Cultura é o que fica depois de se esquecer tudo o que foi aprendido.
André Maurois
A cultura do pensar e o pensar sobre a cultura
O pensar é, em si, elemento da cultura, embora haja uma distinção, dizem alguns, entre o pensar e o fazer cultura, nos moldes de uma vinculação epistemológica que separa as duas práticas, a do pensar e a do fazer. Alegam tais defensores que, se na primeira o exercício cerebral, na ordenação dos elementos da linguagem, se firma como característica, no segundo, a mobilização social e a construção de ações e objetos culturais imperam, como atributos que caracterizam esse fazer.
Ainda que admitíssemos a distinção, a linha que dividiria essas categorias seria muito difusa, cabendo, por exemplo, defender que um livro sobre cultura é produto cultural. Logo, o pensar que resulta em livros, artigos e ações como palestras e seminários são, simultaneamente, o fazer o pensar a cultura. De modo semelhante, seria o fazer a cultura, que considera, em toda produção, um pensar cultural que se lança ao fazer. A intrincada e dinâmica manifestação cultural torna-se, então, uma completude entre o fazer o pensar, entre o pensar fazendo e o fazer pensando. A cultura é um pulsar de proposições práticas e teóricas, e que permite teorizar com práticas e praticar com teorias.
Ensina-nos a didática que a segregação, não apenas por puro prazer do método científico, é uma bondosa auxiliar, permitindo-nos a compreensão de cada elemento formador de um conjunto, antes de nos atrevermos a buscar a chave léxica do conjunto. Observado por este ângulo, não se pode retirar a razão de quem distingue o fazer do pensar, e o pensar do fazer, mesmo na cultura, observada ser a distinção um percurso para se retomar o todo. No dizer de Canclini (1998), a caracterização de culturas como a familiar, a corporativa, a empresarial, a religiosa etc, nos serve para melhor dimensionar perfis de comportamentos e valores, mas não para segregar tais culturas de outras, como se fossem, de fato, isoladas. Não são. Em Dubet (1994) vemos que as experiências sociais possuem tonalidades de compartilhamento que influenciam fortemente nossas experiências individuais. Não há perspectiva de isolamento do individual com o social, embora possamos abordá-las distintamente, em um esforço analítico. As interações são não somente frequentes, mas se vinculam de modo indelével, em interdependência. Gostos, valores e mesmo compreensão da vida são visões compartilhadas por grupos e comunidades. Subjetivações são igualmente processos apreendidos culturalmente, na mescla do individual com o social.
E se assim o é com a construção da subjetividade, com a cultura, formada pelos âmbitos social e individual que se socializa, não seria de outro modo. A cultura, em seu fazer e pensar, consuma a natureza plural, diversa e rica de uma comunidade, mantendo a relação diretamente proporcional entre sua riqueza e sua diversidade.
9A cultura do fazer e o fazer a cultura
Talvez, e somente talvez, a distinção entre pensar e fazer seja resquício dos pensamentos de Platão e Aristóteles. Para o primeiro, o pensamento é o eixo do mundo, a verdade. Para o segundo, os universos do mundo natural e do pensamento coabitam o ente cognitivo, fundando a consciência do mundo. Se no primeiro o pensar é o exercício mais nobre, no segundo o fazer é tão valorizado quanto o pensar, não se restringindo a um mero exercício de pôr em ação o que a mente já elaborou. A cultura, de modo geral, aponta para a valorização do pensar sobre o fazer, claramente identificada em salários, em status social e mesmo no exercício próprio das atividades. Um pensador sobre cultura tende a ser mais admirado que um fazedor de cultura. A exceção talvez esteja na Arte, visto que o artista rompe a barreira do fazer, justamente porque atua no campo da linguagem, do pensar e fazer pensar. Nesse campo, o da Arte, o fazer o pensar se equilibram.
Ocorre que a cultura não se restringe à Arte, embora muitos façam essa confusão. Muitos outros pensam em cultura como algo elevado, vinculando-a ao conhecimento ou a comportamentos mais refinados, como observa Bauman:
O uso do termo ‘cultura’ está tão profundamente arraigado na camada comum pré-científica da mentalidade ocidental que todo mundo o conhece bem, embora por vezes de forma irrefletida, a partir de sua própria experiência cotidiana. Nós reprovamos uma pessoa que não tenha conseguido corresponder aos padrões do grupo pela ‘falta de cultura’. Enfatizamos repetidas vezes a ‘transmissão da cultura’ como principal função das instituições educacionais. Tendemos a classificar aqueles com quem travamos contato segundo seu nível cultural. Se o distinguimos como uma ‘pessoa culta’, em geral queremos dizer que ele é muito instruído, educado, cortês, requintado acima de seu estado ‘natural’, nobre. Presumimos tacitamente a existência de outros que não possuem nenhum desses atributos. Uma ‘pessoa que tem cultura’ é o antônimo de ‘alguém inculto’. (BAUMAN, 2012, p.80)
Nesse sentido, urbanidade e civilidade tendem a ser confundidas com cultura, cuja abrangência é maior. De igual modo, a dita cultura erudita acaba por se superpor à cultura popular, vernacular. A cultura se lastreia por comportamentos, gostos, valores, tradições e forma, em linhas gerais, uma base na qual se assenta a ideia de sociedade. Como cultura, entende-se tudo o que não é inato, mas tem procedência justamente com a experiência com o mundo e com o outro, com a sociedade. Nessa acepção, todos têm cultura, indistintamente.
Com esse pensamento, poder-se-ia argumentar que qualquer coisa é legitimamente cultura. E de fato o é, embora se deva vincular às ações culturais o interesse social, caracterizador de qualquer ação que apresente a ela, sociedade, algo a que se vincule valor. Desse modo, um almoço cotidiano é elemento da cultura, seja pela concepção de refeição em horário específico, com determinadas características, seja pela seleção do cardápio. Um almoço comum na casa de um brasileiro do interior de Minas Gerais pode ser uma refeição altamente valorada para brasileiros que residam no exterior ou para turistas, tornando uma noite de gastronomia típica mineira. Os traços de ações culturais mais se vinculam ao lastro de excepcionalidade que efetivamente de qualidade ou de características específicas. Não por outro motivo a Arte, ao estabelecer o círculo mágico que a distingue da experiência comum, tem grande vinculação com a cultura, embora não a esgote.
10Cultura e a arte: tangências
A Arte é, como dito, uma forma específica de valorar elementos da cultura, ao reunir a ação e o pensamento criativo, em objetos e ações que recebem o selo de distinção do comum, pela inscrição de uma aura do círculo mágico. O atributo aurático, cujo fim foi postulado por Walter Benjamin (2000) quando a ideia de reprodutibilidade técnica surgiu nas artes, foi mantido, a contragosto do que previu o filósofo e sociólogo alemão. A Arte e seus objetos, bem como os artistas, mantiveram e mantêm a aura, ainda que a premissa de obra única ou de um original da obra tenha se perdido.
A relevância da Arte para a cultura está relacionada a essa condição de excepcionalidade do comum, resultando em uma experiência estética, considerada ápice de uma experiência (DEWEY, 2010). A perspectiva de incomum não significa, aqui, absolutamente desconhecido. Pelo contrário, a excepcionalidade se estabelece justamente pelo reconhecimento, que em si pressupõe conhecimento prévio, em contextos ou constituições distintas.
Essa singularidade que aponta para o ápice de uma ação bem executada gerou, no cotidiano, a ideia de que arte pode ser qualquer coisa, desde que bem executada: a arte de andar, a arte de comer, a arte de se vestir... Essa valoração é sintetizada no adjetivo arte, como qualificador de qualquer ação originalmente ordinária, mas que por vários motivos se singulariza. Na maior parte das vezes o virtuosismo é o elemento singularizador, embora não seja, em absoluto, o único.
De outro lado, no dizer comum, a Arte, como ápice da cultura, acaba por inscrever a segunda na primeira, criando determinados embaraços, inclusive de políticas públicas. Tomemos como exemplo o próprio Ministério da Cultura, que por vezes enxerga mais sua necessária ação de promover a Arte, em detrimento de outras formas de manifestação artística. Ainda que por vezes isso possa se atribuir por motivações mais políticas, de alcance e abrangência que conceituais, havemos de concordar que sua função não é, somente, o fomento da Arte, mas essencialmente da cultura, em toda a sua diversidade, seja singular ou comum. Do mesmo modo que o Ministério da Educação ou da Saúde tem como função prover educação e saúde para o cidadão, ao Ministério da Cultura cabe o provimento do acesso à cultura, em sua diversidade e complexidade, e não apenas as atividades de fomento às Artes, parte essencial, mas não a totalidade da cultura de um país.
A Arte, ao proporcionar objetos e ações cujos valores somente se instauram no contexto da cultura, eleva seu grau social à condição de pensamento criativo, quebrando, de certo e todo modo, a dualidade do fazer e pensar a cultura. Entrementes, será ainda preciso apontar para a característica fundante da cultura, para além das Artes, como apontado. E nesse esgarçamento conceitual, de abrangência genérica e por vezes comum, apontar o que dali se mantém, ontologicamente, como base da cultura, portanto social e compartilhado. Desde a colocação do alho em um prato característico de um local, até o modo de se vestir de um tempo, de se portar e comportar em reuniões sociais. A cultura é tudo o que aprendemos, principalmente o modo como o fazemos. E a Arte aponta, fere e rasga exatamente esses lastros fundantes da cultura, exibindo sua carne, fazendo enxergar sua pulsação contínua, desconcertante, reconfortante.