais transformações ocorrem não só pelo uso crescente de tecnologias sofisticadas, que tornam-se obsoletas mais e mais rapidamente, mas também devido à reflexão sobre o papel que modernas instituições públicas devem desempenhar na sociedade de hoje (EUROPEAN COMMISSION, 2002b, p. 9)European Commission (2002b) ‘Technological Landscapes for Tomorrow’s Cultural Economy: Unlocking the Value of Cultural Heritage’, DigiCULT Report, Luxembourg: Official Publications of European Communities, http://www.digicult.info/pages/report.php .
É importante destacar que o relatório desce em princípios importantes para a implementação tecnológica, quando afirma que “a condição de sucesso para as instituições culturais e de memória na Sociedade da Informação é a assimilação da ‘lógica de rede’, a qual está diretamente relacionada com a demanda de interoperabilidade” (EUROPEAN COMMISSION, 2002b, p. 80). Entretanto, como rapidamente se constata na implementação da iniciativa, o reconhecimento de que a infraestrutura da Internet tem implicações incontornáveis para as coleções do patrimônio cultural não se traduzem em impacto natural e imediato na estrutura e nos processos das ‘instituições de memória’ (museus, bibliotecas e arquivos).
Nestes estudos, quando se menciona a expertise de instituições do patrimônio cultural no desenvolvimento de critérios para projetos de digitalização, ocorre certa ambiguidade no uso do termo memória. Conforme comentado por estudiosos que investigam o cenário (MANZUCH, 2009; DALBELLO, 2008), as instituições custodiais são classificadas conforme o tipo de recursos que gerenciam; (1) o que pode ser considerado memória informacional domina o debate no campo das bibliotecas e arquivos, (2) enquanto que a memória cultural está mais alinhada com a atividade dos museus (MANZUCH, 2009; KNELL, 2003). Podemos dizer que o relatório DigiCULT sugere que o termo ‘Instituições de Memória’ promove uma integração funcional, uma fusão dos campos de memória informacional e cultural.
17A questão da sustentabilidade para tais arranjos é também aspecto estruturante para a perspectiva agregadora ‘Instituições de Memória’. A diretriz que promove o modelo organizacional em rede está diretamente relacionada com o plano da Europeana para 2015 em diante, que torna a iniciativa uma “operação empresarial centrada na prestação de serviços [...] acoplada à e apoiada pela Europeana Network” (EUROPEANA, 2014c, p. 1)Europeana (2014c) ‘Europeana Strategy 2020, Network & Sustainability (draft)’ http://pro.europeana.eu/files/Europeana_Professional/Publications/Europeana%20Strategy%20Network%20Sustainability.pdf. A gestão financeira e a evolução da tecnologia são os aspectos que fundamentam tais escolhas estratégicas, que envolvem também o uso de software livre e a preferência pela publicação na modalidade de acesso aberto. Os serviços de troca de conhecimento, os projetos de memória social colaborativa, e a hospedagem de espaços de cocriação são inovações que surgem a partir da organização das bases de dados integradas (EUROPEANA, 2014ª, p. 4)Europeana (2014a) ‘Europeana Strategy 2015-2020’, Brussels, http://pro.europeana.eu/files/Europeana_Professional/Publications/Europeana%20Business%20Plan%202014.pdf.
Para além dos imediatos benefícios que plataformas e bases de dados como essas podem produzir do ponto de vista de quem se interessa pelos temas culturais, estudos hoje podem demonstrar o impacto econômico da iniciativa. A pesquisa conduzida pela empresa SEO Economic Research e assinada por Poort et al. (2013) mostra que num cenário pessimista o esforço de integração da Europeana retorna 2.3 milhões de Euros para a economia local, num cenário de base esse número passa a 21.5 milhões e num cenário otimista o valor chega a 40.3 milhões.
No Brasil, o Ministério da Cultura (MinC), em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG) e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), desenvolve o projeto Tainacanhttp://www.tainacan.org. O objetivo é integrar as instituições mantenedoras de acervos do patrimônio cultural no processo de digitalização e disponibilização de suas coleções. Ao introduzir modelo operacional que prevê o compartilhamento de recursos com base em arquiteturas distribuídas, e incorporar funcionalidades de participação e colaboração em rede, a iniciativa facilita e impulsiona novos métodos para o campo da memória, como a ‘curadoria digital’ Curadoria digital: articulação para criação e implementação de métodos, aplicações e arranjos participativos para a curadoria social do conhecimento a ser preservado em formato digital. e o ‘inventário participativo’Inventários participativos são instrumentos de estímulo para que os próprios grupos e comunidades locais possam, em primeira pessoa, assumir a identificação, a seleção e o registro das referências culturais significativas para suas memórias e histórias sociais em seus processos de musealização. -- instrumento da ‘museologia social’Metodologia que utiliza ferramentas da Museologia a serviço da memória social: identificação, qualificação, realização de inventários participativos, difusão de memórias, formação de redes..
O projeto Tainacan, hoje coordenado a partir do Ibram, está em vias de lançar o módulo Tainacan+Museu para catalogação de acervos museológicos. No âmbito desta experiência de conceber e implementar uma política para acervos digitais a partir do Ibram, achamos pertinente levantar os seguintes pontos para discussão:
- Teria o campo museológico um papel de liderança e protagonismo na formulação de políticas nacionais para acervos digitais, tendo em vista sua posição privilegiada no aspecto da interoperabilidade, em virtude de seu mandato estabelecido para lidar com acervos arquivísticos e bibliográficos no âmbito dos objetos musealizados?
- Como os museus lidam com a perspectiva de serem vistos no ambiente digital sob a perspectiva do termo ‘Instituições de Memória’, que adiciona bibliotecas, arquivos, cinematecas, galerias e centros de documentação em um novo desenho organizacional e tecnológico que responde a demandas específicas do campo dos acervos digitais?
- Como os museus se posicionam frente à necessidade de políticas públicas voltadas à preservação do patrimônio cultural digital?
Referências
BUCKLAND, Michael. What kind of science can information science Be? Journal of the American Society for Information Science and Technology, 63p (1) p. 1-7. 2012.
DALBELLO, M. Cultural dimensions of digital library development. Part I: Theory and methodological framework for a comparative study of the cultures of Innovation in Five European National Libraries, Library Quarterly, 2008. 355-395 p.
KNELL, S. J. The shape of things to come: museums in the technological landscape, Museum and Society, 2003. 132-146 p.
MANZUCH, Z. Archives, libraries and museums as communicators of memory in the European Union projects, Information Research, 2009. Disponível em:
MARTINS, Dalton; CARVALHO JR.; José Murilo. Memória como prática na cultura digital. In: Métodos Digitais (UFG) - Blog. 2017. Disponível em:
MEIKLE, James. British Library adds billions of webpages and tweets to archive. The Guardian. 2013. Disponível em:
NIGGEMANN, Elisabeth. Europeana Strategic Plan 2011-2015, Brussels, Disponível em:
POORT, Joost; NOOL, Rob van der; PONDS, Roderick; ROUGOOR, Ward; WEDA, Jarst. The value of europeana: the welfare effects of better access to digital cultural heritage. Atlas voor gemeenten. Amsterdam, 2013. 43p.
STAINFORTH, Elizabeth. From museum to memory institution: the politics of European culture online, Museum and Society, [S.l.], v. 14, n. 2, jun. 2017. 323-337p. Disponível em: