As práticas da cultura digital

Autor

Dalton Lopes Martins

Professor no curso de Biblioteconomia da Faculdade de Ciência da Informação (FCI) na Universidade de Brasília (UnB) e no Programa de Pós-graduação em Comunicação PPGCOM (Mestrado) da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás. Possui graduação em Engenharia Elétrica pela Universidade Estadual de Campinas (2002) e mestrado em Engenharia da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Doutor em Ciências da Informação pela ECA-USP (2009-2012), trabalhando com o tema de mapeamento, análise estrutural e dinâmica de Redes Sociais em ambientes digitais distribuídos. Tem experiências nas áreas de inclusão e cultura digital, análise de redes sociais, estudos métricos, organização e representação da informação e aprendizagem de máquina. Tem trabalhado atualmente em pesquisas na interface das áreas de Comunicação e Informação, focando nos fatores e nas condições que favorecem a formação de coletivos inteligentes e pesquisas com aplicações de Ciência de Dados (aprendizagem de máquina e mineração de dados) em problemas envolvendo políticas públicas, mídia e participação social. Coordena o projeto de pesquisa Tainacan - software livre para a construção social de repositórios digitais - parceria com o Ministério da Cultura e Instituto Brasileiro de Museus.

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Em busca de um conceito

A ideia de cultura digital, seja como área organizacional em instituições voltadas para políticas públicas culturais ou mesmo em instituições privadas de mídia e marketing, seja como conceito no campo da pesquisa acadêmica e em pesquisas de formas de consumo e produção de comunicação, tem prestado um serviço de extrema relevância, sobretudo na última década no Brasil, na tentativa de articulação de uma multiplicidade de conceitos servindo como ponto de apoio na produção de um comum para falar sobre a construção de políticas públicas, projetos experimentais, movimentos ativistas, pesquisa acadêmica, laboratórios liberais, inovação social, movimentos de comunicação, participação social, acervos digitais, modelos de gestão, entre tantas outras coisas que poderiam ser aqui enumeradas. No entanto, como todo conceito transversal, acaba correndo o risco de uma enorme polissemia, podendo representar tudo e nada ao mesmo tempo. Ao que parece, a cultura digital encontra-se atualmente nessa condição.

Vale aqui, portanto, um movimento que busca menos definir cultura digital a partir de uma linha teórica e conceitual específica dentre as muitas que disputam o conceito e mais formular algumas interrogações que facilitem clarear qual o campo de jogo e suas possíveis regras de formação onde se encontram esses diversos conceitos e o que parece pautar a sensação de que, apesar de distintos, ainda assim formam um comum. O primeiro ponto que vale se questionar é o próprio sentido de cultura para, num segundo momento, entender quais são as especificidades que podem caracterizar a experiência do digital.

Definir cultura a partir de um único ponto de vista não é só uma tarefa que soa ingênua para o que se busca discutir aqui, como também uma contradição em relação às várias formas de debater o conceito, que, apesar de múltiplas e mesmo divergentes, parecem invariavelmente ressaltar um ponto em comum entre elas: em torno das diferentes tentativas de definir cultura encontramos algo que procura explicar a diversidade das práticas sociais humanas. De alguma maneira, essas tentativas anunciam que é por meio da cultura que se pode expressar, reconhecer e mesmo valorizar a diversidade dessas práticas.

“... a cultura refere-se aos elementos simbólicos da vida social, ou seja, a um conjunto de representações, valores morais e ideais que institui e organiza a sociedade. Os aspectos simbólicos de uma dada organização social não existem acima dos indivíduos, como “estrutura estruturada”, mas a partir da ação dos próprios indivíduos uns em relação aos outros, sujeitas a mudanças, como “estrutura estruturante”” (PASSIANI; ARRUDA, 2017, p. 135).

Trata-se, portanto, de buscar aqui formas possíveis de se observar a cultura em busca de identificar regularidades e estabelecer alguns critérios de significação que permitam compreender as diferentes culturas, suas proximidades, seus pontos em comum, suas dissonâncias, distâncias e com isso estabelecer pontos de observação que façam avançar um ponto de vista científico sobre o objeto. Para tal, levar em consideração a observação desses elementos simbólicos da vida social constitui esse ponto de vista e uma estratégia necessária para então definir elementos constituintes de uma cultura. Mas, cabe ressaltar, que é na ação social relacionada a esses elementos simbólicos que se pode observar a cultura em movimento, sua dinâmica como prática social, definindo regularidades, padrões e, eventualmente, dissonâncias que constituem o mundo social. Entende-se aqui por prática social aquilo que se revela nas condutas regulares dos agentes em dinâmica de interação social, produzindo as coisas que se fazem e as coisas que não se fazem, como sugerido por Bourdieu (THIRY-CHERQUES, 2006).

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O senso prático, senso de orientação e senso de jogo, simultaneamente, é o que permite aos agentes se adaptarem a um número infinito de situações sem seguir explicitamente uma norma, uma regra, um código transmitido (postura que a abordagem estruturalista mecanicista é incapaz de explicar), mas sem que por isso eles obedeçam ao livre decreto de seu pensamento, como pretendem as teorias subjetivistas ou racionalistas (SAPIRO, 2017, p. 297).

A ideia de práticas é menos importante para definir cultura e mais porque coloca o conceito em movimento e a faz caminhar em conjunto com a própria dinâmica social dos diferentes povos e da convivência humana. Recupera a ideia desse senso de jogo, que estabelece contornos e regularidades possíveis de manifestação. É no movimento do que se conserva e no movimento do que se transforma que encontramos ali a cultura, aparecendo como daquilo que se fala, daquilo que se faz e daquilo que se vive. É a partir dos modos de produção, conservação e socialização do simbólico que ali se encontra os pontos de observação necessários para se identificar as diferentes perspectivas culturais. Conceito meio, a cultura só encontra seu espaço como contorno daquilo que se expressa, se faz ver e disputa o próprio sentido de sua existência. Prática é, portanto, vida enquanto se faz viver.

Tem-se aqui algumas linhas do campo de jogo. É por meio do olhar que busca reconhecer as práticas de socialização do simbólico que se encontra as manifestações que ajudam a descrever não só a cultura na qual se está imerso como também colocar em análise e refletir sobre a cultura do que parece dissonante, estranho ao próprio modo de se manifestar. Outras práticas podem ser observadas, compreendidas e o próprio horizonte que singulariza os indivíduos se expande quando as práticas se remixam produzindo o jogo infinito das invenções humanas em seus modos de existência.

Socialização do simbólico: as singularidades do espaço social digital

Mas, e o tal do digital? Como ele se relaciona com cultura a ponto de se estabelecer como expressão composta chegando mesmo a se manifestar como “cultura digital” e funcionar como produtor de sentidos para um número expressivo de instituições, grupos e pessoas?

Entendendo aqui cultura como conceito meio, operador de aberturas de significado que permite observar as práticas sociais em seu contínuo movimento do conviver em torno das diferentes formas possíveis de socialização do simbólico, e se faz de fato algum sentido falar de cultura digital é, portanto, porque se está falando aqui de um conjunto de práticas sociais que acontecem de forma singular no espaço social digital. É importante destacar a ideia de singularidade para que possa falar de cultura digital, entendendo por isso que há práticas que apenas podem se dar nesse espaço social e que terminam por ser inerentes às suas condições de possibilidade e restrições, quer sejam elas técnicas, em relação ao meio no qual se dão, ou sociais, em relação ao tipo de interação por meio do qual se socializa.

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Nada além do óbvio, mas vale aqui ressaltar que esse espaço do digital é o espaço do que se produz por meio de uma máquina de processamento simbólico que opera e transforma ondas elétricas em sinais binários, conhecidos por 0s e 1s, permitindo a construção de inúmeras estratégias de cálculo desses sinais e sua recombinação por meio de algoritmos que repetem blocos de cálculos complexos em uma velocidade muito superior comparada à velocidade da cognição humana. Isso, de maneira simplista, é o fundamento de todas as experiências de uso de equipamentos digitais que um dia venham a surgir, do simples desenho de uma linha na tela de computador ao movimento de pousar um satélite num cometa em movimento.

O digital é ainda fenômeno recente na história humana, aparecendo em suas primeiras experiências apenas na década de 1940, no âmbito de todo o esforço de inovação técnica e científica em busca de vantagens estratégicas no conflito militar da II Guerra Mundial. Experimento na década 1940 e produto comercial em escala na década de 1980, o digital se instaura como espaço no imaginário humano há aproximadamente 40 anos. Apesar da enorme quantidade de estudos, pesquisas e tentativas de analisar esse fenômeno a partir de muitos olhares diferentes, é praticamente unânime a compreensão de que junto com o tal advento do digital ocorrem transformações profundas nos modos de existência humana.

No esforço de procurar dar visibilidade ao campo de jogo da cultura digital, pode-se, então, perguntar quais são as práticas sociais que surgem e se consolidam junto a esse fenômeno e que servem de sustentação às diferentes formas de entendimento de cultura digital. Parece aqui que a chave para refletir sobre essas práticas é o próprio fundamento do que representa o digital, ou seja, a sua capacidade singular de manipulação simbólica automática, o que a diferencia em relação a todos os outros suportes de manipulação que já foram antes desenvolvidos pelo ser humano.

Não se trata apenas de singularizar o aspecto quantitativo do fenômeno, a capacidade de lidar com a manipulação simbólica em alta quantidade e à velocidade da luz, mas dos aspectos qualitativos, sobretudo, a capacidade de produção de outros usos possíveis dos símbolos que somente se tornam viáveis quando processados em alta velocidade e quantidade, criando condições estruturais para que determinadas experiências possam se dar. É, portanto, em torno da investigação do que ocorre a partir dessa ideia de manipulação simbólica que se propõe 4 grandes conjuntos de práticas sociais que podem ser observadas no universo do espaço digital: práticas informacionais, práticas comunicacionais, práticas relacionais e práticas curatoriais.

A 4 práticas sociais da cultura digital

Práticas que giram em torno de diferentes estratégias e propósitos de manipulação simbólica, produzindo diferentes modos de manifestar a cultura digital como espaço de expressão cultural humana. Práticas que dão passagem a fenômenos que podem se complementar na própria perspectiva histórica do que tem sido a sofisticação dessas estratégias de manipulação simbólica do universo digital. Práticas que demandam novos suportes tecnológicos interacionais que permitem a manipulação de documentos, de objetos multimídia, de transformações informacionais e de manipulação de fluxos comunicacionais altamente flexíveis, tornando viável recombinações em tempo real de diferentes símbolos e fluxos simbólicos em novos objetos que dão passagem a novos tipos de relações sociais. É apenas por meio da observação de como esses novos elementos simbólicos aparecem que se pode identificar os traços característicos dessas práticas sociais que aqui se defende que constituem a cultura digital.

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O primeiro conjunto de práticas denomina-se práticas informacionais. A etimologia da palavra informação remete a ideia de dar forma, moldar algo usando os recursos da própria mente. Há algo aqui que possui a característica de um evento, ou seja, há uma dinâmica de moldar algo a partir dos sinais que se recebe do mundo através de capacidade sensorial e sensibilidade e a busca que se move por um desejo de produzir uma forma de representar um significado, uma forma de ver um pedaço do mundo que a lente sintetiza na ideia que se traduz palavra. Energia e forma, produção de uma metaestabilidade temporária, estrutura dinâmica, a informação se constitui deste encontro entre os sinais do mundo e a lente da intencionalidade, seja ela consciente ou não, daquele que olha. Tem-se aqui todo um conjunto de práticas sociais que podem, então, ser compreendidas, são elas as práticas de moldar, dar forma à matéria do digital, mixar e remixar os elementos simbólicos à luz de sua capacidade automática de processamento.

A produção de um texto que se percebe hipertexto por meio da construção de uma página web usando tags em código html que conectam um desenho, uma fotografia, a edição de uma tabela e estabelece relações de hiperlink com outros documentos previamente criados são exemplos deste tipo de prática. Dão forma substancial ao universo digital e são, dentre as outras práticas propostas, as que têm maior estabilidade temporal e que servem, portanto, de apoio a um conjunto de estratégias que procuram estabilizar sentidos, narrativas e maneiras de entender as coisas ao redor de um agente social.

Tamanha sua importância enquanto conjunto de práticas que permite surgir áreas inteiras de conhecimento que explicitam e procuram sistematizar as “boas práticas” da modelagem informacional, tal como o que se conhece hoje pelo conjunto de conhecimentos denominado “arquitetura da informação”. Na experiência de produção da web, são as práticas que primeiro aparecem em tempos onde a rede se constituía basicamente de links que referenciavam documentos digitais e das poucas coisas que se poderia executar em rede era visitar esses links e ter acesso a esses documentos. Apesar de hoje parecer banal, representou à sua época uma enorme revolução na possibilidade de produção de um novo espaço informacional que ampliou de maneira única na história da humanidade a capacidade de acesso das pessoas a essas formas de estruturação de significado produzidas por outras pessoas, que nem sequer se teria a possibilidade de um dia ter contato. Eram formas de se socializar mapas cognitivos de conexão entre documentos.

Vale frisar que surge aqui os indícios de uma nova forma de cultura que começa a se desenvolver em torno de novas práticas e suas possibilidades de apropriação social. É a cultura do hiperlink, onde por meio da alta capacidade e flexibilidade de manipulação simbólica de documentos torna-se possível conectar diferentes objetos, pedaços de objetos e criar verdadeiros mapas de navegação por entre esses objetos, surgindo, de fato, toda uma nova metainformação que traz à tona as escolhas e os modos de conexão de documentos estabelecidos pelos agentes sociais que produzem essas conexões. É observando esse fenômeno de manipulação simbólico como modo de socialização que se percebe as regularidades instituintes de uma prática social: a produção do hipertexto torna-se regra, modo de escrita, hábito socializado e incorporado em estratégias de escrita, formas de arte, vendas de produto e componente ativo de cursos de formação que ensinam as “boas práticas” da socialização na web.

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O segundo conjunto de práticas denomina-se práticas comunicacionais. No caso da comunicação, a referência a sua etimologia parece também auxiliar a caracterizar o conjunto de práticas que aqui se quer colocar em evidência. Comunicar é partilhar, participar de algo, tornar comum. As práticas comunicacionais podem, então, ser percebidas menos pela sua demanda de uma metaestabilidade e necessidade de dar forma e mais pelas estratégias de fazer circular, pôr em movimento e se fazer chegar de um ponto ao outro de uma rede de nós em conexão. No universo digital, o desenvolvimento de protocolos específicos, síncronos e assíncronos, permite o surgimento de serviços e ferramentas comunicacionais, tais como o e-mail, a mensageria instantânea (icq, hangout, whatsup) e os fóruns, para citar algumas. A web cresce em sofisticação e complexidade permitindo não apenas a criação de documentos digitais em formas específicas de representação de significado, mas agora permite a produção de inúmeras estratégias de fazer circular essas formas.

As práticas comunicacionais surgem a partir da percepção de que se está diante de novos modos de socialização por meio da conversação em rede. Esse novo tipo de manipulação simbólica e seu efeito nas formas de comunicação é mais facilmente percebido quando se nota as novas estratégias de mensagem instantânea. São os aplicativos que convocam a atenção em tempo real avisando de novas mensagens que chegaram e permitindo que se envie mensagens com alta complexidade simbólica (áudio, vídeo, imagens) a qualquer momento e com tempo de entrega praticamente imediato. São mensagens que tendem a convocar a atenção imediata, modificando, muitas vezes, a experiência de fruição do tempo de interação social. O que se observa é que esses aplicativos modificam não apenas a intensidade e a temporalidade da interação, mas também sua qualidade, gerando novas dinâmicas de conversação, onde tipos novos de mensagens são produzidas, novas formas de utilização do texto e escrita, chegando à formação de novos agrupamentos temáticos de pessoas para se socializar dessa maneira. É a cultura da mensagem instantânea.

O terceiro conjunto de práticas denomina-se práticas relacionais. O que se procura evidenciar aqui é a perspectiva do surgimento de novas estratégias de relacionamento social no universo digital. Novas relações são possíveis e toda uma nova gramática da relação passa a ser experimentada em novas estratégias de manipulação simbólica. O surgimento das inúmeras experiências de formação de grupos, coletivos e, sobretudo, das mídias sociais é a manifestação mais evidente dessas práticas na web. Pode-se agora fazer novos amigos e redefinir a própria noção de amizade, cutucar pessoas, criar grupos abertos e fechados segmentando o espaço social conforme interesses específicos, curtir, votar, compartilhar, recomendar, comentar, enfim, práticas relacionais. Pode-se mesmo se relacionar com recursos materiais dessa maneira, como os novos aplicativos para obtenção de transporte (Uber), reserva de acomodações para viagens (AirBnb) e mesmo para monetização de recursos interacionais (Blockchain). Novas tecnologias de manipulação simbólica foram fundamentais para o desenvolvimento e potencialização dessas práticas, se disseminando como experiência cultural em escala sobretudo a partir do início dos anos 2000.

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Ao se perceber um conjunto novo de modos de relação social mediados por eventos específicos que condicionam essas relações pelas funcionalidades disponíveis dos aplicativos de mídias sociais, nota-se não apenas as novas dinâmicas sociais, mas o surgimento de novas significações do que representam simbolicamente essas relações. Expressões como “curtir” passam a ganhar novas dimensões sociais e efeitos simbólicos que parecem induzir modos específicos de relacionamento social. Um dos efeitos mais fáceis de se observar essas práticas é por meio das linhas do tempo estabelecidas pelos aplicativos de mídias sociais. Essas linhas do tempo organizam o que está visível no momento em que o aplicativo é ativado, deixando disponível uma certa quantidade de objetos interacionais para se relacionar. Após certo período de tempo, a depender de cada aplicação, a linha do tempo é atualizada e novos objetos surgem, novas mensagens, novas pessoas, novos conteúdos e essas novidades se tornam disponíveis para novas formas de interação, essencialmente rápidas, demandando atenção no momento em que surgem e se tornando de difícil recuperação para análise e avaliação posterior ao momento em que apareceram. Os aplicativos induzem, de certa maneira, ao consumo e à realização imediata da interação, dificultando com que ela se dê posteriormente. É a constatação do que se chama da cultura da timeline.

O quarto e último conjunto de práticas denomina-se práticas curatoriais. São percebidas pelas práticas que estabelecem relevância e realizam filtros de significância por meio de funcionalidades específicas nos aplicativos de mídias sociais. São práticas que interagem e calibram diretamente os algoritmos desses aplicativos, permitindo com que os mesmos “descubram” aquilo que mais gostamos, aquilo sobre o qual estamos interessados, induzindo os algoritmos a gerarem filtros de conteúdos que selecionam apenas parte da totalidade dos conteúdos disponíveis para visibilidade.

Essas práticas são aquelas que convocam a qualificar conteúdos digitais, seja votando, por meio de diferentes formas possíveis de votação (pontuação, estrelas, curtidas, cores, etc...) seja apenas por meio dos rastros que são deixados ao se fazer buscas em bases de dados e essas buscas serem reconhecidas como aquilo que se deseja ver mais, saber mais e conhecer mais. Logo, seja por meio de ações conscientes de seleção e curadoria ou seja por meio de ações inconscientes que se baseiam apenas naquilo ao qual se presta mais atenção por um determinado período de tempo, ao se socializar por meio dessas práticas, ações de curadoria são levadas a efeito, tornando os algoritmos mais “inteligentes” em relação ao que farão em ações futuras de seleção de objetos digitais que estarão visíveis. Essas práticas são também chamadas aqui de cultura do algoritmo.

Algumas reflexões

Ao propor analisar o conceito de cultura digital por meio das práticas sociais que podem ser reconhecidas como relacionadas ao conceito, se estabeleceu aqui elementos que têm por objetivo reconhecer essas práticas, suas condições de observação e contorno, procurando nomear, não de maneira exaustiva, mas de maneira sintética, alguns princípios que facilitam a observação da regularidade dessas práticas e a percepção de sua centralidade nas experiências de uso da tecnologia como elemento de socialização contemporânea.

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O digital mostra, dessa maneira, singularidades fundamentais e constituintes de um espaço social que é único na história, evidenciando elementos que visam facilitar a problematização crítica dessas singularidades. A singularidade de suas formas de manipulação simbólica facilita a observação das formas sociais de apropriação de seus recursos técnicos. Ao se observar os modos de transformação simbólica que dão passagem às novas formas de socialização, o conjunto de práticas aqui apresentado torna-se evidente e se revela em suas características essenciais.

Sem dúvida, cabe avançar nessa pesquisa para se identificar as condições de socialização dessas práticas, tanto para conhecer as diferenças de apropriação das mesmas pelos diversos agentes sociais em suas diferentes condições sociais de apropriação quanto para se apontar os efeitos que elas produzem nos modos de organização social da contemporaneidade.

... o conhecimento das condições sociais responsáveis pela demanda de um canal de circulação de bens simbólicos explica as formas específicas de utilização do produto. De um lado, as condições sociais de produção de bens simbólicos; de outro, as condições sociais de uso institucional desses bens (MARTINO, 2003, p. 14).

O que se buscou fazer aqui nesse curto espaço de reflexão é determinar as condições de observação dessas práticas, procurando, sobretudo, reconhecer a singularidade da cultura digital como novo espaço de constituição simbólica da socialização humana. É o reconhecimento das práticas geradas em um novo elemento sociotécnico, complexo, multifacetado e permeado de diversos imaginários que terminam por dificultar se estabelecer uma análise científica dos seus efeitos na dinâmica de socialização. Ao se observar da maneira proposta, tem-se por objetivo facilitar o desenvolvimento da pesquisa crítica dessa forma de cultura.

O estudo das práticas permite escapar da necessidade de definição do conceito para que dela se possa estabelecer um diálogo possível. Como se viu, é menos de um conceito que se parte e mais das diferentes formas práticas que se socializa e que podem, se assim for conveniente para o estabelecimento dos recortes de uma pesquisa, serem agrupadas e servirem de apoio para se estabelecer a base de identificação das manifestações práticas de um conceito.

Logo, o que se permite inferir dessa pesquisa inicial é o conjunto de quatro tipos de práticas sociais que, ao serem observadas na complementaridade, ajudam a definir as especificidades da cultura digital, as formas características e regulares de socialização simbólica e novos espaços sociais de interação, que podem ser analisados em conjunto para se compreender os atuais jogos sociais ali instaurados, as diferentes dinâmicas que constituem esse “senso de jogo” nas brechas das singularidades da cultura digital.

Referências

MARTINO, Luís Mauro Sá. Mídia e poder simbólico. 2. ed. São Paulo: Editora Paulus, 2003. 198 p.

PASSIANI, Enio; ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Cultura. In: Vocabulário Bourdieu. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017. 398p.

SAPIRO, Giséle. Prática (Teoria da). In: Vocabulário Bourdieu. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica. 2017. 398p.

THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, n. 40, v. 01, p. 27-55, jan./fev. 2006.