Historicamente, a intensificação das discussões sobre o tema da cultura no campo dos direitos e das políticas públicas ocorreu, inicialmente, no pós-Segunda Guerra Mundial, na Europa; e, nos anos 70, na América Latina. Na Europa, aquele era um momento de busca de reconstrução de uma sociedade mais democrática, da derrota do fascismo. Já na América Latina, ainda que alguns países vivessem sob ditaduras militares, ampliavam-se as lutas pelas liberdades – de expressão, sexual, política – havia um ambiente de busca de reconstrução ou reafirmação das múltiplas identidades existentes.
A proposta do presente artigo é a de refletir sobre o lugar e a importância do esforço pela continuidade do processo de institucionalização das políticas culturais no Brasil (que teve início nos anos 1970, ainda na ditadura militar, interrompido nos anos 1990, por governos neoliberais, sendo retomado nos anos 2000, em um regime democrático), dentro de uma nova conjuntura de busca sistemática de redução dos direitos de cidadania da sociedade e de diminuição da presença do Estado, por parte do grupo que se encontra no governo.
Na Europa, com especial destaque para a França, políticas culturais se tornaram sinônimo de políticas públicas de cultura. A estrutura institucional, base para a construção de uma política, foi sendo montada e consolidada; a produção de informações e avaliações ocupou, como deve ser, um papel destacado na construção desse arcabouço institucional. Objetivos de longo prazo foram estabelecidos. Isso não quer dizer que o processo tenha sido linear, sem disputas e antagonismos nas propostas e visões que pautaram as ações do Estado. Ou, ainda, que ocorreu sem questionamentos e resistências dos movimentos sociais – para lembrar “Maio de 68”. A invenção da Política CulturaL na França, como denominou Philippe Urfalino, ocorreu com a criação do Ministério dos Assuntos Culturais, em 1959. Ação que foi seguida por um processo de estruturação da área no conjunto das políticas públicas. Um processo de longo prazo, com muitas avaliações, revisões de rotas, de estratégias e de princípios de atuação do próprio Estado Central foi vivenciado. Agora, no século XXI, a problemática da territorialização das políticas e ações em detrimento de uma atuação concentrada no órgão central, no caso Francês, o Ministério da Cultura e da Comunicação, vem ocupando lugar destacado nas pautas e nas decisões políticas. Há um contínuo processo de territorialização das ações na Franca, com participação das comunidades, visando a um aprimoramento das atividades e um melhor aproveitamento dos recursos aplicados.
No caso da América Latina, as discussões sobre a necessidade e importância da existência de políticas culturais se iniciaram, mais efetivamente, nos anos 1970, quando muitos países da região ainda viviam sob o regime de ditaduras militares. A Colômbia e o México cumpriram um papel destacado, sediando alguns dos principais encontros fomentados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A instituição, ao longo da década de 1970, capitaneou um conjunto de pesquisas, buscando mapear e colocar em discussão as práticas, os conceitos e as ações implementados pelos países membros para o campo das políticas culturais. Podemos afirmar que a Unesco foi a responsável por inserir a cultura na pauta das políticas públicas de diversos países.
34As discussões frutificaram em alguns países ao longo dos anos 1980. No caso do Brasil, temos a criação do Ministério da Cultura (Minc) e a presença dos direitos culturais na Constituição de 1988. A história que se segue até os anos 2000, é bem conhecida. Ocorreu um desmonte da área pública sob a orientação de políticas neoliberais. A área das políticas públicas de cultura ficou restrita, quase que exclusivamente, às ações das leis de incentivos, com o núcleo de decisão nas mãos da iniciativa privada, ainda que, quando falamos de renúncia fiscal, estejamos tratando de recursos públicos.
Os anos 2000 trouxeram uma série de novos projetos, assim como recolocaram em cena algumas das discussões e ações gestadas nos anos 1970 e 1980, só que dessa vez em um contexto democrático.A Ditaduta Militar tem fim em 1985. A construção do Ministério da Cultura já se deu no período democrático, mas com pouca participação social. O chamamento da sociedade para a participação na construção das políticas de cultura só ocorre nos anos 2000, na gestão do Ministro Gilberto Gil. Podemos afirmar que os anos de 2003 a 2010 foram de intensas mudanças no campo da cultura, no que diz respeito às problemáticas das políticas culturais e do direito à cultura. As ações e discussões não ficaram restritas aos limites da máquina pública do governo federal. Nos anos de 2011 a 2015, vários dos projetos gestados nos oito anos anteriores foram sendo implementados e a maioria dos programas foi continuada.
No campo da participação social, nos anos 2003 a 2015, foram convocados inúmeros setores da sociedade, de todas as regiões do país, para participar da construção de um efetivo campo de políticas públicas de cultura, com projetos pensados para o largo prazo, tais como o Sistema Nacional de Cultura, o Plano Nacional de Cultura e o Conselho Nacional de Políticas Culturais.
Parte dos resultados das ações implementadas pelo Minc pode ser observado de maneira indireta. Como, por exemplo, se pode constatar que o envolvimento e a repercussão social já nos primeiros anos de trabalho do Ministério da Cultura levaram a um crescimento expressivo de trabalhos acadêmicos sobre o tema. Em 2001, a base da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) nos informa que tivemos 6 (seis) trabalhos entre teses e dissertações defendidas sobre o tema, esse número, em 2005 chegou a 12 (doze) e em 2010 a 32 (trinta e dois).Para mais informações ver: Calabre. 2014. Esse dado é extremamente revelador tendo em vista toda a rigorosidade do arcabouço conceitual e técnico que envolve, obrigatoriamente, um recorte temático que será objeto de uma tese ou de uma dissertação. Uma das questões estudadas em alguns dos trabalhos é a da repercussão efetiva, da ação, programa ou política, no campo onde ele se propôs atuar. Outro dado revelador dessa expansão, tanto do interesse acadêmico quanto do alcance do campo de ação do Minc, é o da presença de estudos sobre políticas culturais nas mais diversas regiões do país, ainda que haja a concentração de trabalhos oriundos das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, seguida por Fortaleza. Tal concentração é proporcional à presença maior de cursos de pós-graduação nessas regiões mais dedicados à área das políticas culturais, das políticas públicas e da cultura.
35Lançando um olhar mais abrangente sobre os anos 2003 – 2010 podemos, ainda, destacar algumas questões mais conceituais ou poderíamos, talvez, chamar de inovações operacionais, que impactaram no processo efetivo da implementação da política cultural. A primeira delas está na reafirmação constante de que tudo o que estava sendo implementado estava assentado, respondia à chamada trimensionalidade da culturaTermo que se tornou corrente na gestão dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira., composta pelas dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura, e definidas pelo Minc, como:
A dimensão simbólica é aquela do “cultivo” (na raiz da palavra cultura) das infinitas possibilidades de criação expressas nas práticas sociais, nos modos de vida e nas visões do mundo. (...) A dimensão cidadã consiste no reconhecimento do acesso à cultura como um direito, bem como da sua importância para a qualidade de vida e a autoestima de cada um. (...) Na dimensão econômica, inscreve-se o potencial da cultura como vetor de desenvolvimento. Trata-se de dar asas a uma importante fonte geradora de trabalho e renda, que tem muito a contribuir para o crescimento da economia brasileira. (MINC. 2010. P. 8).
As iniciativas foram construídas ao longo dos oito anos em diálogo com a proposta de tridimensionalidade. Ainda que possamos afirmar que os objetivos propostos nas dimensões não tenham sido completamente alcançados em muitos dos programas, estas estiveram todo o tempo presentes no campo discursivo. O Ministério fez uso do “capital simbólico” (no sentido atribuído por Bourdieu) da ideia de tridimensionalidade realizando ações que resultaram em efetivos avanços no campo da estruturação de políticas culturais em bases mais democráticas, participativas, abrangentes e cidadãs. Entram para a pauta de discussão de uma maneira mais efetiva as problemáticas dos direitos culturais, da cidadania cultural e da economia da cultura.Essa questão já foi por mim trabalhada em dois outros artigos que têm como foco a participação social, presentes nas referências bibliográficas.
Uma segunda concepção teórica e prática da gestão que esteve presente no conjunto das discussões, foi a da diversidade cultural. José Marcio Barros nos chama a atenção para o fato de que:
Reconhecer na diversidade cultural apenas a presença de diferenças estéticas é simplificar a questão. Há sempre, e é isso que torna a questão complexa, a tensão política e cognitiva de diferentes modelos de ordenamento e gestão. Diversidade cultural é a diversidade dos modos de instituir e gerir a relação com a realidade. (BARROS. p.84)
Uma das pautas presentes do conjunto das discussões de políticas públicas de cultura, no período em questão, foi a da criação de instrumentos que garantissem os direitos culturais, a promoção e a proteção da diversidade cultural. Entre os compromissos assumidos pelo Brasil, como um dos países signatários da Convenção da Diversidade, estão os de “proteger e promover a diversidade das expressões culturais”; “criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em benefício mútuo”; e “encorajar o diálogo entre culturas”. Tais compromissos colocam na ordem do dia uma questão fundamental: a do conhecimento das práticas culturais do país por parte dos gestores públicos (que não se restringe aos resultados obtidos com a coleta de dados estatísticos, por exemplo) ou, como nos falou José Márcio Barros, da necessidade de estar atento “aos modos de gestão que se fazem presentes nos diferentes padrões culturais” (idem). Em verdade: “como considerar realizada a inclusão social se os valores, comportamentos, modos de vida, imaginários, raízes, práticas e heranças culturais, manifestações, fabulações e celebrações da maioria da população são desconhecidos das gestões?” Moreira e Faria (2005, p.12), questionam os pesquisadores Altair Moreira e Hamilton Faria ao tratarem das questões dos governos municipais, que, teoricamente, deveriam ser os detentores de um conhecimento mais aprofundado da realidade sob sua responsabilidade administrativa.
36Os modelos de democratização cultural aplicados em diversos países nas últimas décadas do século passado se mostraram inadequados para o florescimento de sociedades menos desiguais. A ideia de um Estado centralizado no qual se originam um conjunto de decisões sobre a oferta cultural para todo o país, terminou por reproduzir um padrão concentrador do capital simbólico do qual historicamente eram detentores determinados segmentos sociais pertencentes às camadas altas e médias da sociedade. O modelo centralizador francês de política cultural, originado na gestão de André Malraux, que inspirou diversos governos ao longo das décadas de 1960 e 1970, foi gradativamente sendo superado. A problemática da territorialidade das políticas públicas, inclusive na França, foi ficando mais em evidência no início do século XXI (como já citado anteriormente). Em diversos países da América Latina, algumas mudanças vêm se processando no campo das políticas públicas, em geral, e na de cultura, em particular, desde os anos 1980 (tal processo vem ocorrendo a partir de modelos e ritmos diferenciados de país para país, mas há um claro diálogo entre eles). O continente mantém modelos de Estado centralizados, mas, gradativamente, temos assistido ao crescimento de desenhos mais descentralizados de gestão de políticas públicas, seja a partir do compartilhamento de decisões entre os vários níveis de governo, ressaltando uma maior autonomia dos governos locais, seja através da existência de algumas experiências importantes de participação da sociedade civil.
No Brasil, o poder público está estruturado em três níveis: federal, estadual e municipal. A partir de 1988, com a nova Constituição Federal, o município passou a ter uma maior autonomia. É o município quem mais efetivamente dialoga com o cidadão em “seu território”, que implementa as políticas públicas de proximidade e responde as demandas locais. E, dentre um emaranhado complexo de políticas setoriais municipais, está a política pública municipal de cultura.
O objetivo fundamental de uma política cultural deveria ser o de garantir o direito à cultura, do qual gozam o conjunto dos cidadãos – como previsto na Constituição Federal e, ainda, em algumas das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas. Isso quer dizer que estamos falando de práticas e de desejos de ser e de fazer, que se está tratando de questões de natureza material e imaterial. Dito de outra forma, a política cultural deve ter em conta que as ações estão posicionadas nos campos do real e do simbólico, do consumo e da fruição, do acesso e das práticas. A maior parte das disputas e tensões entre o direito previsto, o direito concretizado e a negação dos direitos se fará mais evidente nos territórios, sob as administrações municipal e estadual.
Um município, independentemente do tamanho do seu território ou de sua população, é constituído por múltiplos outros recortes territoriais reais e simbólicos, onde as disputas por direitos se farão mais evidentes. Independente do processo de desinvestimento que vem sendo feito na construção do Sistema Nacional de Cultura, pelos três ministros da cultura que ocuparam a pasta nesse curto período de um ano e meio do golpe que destituiu a Presidenta eleita Dilma Rousseff, ao verificarmos o índice de adesão ao SNC pelos municípios brasileiros, constatamos que, em janeiro de 2018, chegava a 45,8%, sendo distribuído da seguinte forma:
37Estados com adesão | Municípios com adesão | Total de Municípios | Total de Municípios % Municípios com adesão | |
---|---|---|---|---|
Centro-Oeste | 4 | 199 | 467 | 42,6% |
Norte | 6 | 190 | 450 | 42,2% |
Nordeste | 9 | 888 | 1794 | 49,5% |
Sudeste | 4 | 676 | 1668 | 40,5% |
Sul | 3 | 600 | 1191 | 50,4% |
Total | 26 | 2553 | 5570 | 45,8% |
O quadro acima nos revela um cenário de razoável articulação do poder público municipal na direção da construção de políticas públicas de cultura. É importante ressaltar que para aderir ao Sistema Nacional de Cultura, o município se compromete a cumprir um conjunto de exigências, tais como a realização de conferências municipais de cultura, a elaboração de um plano de cultura, a criação de um conselho de política cultural, enfim, todo um conjunto de ações que requer um diálogo intenso do poder público com a sociedade civil.
Dentro desse cenário, destaca-se o fato de que a questão cultural a partir do início dos anos 2000 passou, gradativamente, a ocupar um lugar de maior destaque nos programas e discursos dos governos, nos diversos níveis, ainda que em proporção variada. Aqueles envolvidos com o campo da cultura em geral, produtores, agentes, gestores culturais, artistas, também passaram a buscar, a reivindicar, formas de participar e de interferir nos processos de decisão no campo das políticas públicas culturais. Multiplicam-se movimentos de valorização das manifestações culturais locais, aumentando, também, as demandas por uma maior formação e especialização dos agentes e gestores culturais locais.
Ainda que identifiquemos que o país começou, a partir de 2016, a viver uma grave crise de caráter democrático e constitucional, que se aprofunda, no nível do governo federal especialmente, muitas das iniciativas de políticas públicas de cultura plantadas nos territórios floresceram e vêm se mostrando como possíveis alicerces, como bases para o fortalecimento e efetivação dos direitos culturais.
Em momentos de crise, como o atual, é importante retomar algumas das reflexões de Marilena Chauí, sobre o campo da gestão pública da cultura.
Em uma cidade, ou em uma sociedade marcada por carências profundas, alto grau de desigualdade e privilégios solidificados. Propor uma política cultural supõe decisões mais amplas, definição clara de prioridades, planejamento rigoroso dos recursos, sobretudo em tempo de crise econômica, quando um órgão público precisa fazer mais com menos. Numa perspectiva democrática, as prioridades são claras: trata-se de garantir direitos existentes, criar novos direitos e desmontar privilégios. (CHAUI, 2006. p.65)
Em análise recente sobre o lugar e o papel da gestão pública de cultura, o estudioso peruano Victor Vich, chama a atenção para a necessidade de se entender as políticas culturais como dispositivos que podem ativar novos processos sociais. Em uma conjuntura de crise, como aquela que nos aponta Chauí, ou no momento atual, onde assistimos a despolitização das ações cotidianas e a espetacularização da política, Vich chama nossa atenção para o fato de que sempre podemos reinventar novas formas de vida, assim:
38El trabajo en cultura es, entonce, un trabajo enfocado y abocado hacia la construcción de una nueva hegemonía: es un trabajo para transformas las normas o habitus que nos constituyen como sujetos, para deslegitimar aquello que se presenta como natural (y sabemos histórico), y para revelar otras posibilidades de individuación y de vida comunitaria, (VICH. p.19)
Os questionamentos e as reflexões de Vich tratam, de alguma maneira, de uma mesma ordem de coisas como as que foram colocadas por Marilena Chauí ao assumir a Secretaria de Cultura de São Paulo. As elites latino-americanas, mesmo com o retorno aos regimes democráticos, mantiveram os países com níveis de desigualdades profundas. Muitos dos governos, controlados por essas elites, continuaram a tentar “domesticar” os imaginários sociais, contando, em sua grande maioria, com um especial apoio dos meios de comunicação de massa.
Marilena Chauí, no momento em que ocupou a Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, no final dos anos 1980, defendia que uma gestão pública que se paute pelo princípio da cidadania cultural, deveria considerar que todos os cidadãos têm o “direito a produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos significados culturais” (CHAUÍ. 2006. p. 70). Pensar a territorialização das políticas culturais, é ter em mente o alto grau de responsabilidade da gestão municipal na garantia do direito de produzir cultura, seja fornecendo as possibilidades de apropriação dos meios existentes (como visto acima), seja a partir da ação de reconhecimento do que se produz nos territórios como cultura. O florescimento ou a invenção de novos significados culturais podem ser potencializados, ser expandidos, através da implementação de políticas culturais que possibilitem e incentivem a existência dos mesmos. Este é um dos caminhos através dos quais se pode propiciar ou mesmo promover alterações nos cotidianos cristalizados e hierarquizados, permitindo que os atores sociais construam novas imagens sobre si mesmos e possam produzir transformações sociais.
Um direito fundamental, presente em diversos documentos e declarações, a ser garantido efetivamente pelas políticas culturais é o de que o conjunto dos cidadãos possa participar das decisões a serem implementadas pela gestão cultural. Retomando os estudos de Victor Vich, ao apresentar seu trabalho “Deculturalizar la cultura: la gestión cultural como forma de acción política”, o estudioso afirma que sua obra é uma contribuição para o debate sobre a implementação e o desenvolvimento das políticas culturais na América Latina. Campo que, segundo ele, cresce cada vez mais e passa a contar com a participação de profissionais de origem cada vez mais diversa, na medida em que é visto não só como um campo de trabalho, mas como também de possibilidades de profunda intervenção e compromisso social. (VICH. p. 13).
Inspirada, mais uma vez, pelas reflexões de Marilena Chauí, afirma-se que cabe aos governos municipais garantir a existência de locais e condições de acesso aos bens culturais para a população. A efetivação de tal princípio requer planejamento e articulação entre as áreas de políticas públicas, assim como conhecimento sobre a dinâmica cultural do território que está sob a responsabilidade daquela gestão. Segundo a pesquisadora argentina Mariana Chaves, em seu artigo “La ciudad como lienzo de las culturas”, é na mesma matriz cultural que fomos construídos que se constroem as cidades. (CHAVEZ. 2015. p.350). As políticas culturais devem incorporar novos atores sociais aos cenários decisórios (e não inviabilizá-los), sob pena, caso isso não ocorra, que continuemos a assistir a reprodução das desigualdades históricas no campo da gestão pública da cultura. Como nos alerta Victor Vich, hoje “sabemos que la construcción de una sociedad democrática pasa por el estabelecimiento de una verdadera justicia económica y por una mayor institucionalidad política, y quizá da reconstrucción de nuevos imaginarios sociales pueda contriuir a ello”. (VICH, 2014. p. 98). Para Vich, a proposta de desculturalizar a cultura na América Latina é urgente, visa deslocar a cultura de um suposto lugar autônomo e utilizá-la como recurso provocando efetivas mudanças sociais.
39A política cultural deve ser pensada como uma efetiva possibilidade de contribuir com a formação de uma sociedade mais humana, mais crítica, menos desigual nas formas de fazer, de ser, de ver e de estar. O fomento à inventividade nas artes e nas humanidades, por exemplo, prescinde da libertação do pensamento, do estímulo a crítica consciente, da não repressão da diferença.
Voltando ainda ao período da gestão Gil, gostaria de destacar que os projetos e programas ali desenvolvidos trouxeram avanços no processo de transformação da cultura política no campo da gestão pública da cultura. Houve o desenvolvimento de um sentimento sobre a importância da cidadania cultural e participativa. Tais práticas e sentimentos foram alimentados por diversas ações e programas na gestão dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira (nas duas gestões), mas foram sendo secundarizados em detrimento do retorno a formas de operação filiadas a outra cultura política.
Os projetos de institucionalização da cultura, nos três níveis de governo, foram sendo abraçados por alguns governos estaduais e municipais, gerando resultados interessantes nos territórios e retornando em forma de novas demandas e representações para o governo federal.
Nessa quase uma década e meia, o Ministério da Cultura passou a ocupar, simbolicamente um papel de destaque. As ações implementadas, apesar do baixo orçamento do Minc, deram voz a uma série de grupos e segmentos excluídos dos fóruns de decisão das políticas pública. Pode-se falar em protagonismos e parcerias menos verticalizadas.
Em tempos de crise democrática, excessiva concentração de poderes nas mãos de segmentos sociais e políticos, que ignoram as vozes, as demandas, os desejos e os direitos de uma maioria da sociedade, tornam-se fundamental a reflexão e a busca de novos desenhos e pactos políticos e sociais. O discurso cínico sobre a necessidade da despolitização do ensino e da cultura esconde por trás dele um projeto de dominação que busca perpetuar, quem sabe por mais alguns séculos, a história de desigualdades e de privilégios de uma determinada elite que está escrita nas páginas da história do país. A gestão municipal da cultura, as políticas culturais territoriais, podem contribuir para a conformação de um novo cenário futuro: o de uma sociedade democrática e participativa, com a existência de uma efetiva cidadania cultural.
Referências
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