Ao compreender a ideia de ignição como algo que dispara um processo, tratamos da ignição, neste ensaio, como um disparador dos modos operacionais do processo criativo, a partir de uma abordagem ontológica de tais processos em constante saturação e transformação, e, por outro lado, de uma abordagem fenomenológica. Apontamos a necessidade de saturação de um processo que extrapola a condição humana, sendo disparado por uma tensão de energias em ignição em sistemas complexos. Neste sentido, trazemos três abordagens distintas que, de certo modo, concebem alguns aspectos da criação de modo processual. Inicialmente, abordamos conceitos referentes ao pensamento de Gilbert Simondon sobre o processo de individuação e as relações entre matéria e forma implícitas pelo mesmo, sendo disparadas por ignição; e, posteriormente, Edgar Morin e Charles S. Peirce, que pela centelha que produzem, através do insight, aciona o processo criativo a partir de hipóteses brandas obtidas pela lógica abdutiva que nos permite pensar neste processo como uma ignição em toda a sua complexidade.
Individuação e matéria-tomando-forma em Simondon
Os processos de criação, que envolvem humanos e não humanos, são atos que envolvem a constituição da matéria e da forma em transformação, já que tratar do “não-humano é conquistar o ontogenético do pré-individual que catapulta sobre o limiar do devir” (MASSUMI, 2009, p.45). A experiência de criação não ocorre no indivíduo isolado e determinado, mas no acesso ao plano pré-individual O indivíduo possui elementos da realidade pré-individual (reservatório de virtualidades). A natureza pré-individual é uma fonte de estados metaestáveis que, no futuro, permitirão produzir novas individuações. A individuação encontra-se no domínio do físico e no domínio do vivo que é psíquica e coletiva. Não existe individuação psíquica que não seja coletiva. Ela se encontra tanto no ser como no conhecer. Portanto, os modos como a Natureza cria e como o humano constrói seu conhecimento da Natureza e de si mesmos estão intrinsecamente relacionados. que o constitui e o abre aos devires. Assim, não falamos de um indivíduo que cria, mas de um processo de criação que extrapola o indivíduo e que pertence ao ser imerso no plano pré-individual. Simondon diferencia o ser do indivíduo, na tentativa de não restringir este segundo. Para ele, o ser:
Transborda o indivíduo e não se esgota nele. Apenas um ser pré-individual se atualizando em indivíduos pode estar na gênese do indivíduo. O indivíduo não passa de uma fase do ser, de seus potenciais energéticos pré-individuais, uma resolução que não esgota o campo de onde emerge (PELPART, 1998, p. 47).
Neste processo de individuação, o indivíduo é devolvido à sua dimensão pré-individual, provocado a sair do uno e a entrar no múltiplo (OLIVEIRA, 2010). Assim, “[...] a individuação deve ser apreendida como devir do ser e não como modelo do ser que esgotaria sua significação” (SIMONDON, 2003, p. 106). O devir é justamente a negação da transcendência a ser atingida. Abrir-se ao devir é justamente suportar nossa natureza pré-individual emergente, que se conserva no indivíduo como nascente de novas individuações. É suportar o afronto do pré-individual que nos tira a ilusão de eternidade transcendente e remete-nos à transitoriedade emergente.
72A individuação não é resultado fixo de uma forma em uma matéria que resulta em um indivíduo e sim expressão de uma resolução em constante saturação e (trans)formação de um processo metaestável. A individuação não preexiste ao indivíduo e nem vice-versa, ambos são contemporâneos, “na realidade, o indivíduo só pode ser contemporâneo de sua individuação e, a individuação, contemporânea do princípio: o princípio deve ser verdadeiramente genético, não simplesmente princípio de reflexão” (DELEUZE, 2006, p. 117).
Simondon coloca que “[...] primeiro, existe o princípio de individuação; em seguida, este princípio opera em uma operação de individuação; por fim, o indivíduo constituído aparece” (2003, p. 100). Assim como não se pode entender o humano a partir somente dos referenciais humanos, isolando-o como um sistema à parte, também não se consegue compreender a produção dos objetos estudando-a desvinculada do homem e do mundo. É a existência de diversas gêneses que constitui a complexidade do mundo; a gênese como um processo de individuação que extrapola o humano, processo de individuação coletiva que engloba individuação física, individuação vital e individuação psíquica (SIMONDON, 1964).
De fato, nos questionamos o que acontece neste plano que chamamos pré-individual? Há velocidades e lentidões impulsionadas por uma força de ignição, isto é, são formas dinâmicas que agem através de um modelo complexo, um constante matéria-tomando-forma em uma relação constitutiva entre matéria e forma (OLIVEIRA, 2010; 2012). Assim, como se tem uma individuação do pensamento que está sempre se construindo, também a matéria se encontra em um processo contínuo de transformação. Busca-se entender as transformações da matéria que se abre aos devires, ao tornar-se algo que pode ser humano, animal, objetual, programático, enfim, matéria-tomando-forma. Fala-se de uma ontologia da matéria para se pensar em processo de individuação além do recorte humano. Como Preciosa coloca: “nascemos dotados de uma forma que irá desaparecer. Somos cria de um exótico paradoxo: a energia do informe e a fome de forma, hesitante pêndulo que movimenta e colore a criação” (2010, p. 54).
A matéria que se fala aqui é inseparável da forma, sendo a vida esse constante fazer-se matéria-forma em todos os níveis. A arte, ao trabalhar sobre a própria vida, nada mais faz que explicitar tais relações entre matéria e forma. Tal concepção vai de encontro à concepção hilemórfica aristotélica A teoria hilemórfica aristotélica defende que todo o ser traz em si mesmo a sua própria essência que é realizada no mundo natural. A sua posição é realista, ou seja, os seres existem em determinação direta de sua própria essência. Isto é, pelo conjunto de características específicas que estão escritas na substância básica que os constitui como integrantes de uma espécie., que estabelece que forma e matéria são realidades independentes na busca de um sistema universal de classificação. Forma e matéria, na concepção hilemórfica, são duas entidades abstratas e sem relação constitutiva. Desconsidera a operação técnica entre matéria e forma, sendo que há uma forma abstrata imposta a uma matéria inerte, uma ideia pré-concebida que se reproduz em certo material que a acolhe. Uma experiência baseada na estrutura sujeito e objeto, sendo “esta estrutura identificada com a relação básica do conhecedor para o conhecido. O sujeito é o conhecedor, o objeto é o conhecido” (WHITEHEAD, 1967, p.175). Nesta direção, há uma ideia interior e subjetiva que guia a execução da obra que se externaliza em um objeto com uma matéria passiva, ou seja, há uma ideia linear de uma causa assentada no passado, que se realiza em um efeito no presente.
73Segundo o dualismo hilemórfico, o indivíduo é o resultado ou o composto engendrado pelo par matéria/forma. Todavia, tanto o monismo substancialista quanto o esquema bipolar hilemórfico parecem pressupor a existência de um princípio de individuação que antecede o próprio processo de individuação, sendo, pois, capaz de explica-lo de antemão. Trata-se, para essas duas correntes filosóficas, de buscar o princípio de individuação a partir do próprio indivíduo já constituído e dado (DAMASCENO, 2007, p.174).
A subversão que Simondon promove na investigação da gênese do indivíduo consiste em recusar o indivíduo já constituído e o real individuado como ponto de partida para explicação dessa gênese. Trata-se, antes, de buscar a gênese do indivíduo no princípio de individuação, já que nem o atomismo substancialista, nem a doutrina hilemórfica fornecem a descrição completa da ontogênese do composto (DAMASCENO, 2007).
O estudo da individuação nos convida a perguntar “como se cumpre a ontogêneses, a partir de um sistema que comporta potenciais energéticos e germens estruturais; não é substância senão um sistema que tem individuação, e essa individuação é a que engendra o que se chama uma substância, a partir de uma singularidade inicial” (SIMONDON, 1964, p. 67). Um processo dinâmico que não permite o congelamento da forma, do corpo fixo, uma vez que este se satura e se transforma continuamente, estando em permanente diferenciação de si mesmo.
As transformações da matéria-tomando-forma abrem-se aos devires. De acordo com esta ideia de matéria-tornando-forma e incorporando a ideia de complexidade detectada por Edgar Morin, onde os pensamentos contemporâneos são ecossistêmicos e complexos, Simondon, busca unir os conceitos de matéria e forma a partir de uma filosofia da técnica, das operações tecnológicas que demonstram que forma e matéria pertencem ao mesmo processo, isto é, que “a formação é uma operação comum à forma e à matéria em um sistema” (SIMONDON, 1964, p. 23), em constante transformação.
Simondon, em seu exemplo da fabricação do tijolo, afirma que para o tijolo existir é necessária a relação íntima entre o barro e o molde, isto é, um barro determinado precisa de um molde específico, sendo “necessário que uma operação técnica efetiva institua uma mediação entre uma massa determinada da argila e esta noção técnica de paralelepípedo”. Não é impor uma forma à matéria, mas, através de uma operação técnica, efetuar “um encontro entre duas realidades heterogêneas, e instituir uma mediação, por comunicação entre uma ordem inter-elemental, macrofísica, maior que o indivíduo, e uma ordem intra-elemental, microfísica, menor que o indivíduo” (1964, p. 18).
“Para dar uma forma, é necessário construir tal molde definido, preparar de tal maneira, com tal espécie de matéria” (SIMONDON, 1964, p.19). O molde, a forma não é um limite externo imposto à matéria, exatamente o contrário, pois, caso seja, ele não sustenta a matéria. Existe uma mediação, a preparação da argila já deve considerar o molde a ser utilizado, bem como o molde fabricado, já atenta ao material que vai abrigar, ambos são preparados para o encontro.
A forma, antes de se tornar um limite externo, é uma requisição interna, uma necessidade daquele tipo específico de matéria, isto é, não é uma estrutura geométrica, mas limite de forças da matéria. “A argila preparada será aquela na qual cada molécula estará efetivamente em comunicação, qualquer que seja seu lugar em respeito às paredes do molde, com o conjunto das pressões exercidas pelas paredes” (SIMONDON, 1964, p.19).
74A matéria não é passiva, mas ativa com relação à forma, bem como a forma é ativa em relação à matéria. A forma intervém sobre o movimento de coesão e composição das moléculas, influenciando na própria constituição da matéria; bem como a matéria comunica e constrói a forma que a suporta. Sempre há relações de força entre forma e matéria. A argila, ao ser retirada do solo, pelo artesão, já tem uma forma; quando ele a sova, ela também já tem uma forma conforme suas propriedades; quando a argila é colocada no molde, ela já solicita determinado formato do molde, entre muitos possíveis, não permitindo qualquer um.
De acordo com Hélio Oiticica (1937-1980)
A obra nasce de apenas um toque na matéria. Quero que a matéria de que é feita a minha obra permaneça tal como é; o que a transforma em expressão é nada mais que um sopro: sopro interior, de plenitude cósmica. Fora disso não há obra. Basta um toque, mais nada. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/biografias/klick/0,5387,1790-biografia-9,00.jhtm. Acesso em: 28 jul. 16.
Portanto, “a qualidade da matéria é fonte de forma, elemento de forma que a operação técnica faz trocar de escala” (SIMONDON, 1964, p. 19). A última forma que se define não surge de uma ideia imposta, ela é uma fase de uma cadeia de transformações que ocorre em nível molecular de acordo com sua topologia. A forma não põe fim à deformação da argila. A deformação nos mostra que há inúmeras formas em formação, que não se trabalha puramente sobre a matéria, mas sobre as formas da matéria. É o primeiro gesto sobre a matéria já formada, vai se desdobrando até a forma final estipulada. A forma estabiliza a deformação da matéria em certo momento, que, posteriormente, torna-se a transformar novamente. Contudo, a forma somente pode atuar sobre as propriedades que a matéria já traz, como a argila a ser moldada.
Para que a matéria possa ser moldada em seu devir, é necessário que seja, como a argila no momento em que o oleiro a pressiona no molde, de realidade deformável, quer dizer de realidade que não tem uma forma definida, senão todas as formas indefinidamente (SIMONDON, 1964, p. 20).
A operação técnica entre matéria, forma e energia em certo meio associado constrói a tecnicidade da obra. A forma estabiliza a deformação da matéria; a matéria define a forma; e a energia, veiculada pela matéria, é potencializada pela forma. Como a relação matéria, forma e energia encontra-se em ressonância interna, a matéria encontra-se tomando forma. O princípio de individuação nada mais é que a operação entre matéria e forma, sendo que o indivíduo não é matéria mais forma, mas a operação em que a matéria toma forma em ressonância interna, em trocas energéticas.
Deste modo, a operação técnica se dá pelas propriedades da matéria, pela ação externa (gestos) e pela forma como limite e estabilidade molecular. O processo de individuação requer um sistema de matéria, forma e energia em ressonância interna. Se a forma está sempre em formação: matéria-tomando-forma, isto implica que a matéria já traz formas implícitas como um limite preexistente que determina a operação técnica. “É necessário que a matéria esteja estruturada de certa maneira, que tenha propriedades que sejam a condição da formação” (SIMONDON, 1964, p. 29). A matéria argila não pode gerar qualquer forma, mas somente as possíveis de acordo com suas formas implícitas.
75A complexidade segundo Edgar Morin
Hoje, notamos a existência dos fenômenos complexos que sempre existiram e, com as tecnologias emergentes e a crescente produção de conhecimento, observamos que cresce exponencialmente o nível de complexidade de nossas representações pelas quais se organizam a linguagem e o conhecimento. Destacamos ainda um grande diferencial de concepção que defende a ideia que o fenômeno complexo se estabelece em processo auto-eco-organizacional que é produzido a partir da “autonomia dos fenômenos antropossociais”. Para Edgar Morin,
A dificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfrentar o emaranhado (o jogo infinito das inter-retroações), a solidariedade dos fenômenos entre eles, a bruma, a incerteza, a contradição. Mas podemos elaborar algumas ferramentas conceituais, alguns dos princípios para esta aventura, e podemos entrever o semblante do novo paradigma de complexidade que deve emergir (2015, p. 14).
No passado, buscou-se compreender a realidade pela simplificação. Hoje, a partir da Teoria da Relatividade, espaço e tempo se fundem e não podem ser considerados como conceitos absolutos. Assim, como a “Teoria Quântica nos mostrou que medições perfeitamente controláveis não passavam de um sonho” (BES, 2007). Para Vieira e Santaella (2008), as características que envolvem os sistemas complexos são: auto-organização e emergência, conectividade, co-evolução, espaços de possibilidades, caos e estruturas dissipativas que, resumidamente, podem ser assim definidas:
a) Auto-organização e Emergência é um tipo de interação onde os elementos constituintes do sistema encontram forma adequada de estabelecer as relações. Não possui um agente controlador;
b) Conectividade é o que leva os elementos do sistema a estabelecer relações entre si e com o ambiente;
c) Na Co-evolução cada elemento do sistema influência e é influenciado pelo ambiente;
d) Os Espaços de Possibilidades são as possíveis estratégias de adaptação que os elementos de um sistema possuem para buscar a sobrevivência. De fato, a fim de permanecer, os elementos de um sistema buscam adaptar-se quando o ambiente em que eles vivem está sujeito a mudanças;
e) Caos é forma de complexidade onde a ordem e a desordem convivem no mesmo sistema. Ele é um comportamento não linear, imprevisível e que depende das condições iniciais do sistema;
f) Por fim, temos as Estruturas Dissipativas que observa que “a organização emerge em uma escala espaço-temporal macroscópica que, muitas vezes, é maior do que as interações entre os elementos”, isso mostra que se torna difícil prever o comportamento de um sistema complexo, mesmo quando temos certo controle sobre ele (2008, p. 52-54).
De fato, a realidade é, ao mesmo tempo, dinâmica e estática, contínua e descontínua, estável e instável, linear e não linear e, portanto, multilinear e multidimensional. Enfim, ela comporta fenômenos e modelos que já foram tomados pelas simplificações, mas, agora, devem ser observados em sua complexidade e de forma integradora, conectada, co-evolutiva, dada nos espaços de possibilidades e auto-eco-organizada.
76Em sua dimensão ontológica, a partir da complexidade do real, o ser e sua realidade funcionam a partir de uma engenharia complexa, constituída de uma dinâmica não-linear, de natureza recursiva ou retroativa, indeterminada, cujo padrão de funcionamento acontece em rede (CAPRA, 1997; MATURANA, 1999). É uma realidade que possuía complexidade e a indeterminação entranhada no tecido do universo e, a partir da qual, novas propriedades ou novas emergências surgem em decorrência do seu funcionamento reticular (MORAES; VALENTE, 2008, p. 20).
Apesar das limitações que possuímos para acessar o real, conseguimos criar representações a respeito dele que, por possuir algum nível de coerência sistêmica com a realidade, permite nossa sobrevivência. É com base na observação desses sinais da realidade que sempre pudemos, ao longo de nossa história evolutiva, nos adaptar ao meio. Quando agimos sobre um sistema real na tentativa de compreendê-lo ou modifica-lo, usualmente, selecionamos no sistema em questão, parâmetros considerados essenciais, formalizando-os por meio de modelos. Na verdade, para Burge (1974), todas as teorias que construímos são modelos de pedaços da realidade. E estas simulações e modelos nunca dão conta da totalidade dos fenômenos.
A inferência abdutiva em Peirce e o processo criativo
Ainda sobre a ignição e os processos criativos, com uma abordagem diferenciada da visão de Simondon, trazemos Charles Sanders Peirce (1839-1914) e sua Teoria Semiótica, que trata do conceito de signo, das inferências lógicas “abdutiva, indutiva e dedutiva” e dos sistemas complexos através da Fenomenologia. Este lógico, filósofo e matemático foi um dos primeiros pensadores a considerar as relações entre os organismos vivos, a natureza e sistemas complexos e ambientais.
Ao definir as “Categorias do Pensamento e da Natureza”, ele propôs uma classificação para os fenômenos baseado na tríade: “primeiridade”, que é a faculdade de gerar hipóteses, a “segundidade”, que é a capacidade de verificação e validação destas hipóteses e a “terceiridade”, que é a capacidade de generalização destas hipóteses que se transforma em lei, estabelecendo regras.
Aprofundando um pouco mais os três princípios estabelecidos por este modelo lógico de classificação dos fenômenos temos que a “primeiridade” corresponde ao acaso e é um fenômeno que se apresenta à consciência num estado puro. A “segundidade” corresponde à ação e reação e trata do conflito da consciência com o fenômeno, quando buscamos um entendimento. Por último, a “terceiridade” é a generalização que se dá pelo processo de mediação, através do signo (HILDEBRAND, 2013, p. 2239).
Para Peirce, a Fenomenologia é a ciência que estuda tudo aquilo que aparece, tudo aquilo que percebemos. Ele afirma que “os elementos de todo conceito entram no pensamento lógico pela porta da percepção e encontram sua saída pela porta da ação propositada; e aquilo que não puder mostrar seu passaporte nessas duas portas deve ser preso como não autorizado pela razão” (CP 1.202). Para ele, o que percebemos são os Signos, a linguagem é formada por Signos, enfim, tudo é dado por meio dos Signos.
Peirce define Signo como “algo que representa alguma coisa para alguém, sob algum ponto de vista”. Ele tem uma estrutura complexa definida em função de três elementos que se interconectam e que não podem ser analisados separadamente, pois constituem uma mediação, são eles, o representámen ou fundamento do signo, seu objeto e o interpretante. Peirce comenta que o:
77Signo é um Cognoscível, que, de um lado, é assim determinado (isto é, especializado) por algo diverso dele, chamado o seu Objeto, enquanto, por outro lado, ele próprio determina uma Mente existente ou potencial, determinação essa que denomino o Interpretante criado pelo Signo, e onde essa Mente Interpretante se acha assim determinada mediatamente pelo Objeto. (PEIRCE, 1983, p. 121).
A Semiótica, que para Peirce se confunde com a Lógica, pode ser classifica por três inferências lógicas: abdução, indução e dedução. A primeira é uma inferência que cria novas hipóteses e é a que nos interessa. É através do raciocínio abdutivo que se dá o processo criativo. Ele é um “quase-raciocínio, instintivo, uma adivinhação altamente falível, mas é o único tipo de operação mental responsável por todos os nossos insights e descobertas” (VIEIRA; SANTAELLA, 2008, p. 61). Os valores produzidos pelo raciocínio “abdutivo” serão analisados pelo processo operatório ao qual submetemos os fenômenos através do raciocínio “indutivo” que, finalmente, serão determinados e cumpridos pela “dedução”.
De fato, o signo, o objeto e a mente interpretante estão submetidos a um processo relacional lógico que se constitui a partir destas três inferências lógicas. A representação que o signo permite elaborar de seu objeto é uma relação criada a partir de um signo anterior, isto é, o significado de um signo é outro signo, e assim, estamos lidando com um processo contínuo de mediações: um processo de semiose que é a ação do signo.
A intenção de representar um objeto é inerente a qualquer signo. Um signo substitui o objeto e só pode existir enquanto tal, enquanto é uma representação realizada em uma mente interpretante. Portanto, um signo representa seu objeto de algum modo e nunca em sua totalidade, tendo a capacidade de representar, parcialmente, o objeto explicitado por ele na particularidade da mente interpretante.
Assim, toda produção de hipóteses: insights se dá a partir da inferência abdutiva e, particularmente, o processo de transformação da matéria-tornando-objeto em um meio associado que habita um plano pré-individual constitui, suporta e une os corpos. O objeto tecno-estético que, por meio do insight, produz a obra de arte, é definido e define o seu meio associado e se configura num processo de mediação.
As obras artísticas
Concluindo este ensaio e analisando duas produções artísticas através dos conceitos aqui explicitados e levando em conta que o mundo dos fenômenos naturais e culturais tratados pela percepção complexa, devem ser observados por modelos lógicos cognitivos onde a criatividade produz vida, conhecimento e, particularmente, obras artísticas.
Os artistas precisam entrar no coração da matéria, no corpo da pesquisa. Eles precisam deixar suas mãos sujas (com todas as positivas e negativas conotações que a frase sugere). Os artistas necessitam realizar sua pesquisa sobre seu próprio laboratório, avançando de seus pastéis para o gosto dos microscópicos, centrífugas e géis. (WILSON in JONES, 2010, p. 128).
Nas séries de fotomontagem digital “InCorpORaÇõEs”, de Andréia Oliveira, fica clara a atuação de formas implícitas. Havia uma intenção inicial da artista de misturar os corpos das modelos fotografadas, todavia cada modelo foi fotografada de modo diferente: uma com contraste de luz, outra com luz regular; uma com diferentes distâncias, outra com uma distância bem próxima. Ainda, os corpos das modelos apresentam características bem diferenciadas. No monitor do computador, ambas modelos se transformaram em pixels, contudo com diferenças infinitesimais nas qualidades de luz dos pixels de cada modelo que solicitava tratamento e formas diferenciadas. As formas implícitas dos corpos das modelos e dos pixels determinaram duas séries diferentes.
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Os corpos das modelos não conseguiram se misturar, não se atraíram e nem se incorporaram, pois suas formas implícitas e seus elementos não se compuseram. “Saber utilizar uma ferramenta, não é somente ter adquirido a prática dos gestos necessários; é também saber reconhecer, através dos sinais que chegam ao homem pela ferramenta, a forma implícita da matéria que se elabora, no lugar preciso que ataca a ferramenta” (SIMONDON, 1964, p. 30). Com isso se quer dizer que a matéria porta formas implícitas que impõe limites prévios a operação técnica. Na madeira, o limite elemental é a célula que constitui determinadas fibras; nas imagens digitais, o limite elemental são os pixels.
Os elementos trazem formas implícitas que somente aparecem no fazer, na operação técnica, como, por exemplo, no corte da madeira. “Essas mesmas formas implícitas, as fibras, podem ser utilizadas como poros (por secção transversal) ou como estruturas elásticas resistentes (por secção longitudinal)” (SIMONDON, 1964, p. 31). Ao mesmo tempo que as formas implícitas delimitam as operações técnicas, elas precisam destas operações para se expressarem. Com isso, matéria e forma não se opõem, pois há formas implícitas na própria matéria.
A porosidade não é uma qualidade global que um pedaço de madeira ou de terra poderia adquirir ou perder sem relação de inerência com a matéria que a constitui; a porosidade é o aspecto sob o qual se apresenta, na ordem de magnitude da manipulação humana, o funcionamento dessas formas implícitas elementares que são os poros da madeira tal e como existem de fato. As variações da porosidade não são trocas de qualidade, senão modificações dessas formas implícitas: os poros se fecham ou se dilatam, se obstruem ou desenvolvem. (SIMONDON, 1964, p. 32).
A outra obra que teceremos comentários é a instalação artística interativa “MetaCampo”, do Coletivo Artístico SCIArts – Equipe Interdisciplinar4. A poética e os conceitos abordados pela obra apresentam fundamentos que buscam apreender a complexidade dos fenômenos. “MetaCampo” é a simulação de um campo de trigo (hastes flexíveis) que tem a ação do vento sobre ele. A obra de arte busca relacionar elementos naturais (vento) e os movimentos realizados pelo público no interior da obra. Os dados de entrada do sistema são produzidos por uma veleta Veleta é sinônimo de cata-vento. O cata-vento é um dispositivo que aproveita a energia dos ventos (energia eólica) para produzir trabalho. que está fixada na parte externa do prédio onde a instalação foi montada e as informações de movimentação do público na frente da instalação.
As informações capturadas são transmitidas para a instalação através de sensores e de um sistema computacional, que controla um ventilador e um sistema de eixos que desloca este ventilador sobre uma “plantação” artificial de hastes flexíveis simulando um campo de trigo. No interior da obra ainda temos um conjunto de espelhos que refletem as hastes trazendo a ideia de um campo, que se estende infinitamente formando um “MetaCampo”.
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A obra tem como princípio poético os conceitos sobre os estudos nos campos das emergências, da complexidade e ecossistêmicos. Processos emergentes e a complexidade são processos “auto-organizados” que os sistemas produzem. Estes processos acontecem em profusão com a natureza, mas são passíveis de serem gerenciados, no entanto, não se submetem a nenhuma coerção. (ARATA, 2003).
Fazem parte da instalação interativa os sensores, atuadores, microcontroladores, sistemas computacionais, mecânicos e eletrônicos, e elementos matérias físicos e naturais (vento), que produzem interação e estão acoplados por estruturas mecânicas controladas por hardware e software, que analisam estados sensíveis de alteração da intensidade e direção do vento e pela posição dos visitantes diante da obra. O público ao contemplar a instalação e o movimento das hastes percebe padrões que emergem dos dispositivos que capturam o vento e o movimento das pessoas. Os artistas propõem um diálogo entre natureza e ação humana sendo que o meio tecnológico, como meio associado à tecnologia digital, define um objeto tecno-estético que dialoga de forma criativa com o homem, com a natureza e as tecnologias contemporâneas.
Por fim, concluindo este ensaio, verificamos que o mundo e os fenômenos naturais e culturais devem estar inseridos em um ecossistema lógico e complexo que através dos meios e de seus modos operacionais dinamizam o processo criativo sob as reflexões da matéria e forma em Simondon que são mediadas por certa tecnologia, as questões que envolvem a complexidade em Morin e, as perspectivas semióticas, lógicas do processo de criação em Peirce.
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